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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

Pena ao crime de injúria racial pode ser superior aos de lesão corporal gravíssima

Por Gustavo Roberto Costa no Conjur

A promulgação da Lei n. 14.532/2023, pelo Presidente Lula, durante a posse de novas ministras, foi encarada por alguns como um passo à frente no combate ao racismo.

Uma das principais inovações da lei foi tipificar como “crime de racismo” a chamada “injúria racial”, agora presente na lei que “define os crimes de preconceito de raça ou cor” (Lei n. 7.716/1989). Com a alteração, para a conduta de injuriar alguém, “em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”, é prevista pena de 2 a 5 anos de reclusão, aumentando-se a pena de metade se o crime for praticado em concurso de pessoas (art. 2º e parágrafo 1º).

As penas previstas na Lei n. 7.716/1989 serão de reclusão de 2 a 5 anos se os crimes forem cometidos em “contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público” (art. 20, parágrafo 2º-A, I). Devem ser “aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade” se os crimes “ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação” (art. 20-A) e de “um terço à metade” quando praticados por funcionário público (art. 20-B). Houve outras alterações, as quais, pela brevidade desta reflexão, ficarão para outra oportunidade.

Chama a atenção, inicialmente, a desproporção das penas cominadas pela nova lei com relação àquelas dos demais crimes contra a honra. Para a calúnia, a pena é de detenção, de seis meses a dois anos, para a difamação, detenção de três meses a um ano, e para a injúria comum, detenção de um a seis meses (artigos 138, 139 e 140 do Código Penal).

Veja-se que tendo o crime de injúria racial pena mínima de dois anos – podendo ser aumentada quando praticada em concurso de pessoas, em locais públicos ou por funcionário público –, a pena ao caso concreto poderá ser superior àquela aplicada para casos de lesão corporal gravíssima (art. 129, parágrafo 2º, CP). A mensagem que o legislador passa é a seguinte: se você não gosta de um negro, arranque a perna dele (lesão corporal gravíssima – art. 129, parágrafo 2º, III, do CP) ao invés de injuriá-lo, que sua pena será inferior. Não espere coerência da legislação penal.

Caso o juiz tenha dúvidas na interpretação da lei, deverá “considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência” (art. 20-C).

O que “pode causar constrangimento, humilhação, vergonha ou exposição indevida”? O que é que “não se dispensaria a outros grupos em razão de cor, etnia, religião ou procedência”? É impossível se ter uma resposta minimante coerente. Provavelmente, haverá uma miríade de interpretações, não raro díspares umas das outras, sobre o que esse dispositivo quer dizer. Como esperar segurança jurídica de expressões tão subjetivas?

A meu ver, trata-se de uma violação ao princípio da legalidade, em sua vertente da taxatividade penal. Para o professor Juarez Cirino dos Santos, “o princípio da legalidade pressupõe um mínimo de determinação das proibições ou comandos da lei penal – em geral conhecido como princípio da taxatividade, mas indissociável do princípio da legalidade, como exigência da certeza da lei”[1]. Dar poder em demasia ao intérprete é abrir caminho para arbitrariedades – algo nada incomum para o judiciário brasileiro.

Mas o que chama mesmo a atenção é a euforia de grupos que se colocam no chamado “campo progressista”, que comemoram uma lei que vem para “endurecer o sistema penal”. A promulgação da lei na posse das ministras da “igualdade racial” e dos “povos originários” dá bem a dimensão da crença que (infelizmente) ainda se tem na efetividade do sistema penal para a solução de problemas sociais.

Já tive a oportunidade de manifestar, neste espaço, a incoerência de se defenderem pautas populares e, ao mesmo, defender o endurecimento penal[2]. No interior de uma sociedade capitalista (de dominação de classes), o sistema penal atua como uma engrenagem da superestrutura que assegura o funcionamento das relações sociais. É tão somente um instrumento de controle das classes subalternas, notadamente dos mais desfavorecidos (aqueles que nem para a reprodução do capital servem)[3]. Não há como esperar outra função do direito penal.

Lamentavelmente, não foram levadas a sério as preciosas lições da professora Maria Lúcia Karam, juíza aposentada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual, mais de vinte e cinco anos atrás, publicou memorável artigo intitulado “A esquerda punitiva”[4], escrito que deve ser eternamente lembrado por aqueles que se colocam como defensores das causas populares e dizem lutar por diretos de grupos desfavorecidos.

A professora, no trabalho, conceitua como ingenuidade a pretensão de que mecanismos extremamente opressores da classe trabalhadora sejam dirigidas a outro tipo de criminalidade (como a de colarinho branco, por exemplo). Critica ela a posição de setores da esquerda (talvez órfãos do stalinismo e de suas incontáveis arbitrariedades) que, abandonando sua visão garantista, passam a construir a imagem de “bons magistrados” àqueles que impõem “rigorosas penas” a determinados tipos de crimes, e que passam a apropriar-se de um “generalizado e inconsequente clamor persecutório”.

Destaca a digna jurista que a pena é pura e simples “manifestação de poder” (no caso do capitalismo, poder de classe), razão pela qual será sempre dirigida aos excluídos, àqueles que recebem o status de criminoso. A imposição de pena criminal para um ou outro membro das camadas superiores da sociedade serve “tão somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar seu papel de instrumento de manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação”. A defesa dos direitos das mulheres, dos negros e do público LGBT, nesta seara, servirá para mascarar ainda mais a opressão operada pelo sistema penal.

Maria Lúcia Karam relembra que a reação punitiva, ao identificar o inimigo, o mau, o perigoso, sempre de forma arbitrária e com viés classista, acaba por dispensar a investigação das verdadeiras razões dos problemas sociais e de condutas consideradas negativas; torna invisíveis as fontes geradoras da criminalidade, além de fomentar e incentivar a crença em “desvios pessoais”, encobrindo e deixando “intocados os desvios estruturais que os alimentam”. Racista, portanto, seria o indivíduo, e não o sistema.

Como é que forças políticas voltadas (ao menos no discurso) à luta por transformações sociais podem fornecer sua completa adesão a um instrumento tão eficaz de manutenção de interesses e valores dominantes da sociedade que pretendem “transformar”, é a indagação principal da professora Maria Lúcia. Fortalecer o sistema penal é fortalecer o sistema capitalista neoliberal, excludente, individualista, concentrador e insensível. Nada mais que isso.

A causa da exclusão da maioria do povo negro no Brasil é a pobreza. O dinheiro que poderia ser investido em inclusão social é desviado para a rolagem e amortização da dívida pública. O sistema penal, então, aparece como instância apta a controlar a enorme população excluída do mercado de trabalho e de consumo (os negros são a grande maioria nos estabelecimentos prisionais e dos mortos pelas forças policiais).

É exatamente assim que funciona a “guerra às drogas”: a fim de combater a população pobre, criou-se a ideologia de que o “traficante” (invariavelmente negro e morador de favelas) é o maior inimigo da sociedade, a quem devem ser negados os mais elementares direitos fundamentais. A fim de “combater as drogas”, o Estado é dotado de um poder supremo sobre a vida dos cidadãos. O resultado: as drogas estão mais disponíveis que nunca, mas, ao mesmo tempo, a população pobre sofre um verdadeiro estado de exceção.

