A revolução retrógrada da Era Barroso: um avanço contra os Direitos Humanos no trabalho

Fellipe Sampaio – SCO STF

Por Rodrigo Carelli no GGN

A atual composição do Supremo Tribunal Federal – STF vem sendo comparada à Era Lochner, que, a partir do fim do século XIX e início do século XX, foi o período mais conservador da Suprema Corte estadunidense, caracterizada pelo ativismo judicial para desconstruir os direitos sociais democraticamente construídos. O período atual realmente guarda muitas coincidências com aquela composição da corte máxima do grande país do Norte, mas neste início de texto deve ser justificada a razão pela qual devemos chamar a presente fase de Era Barroso. Essa proposta não afirma que Barroso está sozinho na linha de retorno ao século XIX, afinal não se faz uma corte com um julgador só. Claramente há outros, alguns mais ruidosos e menos elegantes, outros mais silenciosos, mas não menos atuantes. A proposta se deve ao fato de que Barroso se apresenta como o líder intelectual e porta-voz das atuais mudanças propostas, progressistas nos costumes, e retrógradas em relação aos direitos sociais. Barroso apresenta suas propostas não somente em seus votos e nos debates na corte, mas também em palestras ao redor do mundo desenvolvido, na forma de “uma agenda para o Brasil”.

A Era Barroso não se inicia com a sua chegada à presidência (do STF, não da República), mas está em movimento desde meados da década passada, com a autopromoção do STF à condição de protagonista do processo chamado de “Reforma Trabalhista”, precedendo nos pilares centrais às mudanças legislativas ocorridas em 2017, defendendo essas alterações mesmo com suas patentes contradições ao texto constitucional e aprofundando-a de forma agressiva.

A chegada à presidência do Ministro Barroso parece ser o clímax desse movimento de forte ativismo judicial retrógrado. De fato, apesar de ser um tanto assustador, o presidente do STF recém-empossado foi a Paris participar de um fórum, patrocinado por think tank da elite econômica brasileira, para conversar com empresários brasileiros com o objetivo de “vir ao espaço público e explicar o que está acontecendo no Supremo Tribunal Federal.” Barroso inicia sua fala justificando sua presença no evento para que o Supremo possa “se comunicar com a sociedade”.  A razão dessa comunicação com a sociedade brasileira ser feita em Paris, e não em qualquer cidade pátria, e o público ser somente composto de empresários brasileiros, pode ser encontrada nas estratégias que geraram a própria Análise Econômica do Direito, à qual o ministro parece seguir. Essa prestação de contas, nos dizeres do Presidente Barroso, é muito elucidativa para o que está por vir em sua gestão na Suprema Cote do Brasil.

O Ministro Barroso inicia sua fala afirmando que o protagonismo do STF se dá pela natureza da nossa Constituição, que é abrangente, e trata de vários sistemas em seu bojo, ao contrário de outros diplomas. Interessante que o Presidente da Suprema Corte cita nove grandes temas tratados sistematicamente na Constituição, mas não fala do sistema constitucional de proteção ao trabalho. Em seguida, afirma que o STF é uma instituição que apoia o empreendedorismo e a valorização da livre iniciativa, mas de forma curiosa se esqueceu que nas duas únicas vezes que a Constituição, aquela escrita e promulgada, cita a livre iniciativa fez por bem preceder a ela os valores sociais do trabalho e a valorização do trabalho humano.

Mas não é que Barroso se esqueceu da questão do trabalho, muito pelo contrário. Para justificar a atitude pró-empreendedorismo da Suprema Corte, listou uma série de atitudes do tribunal: afirmou que o STF garantiu a prevalência do negociado sobre o legislado “muito antes da reforma trabalhista”, validou a reforma, “inclusive em relação à contribuição sindical obrigatória”, “validou a terceirização em atividades econômicas fins e derrubou as leis que proibiam o transporte individual por aplicativo”. Como o fim da contribuição sindical obrigatória pode ter a ver com a valorização da livre iniciativa, isso somente o ministro pode dizer, mas a prestação de contas foi feita. O que ele deixa a perceber é que o que entende por defesa do empreendedorismo é a retirada de direitos trabalhistas.

