Autor : Coletivo

Para Marx, o direito pode ser emancipatório?

Por Júlio Gonçalves Melo no GGN

Apesar de ter concluído o curso de direito na Universidade de Berlim – e de lá ter sido aluno de ninguém menos que Savigny –, Marx não deu uma atenção particular, nem um tratamento tão sistematizado ao fenômeno jurídico ao longo de sua obra. Na realidade, parece que há um consenso na literatura de que qualquer um que queira estudar as relações entre o marxismo e a teoria do direito tem que obviamente conhecer não somente a filosofia de Marx em geral como também os trabalhos específicos de outras autoras e autores, herdeiras(os) de seu pensamento.

Em linhas gerais, é possível dizer que, para Marx, a vida em sociedade pode ser vista didaticamente como um edifício, em cuja base estaria fincado um determinado modo econômico de produção, com base no qual seria erguido todo o restante daquele prédio, composto por diversos andares que – segundo tal ilustração – são compreendidos como as outras esferas da vida social, a saber, a política, a religião, o direito etc. O direito, portanto, sob essa perspectiva, forma-se a partir de determinadas relações econômicas que se estabelecem na base da vida em sociedade, ou melhor, ele é um reflexo de certas condições econômicas que edificam uma dada sociedade. O direito, para Marx, não tem uma história própria; ele não é um fenômeno independente, que possa estar situado fora ou acima daquele edifício; ele não é algo eterno ou imutável, criado por uma entidade divina, ou alcançado por uma suposta razão humana universal. A história do direito é a história de um determinado modo de produção, e sua lógica está vinculada à lógica deste mesmo modo de produção, visando pois ao seu aperfeiçoamento, a sua reprodução.         

No famoso prefácio à “Contribuição à crítica da economia política” de 1859, Marx vai dizer o seguinte: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu como um guia aos meus estudos, pode ser assim resumido: na produção social de suas vidas, as pessoas procedem, independentemente de sua vontade, a determinadas e necessárias relações de produção, que correspondem a um certo estágio de evolução de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real a partir da qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, a que correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona a produção da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do ser humano que determina seu ser, mas ao contrário o seu ser social que determina sua consciência”[1].  

Ainda que, durante a idade antiga, edificada sobre o modo de produção escravagista, fosse possível falar no direito romano, o fenômeno jurídico tal como o conhecemos hoje, com todas as suas particularidades, é uma realidade do modo de produção capitalista, que tem seu início na longa passagem da idade média para a idade moderna e sua consolidação entre os séculos XVIII e XIX, após as revoluções burguesas na Europa. Em outras palavras, a forma do direito atual é dependente e derivada da forma capitalista contemporânea, baseada em uma economia mercantil e industrial.

Quando se diz que a forma do direito atual deriva e depende do modo de produção capitalista, fala-se também que a lógica de funcionamento do capitalismo é que acaba definindo a forma de funcionamento do próprio direito. E para que a forma de funcionamento do sistema capitalista seja compreendida, é preciso que se entenda como a partir de seu elemento mais básico – de seu ponto central –, derivam todas as demais relações econômicas que se generalizam pela vida em sociedade, fazendo com que, em razão delas, o direito surja com sua forma específica e se apresente como um conjunto de normas capazes de assegurar o bom funcionamento daquelas mesmas relações.

A partir disso, é possível dizer que, na idade contemporânea, a célula básica em torno da qual se organiza a economia capitalista e sobre a qual se ergue todo o edifício jurídico é a figura do contrato, pelo qual as pessoas estabelecem certas relações entre si, fazendo circular por toda a sociedade vários tipos de mercadorias – entre as quais se inclui a própria força de trabalho – destinadas a atender as mais diversas necessidades. O contrato, por assim dizer, é a figura mais básica, o elemento mais simples, a partir do qual relações econômicas cada vez mais complexas vão se estabelecendo na sociedade, relações estas que dão forma ao direito contemporâneo, que, por sua vez, as regulamenta, as assegura e, ao fim, garante a reprodução do próprio sistema capitalista. No campo das relações trabalhistas, em que o empregado vende sua força de trabalho e o empresário a compra pelo preço do salário, Marx inclusive chega a dizer que esse seria o espaço onde os direitos de propriedade, igualdade e liberdade encontram sua expressão mais acabada na sociedade capitalista.

Como ele próprio explica em sua principal obra, O Capital: “Para que o possuidor de dinheiro encontre a força de trabalho como mercadoria no mercado, é preciso que diferentes condições sejam preenchidas. (…) a força de trabalho só pode se apresentar no mercado como mercadoria, desde que ela seja oferecida ou vendida como mercadoria pelo seu próprio possuidor, a pessoa de quem ela é força de trabalho. Para que seu possuidor a venda como mercadoria, ele deve ter o poder de dispor sobre ela, ser, portanto, livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua própria pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro encontram-se no mercado e iniciam uma relação entre si como iguais possuidores de mercadorias, distinguindo-se apenas pelo fato de que um é comprador, o outro, vendedor e ambos, portanto, pessoas juridicamente iguais”[2].  

Em outras palavras, para Marx, os contornos dessa relação jurídica baseada na propriedade, igualdade e liberdade, são apenas um reflexo das condições econômicas que estruturam o modo de produção capitalista. Tal compreensão, que é extraída genericamente da obra de Marx, é posteriormente aperfeiçoada pelo jurista soviético Evgeny Pachukanis em seu famoso livro de 1924 chamado “A Teoria Geral do Direito e o Marxismo”.

De acordo com ele, o que mais importa em uma análise marxista do direito não é tanto o seu conteúdo, que seria estabelecido a partir das lutas de classes e, no mais das vezes, para assegurar o interesse das classes dominantes, mas a sua própria forma, que é definida, na sociedade capitalista, por essa célula básica da economia capitalista: a relação contratual em torno da mercadoria, composta por pessoas livres e iguais, que dispõem de suas propriedades. Como ele mesmo chega a afirmar: “Do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas. A troca de mercadorias pressupõe uma economia atomizada. A conexão entre as unidades econômicas privadas estabelece uma conexão, caso a caso, por meio de contratos. A relação jurídica entre os sujeitos é apenas o outro lado das relações entre os produtos do trabalho tornados mercadorias”[3].

A forma do direito, enfim, segundo Pachukanis, é determinada pela forma da própria economia mercantil. Isso quer dizer, na prática, que os elementos que estruturam a economia capitalista serão basicamente os mesmos que conformarão o direito contemporâneo. Nessa linha de ideias, esses elementos são os seguintes: pessoas, mercadorias e relações contratuais. De modo mais simples, as relações econômicas que configuram a base do sistema capitalista podem ser representadas por pessoas que negociam umas com as outras mercadorias de seu interesse. Ou de forma ainda mais clara: pessoas que trocam coisas entre si.

Num primeiro momento, parece muito difícil visualizar o direito edificado a partir desses elementos tão básicos, mas se num segundo momento olharmos com um pouco mais de cuidado, veremos que o diagnóstico marxista não está tão enganado assim. O direito do trabalho, sem dúvida, com as figuras do empregador e empregado estabelecendo um contrato é um exemplo evidente. No mesmo sentido, chega a impressionar que a parte geral do Código Civil brasileiro, que regulamenta as bases de todo o chamado direito privado, esteja dividida em três livros que falam exatamente das pessoas, dos bens e dos negócios jurídicos. E também é bastante impressionante quando se olha para ramos mais específicos do chamado direito público e se vê que no direito tributário, por exemplo, o contribuinte é chamado a negociar com o Estado seus débitos fiscais; no direito administrativo, o cidadão pode estabelecer acordos com o Poder Público em uma série de situações, como a intervenção do Estado na propriedade privada e até mesmo no campo da improbidade administrativa; bem como no direito penal, no qual o próprio Ministério Público pode ser chamado como uma parte disposta a negociar as consequências jurídicas do crime praticado por alguém, tudo isso muitas vezes em nome de uma suposta eficiência econômica.     

Em linhas gerais, como se disse, essa é a visão dominante do direito na tradição marxista. Ele é um reflexo das relações econômicas que configuram a base da vida social. Somente com a mudança dessas relações de produção é que, por consequência, será produzida uma mudança na superestrutura, onde o direito se encontra. O direito, ele mesmo, não é visto como um instrumento capaz de provocar mudanças mais profundas nas relações de base; muito pelo contrário, se ele é um produto dessas relações, é preciso que primeiro elas se transformem; e caso elas se modifiquem e, por meio de uma revolução, um novo modo de produção é estabelecido, então, aí sim, pode acontecer não só do direito se transformar, como também em situações mais radicais deixar ele próprio de ser necessário e, portanto, de existir.

A pergunta, todavia, que se levanta a partir de agora é se é possível fazer uma outra leitura do pensamento do próprio Marx e chegar a conclusões diversas. Primeiramente, há mesmo uma relação de determinação direta do direito pela economia? E, além disso, pode o direito provocar mudanças mais ou menos significativas nas relações econômicas e sociais, apresentando-se como uma ferramenta de luta e de emancipação?

Em relação à primeira questão, muitos já questionaram uma interpretação muito determinista da história pela economia, alegando que essa não seria uma leitura tão dialética. E de fato, isso parece fazer sentido. Ainda que se possa localizar na economia um elemento de desequilíbrio, que tenha mais força para definir a forma de organização da política, da religião ou do próprio direito, não parece um absurdo dizer que entre a base e a superestrutura da história haja também uma interação, com influências recíprocas entre elas, e não só uma imposição única e exclusiva da economia sobre todas as demais instâncias da vida social.  

Pode parecer um detalhe, mas quando se diz que o direito é um “reflexo” das relações econômicas, a própria palavra “reflexo” já traz em si um conteúdo filosófico, que não precisa se limitar à descrição de uma simples relação de causa e efeito, mas revelar uma ideia, quem sabe mais dialética, que traduz uma relação de mútua influência entre o direito e a economia. Apenas porque tem interesse para esse texto, uma das palavras em alemão que pode ser traduzida para o português como “reflexo” é Widerspiegelung: Spiegel, por um lado, quer dizer espelho (Spiegelung = reflexo) e a palavra wider, por outro, tem um sentido próximo a algo que é “contrário”, “oposto”. “Contradição”, por exemplo, em alemão é Widersprechung (Sprechen significa basicamente falar ou conversar). Widerspiegelung, portanto, que costuma ser traduzido como “reflexo” ou “reflexão”, poderia também ser entendido como algo parecido com “contrareflexo” ou com o efeito de coisas que se refletem umas nas outras.

Quem utiliza essa palavra em um texto-chave para essa discussão é ninguém menos que Friedrich Engels, em uma carta a Conrad Schmidt de outubro de 1890. Segundo ele:  “O reflexo (Widerspiegelung) das relações econômicas como princípios jurídicos coloca-se necessária e igualmente de cabeça para baixo: ele processa-se sem que o negociante tome consciência dele; o jurista imagina que opera com ideias apriorísticas, enquanto elas são apenas reflexos econômicos – assim tudo se coloca de cabeça para baixo. E parece-me óbvio que essa inversão, que, enquanto não reconhecida constitui aquilo que nós chamamos de visão ideológica, lança-se de volta à base econômica, podendo modificá-la dentro de certos limites”[4].   

Ou seja, para Engels, apesar de os princípios jurídicos serem considerados uma forma de ideologia, que se situa na superestrutura e disfarça a realidade das relações materiais, ocultando suas desigualdades, é possível que, num movimento de volta, de “contrareflexo”, eles venham a influenciar as relações de base econômica, podendo até mesmo modifica-las, ainda que dentro de certos limites. Quem, neste ponto, também trouxe contribuições importantes foi o filósofo marxista Louis Althusser, ao colocar em destaque um certo aspecto material, por assim dizer, da ideologia, sobretudo nos aparelhos ideológicos do Estado, que “podem ser não só o alvo mas também o local da luta de classes e por vezes de formas renhidas de lutas de classes”[5].