O poder continuará nas mãos daqueles que sempre o detiveram. Não é porque se promulgou uma lei que o poder de decisão passará aos desfavorecidos. Conceder mais poder aos responsáveis pela repressão da população não é conquistar direitos; é fortalecer mecanismos que impedem a população de se emancipar. O sistema penal não funcionará como querem os ativistas pelas causas populares; funcionará como sempre funcionou e como continuará funcionando enquanto o modelo social e econômico for o que vivemos neste momento.

Crer que esse sistema “combaterá o racismo” é uma ilusão total e completa. Difícil acreditar que a esquerda do espectro político, alimentada há tantos anos com as importantes reflexões da criminologia crítica, ainda comemore a expansão da tutela penal pelo Estado. O direito penal não entregou nenhuma de suas promessas. Em regra, só causou injustiças, encarceramento massivo, exclusão social, mortes e violência. Como acreditar que será capaz de “avançar” na luta contra o racismo?

Em suma, a criação de novos crimes e o aumento das penas surge como uma cortina de fumaça para as verdadeiras causas do racismo. O Estado dá uma suposta satisfação e fica autorizado a não investir em políticas públicas verdadeiramente eficazes de enfrentamento a essa mazela social. Entrementes, os principais atingidos pela ação do sistema penal serão os mesmos de sempre: os pobres, os negros, os favelados, os descartáveis.

O professor Juarez Cirino dos Santos comenta:

“(…) direito penal simbólico não teria função instrumental – ou seja, não existiria para ser efetivo –, mas teria função meramente política, através da criação de imagens ou de símbolos que atuariam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis. O crescente uso simbólico do direito penal teria por objetivo produzir uma dupla legitimação: a) legitimação do poder político, facilmente conversível em votos – o que explica, por exemplo, o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil; b) legitimação do direito penal, cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado, com as vantagens da redução ou, mesmo, da exclusão de garantias constitucionais como a liberdade, a igualdade, a presunção de inocência etc., cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de Direito em estado policial. O conceito de integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político do Estado[5]

Enquanto a luta pela afirmação de direitos for a luta pelo aumento da repressão penal contra o povo, estaremos cada vez mais longe de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preconiza a Constituição Federal (art. 3º, I). A pauta dos setores populares deve ser o enfraquecimento do sistema penal, a diminuição do número de crimes e do tamanho das penas. E nunca o contrário.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Mestre em direito internacional pela Universidade Católica de Santos. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD


[1] SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. 6. ed. – Curitiba: ICPC, 2014, p. 23-24.

[2] A defesa da democracia como justificativa para o estado de exceção. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-ago-24/gustavo-costa-defesa-democracia-estado-excecao Acesso em 27 jan. 2023.

Na oportunidade, defendemos:

“Por fim, questão que sempre retorna à pauta é sobre a chamada “esquerda punitiva” — aquela que acredita no Direito Penal como instrumento para a luta por liberdades democráticas. É assim com parte do movimento feminista, que crê no Direito Penal e na supressão de direitos para combater a violência contra a mulher, com alguns antirracistas e defensores da causa LGBT, que creem que processando criminalmente e prendendo pessoas por atos racistas e homofóbicos se pode avançar na conquista de direitos.

O Direito Penal, desde sua fundação como o conhecemos hoje, jamais cumpriu qualquer função para a qual se propôs. Prometeu acabar com a violência, mas só fomentou a violência. Prometeu acabar com as drogas, mas as drogas estão mais disponíveis que nunca. Prometeu acabar com a corrupção, e nem é preciso dizer em que estágio se encontra a corrupção no país e no mundo. Por que acreditar que ele é capaz de “defender a democracia”?

A única coisa que o Direito Penal é capaz de trazer são injustiças. Mais e mais pobres e negros sendo presos, acusados e condenados injustamente. O Direito Penal foi “inventado” para a perseguição das classes subalternas e de inimigos políticos. É incapaz, portanto, de exercer qualquer outra finalidade. É triste ver, até hoje, pessoas que se dizem progressistas que não tenham enxergado essa realidade. Para um Roberto Jefferson que é preso, milhares de desvalidos são jogados em masmorras muito piores.”

[3] Os abusos judiciais estão ficando cada vez piores: os casos da boate Kiss e de Ciro Gomes. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-dez-30/gustavo-costa-abusos-judiciais-cada-vez-piores Acesso em 27 jan. 2023.

“Engels e Kautsky, na obra “O socialismo jurídico”, expuseram meticulosamente a impossibilidade de emancipação da população trabalhadora, na sociedade capitalista, por meio do Direito. Para os grandes teóricos, o Direito, fruto da forma social da qual faz parte, só pode mantê-la tal como é — para isso existe —, e jamais poderá contrariar seus principais interesses. O Direito é, em última análise, a forma jurídica da sociedade capitalista.

Ilusões no Direito para a busca de uma sociedade justa e igualitária devem ser prontamente abandonadas.”

[4] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In Discursos sediciosos: crime direito e sociedade. Ano 1. Número 1. 1996, p. 79/81.

[5] SANTOS, Juarez Cirino. Política Criminal. Instituto de Criminologia e Política Criminal. Acesso em 27 jan. 2023.

TRÁFICO PRIVILEGIADO: REINCIDÊNCIA E POLÍTICA CRIMINAL

Por Plínio Gentil no Empório do Direito

Recentemente um acórdão da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de S. Paulo admitiu a causa de diminuição de pena prevista no parágrafo quarto do artigo 33 da Lei de Drogas em favor de um acusado reincidente, alegando que a condenação anterior fôra a uma pena de detenção e que não se tratava de crime relacionado com o tráfico. Na verdade, por via oblíqua, a decisão destacou que não se tratava de reincidência específica e, portanto, que assim, uma vez que preenchidos os demais requisitos, era possível a redução de pena com base nesse dispositivo legal, reconhecendo o chamado tráfico privilegiado.

         Na verdade, o parágrafo quarto do artigo 33 foi incluído no texto como medida de política criminal. Ou seja, considerando que a Lei 11.343/06 estava aumentando sensivelmente as penas do crime de tráfico – de três para cinco anos -, era oportuno considerar uma situação na qual o agente fosse uma espécie de iniciante, sem habitualidade ou profissionalismo, nem grandes vínculos com a indústria do tráfico: o chamado traficante ocasional ou o pequeno traficante. Desses que, se forem presos, em poucas horas serão substituídos nas esquinas e nas quebradas, sem qualquer prejuízo para o negócio.

         Mas o legislador – este ser poderoso e abstrato, tão mencionado nos textos jurídicos e nas aulas – inseriu na lei, como requisito da redução de pena, a exigência, entre outras, de que o condenado fosse primário. Como se sabe, primário é aquele que não tem nenhuma condenação anterior, ou, se tiver, quando o término da pena já ultrapassa cinco anos, contados retroativamente, da prática da nova infração.