Em seguida, o ministro volta a falar de trabalho, novamente com o tom negativo e sem qualquer correlação com o texto constitucional. A primeira área que cita ao falar de insegurança jurídica é a área trabalhista. Afirmou que o custo de uma relação trabalhista só se sabe ao final e que há 5 milhões de processos trabalhistas, oriundos de alguns empresários que se comportam mal, a existência de uma “indústria de reclamações trabalhistas” e a legislação, que é “de uma tal complexidade que mesmo quem queira cumpri-la não consegue cumprir adequadamente.”

O Ministro ainda se mostra incomodado com o número de ações trabalhistas. Deve ser lembrado que em evento mais uma vez ocorrido na Europa, desta feita em Londres, Barroso chegou a afirmar o dado falso que o Brasil detinha 98 por cento das ações trabalhistas de todo o mundo. Em Paris, 5 anos depois, Barroso se agarrou a um dado correto, mas sem colocá-lo em perspectiva. Barroso não falou que temos mais de 6,4 milhões de casos criminais em andamento, muito menos se mostrou preocupação quanto a isso. Não falou também dos 10 milhões de casos da Justiça Federal, que tem a União em sentido amplo como parte, que gera, portanto,  o dobro de casos em comparação com todos os empregadores do Brasil. O Ministro Presidente, da mesma forma, não citou que o assunto mais demandado não só na Justiça do Trabalho, mas em todo o sistema judiciário, como aponta o Anuário da Justiça 2023 do Conselho Nacional de Justiça, é a rescisão do contrato de trabalho. Ou seja, a causa mais frequente de ajuizamento de ações no país é justamente a dispensa de trabalhador sem pagamento de verbas rescisórias.

Nos círculos empresariais, nos jantares europeus pós-eventos, o Ministro deve ouvir a máxima de senso comum que corre nesse meio de que “o empresário somente fica sabendo o custo do trabalho quando termina a relação”, que é desprovida de qualquer sentido de realidade no dia a dia das relações de trabalho, em que empresas têm na ponta do lápis todos os custos e riscos de descumprimento da legislação. O que ocorre é justamente o inverso: vários processos terminam na Justiça do Trabalho com valores muito menores do que são devidos aos trabalhadores, pois o trabalhador tem fome, e verbas rescisórias são verbas alimentícias, e qualquer valor ofertado pode ser irrecusável. Se o Ministro fosse buscar na empiria, e não em discursos ideológicos, veria que existe mesmo uma indústria: uma indústria de descumprimento de direitos básicos, previstos em sua maioria na Constituição como direitos fundamentais.

Se o Ministro quiser mesmo entender as razões do número de ações trabalhistas, deve buscar nos números, ir aos dados e analisá-los, e não se basear mais uma vez no senso comum. Em 2022 foram 20.610.413 de dispensas no Brasil contra 3.179.259 ações trabalhistas ajuizadas. Ou seja, bem menos do que 15% dos trabalhadores formais dispensados ajuizaram reclamações na Justiça do Trabalho, pois temos que somar às dispensas dos trabalhadores formais todos os trabalhadores sem carteira assinada do país e os falsos autônomos, buscando o reconhecimento do vínculo de emprego. No Brasil, tomando 2022 como base, se compararmos os trabalhadores empregados sem carteira e com carteira assinada, sem contar as fraudes, temos 33 por cento de trabalhadores sem CTPS anotada. Ou seja, se ocorresse a mesma proporção de dispensas, teríamos mais 6.866.804 de trabalhadores dispensados, o que redundaria em que somente 11 por cento dos trabalhadores mandados embora ajuizaram ações. Dado o tamanho do descumprimento da legislação no país, o número de ações trabalhistas no Brasil deveria ser muito maior do que é, não o sendo por diversos fatores que não temos aqui tempo de listar. 

O Ministro Barroso, ao falar da complexidade da legislação trabalhista, aliás recém reformada em mais de 100 dispositivos, a qual inclusive o Ministro usou como defesa perante os empresários, como sinal de valorização do empreendedorismo pelo STF, deveria ter tratado do estranho fenômeno das empresas sem ações trabalhistas, ou com níveis baixíssimos de judicialização das relações. Com a frase de senso comum empresarial apresentada pelo ministro seria difícil explicar o fato de que o maior litigante na Justiça do Trabalho, o Banco Santander, com 52 mil empregados e 58 mil trabalhadores, contando terceirizados, concentra 0,42% de todas as ações trabalhistas do Brasil, tendo apenas 0,0013% dos empregados no país.