O Estado, portanto, e mais especificamente o direito não são, assim, simples esferas da superestrutura sem importância, que estão ali apenas para gerir o interesse burguês; eles são ambos espaços de luta, que podem, de um jeito ou de outro, provocar mudanças significativas na base da vida social. Em outras palavras, antes de serem espaços predefinidos, a serem ocupados e exercidos somente em prol da classe burguesa, o Estado e o direito estão em disputa e poderão servir melhor aos interesses de quem, nessa mesma disputa, conseguir toma-los para si.

É obvio que não se deve cometer exageros nesse momento. Na teoria de Marx, é muito claro que a revolução deve ser feita na base das relações sociais, de onde as maiores mudanças de fato virão. A grande questão que se coloca é se, diante da possibilidade de o direito poder exercer influência sobre a infraestrutura capitalista, ele não pode ser uma das armas a serem utilizadas a serviço da emancipação. E quem parece confirmar essa hipótese é o próprio Marx, ao dizer o seguinte no prefácio à primeira edição do Capital: “Prescindindo de motivos mais elevados, os interesses mais particulares das atuais classes dominantes obrigam-nas à remoção de todos os obstáculos legalmente controláveis que travem o desenvolvimento da classe trabalhadora. É por isso que, neste volume, reservei um espaço tão amplo à história, ao conteúdo e aos resultados da legislação inglesa relativa às fábricas. Uma nação deve e pode aprender com as outras. Ainda que uma sociedade tenha descoberto a lei natural de seu desenvolvimento (…), ela não pode saltar suas fases naturais de desenvolvimento, nem suprimi-las por decreto. Mas pode, sim, abreviar e mitigar as dores do parto”[6].

E, além disso, mais do que talvez “abreviar e mitigar as dores do parto” – ou seja, de provocar mudanças pontuais, sem realmente atacar as estruturas da dominação capitalista –, no prefácio à edição inglesa do Capital, Engels vai dizer que se, por um lado, o próprio Marx duvidava que, sem uma rebelião de escravos, as classes burguesas acabassem aceitando a emancipação dos trabalhadores, por outro, ele mesmo também apostava na possibilidade de uma revolução pacífica por meio das leis na Inglaterra. Como disse Engels: “Em um tal momento, deverá ser seguramente ouvida a voz de um homem, cuja teoria é resultado de uma vida inteira de estudos da história econômica e da situação da Inglaterra, e que, a partir desses estudos, chegou à conclusão de que, pelo menos na Europa, a Inglaterra é o único país onde a inevitável revolução social poderia ser executada inteiramente por meios pacíficos e legais”[7].  

Se, por um lado, afirma-se que na teoria de Marx o direito se localiza na superestrutura, como uma manifestação ideológica e como um reflexo das relações de produção econômica, sem potencial para revolucionar tais relações, por outro, parece possível também afirmar que, em uma leitura talvez mais dialética, o direito é um elemento de tensão, que reage sobre a economia, podendo influencia-la e até mesmo modifica-la, sem que ele esteja limitado a ser um mero reflexo das condições econômicas da sociedade ou um simples instrumento da classe burguesa. Se, como Marx afirma, o direito não só tem condições de “abreviar e mitigar as dores do parto”, como também poderia ao menos na Inglaterra conduzir a uma revolução social pacífica, então talvez não seja exagero dizer que o direito, para Marx, pode, sim, ser emancipatório, em certas situações.

O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade tem um lindo poema chamado “Nosso Tempo”, no qual ele diz:  “Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”. Sem contrariar a genialidade de Drummond, talvez não fosse tão equivocado reler seu poema, a partir da discussão feita neste texto, concluindo que, de fato, as leis não bastam, mas os lírios podem um dia nascer das leis, e o Direito, enfim, ser chamado de tumulto!   

Júlio Gonçalves Melo: Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Membro do Coletivo Transforma MP.


[1] MARX, Karl. Kritik des Kapitalismus. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2018, p. 160.

[2] MARX, Karl. Kritik des Kapitalismus. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2018, p. 200 e 201..

[3] PACHUKANIS, Evgeni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 97.       

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke: Band 37. Berlin: Dietz Verlag, 1967, p. 491 e 492.

[5] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Editorial Presença (3ª ed.), p. 49.

[6] O texto encontra-se disponível em: https://vermelho.org.br/2018/05/04/o-dificil-comeco-de-uma-ciencia-nova/.

[7] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke, Band 23. Berlin: Dietz Verlag, 1968, p. 40. O texto também pode ser encontrado em português com outra tradução, na seguinte página eletrônica: http://www.filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/234.txt.

Entre a política de classe e o identitarismo

Por Régis Richael Primo da Silva no GGN

Na verdade, é muito difícil dar uma resposta segura, principalmente quando o conteúdo dessa resposta depende de dados da realidade sobre os quais há muita névoa.

1. A esquerda e o problema identitário

Qualquer pessoa sensata que se julgue de esquerda sabe que a acumulação de capital e a riqueza extraordinária que se concentra nas mãos de poucos não seria possível sem a transferência da maior parte do produto do trabalho produzido pelos trabalhadores para as mãos dos capitalistas. O que pouca gente sabe é que a exploração do trabalhador é, hoje, 25 vezes maior do que era na época em que Marx escreveu O Capital. É o que revela estudo, feito pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, sobre a taxa de exploração dos trabalhadores que produzem o IPhone[2]. O que é perturbador é que a desigualdade de renda e a exploração do trabalho são cada vez maiores justamente quando as novas tecnologias de produção poderiam assegurar a redução da jornada de trabalho, o pleno emprego e o aumento da remuneração dos trabalhadores. Diante disso, pode parecer óbvio que lutar contra a exploração do trabalho deveria ser a prioridade número um da esquerda do século XXI.

Essa, porém, não tem sido sua prioridade. O foco da esquerda na atualidade são as lutas contra a opressão em razão do gênero, da cor e da orientação sexual. Naturalmente, seria absurdo negar a importância dos movimentos sociais contra o racismo, o sexismo e a homofobia. Todas essas formas de opressão são perversas e inadmissíveis, e todos devemos agir para não permitir que a cor, o gênero ou a orientação sexual sirvam de pretexto para a desumanização, a discriminação e a violência contra seres humanos. Contudo, um setor da intelectualidade de esquerda vê com preocupação a centralidade que as políticas de identidade ocupam no imaginário e na militância progressista. Essa preocupação é justificada? A esquerda está atirando no alvo errado, como alguns críticos sugerem?

2. A crítica de esquerda ao identitarismo

O jornalista marxista Christian Parenti, por exemplo, chama a atenção para o equívoco da ideia, disseminada na cultura identitária, de que o racismo e o sexismo são como uma espécie de condição psicológica que pode ser eliminada desfazendo, no nível emocional, algumas das consequências do condicionamento cultural a que os homens e as pessoas brancas foram submetidas[3]. Segundo ele, essa abordagem psicologizada do racismo e do sexismo tem o apoio direto dos maiores oligopólios capitalistas e da mídia que os representa, e é usada por eles para evitar o debate sobre as estruturas sociais econômicas e seu desequilíbrio de poder, que atingem a classe trabalhadora como um todo. A política como conflito de classes cede lugar à política centrada na etiqueta social, na linguagem apropriada e na cultura do cancelamento, e aqueles que teimam em não “desaprender” a linguagem e os comportamentos inapropriados que praticam são julgados e condenados pelos tribunais das redes sociais. A ordem econômica, porém, permanece a mesma. Ou até se torna pior. Mencionando a situação dos EUA, Parenti afirma que, nos últimos quarenta anos, quando mulheres e pessoas negras, gays e trans obtiveram enormes ganhos sociais, a desigualdade econômica disparou. À medida que as barreiras sociais formais foram removidas, o número de cargos de elite ocupados por pessoas de grupos de identidade outrora marginalizados aumentou. No entanto, ao mesmo tempo, a maioria das pessoas (independentemente de raça, gênero ou orientação sexual) viu suas condições econômicas desfavoráveis deteriorarem-se sob o ataque político do neoliberalismo. Hoje, os EUA têm quatro mulheres na Suprema Corte. No entanto, a mulher comum é mais pobre agora do que era em 1975. Para Parenti, a suposta radicalidade da ideologia identitária é falsa: o efeito real da centralidade no privilégio branco e masculino é o de ocultar os problemas de poder de classe e exploração que estão no centro das relações sociais capitalistas.

O cientista político Adolph Reed, estudioso das relações entre desigualdade econômica e cor da pele, também aponta que a desigualdade de renda aumentou muito nos últimos 50 anos, tanto para brancos como para negros. E sustenta que a concentração de esforços para eliminar as desigualdades raciais não só não nos levará à uma sociedade mais igualitária, mas também não é a melhor maneira de eliminar as próprias desigualdades raciais[4]. Para Reed, o racismo é real e o antirracismo é admirável e necessário. Mas o racismo existente não é o maior responsável pela desigualdade racial, e, portanto, o antirracismo não a eliminará. Reed sustenta que a ausência de progresso na superação da desigualdade de renda entre brancos e negros é causada pelo aumento  da desigualdade de renda entre ricos e pobres. Para ele, a própria ideia de riqueza racial é vazia: os 10% mais ricos entre os brancos detêm 75% da riqueza dos brancos; e o mesmo é verdade para a riqueza negra: os 10% mais ricos das famílias negras detêm 75% da riqueza negra. Reed acrescenta: “o que o discurso da desigualdade racial nos diz é que, se você tem uma economia cada vez mais desigual, que gera empregos que não pagam nem um salário mínimo, o problema que precisamos resolver não é como reduzir essa desigualdade e melhorar os empregos, mas como garantir que esses empregos não sejam desproporcionalmente ocupados por negros”.  E conclui: deve ficar claro agora que o foco na desigualdade racial aceita a premissa do neoliberalismo identitário de que o problema da desigualdade não é sua magnitude ou intensidade em geral, mas se é ou não distribuída de maneira racialmente equitativa[5].

O filósofo marxista italiano Diego Fusaro é outro duro crítico do identitarismo. Sua primeira oposição ao identitarismo é que ele teria substituído a perspectiva igualitária e comunitária por uma perspectiva de vingança e competição contra grupos cuja identidade é considerada rival[6]. Identidades coletivas e anticapitalistas teriam sido substituídas por identidades individualistas e centradas em características que não deveriam servir de critério para distinguir os seres humanos – a cor e o gênero. Fusaro afirma que a política identitária invoca o conceito de identidade, mas o desarma, em uma fragmentação social ilimitada: o feminismo liberal divide a sociedade colocando, primeiro, homens contra mulheres e, depois, mulheres negras contra mulheres brancas. Em última análise, esquecemos o que temos em comum e nos concentramos naquilo que nos distingue. Nesse panorama, a cadeia social dos oprimidos desaparece e em seu lugar prevalece uma espécie de guerra de todos contra todos, que se expressa na multiplicação das lutas entre grupos opostos uns aos outros. Isso fica nítido quando potenciais parceiros na luta anticapitalista são vistos com desconfiança por não fazerem parte de determinado grupo caracterizado pela cor ou pelo gênero. Fusaro argumenta que é o capitalismo quem cria essa microconflitualidade generalizada, que atua como uma arma de distração massiva permanente[7]. Por um lado, essa microconflitualidade oculta a contradição capitalista, que já nem é mencionada; e, por outro lado, divide as massas trabalhadoras em identidades cada vez mais atomizadas e em oposição umas às outras.