         Ora, primariedade significa o contrário de reincidência. Mas o acórdão introduziu aqui uma ressalva, equiparando, para fins de dosagem de pena, reincidência com reincidência específica; com isto sinalizou para possível aplicação do benefício naqueles casos em que o réu fosse reincidente por outro crime que não o próprio tráfico.

         Trata-se de uma inovação interpretativa, determinada por razões de política criminal, que dá visível elasticidade ao conceito de tráfico privilegiado. A questão é se está nos limites da atividade jurisdicional tamanha ampliação, que quase chega a modificar, na prática, o conceito de primariedade.

         Aqui entra a compreensão da ideia do que seja política criminal. Segundo versão corrente, adotada pelos manuais, trata-se de uma linha argumentativa que considera, geralmente para aplicação de pena, as condições subjetivas do agente e que, com o olhar no contexto e no espírito da lei, mais do que nos seus termos literais, pode apontar uma solução que foge ao comum dos processos decisórios usuais. Assim, a diminuição de pena para o chamado furto privilegiado, bem como o perdão judicial nas hipóteses em que está previsto, seriam exemplos de medidas de política criminal acolhidas expressamente pela legislação.

         Mas haveria casos em que o juiz pudesse, sem qualquer previsão explícita, decidir segundo critérios de política criminal? Fazendo aquela chamada justiça salomônica? A prática forense está repleta disso certamente, mesmo que algumas vezes os motivos da decisão deixem de constar dos autos. No júri então, o que dizer das absolvições por clemência, repetidas num segundo julgamento, mesmo contra as provas? Ou daquele voto do jurado que, consultado se o homicídio fora contra ascendente, respondeu não, porque entendeu que a vítima, pai do réu, nunca estivera presente na sua vida, salvo para espancá-lo? Quem se animaria a contestar a justiça de tais decisões?

         Pois bem, as medidas de política criminal não estão todas contidas num catálogo, nem fazem parte de uma previsão exaustiva do Código Penal. Caberá ao juiz, no exame de cada caso, considerar se deve tensionar a interpretação até um ponto em que, sem afrontar a norma, produza uma decisão justa. Nessa hipótese a norma, é verdade, teria de se submeter a um alargamento que se avizinha do ponto de rompimento, mas sem chegar a ele. A questão aqui é avaliar se é possível entender primariedade como não reincidência específica, sem violar a lei penal.

         Haverá quem negue essa possibilidade. Dirão que o legislador, se quisesse, teria sido claro ao proibir o privilégio do tráfico apenas para os reincidentes específicos, isto é, àqueles já anteriormente condenados por outro tráfico. E que reincidente é reincidente, pouco importando se a pena anterior foi de reclusão ou detenção.

         Por outro lado há quem sustente que a hipótese do tráfico privilegiado é uma janela que a lei deliberadamente deixou aberta para o criminoso ocasional, que é muito diferente do traficante profissional, com posição importante na hierarquia da criminalidade; por isso mesmo, junto com a exigência de primariedade está a de que o sujeito não integre organização criminosa nem seja delinquente habitual. Nesse caso, se o delito anterior é incapaz de indicar familiaridade do agente com o mundo do crime e tampouco apresenta qualquer relação com o tráfico sub judice, qual é a razão para negar ao réu a redução de pena, que provavelmente lhe possibilitará cumpri-la longe dos condenados de maior periculosidade?

         Aqui entra a política criminal e, no caso específico, amparada por outra coisa que anda meio esquecida pelos intérpretes novatos do direito penal: a interpretação analógica. Em termos rasos, ela significa uma compreensão obtida a partir de uma ideia condutora, prevista na lei, em relação à qual as demais hipóteses devem guardar certa dependência. A partir daí, soa viável dizer que, sendo a pouca ofensividade do criminoso, no caso concreto, o elemento central de todo o raciocínio, o requisito da primariedade deve ser exigido como significando falta de reincidência específica, pois a ausência de relação entre a condenação anterior e o crime atual representa, para fins de dosagem de pena, o mesmo que primariedade. Neste caso, estariam atendidos o espírito da lei, a vontade do legislador e a conveniência de punir o condenado sem aproximá-lo de criminosos nocivos à sua ressocialização.

         Além disso, fala a favor dessa política a necessidade de aplicar proporcionalmente as penas criminais, outra prática reiteradamente esquecida, sobretudo do legislador, mas utilizada pelo relator do acórdão. Lembremo-nos de que a pena mínima do tráfico é muito próxima à do homicídio simples; se o traficante for reincidente, é bem provável que se iguale à do crime contra a vida. Como explicar isso a um acadêmico do primeiro ano de faculdade, apaixonado, como muitos, pelo direito penal?

         Por fim, toda essa discussão traz à tona, como não poderia deixar de ser, os problemas e as consequências da guerra às drogas, pela qual o Brasil deveria pagar royalties a outros governos, que nos convenceram a entrar na guerra e, benemerentes, nos transferiram tecnologia para essa cruzada e, de quebra, as diretrizes para atribuição de penas ao traficante de esquina, pobre e negro. Enquanto isso, as fábricas de armas, as de insumos químicos, necessários para processamento dos entorpecentes, e os paraísos fiscais, para onde vai a dinheirama do comércio de tóxicos e dessa batalha interminável, vão muito bem, obrigado – sem representar incômodo para governo algum.          Não se trata, aqui, de fazer, pura e simplesmente, a defesa daquela decisão do TJSP que relativizou a exigência da primariedade para reconhecimento do tráfico privilegiado. Como já se viu, os critérios que lhe servem de fundamento comportam muita reflexão e válidas discordâncias. Mas o que se quer também dizer é que, ante o quadro caótico de uma repressão penal que seleciona seus destinos e suas soluções, já passa da hora de pensar no assunto.

Plínio Gentil é Professor universitário. Doutor em Direito e em Educação. Procurador de Justiça em S. Paulo. Associado/fundador do MP Transforma.

O trabalho em plataforma digital precisa de regulação especial?

Foto: Marcello Casal/ Agência Brasil

Não se deve regular o “trabalho em plataforma digital” e sim o trabalho digitalizado e suas repercussões, que são expandidas para todas as relações de trabalho.

Por Rodrigo Carelli no GGN

O processo acelerado de digitalização da sociedade e a utilização intensiva de instrumentos das novas tecnologias para a realização de atividades econômicas cada vez mais diversas nos fazem às vezes não parar para refletir sobre o significado de expressões e certas relações sociais que trazem aparente novidade. Por isso é necessário para responder à pergunta do título tratar de outras questões imprescindíveis: o que é afinal uma plataforma digital? Quais são as características de um trabalho por ela controlado? Quais são suas especificidades?

