O STF não está em conflito com a Justiça do Trabalho: está em luta contra os direitos humanos

Por Rodrigo de Lacerda Carelli no JOTA

Se o STF não reverter sua jabuticaba, o Estado Brasileiro deve responsabilizado perante as cortes internacionais de direitos humanos pelos atos da Suprema Corte.

A imprensa noticiou recentemente suposto conflito entre o Supremo Tribunal Federal -STF e a Justiça do Trabalho. Falas agressivas do ministro Gilmar Mendes foram divulgadas, acusando as cortes trabalhistas de não respeitarem as escolhas políticas feitas pelo Congresso Nacional e pelo STF. A Justiça do Trabalho foi acusada pelo ministro de “sobrecarregar o STF” com reclamações constitucionais, “por caprichos da Justiça do Trabalho, que não devem obediência a nada: à Constituição, aos Poderes ou o próprio Poder Judiciário”. Se fica claro que o ministro resume o Poder Judiciário à Suprema Corte, não menos grave é ouvir notícia de que o Ministro Barroso busca uma solução para a questão, seja por meio de “pinçar um recurso extraordinário… para uniformizar a jurisprudência”, ou criando um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas ou, o que é a solução mais insultuosa, encontrando uma forma de que o Conselho Nacional de Justiça faça com que os tribunais trabalhistas sigam as decisões do STF.


Deve ser deixado claro, logo de início, que quem criou o problema foi o próprio STF. O Tema 725 teve redação final muito mais ampla do que estava sendo discutido na Corte, que era os limites dados à terceirização, em especial a limitação do fenômeno em relação à atividade-fim. O texto do tema diz: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”. A parte sublinhada não estava em discussão, não havia nada em relação a isso nos precedentes que deram origem ao tema. A partir daí, a Corte passou a, de forma surpreendente, decidir de forma monocrática Reclamações Correicionais em face dos órgãos de todas as instâncias da Justiça do Trabalho para muito além do texto vinculante, vindo a cassar decisões que reconheciam o vínculo empregatício pela utilização fraudulenta de uma ampla gama de contratos civis para mascarar o vínculo de emprego, desde falsos representantes comerciais autônomos a entregadores por plataforma, passando por médicos em hospitais e outros profissionais. As empresas descobriram o caminho de pular todas as instâncias trabalhistas e estão realizando uma enxurrada de reclamações ao Supremo Tribunal Federal. Esse é o primeiro ponto: o STF criou o problema pela extensão do tema, sem uma discussão profunda sobre as suas consequências, e por aceitar a via de reclamações correicionais como um super recurso, um super trunfo a ser sacado da manga para pular as cortes trabalhistas, para muito além do que está decidido no tema vinculante. Com a carta mágica da Reclamação não somente instâncias são puladas, mas se escapa de toda a análise fática dos casos. É mais que um recurso: é uma bênção quase divina, um zap do truco a ser lançado a qualquer momento do jogo para lhe pôr fim.


Mas não é só: ao contrário do que afirma o STF e repetem de forma apressada alguns analistas, a Justiça do Trabalho não está a descumprir o Tema 725 do STF. O argumento que move o STF, e que analistas fazem eco, é simples, em verdade simplório: a Justiça do Trabalho não está reconhecendo a validade dos contratos que o STF afirmou que são válidos. O argumento é tão simples quanto errado. A Justiça do Trabalho, nos processos em que reconhece o vínculo de emprego, constata a fraude em relação a um contrato civil. Para a existência de uma fraude há a necessidade do reconhecimento da existência legal de um contrato válido, mas que não se verifica no caso concreto analisado. Um golpe só é golpe porque aparenta a forma de um negócio jurídico válido, caso contrário ele é violência. Assim, a Justiça do Trabalho não nega a validade de nenhum contrato em tese, mas analisa o quadro fático e verifica se há os elementos do vínculo empregatício, como determina expressamente o art. 9º da Consolidação das Leis do Trabalho, no qual habita o princípio da primazia da realidade sobre a forma. Desta forma, a Justiça do Trabalho não despreza os contratos civis, mas sim reconhece que naquela relação específica, com base nos fatos trazidos aos autos, não há aquele contrato, e sim uma relação de emprego dissimulada. Aliás, isso é reconhecido até por algumas decisões do STF, como na Reclamação 56.285/SP e em outras. O comportamento contraditório, no caso, é todo do STF.


E é dessa forma (não a contradição, mas a verificação do contrato nos fatos) que ocorre no mundo inteiro, conforme se verifica no texto expresso da Recomendação nº 198 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que afirma no parágrafo 9º, que a existência da relação deve ser verificada em relação aos fatos, não importando como é caracterizada nos arranjos contratuais. No parágrafo 4º, a OIT conclama que os Estados devem “combater as relações de trabalho disfarçadas”, pelo “uso de acordos contratuais que escondam o verdadeiro status legal” e “que possuam o efeito de privar trabalhadores de sua devida proteção”. Um exemplo disso se deu na famosa decisão da Suprema Corte britânica no caso Uber, que aplicou expressamente o princípio da primazia da realidade. Afirmou a Suprema Corte do Reino Unido que “o ponto de partida deve ser sempre a linguagem da lei, não o rótulo usado pelas partes; simplesmente porque as partes usaram a linguagem do trabalho autônomo não significa que o contrato não é regido pela legislação trabalhista”. A mesma coisa ocorreu na França, na Holanda e na Espanha em casos famosos de trabalhadores em plataforma, todos ratificados pelas cortes superiores. Verifica-se, no caso, que se há uma jabuticaba entre as Cortes Superiores essa corte é o Supremo Tribunal Federal.