O linguista John McWhorter, por sua vez, argumenta que certas correntes antirracistas criaram efetivamente uma religião perigosa, que sufoca nuances e debates, e prejudica a luta contra o racismo[8]. Segundo ele, existem pessoas cuja devoção é menos para mudar a vida de pessoas negras que precisam de ajuda do que para mostrar que o racismo estrutural existe. Dogma fundamental dessa “religião”, para ele, é a cultura do cancelamento: você simplesmente será “cancelado” se discordar ou violar as regras do antirracismo. McWhorter, falando como negro e como pesquisador, concorda que o racismo estrutural existe e deve ser combatido. Mas ele pensa que a esquerda deve resistir à ideia simplista de que o combate à desigualdade racial deve ser o objetivo dominante, ao invés de um objetivo entre vários.

O escritor negro Coleman Hughes acha um erro a substituição da perspectiva antirracista de Martin Luther King Jr. pela moderna perspectiva antirracista[9]. King Jr. baseava-se na ideia de que existe uma única raça a que todos pertencemos, e que todas as formas de nos dividir, embora possam ser importantes para entender nossa realidade atual, não devem receber peso moral. A luta antirracista deveria, pois, voltar-se à construção de um mundo em que a cor da pele fosse vista como um atributo insignificante. A moderna perspectiva antirracista, porém, baseia-se na ideia oposta segundo a qual é preciso perceber a cor da pele para combater a desigualdade racial. Para Hughes, esse modelo de antirracismo alimenta a competição racial a partir da falsa suposição de que a vitória de um grupo exige a derrota do grupo rival: o que nos divide passa a ser mais importante do que o que nos une.

O historiador Asad Haider e a cientista política Sheri Berman juntam-se aos críticos do identitarismo. Haider defende que a política identitária contemporânea é uma “neutralização dos movimentos contra a opressão racial, e não uma progressão em relação à luta de base contra o racismo”[10]. Quando a identidade se manifesta em divisionismo e atitudes moralizantes, em vez de estimular a solidariedade, ela reduz a política ao que você é como indivíduo, e não à sua participação em uma coletividade e na luta coletiva contra uma estrutura social opressora. O resultado disso é que a política identitária, paradoxalmente, acaba reforçando as mesmas normas que se dispõe a criticar.

Berman dirige sua crítica principalmente à forma intolerante com que os ativistas identitários tratam aqueles que não pensam como eles. Berman adverte que chamar as pessoas de racistas quando elas não se veem dessa maneira é contraproducente. Se o objetivo é diminuir a intolerância, dizer as pessoas que elas são racistas, sexistas e xenófobas não nos conduzirá a lugar nenhum. O insulto é sempre percebido como uma ameaça, e uma das coisas que sabemos da psicologia social é que, quando as pessoas se sentem ameaçadas, elas perdem a disposição para ouvir, para refletir e para dialogar[11].

3. Uma palavra sobre o problema identitário

Essas críticas são justas? Na verdade, é muito difícil dar uma resposta segura, principalmente quando o conteúdo dessa resposta depende de dados da realidade sobre os quais há muita névoa e disputa ideológica. Podemos, no entanto, começar a conversa concordando com Nancy Fraser, quando ela diz que não precisamos escolher entre política classista e política identitária. A Justiça exige tanto redistribuição quanto reconhecimento[12].

Mas feito esse esclarecimento, penso que já é hora de a esquerda identitária aceitar debater todas as críticas feitas ao identitarismo. Não só aquelas feitas pela esquerda marxista, mas também as que lhe são dirigidas por conservadores moderados. E é necessário debatê-las com honestidade e sem o uso de slogans, insultos e palavras de ordem. Os identitaristas precisam abandonar a ideia de que quem tem discordâncias a respeito das políticas identitárias é racista, sexista, transfóbico ou, no mínimo, padece de ignorância intelectual. Há muita gente da classe trabalhadora branca e pobre que se considera muito mais oprimida e explorada do que as pessoas negras da classe média instruída, ligadas ao ativismo identitário. Muitos desses trabalhadores brancos são pessoas simples, e não conseguem entender por que a cor ou o gênero deveriam ser determinantes para dizer se alguém é vítima de opressão ou não. A esquerda identitária precisa dialogar, com muita empatia, com esses homens e mulheres de pele branca da classe trabalhadora. Vítimas da opressão econômica, eles não consideram justo serem vistos como opressores. E se tudo o que recebem são insultos por parte da militância identitária “esclarecida”, esses trabalhadores acabam se afastando da esquerda e aderindo à agenda da direita, não só nos costumes, mas também nas questões econômicas.

A obsessão de certo tipo de feminismo por caracterizar os homens como um grupo homogêneo de opressores, tampouco ajuda. Muitas mulheres da classe trabalhadora veem seus maridos como homens bons e pacíficos, que as amam, respeitam e são seus parceiros na luta pela sobrevivência e pela criação dos filhos. A esquerda identitária precisa saber lidar com as consequências de dividir as pessoas com base em suas características físicas. Até porque quando são as características físicas que determinam quem é e quem não é vítima, acabamos entrando numa competição infrutífera para saber quem é a maior vítima. Nesse cenário, a mulher preta rivaliza com a mulher branca; o índio com o não índio; a preta hétero com a preta trans, e assim por diante. Não são insignificantes as dúvidas sobre se a política identitária pode trazer algum benefício real para a classe trabalhadora. Quando a desigualdade de renda avança como nunca, precisamos investigar se o aumento da quantidade de mulheres e pessoas negras nas posições de destaque do mundo capitalista tem algum efeito prático positivo para a maioria das mulheres e pessoas negras da classe trabalhadora. E decidir se o que nos interessa é reduzir a desigualdade de renda ou garantir a igualdade da exploração entre homens e mulheres, pretos e brancos. Se a política identitária não toca na questão da exploração do trabalho, os grupos oprimidos que buscam emancipação por meio das políticas identitárias continuarão oprimidos.

Retorno à afirmação de Nancy Fraser, de que não precisamos escolher entre política classista e política identitária. Se isso é verdade, o ativismo identitário precisa abandonar alguns de seus dogmas e abrir-se à reflexão. Ignorar que as políticas identitárias são instrumentalizadas como cortina de fumaça e distração pela política econômica neoliberal, é não enxergar o óbvio. Numa época em que grandes bancos, oligopólios e bilionários como Jeff Bezos se reúnem não só para apoiar, mas também para patrocinar as políticas de identidade, não nos enganemos: tudo isso serve para que, inebriados pela disputa entre identidades rivais, esqueçamos da opressão econômica que afeta a classe trabalhadora inteira: homens e mulheres, brancos e pretos.


[1]Régis Richael Primo da Silva é Procurador da República no Estado do Ceará e membro do Coletivo Transforma MP.

[2]https://www.thetricontinental.org/wp-content/uploads/2019/09/190922_Notebook-2_PT_Web.pdf

[3]https://nonsite.org/the-first-privilege-walk/

[4]https://nonsite.org/the-trouble-with-disparity/

[5]https://nonsite.org/how-racial-disparity-does-not-help-make-sense-of-patterns-of-police-violence/

[6]https://novaresistencia.org/2023/01/23/as-lutas-de-libertacao-arco-iris-sao-tipicas-da-ordem-neoliberal/

[7]https://www.elconfidencial.com/alma-corazon-vida/2019-06-29/diego-fusaro-estado-soberania-derechas-izquierdas_2093646/

[8]https://www.npr.org/2021/11/05/1052650979/mcwhorters-new-book-woke-racism-attacks-leading-thinkers-on-race

[9]https://www.manhattan-institute.org/a-better-anti-racism

[10]https://theintercept.com/2018/06/01/politica-identitaria-asad-haider/

[11]https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jul/14/identity-politics-right-left-trump-racism

[12]file:///C:/Users/PRCE/Downloads/269802959.pdf

Debate: Gênero, Racismo e Direito Penal: contribuições ao debate interseccional no Ministério

O Estudos MP em parceria com o Coletivo Transforma MP, convida a todes para debater o Dia Internacional de Combate ao Racismo e o Dia Nacional de Tradições de Matriz Africana. 

O debate “Gênero, Racismo e Direito Penal: contribuições ao debate interseccional no Ministério” será transmitido ao vivo no dia 21/03 às 19h no canal Estudos MP no Youtube.

Debatedores

Antônio de Pádova- Procurador de Justiça MPMG e integrante do Coletivo Transforma MP;

Maria Betânia Silva- Procuradora de Justiça aposentada MPPE e integrante do Coletivo Transforma MP;

Gustavo Costa- Promotor de Justiça MPSP integrante do Coletivo Transforma MP;

Elisiane Santos- Procuradora do Trabalho integrante do Coletivo Transforma MP.

Adesão imediata aos precedentes do Superior Tribunal de Justiça: a opção do Ministério Público de Minas Gerais por uma atuação político-criminal responsável e socialmente efetiva?

Por Antônio de Padova Marchi Júnior no Empório do Direito

Desde que ingressei no Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em fevereiro de 1989, exerço atribuições vinculadas à Justiça Criminal, descontados um ou outro período no qual exerci mandatos administrativos que exigiam dedicação exclusiva.

Na atuação criminal, percebia-se claramente um movimento institucional pendular, ora favorável ao devido processo legal e ao respeito aos direitos humanos, ora mais voltado para o incremento da segurança pública e para as promessas preventivas da pena.

A partir de 1998, quando iniciei o curso de mestrado em Direito na UFMG, ou, melhor dizendo, quando tive a minha primeira aula com o Prof. Ariosvaldo de Campos Pires, minhas manifestações processuais passaram a ser tingidas cada vez mais com a nota da imparcialidade, recobrando o indispensável respeito aos princípios constitucionais de garantia sem perder de vista a função acusatória destinada ao Ministério Público para confrontar desde o mais simplório autor de delito até os mais poderosos malfeitores reunidos em destemidas organizações criminosas.

Já tendo como ídolo o meu colega Procurador de Justiça Carlos Augusto Canedo Gonçalves da Silva, conheci outros membros do Ministério Público brasileiro consagrados pela academia, como Juarez Tavares, Afrânio Silva Jardim, Cezar Roberto Bitencourt, Luiz Regis Prado, Lenio Luiz Streck, Paulo de Souza Queiroz, Rômulo Moreira, Eugênio Pacelli de Oliveira, entre outros.

Todos esses juristas conseguiam compatibilizar o exercício das atribuições de membros do Ministério Público, federal ou estadual, com importantes reflexões acadêmicas sem divisar, em meio aos múltiplos conflitos e diversidades, a existência de uma atitude comum em favor de um direito penal democrático, ou, ao menos, que pudesse ser considerado um “movimento ministerial de respeito à Constituição”.

Ainda assim, tratando de dar respostas às suas inquietações, tais penalistas/Promotores/Procuradores de Justiça e da República, começaram a difundir diferentes ideias e propostas sobre uma nova forma de atuação do órgão acusador, mais justa, mais racional e mais humanitária.

Eles não compartilhavam a mesma base acadêmica, não tinham a pretensão de desenvolver um projeto avançado de reforma e, se havia algo em comum, ninguém o assumia expressamente. Apesar disso, era possível sentir uma atmosfera familiar nas palestras que proferiam por ocasião dos grandes encontros acadêmicos da década de 90. Demonstravam confiança na edificação de um Ministério Público que assumisse a condição de titular da ação penal pública e, assim, pautasse toda a política-criminal a partir dos seus ideais, das experiências vividas, da contestação do que haveria de mudar e no respeito absoluto à dignidade da pessoa humana.

Essa perspectiva, todavia, sucumbiu à desgastante rotina das instituições na medida em que seus integrantes mitigaram a reflexão crítica em favor do cumprimento de rigorosas metas de produtividade para o enfrentamento do acervo processual decorrente, sobretudo, do incremento da criminalidade comum. Somadas às outras interferências externas, notadamente a expansão do sistema midiático punitivista e às novas exigências de penalidades vingativas, a atuação do Ministério Público na seara criminal, muito diversamente de outras áreas de atuação, experimentou grande retrocesso em relação às propostas para a sistematização de um modelo penal mais racional e efetivo.