De pronto deve ser dito que não há sentido nenhum a expressão “trabalhador de aplicativo”. Aplicativo é somente a interface que leva (e traz) dados do aparelho celular até a plataforma digital, por meio da qual “todo o milagre” é realizado. A plataforma digital, por sua vez, é a infraestrutura eletrônica de coleta e processamento de dados para a realização de determinada atividade econômica. A maior parte das empresas que se autodenominam “plataformas digitais” em verdade utilizam os serviços da Amazon Web Services, como é o caso da iFood, rodando seus programas sobre a infraestrutura e soluções criadas pela empresa estadunidense. Ou seja, não são nem proprietárias da plataforma ou das soluções tecnológicas. A Amazon sim é uma empresa de tecnologia. Mas dispor de uma plataforma, própria ou contratada, não é o suficiente para a realização de um negócio. Tome-se o exemplo da mesma iFood, que começou suas atividades totalmente analógica com pedidos de comida por telefone a partir de catálogos de restaurantes em papel. A iFood é uma empresa cuja atividade econômica é a realização de vendas de produtos alimentícios prontos de restaurantes para consumidores finais, e para isso se compromete a realizar uma série de serviços, como processamento de pagamento, disponibilização de espaço digital para informações dos produtos (hoje catálogos virtuais) e, caso os seus clientes, que são os restaurantes, desejem ela inclui o serviço de entregas dos produtos vendidos. A iFood não faz nenhuma intermediação entre trabalhadores e usuários de seus serviços: ela vende produtos alimentícios de terceiros e garante sua entrega quando contratada para isso.

A infraestrutura eletrônica e digital hoje está presente em todas as áreas da economia. Supermercados, bancos, imobiliárias, locadoras de automóveis, agências de viagem, hortifrutis e lojas de varejo são exemplos comuns. Várias dessas empresas acumulam, ao mesmo tempo, infraestruturas digitais e físicas para a realização da sua atividade econômica, como CarrefourMagalu, Itaú, Localiza e tantas outras. O Nubank, como exemplo diverso, realiza boa parte de seu negócio por meio de infraestrutura digital em substituição às agências físicas, o que não a exime de ter uma poderosa infraestrutura física, como um prédio de oito andares no coração de São Paulo. Todos que estão em sã consciência sabem o fato de que o Nubank é um banco e que seus concorrentes são Itaú, Banco do Brasil e Bradesco e não Uber, iFood ou Spotify. Chamar todas as acima citadas de “empresas de tecnologia” não faz qualquer sentido, primeiro porque não é essa a atividade econômica dessas empresas e segundo porque ter infraestrutura digital para realização de toda ou parte de seu negócio hoje é pressuposto para sobrevivência no mercado, não uma especificidade de um setor.

Há outras empresas, no entanto, que se apresentam como “marketplaces”, ou seja, modelos de negócio do estilo “plataforma”, fazendo a conexão entre fornecedores e clientes, como shopping centers e feiras livres, operando de forma completamente digital. A Mercado Livre é uma dessas empresas. Se olhar de perto com atenção, no entanto, o que se vê que a Mercado Livre, como a Amazon nos Estados Unidos, tem uma infraestrutura física gigantesca: frota de aviões, dezenas de milhares de vans, armazéns logísticos opulentos, empresa financeira para garantia de pagamentos. Além disso tudo, necessita de um gigantesco capital para garantir as transações. Apesar da aparência, a Mercado Livre não é um aplicativo ou um site na Internet pelo qual de forma mágica você pode comprar qualquer coisa.

Assim, as empresas não têm nada de diferente em relação às demais. Ao contrário, elas concorrem com as ditas “empresas tradicionais”, que estão cada vez menos “tradicionais”.

E a relação dessas empresas com seus trabalhadores? É diferente daquelas travadas em outras empresas?

Retomando o caso da iFood como exemplo, qual a sua característica que diferencia essa relação de outras abrangidas tradicionalmente pela CLT?

Os trabalhadores dessa empresa podem ser contratados de duas formas: o chamado “entregador nuvem”, que contrata diretamente com a empresa por meio de sua plataforma digital, e é controlado por ela por meio do algoritmo; e o chamado “entregador OL”, que é controlado por uma empresa (ou pessoa) denominada “Operador Logístico” que lhe impõe o controle pessoal e fixa seus turnos de trabalho. Ora, o controle por algoritmo não é específico desse tipo de empresa: hoje ele é adotado por praticamente todas as empresas que têm trabalho à distância do tipo teletrabalho. Ou mesmo de trabalhadores localizados, como os dos armazéns da Amazon, cujos passos e tempo são contados cirurgicamente por smartphones presos aos seus pulsos. Esse tipo de controle, muito mais eficiente e impiedoso que o pessoal, tem a tendência de se expandir cada vez mais e já está previsto na CLT como uma forma de subordinação para fins do reconhecimento do vínculo de emprego (art. 6º, parágrafo único). Ou seja, a CLT já prevê esse tipo de trabalho e o considera subordinado. Quanto ao “entregador OL”, ou entregador gerido por Operador Logístico, essa forma é mais do que tradicional: é uma forma de terceirização do tipo intermediação de mão de obra, muito comum no meio rural e também na construção civil, pela arregimentação e controle por capatazia da mão de obra, e que é muitas vezes relacionada com o trabalho escravo contemporâneo. Os OLs são os capatazes do mundo digital.

Muito se diz que o diferencial desses trabalhadores é a flexibilidade. Afinal, os trabalhadores, em tese, podem trabalhar o momento e a quantidade que quiserem. Tecnicamente esse tipo de trabalho se chama “trabalho sob demanda”, e também não traz grandes novidades. Esse é o modo de funcionamento principal do trabalho portuário há décadas, tendo desde a Constituição de 1988 a isonomia de direitos com os empregados, na forma de trabalho avulso. Além disso, a fixação de jornada e de horário nunca foi requisito para a configuração da relação de emprego. E mais: em 2017 foi incluída na CLT modalidade específica de trabalho sob demanda denominada “contrato intermitente”. Ali especificamente se prevê um contrato de emprego em que o empregador oferta trabalhos ao empregado e este pode aceitá-los ou recusá-los, tudo sem prejuízo da condição de empregado, variando a remuneração a partir dos trabalhos efetivamente realizados. Esse pagamento por trabalho realizado é forma histórica de apuração de remuneração chamado de salário por peça ou tarefa, que remonta à revolução industrial e comentado sobre sua perversidade, veja só, por Karl Marx. Assim, a premissa da iFood e das pesquisas financiadas pelas empresas está errada: não há incompatibilidade entre flexibilidade e os direitos trabalhistas, invalidando totalmente qualquer ilação de que os trabalhadores não querem ser empregados e, mais ainda, que não querem o Direito do Trabalho.

Qual a diferença entre o trabalho realizado por um entregador controlado por uma empresa igual à iFood e aquele que realiza o mesmo serviço controlado por um restaurante ou uma terceirizada? Nenhuma em sua natureza e em condições intrínsecas de realização da atividade, e em sua forma podem ser também idênticas.

Assim, não há nada intrínseco que faça com que haja a necessidade de um tratamento fora da CLT, pois todas as características já têm inclusive previsão legal. Isso não quer dizer que não haja espaço para se avançar na regulação, não somente em relação aos chamados “trabalhadores em plataforma”, seja lá o que isso queira dizer, mas em relação aos novos contornos do trabalho em geral.