Talvez estudando esse fenômeno poderia perceber que também se trata de uma lenda urbana a afirmação da impossibilidade de cumprir a lei, afirmação gravíssima para quem ocupa o mais alto posto do Judiciário, podendo ser entendido pelos cidadãos que realmente não precisa cumprir a lei, dado que, conforme garantiu o Presidente do STF, trata-se de desafio impossível, portanto completamente escusável.

Mas o discurso do Ministro Barroso fica extremamente contraditório quando apresenta uma “lista pessoal” do que nomeia de “uma agenda para o Brasil”. Apesar de afirmar que os itens apontados estão na Constituição, a seleção e escolha são evidentemente do ministro. Inicialmente, afirma que o grande problema do Brasil seria a pobreza e a desigualdade, citando dados alarmantes. Entretanto, como acabar com esses problemas destruindo o direito do trabalho, exímio redutor de desigualdades, o Ministro não explica. Afirma o Presidente do STF que sem crescer não haverá o que distribuir, lembrando muito o mote econômico da ditadura na época do AI-5: “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”; o bolo cresceu, mas a divisão dele nunca aconteceu nas classes mais baixas, que tiveram salários reduzidos e decréscimo na participação da renda nacional.

Essa “agenda para o Brasil” tinha sido lançada no seu discurso de posse na presidência do STF.  A lista da agenda na posse é ligeiramente diferente da apresentada aos empresários, pois junto com a valorização da livre iniciativa o ministro colocou a expressão “do trabalho formal”. Apesar de ausente na fala de Paris, os “direitos humanos” aparecem cinco vezes em Brasília. “Direitos Fundamentais”, conceituados no discurso na capital federal como “os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna”, aparecem seis vezes. Segundo o Presidente, os “direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”. Não há como não concordar com o ministro neste ponto.

Não há como concordar com o ministro, no entanto, na ausência do direito do trabalho em ambos os discursos. Não dá para concordar também com a colocação da valorização da iniciativa privada na frente do trabalho, pois essa não é a ordem constitucional, nem no art. 1º, nem no art. 170, que colocam a valorização do trabalho na frente da iniciativa privada.

O Direito do Trabalho está na Constituição no Capítulo II do Título II, denominado de “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Ou seja, segundo o próprio conceito do Ministro, os direitos trabalhistas ali listados são os direitos humanos positivados e que incorporam a reserva mínima de justiça na sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna. Assim, a exclusão de trabalhadores da proteção constitucional dos direitos fundamentais é algo gravíssimo, pois impede o acesso a essa reserva mínima de justiça.

O que estamos vivenciando é uma revolução que é apresentada com ares de modernidade, de luz e de progresso, mas que não consegue esconder seu caráter eminentemente retrógrado. É  uma revolução comandada pelo STF, que propõe em sua agenda um retrocesso da proteção social à virada do século XIX para o século XX. O avanço que faz o STF sobre a relação de emprego, na pretensão de que as fórmulas contratuais civis prevaleçam sobre os fatos reveladores de uma relação de emprego, é o maior ataque aos direitos sociais já visto no Brasil. Ele tem a possibilidade real de esvaziar de conteúdo toda a proteção trabalhista presente na Constituição e nas leis infraconstitucionais, além dos tratados internacionais firmados pelo Brasil durante o século XX. Torna letra morta todas as normas de combate ao trabalho escravo contemporâneo, a proteção ao meio ambiente laboral, a discriminação no trabalho, a proteção à gestante e à criança e adolescente. Permite a exclusão da proteção por um mero papel assinado, ou mesmo um “Li, aceito e concordo com os termos de uso” em um aplicativo qualquer, submetendo o trabalhador à autoridade inapelável do algoritmo.

O Ministro Barroso citou algumas vezes o Admirável Mundo Novo em seu discurso em Paris, com um tom de maravilha pelo avanço tecnológico digital. Parece que o Presidente do STF não leu a obra de Aldous Huxley, que mostra um mundo distópico no qual as pessoas são divididas em castas controladas e incentivadas a se conformar com regras autoritárias. Nesse mundo, um dos deuses é justamente Henry Ford como representação da tecnologia. O mundo tecnológico de hoje não pode ser de forma alguma um retrógrado admirável mundo novo, mas sim um mundo justo, solidário e igualitário como descrito na Constituição de 1988.

O artigo não manifesta necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho na PRT/1, Professor da UFRJ e membro do Coletivo Transforma MP.

Deixe um comentário