A política de guerra às drogas permanece intacta mesmo sem apresentar nenhum resultado positivo ao final de tantas décadas de experiências fracassadas. A aventura lavajatista igualmente serviu para reacender as funções retributivas da pena há muito superadas pela doutrina. Os livros de direito penal e processual penal foram definitivamente trocados pela jurisprudência dos tribunais estaduais, algumas de duvidosa validade constitucional.

O marasmo repressor que se debruçou sobre o sistema penal brasileiro, malgrado a atuação de alguns Promotores de Justiça e Juízes de Direito afinados com as garantias constitucionais, somente encontrou efetiva resistência nos empolgantes julgados do Superior Tribunal de Justiça publicados a partir da segunda década do século XXI. Ainda assim, com muita objeção por parte das justiças estaduais e de uma grande parcela do Ministérios Público.

O conflito ganhou recentemente o noticiário em razão das críticas encontradas em julgados do Superior Tribunal de Justiça contra as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em desacordo com matérias já pacificadas naquela instância especial e, também, no Supremo Tribunal Federal.[1] [2]

O fundamento principal da crítica reside na incompreensível resistência das instâncias ordinárias em adotar a jurisprudência consolidada das Cortes Superiores, gerando indevido tumulto, desorganização sistêmica e queda da qualidade da prestação jurisdicional.

A mesma advertência se aplica com maior razão ao Promotor de Justiça. O titular da ação penal pública tem o poder de mudar toda a política criminal a partir do acatamento das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, antecipando-se ao Juízo de primeiro grau e, por conseguinte, aos tribunais de segunda instância. O Juiz de Direito nada poderia fazer diante do sistema acusatório que orienta o sistema penal brasileiro.

Daí porque a notícia veiculada no site oficial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais em 3 de março de 2023 deve ser muitíssimo festejada. [3] Se trata de uma importante guinada na forma de atuar dos Promotores e Procuradores de Justiça criminais. De maneira até surpreendente, a Procuradoria-Geral de Justiça se posicionou de forma corajosa a favor de uma atuação mais racional no campo do direito e do processo penal.

A matéria se reporta à uma visita oficial feita pelo Chefe do Ministério Público mineiro e do Coordenador da Procuradoria de Justiça com Atuação nos Tribunais Superiores (PJTS) à Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Presidenta do Superior Tribunal de Justiça. O encontro foi registrado por meio de uma fotografia da comitiva do MPMG com a Ministra-Presidenta.

Na ocasião, foi apresentado o trabalho estratégico da PJTS em favor do “cumprimento das decisões e, consequentemente, do sistema de precedentes como pressuposto para a estabilidade e segurança do sistema jurídico”. Em seguida, a grande ousadia do encontro: o compromisso da PJTS para, juntamente com a Corregedoria-Geral, “orientar os membros do Ministério Público que atuam em 1.ª instância a se alinharem aos precedentes dos Tribunais Superiores”, demonstrando, assim, “a importância do trabalho da Instituição que se alicerça no compromisso com a justiça e à valorização das decisões dos Tribunais”.

Tal compromisso, firmado pessoalmente entre o Procurador-Geral e a Presidenta do Superior de Justiça, com a citação expressa da concordância da Corregedoria-Geral do MPMG, não deixa nenhuma dúvida sobre a tomada de posição definitiva em favor de uma atuação verdadeiramente mais próxima da sociedade e da proteção dos direitos humanos, nos moldes da recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Será um marco divisor na política criminal mineira e brasileira.

De plano, algumas mudanças de postura já podem ser aguardadas, com impacto imediato na atuação dos integrantes das forças de segurança pública, da Polícia Judiciária e dos próprios órgãos da instituição em primeiro e em segundo graus.

A começar pelo objeto da inquietação entre o Superior Tribunal de Justiça e o TJSP: a aplicação do regime semiaberto para o sentenciado primário, possuidor de bons antecedentes, condenado a cumprir pena não superior a 8 anos de reclusão pelo tráfico de drogas. Em razão do sistema acusatório, a questão em Minas Gerais será superada na primeira instância, sem a participação do TJMG.

Outra notável e imprescindível mudança na repressão e prevenção ao tráfico de drogas deverá ocorrer em tempo recorde, pois, doravante, na esteira das decisões do Superior Tribunal de Justiça, não se considerará válida a prisão em flagrante do suspeito a partir do ingresso forçado (ou autorizado) em domicílio sem o competente mandado judicial. Diante das informações do seu serviço de inteligência, a Polícia Militar deverá noticiar a conduta suspeita à autoridade policial, a quem caberá, diante das circunstâncias e dos indícios encontrados, instaurar o inquérito policial e representar ao juízo sobre a conveniência e necessidade de expedição do mandado de busca e apreensão em determinado domicílio. A nova rotina, encorajada pelo Superior Tribunal de Justiça, democratizará a persecução penal no combate ao uso e ao tráfico de drogas ao tornar efetiva a ideia do domicílio como o asilo inviolável do cidadão, seja ele localizado nas regiões mais nobres ou no aglomerado mais humilde da cidade. Isso é igualdade perante a lei.  A prática abusiva da invasão de domicílio sem o mandado judicial perderá força tão logo as Promotorias de Justiça passem a invalidar a diligência e todas as demais provas dela decorrente.

Os pedidos de prisão após a condenação em segunda instância ficarão limitados às hipóteses em que os requisitos da prisão preventiva estiverem presentes, afastando a incômoda estratégia gestada na experiência da Operação Lava Jato.

A Promotoria de Justiça deverá ainda cobrar o reconhecimento da atenuante da confissão espontânea sempre que a admissão de culpa pelo acusado tiver contribuído, ainda que parcialmente, para a formação do convencimento do julgador. Súmula 545 do STJ.

Muito brevemente, após a aguardada pacificação completa do tema, restará à Promotoria de Justiça reconhecer a limitação legislativa e se conformar com a impossibilidade de apelar contra a decisão do júri baseada no quesito genérico de absolvição. Como contrapartida, deverá se preocupar em esclarecer exaustivamente aos jurados as consequências da afirmação do referido quesito. Para a decisão de pronúncia, o famigerado argumento vinculado ao “in dubio pro societate” será substituído pela busca por um standard probatório que não ofenda a presunção de inocência, tornando ainda mais difícil a hipótese de um erro judiciário.

Como se percebe desse pequeno rol exemplificativo, a tomada de decisão em favor de uma orientação resolutiva das Promotorias de Justiça criminais, pautada pela adesão imediata à interpretação das Cortes Superiores e, por conseguinte, em desfavor da crescente simbiose entre a função acusatória e a integração aos órgãos de segurança pública, representará inegável avanço do direito e do processo penal em Minas Gerais e em todo o Brasil.

Afinal, o compromisso do Ministério Público é garantir a ordem democrática, se pautar pelo interesse público e zelar pelos direitos fundamentais previstos na Constituição da República, mesmo nas hipóteses pontuais em que favorecer a Defesa, resguardando, com isso, a sua credibilidade de órgão imparcial junto ao Poder Judiciário e as demais instituições para o efetivo combate à corrupção, ao crime organizado, ao tráfico de drogas, aos crimes do colarinho branco, aos crimes contra a vida e às outras tantas infrações penais que merecem um pronta e competente resposta por parte da Instituição.

Que as boas novas anunciadas no encontro oficial com a Presidenta do Superior Tribunal de Justiça não fiquem no papel, à moda de desbotadas fake news, mas passem imediatamente a prática cotidiana de cada Promotoria e Procuradoria de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

Notas e referências

[1]Cf.: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/04082020-Sexta-Turma-pede-atuacao-mais-harmonica-das-instancias-ordinarias-em-questoes-ja-pacificadas-no-STJ-e-no-STF.aspx. Acesso em 4.3.2023.

[2]Cf.: https://www.conjur.com.br/2023-fev-23/schietti-reforma-decisao-critica-tj-sp-afrontar-supremo. Acesso em 4.3.2023.

[3] Cf.: https://www.mpmg.mp.br/portal/menu/comunicacao/noticias/procuradoria-de-justica-com-atuacao-nos-tribunais-superiores-e-tema-de-encontro-de-membros-do-mpmg-com-presidente-do-stj.shtml. Acesso em 4.3.2023.

A força da manifestação do Ministro

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

Por Leomar Daroncho e Cirlene Luiza Zimmermann

A chamada do prestigiado podcast “Paredes São de Vidro” anuncia que o Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros começaram a se abrir para a opinião pública, acrescentando que com isso o Tribunal teria abandonado o papel de coadjuvante.

No dia 21/2/2023, o Ministro Gilmar Mendes comunicou-se com seus seguidores no twitter (@gilmarmendes): “De 2021 para cá, desabamentos e mortes em Ilhéus, Recife, Petrópolis e, agora, São Sebastião. O combate a desastres naturais precisa voltar a ter planejamento nacional (e dotação orçamentária)”. A mensagem de inquietação com o descaso da pauta ambiental teve mais de 625 mil visualizações.

A crescente preocupação do STF com os temas ambientais está alinhada com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, e por outros 192 Estados-membros da ONU, em efetivar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS. A Agenda 2030 relacionou 17 objetivos e 169 metas globais interconectadas, para que “ninguém no mundo fosse deixado para trás”, observando as dimensões social, ambiental, econômica e institucional, levando o mundo a um caminho sustentável com medidas transformadoras.

A responsabilidade institucional do Sistema de Justiça com o direito concreto ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, expressa-se condicionando os cidadãos e a coletividade a defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A posição do STF, em termos concretos, foi comunicada ao encerrar, em 23/2/2023, o julgamento de recursos contra os efeitos da proibição da exploração do amianto crisotila. O STF noticiou que o Plenário confirmou a declaração de inconstitucionalidade da norma federal que permitia a extração, a industrialização, a comercialização e a distribuição do mineral tóxico. O amianto, que expunha trabalhadores e consumidores, foi banido.

A inconstitucionalidade do dispositivo já havia sido incidentalmente declarada no julgamento da ADI 3937. Na sequência, em 2017, o STF deu efeito vinculante à decisão, que passou a ser obrigatória para todos.  

Naquela oportunidade, a Ministra Rosa Weber assinalou que a lei fluminense maximizava a proteção. Complementava a lei Federal regulando aspectos relacionados à produção e ao consumo do amianto, estando amparada no princípio da precaução, demonstrando preocupação com o meio ambiente e a saúde.

Em 2019, diante de grandes acidentes ambientais e do trabalho, o STF e o Ministério Público da União anunciaram a criação de observatório para monitorar a atuação do Sistema de Justiça em desastres de grande impacto. Promovendo a integração institucional, pretendiam potencializar o enfrentamento de situações de alta complexidade.

O STF também foi acionado na tragédia ambiental da pulverização aérea de agrotóxicos. Relatora da ADI 6137, que questiona a lei cearense que proibiu o despejo de veneno por aviões (Lei Zé Maria do Tomé), a Ministra Cármen Lúcia assinalou que o Ceará estaria autorizado a editar normas mais protetivas à saúde e ao meio ambiente, observando os princípios constitucionais da Precaução e da Prevenção que “impõem cautela e prudência na atuação positiva e negativa estatal na regulação de atividade econômica potencialmente lesiva” diante da contaminação de áreas vizinhas, pela deriva, quando o vento transporta o veneno dos aviões por até 32km.

As decisões estão em consonância com o compromisso dos poderes públicos, incluso o Sistema de Justiça, com a efetivação da Agenda 2030 da ONU, com destaque para o ODS nº 8 – trabalho decente e crescimento econômico e ODS nº 16 – Paz, justiça e instituições eficazes. As instituições demonstram estar imbuídas do propósito de viabilizar uma resposta positiva do Brasil perante a comunidade internacional, viabilizando a plena realização dos direitos humanos.