O controle por algoritmo deve ser regulado, pois assume as funções não somente de supervisor e gerente, como também de regulamento de empresa, afetando diretamente as obrigações contratuais. Como não pode haver cláusulas contratuais secretas, os trabalhadores e sindicatos devem ter o direito de acessar o algoritmo.

Também deve ser avançada a regulação da coleta, processamento, guarda e utilização de dados dos trabalhadores, realizados não somente pelas autodenominadas “plataformas”, mas atualmente por todas as empresas que utilizam plataformas digitais para a gestão de seus negócios.

O trabalho sob demanda e o pagamento por tarefa, na forma do contrato intermitente, deve ser regulado com o fim de salvaguardar renda mínima e condições de trabalho humanas, proibindo-se a exaustão e acidentes.

Respondendo então à pergunta inicial: o trabalho em plataforma digital não tem nenhuma característica que o diferencie do que a CLT já regula. No entanto, os instrumentos eletrônicos de controle, disciplina e regulação interna do trabalho, expandidos para todas as áreas da economia, demandam regulação urgente para ampliar a proteção aos trabalhadores. Não se deve regular o “trabalho em plataforma digital” e sim o trabalho digitalizado e suas repercussões, que são expandidas para todas as relações de trabalho. Regular o trabalho em plataforma de forma diferenciada é criar uma subcategoria de trabalhadores com cidadania reduzida a partir da identificação de seu empregador.  A premissa utilizada pela iFood de que a CLT inadequada e não interessa somente é aplicada para empresas que pretendem o monopólio de setores da economia e não toda a população brasileira preocupada com direitos fundamentais e organização democrática da sociedade.

Rodrigo de Lacerda Carelli é professor do programa de pós-graduação em Direito da UFRJ, procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro e membro do coletivo Transforma MP.

Direitos previstos na CLT devem ser o patamar mínimo da regulação das plataformas digitais

Paralização dos entregadores de aplicativo na praça Charles Miller, Pacaembu. Rovena Rosa/Agência Brasil

Por Renan Kalil, na Carta Capital

Recentemente, o Governo Federal deu fortes sinalizações de que pretende promover debates para apresentar uma proposta com o objetivo de regular o trabalho via plataformas digitais no Brasil. Em meados de janeiro, foram realizados encontros com as centrais sindicais e lideranças de trabalhadores. Nessas ocasiões, foi anunciado que, no mês de fevereiro, será criado um Grupo de Trabalho, composto por representantes do Governo, trabalhadores e empresas, para o envio de uma proposta ao Congresso Nacional. A iniciativa é bem-vinda, especialmente se enfrentar a sério as principais questões que permeiam a dinâmica do trabalho via plataformas digitais.

            Atualmente, as empresas proprietárias de plataformas digitais não reconhecem quaisquer direitos aos trabalhadores. Isso ocorre em um cenário no qual se constata a submissão dos trabalhadores a distintas formas de controle, uma relação direta entre dependência e precariedade (quanto mais dependentes da empresa para sobreviver, maior a precariedade das condições de trabalho), déficit de trabalho decente nas plataformas e acentuada desigualdade de poderes entre trabalhadores e empresas.

Sendo assim, as perguntas iniciais que devem nortear as discussões a respeito do tema são: como assegurar que a cidadania dos trabalhadores via plataformas digitais seja respeitada? Como fazer com que sejam tratados como pessoas e não como mercadoria?

            Esses questionamentos são centrais. Afinal, se um dos elementos fundantes de nossa sociedade é a igualdade entre as pessoas, por que consentimos que os trabalhadores via plataformas digitais sejam tratados como se fossem coisas? Por que aceitamos que eles trabalhem jornadas extenuantes para obter o seu sustento? Por que concordamos que eles não tenham qualquer apoio quando sofrem acidentes e ficam impossibilitados de trabalhar? Por que não nos incomodamos com o fato deles poderem ser bloqueados a qualquer momento sem justificativa por parte da empresa e, abruptamente, perderem a sua fonte de renda? Por que admitimos que eles não tenham direitos?

            Ainda, é necessário ir além. É preciso olhar quem são esses trabalhadores. Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2022 sobre a composição do mercado de trabalho no contexto das plataformas digitais apurou que 53% dos motoristas, 73% dos mototaxistas e 55% dos entregadores são homens negros. Para efeitos de comparação, levando em conta dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os homens negros compõem 31,3% da força de trabalho no Brasil. Ou seja, eles são sobrerepresentados nesses setores econômicos. E são eles quem, majoritariamente, têm a sua condição de pessoa negada.

Esse quadro é fundamental para debatemos a regulação do trabalho via plataformas digitais. Algumas das propostas que estão circulando, como a criação de uma categoria intermediária com menos direitos que os previstos na CLT ou o reconhecimento apenas de direitos previdenciários – com uma omissão consciente e deliberada quanto aos direitos trabalhistas – vai dar origem a uma subcidadania em que os principais prejudicados serão homens negros. Além disso, dará um péssimo sinal para a sociedade: bastará que uma empresa passe a explorar determinada atividade econômica por meio de plataforma digital para ter um salvo conduto para reduzir os valores pagos aos trabalhadores.

O histórico da regulação do trabalho no Brasil não é isento da criação de regras que discriminam os negros. A CLT, outorgada em 1943, excluiu expressamente do âmbito da sua aplicação trabalhadores rurais e domésticos, cuja composição era expressivamente negra naquela época. Para se ter uma ideia, 77,4% dos não brancos trabalhavam no setor primário em 1940, em face de 65,9% dos brancos. A primeira lei prevendo direitos para os trabalhadores rurais veio apenas em 1963. Para os trabalhadores domésticos, em 1972. O ponto é: vamos repetir a história com os trabalhadores via plataformas digitais?

A elaboração de uma proposta para regular o trabalho via plataformas digitais deve, necessariamente, ter em vista a realidade desses trabalhadores e a dinâmica dessas relações de trabalho para ser capaz de estabelecer regras que efetivem a igualdade e afastem e discriminação. Os direitos previstos na CLT devem ser o patamar mínimo em torno do qual vamos iniciar o debate. A partir daí, é possível conceber propostas para aprimorar a proteção desses trabalhadores, como a portabilidade de avaliações entre plataformas, a transparência dos sistemas de avaliação e do funcionamento do algoritmo, dentre outros. É somente dessa forma que os trabalhadores via plataformas digitais serão tratados como pessoas e cidadãos e não como mercadoria.

*Renan Bernardi Kalil é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.

Coletivo Transforma MP participa de homenagem ao ministro Lewandowski ?

Por Marina Azambuja

O Coletivo Transforma MP participou hoje (11) da homenagem ao ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski. A cerimônia foi organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em parceria com as entidades Coletivo Transforma MP, Sindicato das Advogadas e Advogados do Estado de São Paulo (SASP), Associação de Juízes pela Democracia, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Grupo Prerrogativas, Grupo de Conciliação dos Conflitos Fundiários do CNJ e PUC-SP. 