Nos Estados Unidos não é diferente: o governo Biden anunciou que a prioridade é o cumprimento da Recomendação nº 198 da OIT e o combate à fraude à relação de emprego. Aliás, há um estudo que demonstra que a pretensão de facilitar a contratação de trabalhadores como se fossem trabalhadores autônomos, como anunciada no Governo Trump nos Estados Unidos, custaria ao menos 3,7 bilhões de dólares aos trabalhadores e mais de 750 milhões de dólares de contribuições sociais não recolhidas.
Essas decisões do Supremo Tribunal Federal, além de inéditas no mundo, não são somente um perigo para a existência da Justiça do Trabalho e do direito do trabalho, mas são extremamente ameaçadoras para o cumprimento dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Como afirmou o Ministro Barroso em seu discurso de posse como Presidente do STF, os direitos fundamentais são “os direitos humanos incorporados à ordem jurídica interna” Segundo ele, “direitos fundamentais são a reserva mínima de justiça de uma sociedade, em termos de liberdade, igualdade e acesso aos bens materiais e espirituais básicos para uma vida digna”. O afastamento da relação de emprego pela mera existência de um contrato escrito tem em si a potência de destruir toda a proteção trabalhista no País. Não há a possiblidade fática do vínculo empregatício ser facultativo e a relação de emprego continuar existindo.

Todo empresário, como ser racional, vai maximizar seu lucro e, consequentemente, vai impor aos trabalhadores, como condição para serem contratados (ou permanecerem com seu emprego) a assinatura de contratos civis. Aqui sim, nem mesmo os empresários que desejam cumprir a legislação trabalhista o poderão, porque vão ter como concorrentes outros empresários que realizarão contratações mais baratas. Não é assim só no Brasil, é assim no mundo. E nenhum trabalhador poderá recusar a imposição empresarial, sob pena de não ter emprego. O caso da “opção” do FGTS está aí na história para quem quiser ver.


Assim, tudo cai como em um castelo de cartas. Não somente os direitos trabalhistas infraconstitucionais são exterminados, mas também os direitos fundamentais previstos no art. 7º da Constituição, que ficarão lá como enfeite, bem como toda a proteção à liberdade sindical, que será transformada em representação de ninguém ou quase ninguém. O trabalho em condições análogas de escravo grassará e explodirá, e ninguém será responsabilizado. Isso aqui não é uma suposição, pois recentemente em determinado julgamento de ação civil pública que denunciava condições análogas à de escravo no Tribunal do Trabalho do Rio de Janeiro a alegação da empresa foi justamente que eram contratos civis e que a Justiça do Trabalho era incompetente. Caso vigorasse nessa turma do TRT a tendência externada em algumas reclamações constitucionais, os trabalhadores, transformados magicamente em empreendedores, teriam continuado a dormir em papelões no chão e ingerir sobras de comidas. A arrecadação da seguridade social vai despencar, e o FGTS, responsável por financiar o saneamento básico e as moradias populares, simplesmente deixaria de existir. Talvez os ministros do STF, que alguns se dizem consequencialistas, ainda não se atentaram às consequências das suas decisões.


Mas não é só os direitos fundamentais positivados em nossa Constituição que estão em jogo. Há vários pactos internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil que ficariam descumpridos. A Convenção Americana de Direitos Humanos, pelo seu protocolo adicional de San Salvador, estende uma série de direitos previstos em nossa Constituição a todos os trabalhadores, entre eles limitação da jornada, repouso, férias, estabilidade no emprego, direito à promoção, salário equitativo, entre outros. O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também traz um rol bem extenso de direitos trabalhistas a todas as pessoas. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 também traz o seu próprio rol de direitos basilares a uma pessoa humana. O Supremo Tribunal Federal poderia até tentar resolver o impasse que criou com a Justiça do Trabalho em uma interpretação evolutiva do art. 7º, que fala que os destinatários são os trabalhadores, em sentido amplo, como está também nos pactos, mas aparentemente esse não é o projeto do Supremo Tribunal Federal.


Assim, o processo de esvaziamento dos direitos fundamentais e dos direitos humanos realizado pelo Supremo Tribunal Federal atual tem que ser apontado. A tentativa de retirar da Justiça do Trabalho sua competência constitucional de acordo com os parâmetros mundiais é, ao fim e ao cabo, trágico não somente para a existência do ramo, mas para a proteção dos direitos humanos. A Justiça do Trabalho terá seu fim, pois não sobrarão mais jurisdicionados. O direito do trabalho será uma peça de museu, e a Constituição conterá um capítulo de direitos fundamentais abandonado, em ruínas, transformado em letras perdidas esvaziadas de qualquer valor normativo justamente por ato da Corte que teria o papel de realizar sua proteção. Pouco importa se isso ocorre por ideologia ou por ignorância do funcionamento do direito do trabalho e da Justiça do Trabalho, o fato é que este é o caminho que está sendo trilhado.


Somente o STF pode resolver essa crise. A Justiça do Trabalho não pode recuar, pois ela estaria se suicidando ao descumprir sua missão constitucional. Caso não seja revertida a posição da Suprema Corte, única no mundo, uma verdadeira jabuticaba, o caso deve ser levado às cortes internacionais de direitos humanos para que o Estado Brasileiro seja responsabilizado pela política realizada pela Suprema Corte. O Supremo Tribunal Federal não detém a última palavra em direitos humanos, não podendo passar por cima deles como está fazendo.

Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho na PRT/1, Professor da UFRJ e membro do Coletivo Transforma MP.

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