É importante que as manifestações dos Ministros sejam fortes. A questão ambiental é grave e urgente. Apesar das ocorrências trágicas, localizadas ou dispersas, as sinalizações incontestes, no tempo dos acontecimentos, são um alento diante do descalabro ambiental. Mais do que isso, demonstram o comprometimento, conforme anuncia no site do STF, com o papel de instituição central para difundir a visão, a cultura e, principalmente, os valores tão elevados da Agenda 2030: a vida, a dignidade, a justiça e a sustentabilidade, com a atuação jurisdicional contribuindo efetivamente para a aproximação entre a Corte e a Organização das Nações Unidas.

Leomar Daroncho e Cirlene Luiza Zimmermann são Procuradores do Trabalho

Dominação masculina: uma expressão redundante?

Por Júlio Melo no GGN

Uma vez mais, eu percebo nesses dias que meu sentimento, o sentimento de todas as mulheres em relação aos homens, está se transformando. Eles nos dão pena, apresentando-se miseráveis e impotentes diante de nós. O sexo frágil. (…) O mundo nazista dominado por homens fortes e gloriosos cambaleia – e com ele o mito do “Macho”. (…) No fim dessa guerra, ao lado de muitas outras derrotas, há também a derrota dos homens enquanto sexo (Marta Hillers – Uma mulher em Berlim)[1].

Num de seus livros mais famosos chamado Os Irmãos Karamázov, o escritor russo Fiódor Dostoiévski faz uma afirmação um tanto misteriosa – ou, vá lá, dialética – quando, em outras palavras, diz por meio de um de seus personagens que quanto mais ele ama a humanidade, menos ele ama a pessoa que está ao seu lado. 

Apesar da fala de Dostoiévski parecer limitada a relações individuais, ela na verdade não se detém aí – ou pelo menos não precisa. Ela pode se iniciar como uma questão particular, mas se estende, até alcançar questões públicas e políticas mais evidentes, que, no fim, retornam à vida cotidiana mais imediata, para mostrar no dia-a-dia seu potencial revolucionário.

Essa “pessoa ao lado”, obviamente, pode ser qualquer uma: aquela que pede comida nas ruas, a que trabalha na portaria do prédio, a que se senta no mesmo banco da igreja ou a que divide a mesma cama. Neste texto, a pessoa escolhida foi a mulher, mas não apenas “a mulher ao lado”; fala-se da mulher também em uma perspectiva mais ampla, de gênero, com uma conotação política. Num momento em que já virou mais do que moda falar em crise da democracia, a questão da emancipação das mulheres talvez nunca tenha sido tão importante – apesar de deixada de lado por quase todos os autores que estudam o tema da erosão das democracias ao redor do mundo.

Se em um primeiro momento a afirmação de Dostoiévski parece bastante curiosa, alguns poucos exemplos talvez bastem para mostrar o quão na verdade ela é precisa: não é muito difícil vir à mente a imagem de um desses famosos líderes neopentecostais anunciando aos berros a salvação da humanidade pela televisão, enquanto manifesta seu ódio ao militante de esquerda e, em muitas vezes, às mulheres, tirando do contexto determinadas passagens do evangelho para subjugar a esposa e as filhas dentro de casa. Do lado oposto, tampouco é difícil notar o dono de ideias progressistas, denunciando todas as injustiças cometidas contra os oprimidos, ao discorrer sobre a luta de classes, o império estadunidense e a guerra na Ucrânia, ao mesmo tempo em que ergue a própria voz numa conversa com uma mulher para constrangê-la, ou reproduz na intimidade do lar a versão masculina da dominação que tanto denuncia.

Os exemplos parecem demonstrar apenas um desvio de caráter, principalmente daqueles que, apesar de pregarem o amor de Cristo pelas pessoas, mandam seus inimigos ao inferno. Todavia, além da falta de decência para viver à altura das próprias convicções, esses casos revelam a dificuldade que sobretudo os homens possuem para enxergar que o respeito às mulheres, além de uma questão privada e de comportamento, é a rigor uma questão política.

Sem dúvida, não se pode ignorar que as lutas por reconhecimento, fundadas no anseio pela autorrealização de determinadas pessoas, correm o risco de serem instrumentalizadas pelo discurso da direita neoliberal, que procura ocultar a distinção e o conflito que existe entre classes. Especialmente em um país como o Brasil, onde a diferença entre ricos e pobres alcança níveis pornográficos, nunca é demais lembrar que as demandas por maior igualdade material tem (sempre) seu lugar de destaque.

Por outro lado, não se pode negar que, nos debates sobre a construção de uma sociedade mais justa e democrática, a luta pela igualdade entre mulheres e homens quase nunca é levada a sério, nem mesmo pelo pensamento mais à esquerda. Em certas obras marxistas, a emancipação das mulheres é um assunto que, não poucas vezes, é tratado apenas nas notas de rodapé; para muitos autores adeptos dessa linha de pensamento, a desigualdade entre classes tem primazia sobre todas as demais formas de desigualdade, de tal forma que, uma vez superado o conflito entre capital e trabalho, estariam automaticamente solucionados os problemas relativos aos outros conflitos sociais, entre os quais aqueles estabelecidos entre homens e mulheres. O próprio Friedrich Engels, numa troca de correspondências com Gertrud Guillaume-Schack em julho de 1885, não se distanciava muito desse diagnóstico, ao afirmar que: “De acordo com minha visão, uma verdadeira igualdade de direitos entre mulher e homem só pode se tornar realidade, quando a exploração de ambos pelo capital for eliminada e o trabalho doméstico privado se transformar em uma indústria pública”[2].

O fato, porém, é que, como diz Luís Felipe Miguel, “a experiência dos países do socialismo real mostrava que as assimetrias entre homens e mulheres (…) persistiam mesmo numa sociedade pós-capitalista”[3]. Até mesmo Alexandra Kollontai chegou a sustentar em alguns de seus textos a independência da desigualdade de gênero diante da desigualdade de classes. Ainda que inicialmente ela tenha criticado o feminismo como um movimento burguês – que isolava a luta pela emancipação das mulheres da estrutura social capitalista, negando que houvesse uma questão feminina em si –, após a Revolução Russa de 1917 seus escritos passaram a mostrar maior sensibilidade a tal questão, dizendo que era necessário desprivatizar a maternidade e o dever de cuidado em relação às crianças, a fim de que houvesse uma incorporação igualitária das mulheres à cidadania[4].

De forma resumida, tudo o que se quer afirmar é que a dominação sobre as mulheres não é dependente do conflito entre classes na sociedade capitalista. Ainda que o capitalismo se utilize economicamente da desigualdade entre sexos, a emancipação feminina não está subordinada à centralidade da luta de classes, nem pode ter sua importância reduzida ao combate à reprodução do capital; ela é uma questão independente e que nitidamente tem um valor em si. E por ter um valor em si, não é preciso aguardar um novo modo de produção, para que a igualdade de gênero se realize, até porque, mesmo com a chegada da sociedade futura, é possível que a opressão ainda persista.

Mas se a questão feminina é uma questão de libertação política, por que a “mulher ao lado” importa? Se, na fala de Dostoiévski, amar uma mulher em particular tem sua importância, como isso poderia contribuir para sua emancipação, inclusive política?

Atualmente, muito se fala em crise da democracia; a literatura sobre o assunto já virou entretenimento e pode ser encontrada até nas prateleiras de aeroportos[5]. A maioria dos autores que escreve sobre esse tema fala que uma das causas da erosão das democracias é a emergência de líderes populistas e que sua solução são instituições fortes, que funcionam adequadamente e são capazes de controlar os ímpetos autoritários daquelas lideranças. Quase nenhum desses autores, todavia, destaca o problema das desigualdades para as democracias: nem as de classe, agravadas por políticas de austeridade impostas pelo discurso neoliberal, nem qualquer outro tipo de desigualdade que exista na sociedade, como, por exemplo, a que se dá entre homens e mulheres.

Porém, democracia pressupõe que empregados e patrões tenham o mesmo valor e que todas e todos tenham chances semelhantes de influírem nas tomadas de decisão que afetam suas vidas. Num país em que os ricos têm melhores condições de definirem o rumo das eleições, financiando campanhas, e de aprovarem projetos de lei de seu interesse, fazendo lobby no Parlamento, sem que trabalhadores e pobres tenham as mesmas oportunidades, só com muita dificuldade pode-se falar em democracia. No mesmo sentido, tampouco é simples falar de democracia numa sociedade em que as mulheres enfrentam ao menos duas dificuldades: a primeira é que, dada toda a estrutura histórica patriarcal, pela qual se impunham a elas serviços domésticos, sem acesso à qualificação profissional e ao mercado de trabalho, as mulheres acabam controlando menos riquezas do que os homens e, assim, dispondo de menos poderes para participarem da vida política da sociedade; e, em segundo lugar, porque, ainda que na atualidade uma porcentagem maior de mulheres tenha trabalho remunerado, grande parte delas continua respondendo pelos afazeres domésticos, sem tempo e maiores oportunidades de engajamento político.

O badalado professor Bruce Ackerman[6] da Universidade de Yale, em uma obra cujas citações chegam a ter sabor de lugar-comum nos livros de direito constitucional do Brasil, afirma que, ao menos na história política dos Estados Unidos, seria possível identificar momentos constitucionais de dois tipos diversos: por um lado, haveria os chamados momentos extraordinários, nos quais as pessoas seriam mais engajadas e se envolveriam de forma mais intensa com os rumos políticos da sociedade, provocando maiores transformações; e, por outro, momentos ordinários, nos quais, logo após esgotada aquela fase de maior mobilização cívica, os cidadãos voltariam suas atenções para a sua vida cotidiana, relacionada a suas tarefas profissionais e domésticas, deixando nas mãos dos políticos profissionais a tomada de decisões[7].

Todavia, é nos espaços da vida cotidiana que as mulheres são constrangidas à passividade, que as distancia da atividade política e acaba restringindo consideravelmente suas oportunidades de participação.  É no dia-a-dia da intimidade do lar que as estruturas de dominação se reforçam e produzem efeitos simbólicos que são transportados para a esfera pública, dando a impressão de que mulheres submissas ao comando de outro não têm autonomia nem aptidão para tomarem decisões políticas.

Por isso, sem a pretensão de liquidar um assunto tão importante, ao invés de se enfatizar momentos extraordinários, é preciso que se multipliquem os momentos em que as mulheres sejam chamadas a decidir, democratizando os espaços da vida cotidiana, como empresas, igrejas e, em especial, as famílias. Essa seria a melhor oportunidade de conferir a “mulher ao lado” o protagonismo de sua própria vida e a possibilidade de exercer influência cada vez maior no mundo a sua volta. Como diz o professor Luís Felipe Miguel, “a participação na vida cotidiana produz educação política. Ela gera entendimento sobre o funcionamento da política e da sociedade. O resultado líquido seria uma capacidade maior de interlocução com os representantes políticos e de fiscalização de seus atos”[8]. Em outras palavras, a mobilização cívica em momentos de maior turbulência política é algo que nasce e se desenvolve com o “treinamento” oferecido na base, que reconhece à mulher o direito de decidir seus próprios caminhos.