O objetivo da reunião foi homenagear Ricardo Lewandowski, que durante a sua carreira como jurista, professor universitário e como ministro dedicou-se a defender a democracia e os direitos humanos e sociais. 

“Excelência é o povo brasileiro ao qual eu sirvo…É preciso que tenhamos uma visão de mundo ou uma ideologia. Uma visão na qual o povo é o senhor de seu destino para construirmos uma sociedade mais justa e solidária. Ser democrata é dar efetivação aos direitos fundamentais da pessoa humana”. 

A atividade que ocorreu na ENFF em Guararema foi iniciada por uma mística que destacou a importância da reforma agrária, da alimentação e dos direitos sociais e democráticos brasileiros que foram ameaçados nos últimos anos.  

Em seguida, o coordenador do MST, Ney Strozake, pediu um minuto de silêncio em consideração às vítimas do terremoto na Turquia e Síria e uma salva de palmas para o ativista Julian Paul Assange. A palavra foi passada aos representantes das entidades organizadoras.

O Coletivo Transforma MP foi representado pelo procurador de Justiça (MPMG) Edson Baeta que apresentou a entidade e leu trechos da carta de princípios. No final de sua fala, Baeta destacou o empenho de Lewandowski. 

“Tenho uma honra enorme de estar aqui agora, porque diante de um estatuto desse, de um coletivo do qual eu participo, me sinto muito bem representado por vossa excelência como exemplo de julgador, exemplo de homem comprometido com os ideias da democracia. ”

Após as apresentações das entidades realizadoras do evento, houve uma mesa de debates mediada por Aiala Ferreira e Ney Strozake, com a presença dos juristas Carol Proner, João Pedro Stedile, ministro Ricardo Lewandowski e Lenio Luiz Streck. 

O STF e a ferida aberta do Amianto?

Marcello Casal/Agência Brasil

Artigos dos procuradores do MPT, Leomar Daroncho e Luciano Lima Leivas no Correio Braziliense

Extraído no Brasil desde a década de 1940, o amianto crisotila, fibra mineral usada principalmente na construção civil, é associado ao câncer desde 1955. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer reconhece o amianto como cancerígeno desde 1972. A substância pode provocar mesotelioma – tumor nas membranas que revestem o pulmão (pleura) – conhecido como o câncer do amianto.   

Em 2017 o STF baniu o amianto em todo o território nacional, em decisão comemorada por defensores da saúde pública. O Instituto Nacional do Câncer – INCA classificou de histórica a proibição da extração, industrialização, comercialização, distribuição e o uso do produto.

A Organização Internacional do Trabalho estima em cem mil as mortes anuais de trabalhadores causadas pelo amianto. Na Itália, a principal marca respondeu na Justiça pela acusação de ter provocado uma catástrofe ambiental, ao violar normas de segurança do trabalho, com cerca de 3 mil mortes, entre trabalhadores e vizinhos da fábrica. O promotor responsável pelo caso classificou a tragédia das vítimas fatais de uma “ferida aberta”.

No dia 23/1/2023, a Fundacentro divulgou a criação de banco unificado de dados com o registro de 3.057 mortes decorrentes de doenças relacionadas ao amianto no Brasil, entre 1996 e 2017.

Os pesquisadores destacam a preocupação com os efeitos da contaminação ambiental acumulada, em razão da tardia proibição, indicando a importância de manter o sistema de monitoramento da saúde dos trabalhadores, dada a projeção de que seguirão surgindo vítimas após o término da exposição ocupacional. Também ressaltam a cautela com os números, que devem ser bem superiores, em razão da subnotificação.

O asbesto foi proibido, a partir da década de 1990, em mais de 70 países. No Brasil, em 1993, foi apresentado o Projeto de Lei nº 2.186, que pretendia proibir o amianto. Paradoxalmente, o projeto foi convertido na lei que permitia o aproveitamento econômico do amianto.

Ao declarar inconstitucional o dispositivo legal que autorizava o aproveitamento econômico do mineral cancerígeno, o STF reconheceu as evidências de que não existe limite seguro para a exposição humana ao produto, sendo impossível o uso controlado da perigosa substância.

Todavia, os efeitos da decisão foram suspensos em razão de recurso (embargos de declaração) apresentado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria e pelo Instituto Brasileiro do Crisotila, cujo julgamento é aguardado para que haja segurança jurídica na importante matéria.

No dia 16/02/2023 o STF deve retomar o julgamento da ação (ADI 3406), em que foi declarada a inconstitucionalidade do dispositivo que permitia o aproveitamento econômico do amianto no Brasil, pacificando a questão.

Registre-se que no início dos anos 2000, diversos estados brasileiros publicaram leis regionais de proibição do amianto, casos de SP, RJ, RS e PE. Tanto a Lei Federal de permissão quanto as leis estaduais de proibição foram questionadas no STF. Em 2017, a Corte declarou constitucionais as leis estaduais (proibitivas) e inconstitucional a Lei Federal (permissiva).

Contudo, o Estado de Goiás, que sedia a única mina de amianto no Brasil, em sentido contrário à decisão do STF, publicou a Lei Estadual nº 20.514/2019, permitindo a extração, o beneficiamento e a exportação, do amianto da variedade crisotila. A lei goiana, incentivada pela insegurança gerada na pendência de decisão definitiva do STF, trouxe situações concretas de absoluta insegurança jurídica. A lei de Goiás acabou sobrepondo-se ao entendimento do STF sobre a Lei Federal e às leis de outros estados

Em abril de 2022, um caminhão carregado de amianto goiano que se dirigia ao porto de Santos sofreu acidente na BR-153, no município de Prata/MG lançando no ambiente cerca de 30 toneladas do produto perigoso. Porém, há lei dos estados de Minas Gerais e de São Paulo proibindo expressamente o amianto em seus territórios, sendo que a lei paulista foi declarada constitucional pelo STF.

O banimento do amianto é recomendado pela OMS como critério de saúde ambiental. A pacificação do tema pelo STF, mantendo a pauta de julgamento prevista e confirmando a decisão definitiva de banimento, que se alinha aos princípios da precaução e da prevenção e encerraria o período de retrocessos e de inseguranças, afirmando a centralidade dos direitos humanos e o protagonismo da Corte constitucional na concretização da Agenda 2030 da ONU.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.

Luciano Lima Leivas é Procurador do Trabalho.

Transforma MP se solidariza com juiz Luís Carlos Valois

O Coletivo Transforma MP presta solidariedade ao juiz da vara criminal do estado do Amazonas, Luís Carlos Valois, que teve suas redes sociais suspensas como medida disciplinar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

De acordo com a entidade, Valois é um jurista admirado pela academia, pelos juristas, além de ser respeitado pelos presos e seus familiares por defender a dignidade e os direitos da população carcerária no Brasil.

O Transforma MP acredita que a liberdade de expressão de qualquer pessoa deve ser respeitada desde que siga as diretrizes constitucionais e não afete a dignidade dos outros.

Em junho de 2022 o Coletivo emitiu uma nota em apoio ao magistrado que foi alvo de instauração de procedimento administrativo disciplinar do CNJ.