Ainda que isso pareça pouco, a importância de se enfatizar o dia-a-dia é que nele a dominação sobre as mulheres manifesta-se na sua forma mais violenta, ainda que os grandes acontecimentos políticos do mundo ao redor recebam maior atenção da história. Após a segunda guerra mundial, por exemplo, uma mulher alemã publicou anonimamente[9] um livro, no qual ela descrevia o cenário de destruição que as potências aliadas acabaram provocando em seu país. O que, todavia, atrai atenção em seu relato é a violência sexual que os soldados russos cometeram contra as mulheres alemãs, logo após a ocupação de Berlim. Segundo a autora, em meio à fome e à necessidade de se enfrentar a destruição provocada pelo conflito, as diferenças entre um estupro e uma prostituição forçada eram desfeitas, afinal, as mulheres alemãs “vendiam-se” diariamente aos soldados do exército vermelho em troca de alimentos e bebidas alcoólicas. Quando não ignoravam esses acontecimentos, os cidadãos alemães, de sua parte, os tratavam como uma espécie de tabu, limitando-se a afirmações moralistas sobre as causas mais profundas da guerra, que revelariam apenas as consequências da dominação de um país pelo outro. Nenhuma palavra, entretanto, era dita sobre porque os homens tinham a “necessidade” de violentar as mulheres naquelas circunstâncias.

Ao ler um trecho deste livro – cuja citação abre o texto que escrevo –, tive uma leve suspeita: “O mundo nazista dominado por homens fortes e gloriosos cambaleia – e com ele o mito do ‘Macho’”. Mais do que uma conclusão do tipo “os homens são capazes de se destruírem em uma guerra”, percebi que o verbo “dominar” em alemão é beherrschen, o que é bastante curioso porque sua raiz, a palavra Herr significa basicamente “senhor”. No latim, do mesmo modo, a palavra dominare ou dominari também tem semelhanças com a palavra homo ou homini, que quer dizer claramente “homem”. E inclusive em português o substantivo “homem”, ou as palavras “homem em ação”, não estão tão distantes da palavra “dominação”. Em resumo, minhas suspeitas diziam que a própria linguagem já demonstrava que “dominação” é antes de mais nada uma ação do homem, seja no contexto de uma guerra entre países, seja no cotidiano despercebido da mulher violentada.

Wittgestein dizia que os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo, o que em resumo significa que meu mundo é do tamanho das afirmações que consigo fazer. Se a crise das democracias para mim é um problema relacionado apenas ao populismo e que suas soluções se resumem ao fortalecimento das instituições, então, para mim, pode ser democrática uma sociedade em que o dinheiro dos ricos tem influência sobre o resultado de eleições e em que as mulheres continuam sendo oprimidas, sem a autonomia necessária para decidirem sobre seu próprio destino. Do mesmo modo, se eu afirmo que a violência sexual é um problema exclusivo da desigualdade entre classes ou entre países em guerra, então, bastaria para mim um mundo sem pobres e sem guerras para que os crimes sexuais desaparecessem. Por outro lado, se eu sou capaz de afirmar que, além de outros problemas, há dominação das mulheres nas empresas, nas igrejas, e dentro das casas e que ela é necessariamente masculina, cometida por homens, então, a realidade se amplia para mim, e tanto a crise da democracia como a violência sexual são problemas mais complexos, que demandam soluções muito mais criativas do que o mainstream da literatura política ou os slogans da crítica marxista vulgar são capazes de apontar.

Fica o convite, assim, a todas as pessoas, mas principalmente a nós, homens, para reconhecermos que a dominação que exercemos, ainda que de modo inconsciente, constitui o mundo a nossa volta. E como este mundo não é só nosso, fica o desafio de ampliarmos seus limites, a começar pela base das relações cotidianas. O começo pela base, com a afirmação da igualdade plena entre mulheres e homens no dia-a-dia e, em especial, dentro de casa, pode parecer humilde demais; mas “começos humildes” podem provocar consequências revolucionárias. A não ser assim, resta certamente a opção de continuar denunciando as maiores injustiças do mundo e fazendo grandes juras de amor pelos oprimidos, pelas classes exploradas, por um país inteiro ou até mesmo pela humanidade, sem todavia produzir efeito prático para ninguém – nem mesmo para a mulher que pode estar sempre ao seu lado.    

Júlio Gonçalves Melo: Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Membro do Coletivo Transforma MP.


[1] Tradução própria do seguinte trecho: „Immer wieder bemerke ich in diesen Tagen, daß sich mein Gefühl, das Gefühl aller Frauen den Männer gegenüber ändert. Sie tun uns leid, erscheinen uns so kümmerlich und kraftlos. Das schwächliche Geschlecht. (…) Die männerbeherrschte, den starken Mann verherrlichende Naziwelt wankt – und mit ihr der Mythos ,Mann‘. (…) Am Ende dieses Krieges steht neben vielen anderen Niederlagen auch die Niederlage der Männer als Geschlecht“. HILLERS, Marta. Eine Frau in Berlin: Tagebuch-Aufzeichnungen vom 20. April bis 22. Juni 1945. Btb Verlag, 2008.

[2] Tradução própria do seguinte trecho: „Eine wirkliche Gleichberechtigung von Frau und Mann kann nach meiner Überzeugung erst eine Wahrheit werden, wenn die Ausbeutung beider durch das Kapital beseitigt und die private Hausarbeit in eine öffentliche Industrie verwandelt ist“. ENGELS, Friedrich. Brief an Gertrud Guillaume-Schack, 5. Juli 1885. In: MEW Band 36.

[3] MIGUEL, Luís Felipe. Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 72.

[4] A observação é do professor Luís Felipe Miguel, em: MIGUEL, Luís Felipe. Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p. 76.

[5] Para citar alguns exemplos: LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018; GINSBURG, Tom HUQ, Aziz. How to save a constitutional democracy. Chicago: The University of Chicago Press, 2018; LANDAU, David. Abusive constitutionalism. University of California, Davis Law Review, v. 47, 2013.

[6] Quando minha esposa discutia este texto comigo, neste exato ponto em que menciono o professor Bruce Ackerman, ela me advertiu que, na maioria das vezes, eu citava autores homens em meu texto, o que mostra não a falta de mulheres escritoras sobre o tema, mas o quanto eu mesmo devo prestar mais atenção em meus estudos e devo me manter em reconstrução, evitando a prática – inconsciente que seja – de escantear pesquisadoras do sexo feminino.

[7] ACKERMAN, Bruce. We the People. Foundations. Cambridge-Massachusetts: Belknap Press of Harvard University Press, 1991, v. 1.

[8] MIGUEL, Luís Felipe. Democracia: crise e possibilidades. 6 set. 2019. Disponível em: https://jornalggn.com.br/noticia/democracia-crise-e-possibilidades-por-luis-felipe-miguel/.

[9] A primeira publicação em alemão dessa obra é de 1959 e foi mantida em anonimato dada a péssima recepção dela pela sociedade alemã da época. Somente nos anos 2000, pouco tempo depois da morte da autora, é que o nome de Marta Hillers foi ligado à escrita do livro, quando então ele se tornou um sucesso de vendas. Há, inclusive, um filme sob a direção de Max Färberböck, disponível na seguinte página do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=kKJqCYLoMq8

Coletivo Transforma MP se manifesta contrariamente às falas da vice- Procuradora Geral da República?

A recente manifestação  da vice- Procuradora Geral da República, Lindora Araújo, em sessão do STF, é susceptível de críticas.  

Tratava- se de julgar um caso sobre a validade do perfilamento racial na detenção de uma pessoa, no bojo de uma Habeas- Corpus.

Ao se posicionar pela  manutenção de decisão proferida,  por maioria de votos, numa turma do STJ, que não enxergou a ocorrência de racismo contra a pessoa que fora detida em virtude da cor da pele, a vice- PGR

não fez um exame aprofundado das circunstâncias de fato que envolvem a detenção e processos contra pessoas às quais, não raro, se imputa a prática de tráfico de entorpecentes.

Observe- se que o caso sob exame tem o condão para ser um importante precedente da Corte no enfrentamento ao racismo institucional tão amplamente disseminado no  Brasil, em particular, na abordagem policial em operações de rua. 

No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 consigna- se que dentre as mais  de 800 mil pessoas presas, no país, mais de 67, 4% delas é de cor negra.  

Esse percentual, por certo, só pôde ser alcançado porque a repressão penal contra pessoas pretas, muito especificamente, aquelas que são implicadas no crime de tráfico de drogas, se  vale justamente do perfilamento racial, o que é um indício precário. 

Não pareceu a Procuradora ignorar por completo essa realidade. Isto porque ela afirmou por ocasião do julgamento que,  “se se entender que é racismo, vai ter que soltar todos os presos de tráfico”. 

A sua fala, portanto, é contraditória e isso compromete a posição que firmou.

De outro lado, talvez a vice- Procuradora Lindora desconheça que em 2001, o Brasil teve uma participação ativa na Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, donde resultaram as cotas raciais e muitos debates no país acerca do racismo institucional que se traduz na adoção de comportamentos dentro das instituições motivados por preconceito de cor e que, em geral, frustram os direitos do cidadão. 

A vice- Procuradora na sua fala perdeu uma excelente oportunidade de engrandecer o Ministério Público. Poderia ter contribuído para elaborar um precedente valioso na defesa dos Direitos Fundamentais no país, impulsionando a necessária de revisão dos casos de pessoas que se acham por força do racismo institucional detidas.  Num cálculo apressado e superficial preferiu deixar tudo como está.

Coletivo Transforma MP entrega livro Democracia e Justiça em Pedaços ao Procurador-geral de Justiça do DF

O integrantes do Coletivo Transforma MP Alessandra Queiroga (MPDFT), Leomar Daroncho (MPT) e Ronaldo Fleury (subprocurador-geral do Trabalho aposentado e ex-PGT) entregaram a obra “Democracia e Justiça”  volume 1 e 2 ao Procurador-geral de Justiça do Distrito Federal (MPDFT), Georges Carlos Fredderico Moreira Seigneur. 

O livro inicia-se com múltiplas análises sobre aqueles episódios mais sombrios e seus desdobramentos para a democracia brasileira. Além de apresentar o Coletivo, o escopo da publicação consiste em reunir os artigos em ordem cronológica para contar a história do país desde a ameaça do impeachment em 2016 até os dias atuais.

Durante o encontro os membros apresentaram o Coletivo Transforma MP ao Procurador e como o grupo tem atuado na defesa dos direitos humanos e constitucionais desde sua fundação, em 2016. Os integrantes também destacaram a colaboração com entidades jurídicas e movimentos sociais que resultaram em grandes projetos, como a realização do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, a formação da Coalizão em Defesa do Sistema Eleitoral e as propostas para um Sistema de Justiça mais igualitário e justo. 

Inclusão das pessoas com Síndrome de Down na escola e a exclusão que vem depois…?

Por Maria Betânia Silva no GGN

Uma matéria jornalística que instiga pensar além da família e da escola

Recentemente, a Revista Crescer, versão on line, publicou uma matéria com o seguinte título:

“Procura-se amigo: mãe paga para pessoas fazerem amizades com o filho que tem síndrome de Down

A matéria repercutiu a atitude de uma mãe, Donna Hetter, residente no estado de Missouri (EUA) cujo filho, Christian, tem síndrome de Down e não conseguia mais fazer amizades, na fase adulta, após o término da sua vida escolar. Ela postou no Facebook um anúncio segundo o qual pagaria cerca de U$80,00 para quem jogasse videogame com ele, por duas horas, dois dias por mês. Donna Hetter deixou claro na sua postagem que estava oferecendo pagamento para alguém se tornar amigo do seu filho.

O conteúdo inusitado desse anúncio talvez tenha causado um desconforto emocional em muita gente, expressando um pesado juízo de censura em relação à mãe por parte de algumas pessoas ou, um sentimento de compaixão por mãe e filho, por parte de outras. Os detalhes trazidos na matéria, por seu turno, têm o condão de suscitar reflexões que podem escapar desse desconforto inicial. A provável alegação quase instantânea, por exemplo, de que “amizade não se compra” e/ou a manifestação de piedade em relação a Christian porque ele tem Síndrome de Down, são atitudes que se diluem numa análise mais ampliada do caso, quando se busca conectá-lo aos modos de vida das pessoas no estágio atual de desenvolvimento da maioria das sociedades e, muito particularmente, no contexto de países do chamado mundo Ocidental.

A reportagem dá conta do fato de que o anúncio postado por Donna Hetter, no Facebook, viralizou entre pessoas do mundo inteiro, tanto que ela entrou em pânico e deletou o post. Na prática, depois disso, novos amigos passaram a visitar Christian, recusando o dinheiro. E, mais, ela precisou organizar os compromissos do filho numa agenda em virtude do número de pessoas que se dispuseram a interagir com ele.

Não foi por acaso que o assunto atraiu a minha atenção.

Na condição de mãe de um adolescente com síndrome de Down, também muito sociável e, ainda, frequentando a escola, li a matéria sobre esse anúncio e os seus desdobramentos, com lentes de aumento; como se fossem lentes de um microscópio, que ampliam uma pequeníssima parte de um todo a fim de esclarecer e contribuir na compreensão daquilo que afeta esse todo. E faço o exame aumentado dessa história porque por trás dela há questões sobre a síndrome de Down que precisam ser abordadas de forma insistente e escancarada a fim de bem dimensionar as possibilidades de inclusão das pessoas com essa síndrome num ambiente que vai além da família e da escola.

A motivação que arrebatou a mãe de Christian ao tomar a iniciativa do anúncio traduz uma realidade de medo relativo ao desamparo que ameaça o futuro de pessoas com síndrome de Down. Normalmente, elas têm como o seu único refúgio a família: pai e mãe, ou apenas um deles. Quando têm irmãos/irmãs nem sempre podem contar com eles já que a dinâmica familiar, até de modo inconsciente, pode tender a se organizar sob a tentativa de construir a autonomia de todos os membros, enfatizando o discurso em relação aos que não tem a síndrome de Down de um lado, e investindo demasiadamente em  ações em favor de quem a tem, de outro. Aliás, nesse aspecto, a matéria sobre a vida de Christian refere-se ao fato de que suas irmãs costumavam sair com os amigos. Algo, portanto, que não fazia parte da rotina dele.

No contexto familiar de pessoas com a síndrome de Down, portanto, ronda uma incerteza de não terem lugar de acolhimento especialmente desenhado para elas, caso se tornem órfãs. Isso pode significar apartá-las do mundo e da conexão incessante que precisam ter com ele, para se desenvolverem.

É fato que esse receio não se restringe às pessoas com Síndrome de Down. As situações que engendram o medo do desamparo quanto ao futuro de alguém são variadas e podem ou não envolver pessoas com deficiência.

A questão, contudo, é a quase certeza de desamparo quanto às pessoas com síndrome de Down que, já na fase adulta, se tornam órfãs, mesmo no caso de alguém da família estendida ou amigos assumirem as responsabilidades que eram exercidas pelos pais. Esse receio de desamparo procede porque as perspectivas de uma vida independente para as pessoas com a síndrome de Down são quase inexistentes[1]. Em muitos aspectos, é preciso mantê-las sob uma supervisão contínua para que fiquem em segurança e sejam estimuladas a dar conta de situações práticas do cotidiano da vida adulta como: ir ao supermercado, pagar contas, marcar consultas médicas, etc..  

Tem-se como certo que o futuro dessas pessoas é a solidão no que se refere à constituição de um círculo de amigos. E, na hipótese de começarem um relacionamento afetivo e sexual com alguém, orientações e supervisão constantes continuam sendo imprescindíveis para que organizem minimamente o seu dia-a-dia.  De outro lado, muitos são os fatores que relativizam ao extremo a capacidade de aprendizados adquiridos pelas pessoas com síndrome de Down para viver de forma autônoma e sem muita interferência alheia.

Isto ocorre porque pessoas com síndrome de Down apresentam entre si muito mais diferenças do que aquelas que existem entre as pessoas sem essa síndrome. Mesmo que todas as pessoas sejam diferentes, no caso das que têm a síndrome de Down as diferenças podem variar e se apresentar acentuadas tanto em relação ao potencial cognitivo delas quanto à sua motricidade, sem contar que entre elas, problemas de linguagem, em maior ou menor grau, é um ponto em comum que compromete a fluidez da comunicação.

As diferenças a serem consideradas em pessoas com síndrome de Down vão depender, por sua vez, da existência ou não daquilo que nos manuais da medicina se designa como comorbidades (que podem envolver malformações orgânicas, problemas cardíacos e de baixa imunidade, para citar os mais frequentes) e das condições de vida material ou das oportunidades aproveitadas pelos familiares em oferecer os estímulos necessários a essas pessoas, desde a infância até a sua fase adulta, mediante terapias específicas como: fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, acompanhamento psicológico etc. Paralelamente a essas terapias, deve-se considerar também o indispensável processo de escolarização adaptado didaticamente à preparação intelectual dessas pessoas, levando em conta que conteúdos abstratos são de difícil assimilação para elas. Todo esse processo demanda um ambiente escolar verdadeiramente inclusivo quanto às práticas e rotinas pedagógicas para promoverem pacientemente o respeito às diferenças e fazer nascer uma convivência harmoniosa no interior da comunidade escolar.

Não é difícil concluir que os estímulos necessários para o melhor desenvolvimento intelectual, o bem-estar orgânico e eventualmente psicomotor de pessoas com síndrome de Down estão intrinsecamente relacionados às condições de vida material da família. A classe social na qual a família se situa é um ponto determinante na busca e no acesso a um apoio profissional indicado para criança nascida com a síndrome assim como para a manutenção desse apoio pelo tempo que se fizer necessário. E mais, vai depender também da abertura e das condições financeiras da família diversificar esses estímulos com atividades esportivas, culturais etc.

Em resumo, tudo isso diz algo tanto do universo intrínseco às  pessoas com síndrome de Down quanto dos desafios familiares que fazem com que a solidão para elas esteja à espreita. Há várias barreiras a serem vencidas até colocar todas as pessoas com síndrome de Down no mesmo patamar de possibilidades de autonomia para conduzirem relativamente bem suas vidas. Pela atipicidade de sua condição, elas se veem diante de duas camadas de diferenças que se interpenetram: uma, que existe entre elas próprias em virtude, sobretudo, de eventuais comorbidades e, a segunda; que se forma na relação com o mundo, onde as condições de vida material são definidoras para lhes ofertar um plexo diversificado de vivências e assim servir de estímulo para o seu desenvolvimento como um todo. Nunca é demais enfatizar que as pessoas com síndrome de Down dependem de estímulos incessantes para progredirem sob vários pontos de vista e, no mínimo, preservarem o progresso alcançado ao longo da adolescência, na fase adulta.

Os desafios acima pontuados não implicam vislumbrar um horizonte desolador para as pessoas com síndrome de Down. Absolutamente, não! Do ponto de vista médico, a síndrome de Down é uma das síndromes mais estudadas até hoje; talvez por ter sido descrita, ainda, no século XIX pelo médico britânico John Langdon Down. Em virtude disso, então, as eventuais comorbidades que pessoas com síndrome de Down possam apresentar são de fácil identificação e com tratamentos relativamente bem protocolados na área médica.

Na verdade, a complexidade no trato com essas pessoas se potencializa não exatamente na área médica mas na área social, porque síndromes, em geral, tendem a gerar estigmas. Em relação às pessoas Down pesa o estigma de serem incapazes, desprovidas de vivacidade ou de inteligência. Engana-se quem assim pensa!

A dificuldade que elas podem apresentar e não exatamente a dificuldade que, em geral, apresentam, como por exemplo, fazer cálculos matemáticos, é antes um dado que se constitui nas formas de manejo relativas às suas especificidades, não sendo determinadas pela síndrome em si. Em outras palavras, as dificuldades que essas pessoas têm não se confundem com incapacidade, a qualpode decorrer do que faltou ser percebido seja em termos de pesquisa empírica, seja em termos de vivência. Abaixo, portanto, o capacitismo! Aliás, para dar visibilidade à importância de bem compreender a síndrome de Down e prestigiar a inclusão das pessoas com essa síndrome, a ONU instituiu a data de 21.03 como o Dia Mundial da Síndrome de Down. Essa data foi escolhida porque 21 alude à alteração cromossômica do par 21 e 03 é o número que define a alteração cromossômica ocorrida: a geração de um cromossomo extra nesse par 21.

Pessoas com síndrome de Down não são desprovidas de habilidades ou incapazes de aprender. A triplicação cromossômica no par 21, sabe-se, tem um forte impacto em diversas áreas do organismo da pessoa, mas essencialmente consiste em causar uma lentidão no processo de aprendizagem para a realização de diversas atividades da vida, podendo, ainda, esse processo se acentuar devido a problemas de ordem sensorial.  O desenvolvimento das habilidades das pessoas com síndrome de Down, portanto, se instala como um projeto de autonomia de mais longo prazo do aquele que se divisa no horizonte de pessoas sem essa síndrome. O tempo é o maior desafio que elas e seus familiares têm que enfrentar para aprender o que precisam até se tornarem autônomas naquilo que aprenderam. Nesse sentido se pode afirmar que apresentam uma redução na capacidade para serem autodidatas em relação a uma gama de atividades que lhes garanta, por exemplo, uma vida produtiva do ponto de vista profissional e consistente do ponto de vista intelectual.

A família, portanto, precisa, necessariamente, correr atrás de tudo que possa contribuir para impulsionar o desenvolvimento de uma pessoa com síndrome de Down e essa tarefa é árdua porque não é socialmente compartilhada como deveria e poderia ser. Afinal, pessoas com deficiência, sob o modelo da sociedade que forjamos,  seja qual for a deficiência, em primeiro lugar, são vistas como um problema pesado; em segundo lugar, como um problema de ordem familiar e, em terceiro lugar, como geradoras de alto custo social.

  1. As perspectivas para ir além da história

Voltando à publicação da matéria referida no início deste artigo, foi esclarecido que o Christian, o adulto de 24 anos com síndrome de Down, não tinha e não tem dificuldades em se relacionar com as pessoas, em geral. A solidão que ele passou a vivenciar, ao que parece, decorreu da falta de oportunidades para encontrar outras pessoas além daquelas do seu núcleo familiar.

Dados os esclarecimentos feitos pela mãe de Christian ao justificar a postagem feita, conclui-se que as pessoas do núcleo familiar ou de fora dele, para se relacionarem com Christian, lhes devem dispensar a atenção necessária para fazê-lo feliz nesse mundo. Basicamente, foi isso que Donna Hetter estava buscando para seu filho.

Pensando bem, fazer pessoas felizes não é um problema das pessoas isoladamente consideradas. É um problema relacional, a face projetada em cada um de um problema social maior que desponta muito fortemente no tipo de sociedade em que vivemos.

Nosso padrão de convivência não é propriamente baseado na ideia de coletividade que pressuponha o compartilhamento dos “ônus” e dos “bônus” que cada um carrega na sua existência; a lógica é a do individualismo voltada a priorizar o que apenas se vê como “bônus” em cada indivíduo. Se as potencialidades individuais de alguém são caracterizadas como “ônus” invisibiliza-se qualquer “bônus”. Há um cálculo racional, consciente mas de prevalência inconsciente que afasta alguns indivíduos da vida social.

Essa é a razão do debate sobre inclusão das pessoas com deficiência na esfera da vida pública e que mais recentemente desafia, com veemência, a lógica trazida por posturas  capacitistas, segundo a qual se firma uma quase certeza da inaptidão de quem tem deficiência, quando não uma grande surpresa da aptidão para fazer se mover e se colocar diante do mundo. Desafiar o capacitismo e postular a inclusão, por outro lado, não implica conquista de espaço pelas próprias pessoas que desde o nascimento são diferentes e estampam uma atipicidade de ordem biológica. Não se pode substituir a lógica do capacitismo pela meritocracia no sentido de exaltar que, apesar da deficiência, tal ou qual pessoa conquistou o seu espaço e realizou os seus sonhos, como se isso dependesse pura e exclusivamente da força de vontade delas. Não se trata de desprezar a força vontade, que é importante, mas de reconhecer que nem sempre ela é determinante na vida das pessoas. A eqüidade, objetivamente, em relação aos pontos de partida, importa!