Povo Yanomami pede socorro

Força nacional do SUS em atendimento aos Yanomamis

O Coletivo Transforma MP repudia a omissão do Governo Federal, que durante a gestão de Bolsonaro negligenciou povos indígenas e ignorou as recomendações do Ministério Público Federal (MPF).

O descaso foi tão grave que os Yanomamis estão sofrendo com a contaminação de mercúrio, fome, desnutrição e doenças que poderiam ser tratadas com políticas públicas.

Bolsonaro ignorou 21 pedidos de ajuda à tribo que vive no estado de Roraima e por conta disso resultou em quase 600 mortes de crianças Yanomami. Além da omissão aos povos indígenas, Bolsonaro ampliou a atividade ilegal de garimpos em terras indígenas que contagiou diversos povos com metais pesados, trouxe sérios problemas de saúde e afetou a fauna e flora dos locais atingidos.

O Coletivo Transforma MP conclama que o caso seja investigado. Acreditamos que respeitar os povos originários é respeitar a história do país e sua diversidade, fortalecendo ainda mais a nossa democracia.

A defesa da democracia política pelo Ministério Público: muito por fazer

Por Marcelo Pedroso Goulart no GGN

No campo cultural, duas questões precisam ser enfrentadas: uma, relativa aos concursos de ingresso; outra, às Escolas Institucionais.

Práticas atentatórias à democracia, golpes e ensaios de golpe de Estado são recorrentes na história do Brasil. Poucos e curtos foram os períodos nos quais o país viveu sob a égide de regime democrático. Levando em consideração esse passivo político, o Constituinte de 1988 não mediu esforços para inscrever no texto constitucional mecanismos eficientes de defesa da democracia a evitar o retorno do Estado autocrático – registre-se que estávamos saindo do regime de exceção instituído pelo golpe burgo-militar de 1964. Mas foi além: elaborou projeto societário com a manifesta explicitação de valores, princípios, diretrizes, direitos e instituições próprios de uma democracia substantiva, ou seja, daquele tipo de democracia que se constitui de três dimensões: a política, a econômica e a social.

O Constituinte elegeu o Ministério Público como copartícipe da construção da nova ordem social, conferindo-lhe atribuições, instrumentos e garantias para o cumprimento dessa missão no âmbito do sistema de Justiça. Missão composta por quatro vertentes que, respectivamente, objetivam promover e defender: (i) a ordem jurídica, (ii) o regime democrático, (iii) os interesses sociais e (iv) os interesses individuais indisponíveis.

Na esfera da democracia econômica e social, o Ministério Público, desde os anos 1980, desenvolve atividades sociomediadoras e judiciais que asseguram, com alguma efetividade, a realização dos direitos transindividuais e individuais indisponíveis, como aqueles relacionados ao acesso à educação e à saúde, à proteção do consumidor, do meio ambiente, da infância, do adolescente, do jovem, do idoso, da mulher, do deficiente, das pessoas vítimas do preconceito e de discriminação, contribuindo, dessa maneira, para a redução das desigualdades sociais.

Já na esfera da democracia política, o Ministério Público ainda não desenvolveu modo de atuar compatível com a devida importância do tema, sobretudo na promoção e defesa da democracia semidireta, do adequado funcionamento de suas instituições e dos seus instrumentos, para que a representação política, a participação cidadã e o controle social das políticas públicas materializem-se como legítima expressão da soberania popular.

A compreensão limitada dessa incumbência reduziu as ações concretas do Ministério Público ao acompanhamento do processo eleitoral, como se tal tarefa esgotasse todo o conteúdo dessa importante vertente de sua missão. Daí o despreparo e a timidez da Instituição para enfrentar, nos últimos quatro anos, os ataques sequenciais da presidência da República à legalidade democrática e às instituições do Estado democrático de direito, como também os riscos de golpe de Estado, cuja tentativa acabou por ocorrer em 8 de janeiro passado.

Há, pois, muito por fazer.

No campo da organização institucional, é urgente a criação de órgãos de caráter permanente – promotorias e procuradorias de defesa da democracia política –, com cargos fixos e estrutura estável, com atribuições específicas ao seu objeto, tanto em matéria cível quanto criminal.

É preciso considerar, por conseguinte, que a formação de grupos, núcleos e forças-tarefas como sucedâneos das promotorias e procuradorias é incompatível com a natureza dessa atuação e das respectivas atribuições. Instâncias desse tipo são transitórias, atuam por tempo determinado para solucionar situações episódicas. Por isso, são instáveis na sua composição e estrutura. Além do mais, por não comportarem cargos, os integrantes são designados para o exercício de funções temporárias, o que leva à violação do princípio do promotor natural e à fragilização da independência funcional, hierarquizando algo que não pode ser hierarquizado.

Diante das circunstâncias ora apontadas, não cabe tergiversação: para a defesa da democracia política – tarefa permanente do Ministério Público – a morfologia e a fisiologia institucionais exigem a previsão de órgão de execução estável e permanente.

No campo cultural, duas questões precisam ser enfrentadas: uma, relativa aos concursos de ingresso; outra, às Escolas Institucionais.

O programa do concurso de ingresso à carreira de promotor de Justiça e de procurador da República deve conter disciplinas pertinentes à amplitude da missão institucional; portanto, não pode restringir-se à dogmática jurídica. No atual modelo de Ministério Público, a boa formação jurídica, embora essencial e necessária, é insuficiente para habilitar o candidato ao exercício das complexas funções de agente político. Disciplinas dos demais campos das humanidades devem figurar nesses programas. Ao menos um especialista de áreas afins – como Ciência Política, Teoria do Estado, Sociologia – deve participar das bancas examinadoras. Ao manter programa anacrônico, que não mede o realmente necessário, as comissões de concurso acabam por selecionar pessoas nem sempre qualificadas para a defesa da democracia política.

As Escolas Institucionais, por sua vez, têm papel a cumprir na melhora do desempenho dos membros do Ministério Público na defesa da democracia política. Matérias relativas a esse assunto devem compor a grade curricular dos cursos de formação continuada, dando-lhes tratamento profundo e multidisciplinar. Mais: nas atividades de extensão – aquelas dirigidas ao público externo –, às Escolas Institucionais cabe promover a capacitação do público para o exercício da cidadania. Essa capacitação passa necessariamente pela difusão do projeto societário definido na Constituição e dos valores e princípios democráticos que o embasam, bem como pelo ensino do manejo dos instrumentos que estão à disposição da cidadania para a implementação e defesa desse projeto.

No campo disciplinar, as Corregedorias precisam ficar atentas aos desvios funcionais dos membros da Instituição que, de forma comissiva ou omissiva, descumpram o dever de defender, com zelo e presteza, os fundamentos do Estado democrático de direito e as instituições e os institutos da democracia semidireta. Também devem ser objeto de atenção de tais órgãos as manifestações dos agentes do Ministério Público que denotam desapreço à democracia e à Constituição ou revelam simpatia e apoio a pessoas ou grupos sociais que cometam, tentam ou prometam cometer ofensa ao regime democrático, especialmente as manifestações proferidas em reuniões públicas, na imprensa e nas redes sociais. Esse tipo de comportamento macula a Instituição e é incompatível com o exercício do cargo.

Com foco na relevante tarefa de promoção e defesa da democracia política, apontou-se aqui, de forma não exaustiva, alguns dos passos a serem dados pelo Ministério Público no sentido de sua adequação ao modelo institucional previsto na Constituição Cidadã.

Sigamos em frente!

Marcelo Pedroso Goulart – membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador (TransformaMP)

Os sentidos da anistia

Por Cristiano Paixão na UnB Notícias

O tema da anistia voltou ao centro dos debates políticos no Brasil. Isso ocorreu por duas razões: (1) a recomposição da Comissão de Anistia mediante Portaria do ministro Silvio de Almeida publicada em 17 de janeiro1 ; (2) as demandas, formuladas por setores expressivos da sociedade civil, pela negação da anistia a crimes cometidos por agentes públicos nos últimos anos, resumidas na expressão “sem anistia!”2.


Há, nessas situações, dois sentidos diferentes do termo anistia. Precisamos definir com atenção esses significados. O conceito de anistia sofre transformações não apenas em seu uso, mas também como resultado de disputas interpretativas. O campo semântico da anistia no Brasil nunca foi monolítico.


No primeiro caso, trata-se da reconstrução do Estado Democrático de Direito, tão abalado pelas práticas desconstituintes dos últimos anos, especialmente em relação à reparação devida a vítimas do regime militar brasileiro3. A Comissão de Anistia é órgão de Estado, voltado ao cumprimento de uma diretriz constitucional. O art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias concede anistia aos que “foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”.


Essa anistia tem o claro sentido de reparação e reconhecimento. Reparação devida às vítimas do regime, que foram atingidas de diversas formas: desaparecidas, assassinadas, torturadas, detidas de modo arbitrária, enviadas ao exílio, demitidas, expulsas de universidades, perseguidas por força de suas convicções políticas. Reconhecimento da extrema iniquidade e do caráter autoritário do regime militar (responsável pela prática de crimes contra a humanidade ao longo de 21 anos de repressão) e da inadiável necessidade de adotar políticas destinadas a evitar a repetição ou o retorno do regime ditatorial.


No segundo caso, a exortação “sem anistia!” se dirige contra um uso específico do termo anistia. Quando uma parcela importante da sociedade brasileira se coloca contra todo e qualquer tipo de conciliação ou negociação em torno de possíveis punições a crimes graves (incluindo o genocídio), o que se procura evitar é o sentido da anistia como perdão ou como esquecimento. Foi exatamente esse o uso feito pelo governo militar – e seus apoiadores civis – no final da ditadura. Para compreender essa distorção criada pelo regime, é fundamental lembrar elementos da história da resistência no Brasil – e da disputa em torno do termo anistia.


O que se constata, pela análise das fontes relacionadas à resistência ao regime instaurado a partir de abril de 1964, é a conexão entre duas demandas: concessão de anistia e convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Em meados da década de 1970, ambas as reivindicações começam a ganhar força, ainda que existam manifestações anteriores.


Em 1975 foi fundado o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbini, esposa de um general legalista que se opôs ao golpe de 1964 e foi punido pelo regime. O movimento expandiu-se rapidamente pelo país, com a mobilização de muitos setores da sociedade – familiares de vítimas, igrejas, sindicatos, representação estudantil e vários outros. Em 1978 foi criado o Comitê Brasileiro pela Anistia. Houve então uma campanha nacional de ampla repercussão. Como dito por Bernardo Kucinski, os objetivos do movimento “vão além da anistia em seu sentido restrito e compreendem a busca e a descoberta do que aconteceu com os desaparecidos, a denúncia das condições de vida dos presos políticos, pressões pela soltura de brasileiros presos por outros regimes repressivos na América Latina”.


Está claro, portanto, que aquele movimento pela anistia foi, antes de tudo, um movimento contra a ditadura e pela redemocratização do país (é importante frisar que esses atores sociais tinham bem viva a memória do período democrático compreendido entre 1945 e 1964). O termo anistia estava associado ao retorno da democracia, à capacidade do Brasil de ser uma sociedade solidária e livre. Nada havia de perdão, conciliação ou esquecimento naquela luta.Porém, no momento de transformar a bandeira pela anistia em texto legal, operou-se a transformação de sentido.


Em 1979, o governo militar apresentou ao Congresso Nacional um projeto de anistia visando a isentar agentes do regime que cometeram violações aos direitos humanos. O projeto foi aprovado por uma margem estreita de votos – e, com isso, a anistia serviu como instrumento de impunidade e esquecimento (Lei nº 6.683/79). Foi uma espécie de anistia extorquida, o uso parasitário de um conceito que provinha da sociedade civil com muita força e capacidade de mobilização. E como bem assinala Lucas Pedretti, essa anistia veio marcada pela sombra de uma ameaça às vezes velada, às vezes explícita: os militares diziam que a passagem para a democracia deveria ocorrer “sem revanchismo”.


É fundamental notar, contudo, que a história não terminou ali.


Foi promulgada, em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República. Ela foi produzida por uma Assembleia Nacional Constituinte eleita de modo democrático, que atuou em consonância com amplos setores da sociedade civil. E, evidentemente, sua vigência significa uma ruptura com o ordenamento jurídico preexistente, que inclui a Lei de Anistia de 1979. Isso foi além da simples substituição de um documento por outro; operou-se uma transformação na base do direito e da política. Enfim, houve um processo que exigiu a redefinição de todo o ordenamento.


Como vimos, há uma origem “democratizante” na luta pela anistia. Ela não foi reivindicada como uma “anistia-esquecimento”. Ela foi veiculada sob o signo da redemocratização. E é esse sentido que veio se concretizar em 1988, numa perspectiva histórica de lutas por reconhecimento, democratização e inclusão. Com isso fica claro o equívoco da interpretação concedida pelo Supremo Tribunal Federal ao instituto da anistia. No julgamento da ADPF 153, o STF permaneceu preso à lógica da anistia extorquida pelos militares em 1979 – como se a ruptura de 1988 não houvesse existido . A cada dia que passa, mais anacrônica soa a decisão do STF (especialmente após reiteradas manifestações da Corte Interamericana dos Direitos Humanos no sentido da impossibilidade de concessão de anistia em crimes contra a humanidade ).


Em 2023, num momento de reconstrução da democracia, a Comissão de Anistia tem o dever de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a reparação e o reconhecimento. É esse o sentido constitucional do instituto da anistia – o único possível no contexto de uma ordem jurídica democrática.

Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto é professor da Faculdade de Direito da UnB. Subprocurador-Geral do Trabalho. Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Coordena grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Eixos, planos, ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB). Foi Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.

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1. Portaria nº 31, de 16 de janeiro de 2023, do Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania.

2. O que é anistia e por que termo é parte de protestos contra atos golpistas?

3. Cf. texto de minha autoria: Nostalgia restauradora e retorno ao passado: o sentido das práticas desconstituintes no Brasil atual.