No que concerne especificamente às pessoas com síndrome de Down, o que se reclama é a adaptação de espaços sociais que já estão dados no mundo do trabalho com abertura para efetuar acolhimento e compartilhamento do que elas têm de especial para oferecer a todos que com elas interagem. E isso é tarefa coletiva, não é uma luta individual. 

O processo de desenvolvimento que pessoas com a síndrome de Down podem alcançar, com o devido respeito ao diferencial que exibem, não está tão distante da trajetória traçada para aqueles que não têm a síndrome. Em termos mais objetivos, não faz sentido avançar nas terapias e tratamentos médicos das pessoas com síndrome de Down, inseri-las no sistema escolar para melhorar o desenvolvimento delas e não adaptar espaços que as acolham na medida das suas potencialidades ao término dos seus estudos. Os espaços sociais estão dados no mundo do trabalho, mas preenchê-los na perspectiva de promover o compartilhamento das potencialidades das pessoas com síndrome de Down com as pessoas típicas é a parte que falta.

A inserção de pessoas com síndrome de Down no ambiente escolar, muito significativamente, em escolas com projeto de inclusão, já constituiu, ao longo do tempo, um passo muito importante em termos de acolhimento e de estímulo ao desenvolvimento delas, embora ainda haja muito a ser feito. No espaço escolar elas aprendem a ler e a escrever e, no convívio com as crianças e adolescentes típicos, vão se descobrindo, ativando potencialidades, se formando e se transformando. No entanto, concluído o tempo de escola, para a maioria delas, a vida para.

Ao se postular a abertura de acolhimento dos espaços fora da escola para pessoas com síndrome de Down não se ignora que mesmo nesse ambiente há muito o que se aperfeiçoar. Mais, ainda, no âmbito universitário. É sabido que no Brasil e em outros países, como Espanha, há notícias de pessoas com síndrome de Down que chegaram ao ensino superior. Nesse caso, a vivência universitária delas tanto entusiasma quanto demanda transparência e compartilhamento das práticas pedagógicas concebidas nesse nível de ensino para formação profissional dessas pessoas, com as adaptações necessárias às suas especificidades, de caráter intelectual. Esse compartilhamento seria uma boa contribuição para pôr em evidência os meios gerados em favor de uma inclusão plena.

É preciso levar em conta que frente ao modelo de sociedade que construímos e que não dá sinais de retroceder quanto à lógica de produção que recobre a trajetória de vida das pessoas, a escola é o primeiro o espaço fora do ambiente familiar onde se têm as primeiras aprendizagens orientadas para o exercício da autonomia individual com a perspectiva de preparar e direcionar o indivíduo, futuramente, ao mundo do trabalho. Cursos técnicos e universidades completam e ampliam o esquema para que essa autonomia se realize, pelo menos, em relação àquelas que naturalmente conquistaram a oportunidade de ingressar nesse processo de formação ou para aquelas que com sangue, suor e lágrimas tiveram que batalhar.

Para as pessoas com síndrome de Down, no entanto, a realidade, no geral, ainda é outra.

Como já dito, elas têm uma capacidade reduzida para serem autodidatas, porém, se ingressam na escola e aprendem, é natural que, conforme vão percebendo o mundo a partir da resposta dada aos estímulos recebidos, possam até criar expectativas sobre o exercício de sua autonomia individual. Essa circunstância, instaura a necessidade de que se esboce um projeto pedagógico focado em priorizar as atividades profissionais compatíveis com a média das habilidades cognitivas e psicomotoras das pessoas com síndrome de Down para que, assim, elas continuem inseridas no mundo, fazendo o que sabem e o que gostam.

A título de exemplo, penso na situação de Christian, o rapaz da matéria publicada na Revista Crescer. Ele é residente no EUA, país que se envaidece das oportunidades para todos e, ele,  lá concluiu o equivalente ao ensino médio.  Após isso, no entanto, as amizades cessaram. E a vida de Christian voltou-se ao vídeo game!

A reportagem não esclarece quais os fatores que o fizeram ficar isolado sem possibilidades de interagir com as pessoas como ocorria quando tinha uma vida escolar. O que se tem certo é que ele sabe e gosta de vídeo game, tanto que sua mãe fez o anúncio para pagar a quem pudesse jogar vídeo game com ele por duas horas.

Num exercício imaginário do que seria esse gosto de Christian por vídeo game e possivelmente a habilidade que adquiriu, bem que ele poderia ser um excelente garoto propaganda numa loja de vídeo games, por exemplo. Nessa condição estaria ajudando a vender o produto, interagindo com muitas pessoas e sendo pago pela sua capacidade de comunicar aquilo que gosta de fazer, em lugar de ter que pagar para não ficar só. Sem dúvida, que a iniciativa da mãe de Christian teve uma resposta positiva. Conforme declarado por ela, após o anúncio que fez, viu-se diante da necessidade de organizar a agenda de Christian. Mas nunca é demais lembrar que essa resposta pode apenas ter sido um efeito instantâneo da compaixão e, se foi isto, quiçá essa compaixão se converta num elo de verdadeira amizade a partir daquilo que Christian pôde fazer aflorar na consciência dos que com ele interagiram.

A rigor, a solidão das pessoas com síndrome de Down talvez não tenha por causa apenas a falta de relacionamentos que se traduzem em amizades, na vida adulta. Deve-se cogitar que uma vez treinadas na escola para manter um contato com o mundo e com ele se relacionarem, elas talvez adentrem na idade adulta sem a clareza quanto ao que lhes confere um sentido de vida. É bem provável que esse sentido, para as pessoas com síndrome de Down, não se concentre no afeto apenas que as outras podem lhes dar mas naquilo que elas próprias sabem e gostam de fazer para as outras pessoas e também junto com elas.


[1] Em alguns países como no Reino Unido há um programa de Assisting Living  que consiste,em fornecer, numa residência coletiva para adultos com síndrome de Down, a ajuda necessária ou supervisão para aqueles que são capazes de gerir a maioria da atividades diárias

O carnaval brasileiro é o maior (e o melhor) espetáculo da face da terra. E ponto final

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por Gustavo Costa no GGN

A quem discordar do título desta breve reflexão, peço que mostre algo mais belo e emocionante (faltam adjetivos). A cada ano são viagens e mais viagens na história, na cultura, na vivência e nas lutas do povo brasileiro. Em fevereiro, pode escrever, tem carnaval.

O Brasil é também o país do futebol. Craques sem paralelo dão show em todas as partes do mundo com seus dribles inimitáveis.

Infelizmente, o futebol brasileiro é vítima de uma monstruosa e intensa campanha de difamação e de rebaixamento. Os jogadores são constantemente atacados (inclusive pela imprensa brasileira, papagaio da estrangeira) pelos mais variados motivos – muitos inventados.

Neymar (menino negro de origem humilde), o maior craque brasileiro da atualidade, é linchado cotidianamente pela imprensa e nas redes sociais sabe-se lá por quê. As maravilhas que faz com a bola e a adoração que causa à molecada brasileira não importam para os “acusadores”.

Daniel Alves (cujas glórias são invejáveis) já foi julgado e condenado como “estuprador”, principalmente por parte da esquerda, que (fazendo coro com a rede globo) rasgou e jogou no lixo o princípio da presunção de inocência, o qual defendeu tão feroz – e corretamente – em período recente. Uma atitude melancólica para quem se julga defensor dos direitos humanos.

A mesma campanha negativa se faz da história brasileira. Para os desavisados, 523 anos de riquíssimos feitos, de uma formação social inigualável e de uma miscigenação maravilhosa não passam de um “genocídio”. Talvez, para esses críticos, o Brasil (esse mesmo país capaz de criar a exuberância do carnaval) nunca deveria ter existido. Mortes houve, escravidão houve, repressão houve. Mas o Brasil está longe de ser só isso.

Mas com o carnaval não. A maior festa do planeta ninguém (nem os maiores odiadores da cultura e do povo brasileiro) é capaz de criticar. Seria algo muito impopular.

Uma festa que parece não ter fim; que explode a potência do povo. Por alguns dias, o preconceito, a desigualdade, a pobreza e a discriminação são mitigados (embora permaneçam, vide a separação causada pelos “cordões” de Salvador).

As escolas de samba são um show (e bota show nisso) a parte. Fazem pequenas demonstrações do que são durante o ano inteiro em suas quadras. Espaços de brutal inclusão social, representam a razão de vida de milhões de moradores das favelas e periferias. Quem é incapaz de se emocionar vendo a paixão avassaladora que os integrantes sentem por suas escolas? É espetacular.

Foram as escolas de samba as responsáveis pelo surgimento de inúmeros e estupendos talentos da música brasileira, como Cartola, Martinho da Vila, Ivone Lara, Beth Carvalho, Neguinho da Beija Flor, Paulinho da Viola e tantos outros (impossível nominar todos). Nas escolas de samba os moradores das comunidades aprendem a trabalhar para um fim comum, abandonando o egoísmo e o individualismo que grassam a sociedade neoliberal.

O poder de transformação social de uma única escola de samba é infinitamente superior ao de todas as “instituições” de Estado (burocráticas, retrógradas e falidas) somadas. Pobre do burocrata que acredita ser “agente da transformação social”.

Como todo o grupamento humano, não estão livres de problemas e contradições. Mas isso não vem ao caso agora.

Neste ano de 2023, as escolas arrasaram.

Em São Paulo, os Acadêmicos do Tucuruvi homenagearam Bezerra da Silva, ícone dos morros cariocas. A Mancha Verde tratou da cultura nordestina, falando de Lampião, Luiz Gonzaga e Padre Cícero. A Gaviões da Fiel lembrou da importância da tolerância religiosa. A Mocidade Alegre, campeã, contou a história de Yasuke, o primeiro samurai negro da história.

No Rio de Janeiro, uma emoção atrás da outra.

A Portela comemorou “100 anos da mais bela poesia”. A Império Serrano homenageou Arlindo Cruz (que desfilou mesmo com grandes dificuldades) e a Grande Rio exaltou Zeca Pagodinho (seu último carro trazia as bandeiras das demais escolas cariocas). A Vila Isabel festejou (falou de festas), destacando, dentre outros, o festival de Parintins (“É Garantido e Caprichoso emocionar”). A campeã Imperatriz Leopoldinense baseou-se na literatura de cordel para exaltar a cultura nordestina e sertaneja, assim como fez a Mocidade Independente (“Ó rainha bonita, sou teu rei cangaceiro”).

Só alguns poucos exemplos da grandeza que foram os desfiles. Todas foram campeãs, independentemente de quem ganhou, de quem subiu e de quem caiu.

A cultura nordestina foi destaque especial neste carnaval no Rio e em São Paulo, mostrando um magnífico intercâmbio cultural entre as diversas regiões do país.

Isso sem falar no carnaval da Bahia, do Galo da Madrugada em Recife, do Frevo em Olinda e de todos os demais. Em cada pequena cidade do país é uma festa especial. Não há coisa mais bela. Não há riqueza cultural maior.

Que o carnaval possa, cada vez mais, mostrar ao povo (e também aos resistentes), o valor da história e da cultura brasileiras. Que possa mostrar a importância da convivência entre as diversas cores e origens, e que divisões artificiais entre “negros e brancos”, “índios e não índios”, “homens e mulheres” não favorecem em nada a luta social (pelo contrário).

Está aí o carnaval para mostrar: todos são bem-vindos; a união de todo o povo é a maior força do país.

Vida longa ao carnaval brasileiro – o maior e mais lindo do mundo.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Mestre em direito internacional pela Universidade Católica de Santos. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD