Por Élder Ximenes Filho no GGN
Diz-se que, se produzir arte engajada é difícil, fazer humor “a favor de” é quase impossível! Não sejamos tão radicais
Situemos o debate (ou a zona de combates):
O humorista Léo Lins é condenado a indenizar pessoa transexual por uso indevido de sua imagem em uma piada (https://www.conjur.com.br/2021-out-08/humorista-condenado-piada-ofensiva-mulher-transexual#:~:text=Ao%20manter%20a%20indeniza%C3%A7%C3%A3o%20em,ou%20sexualidade%2C%20e%20g%C3%AAnero%22.).
O humorista Rafinha Bastos é condenado a indenizar a cantora Wanessa Camargo e família por piada sobre sua gravidez (https://www.jusbrasil.com.br/noticias/humorista-condenado-a-indenizar-cantora-e-familia-por-danos-morais/2993257)
O humorista Fábio Porchat é “cancelado” ao defender que liberdade de expressão inclui piadas de mau-gosto e preconceituosas, desde que não configurem crime (https://www.metropoles.com/entretenimento/fabio-porchat-diz-que-humoristas-tem-direito-de-ofender)
O filósofo Slavoj Zizek manifesta-se contra versão do “politicamente correto” no humor, em artigos sobre o massacre da revista Charlie Hebdo (https://blogdaboitempo.com.br/2015/02/16/eu-sou-estupido-e-maldoso-zizek-esclarece-sua-posicao-sobre-o-je-suis-charlie/)
O humorista estadunidense George Carlin, abertamente de esquerda, condena humor em cima de minorias, mas vê a censura como um mal maior (https://youtu.be/F8yV8xUorQ8)
O artigo acadêmico “Só Porque Você se Ofendeu Não Significa que Esteja Certo: uma perspectiva de linguagem, comédia e ética” bem avança na discussão, mas não a resolve tão bem quanto se propõe: (https://cupola.gettysburg.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=1071&context=student_scholarship)
Existem listas googláveis de filmes de comédia (que você viu se tiver mais de 50 anos) mas que jamais seriam feitos hoje em dia, haja vista conteúdos ofensivos e abertamente de mau-gosto para a atualidade. Incluem-se obras clássicas do grupo Monty Pyton e do diretor Mel Brooks. De brasileiras temos o “Histórias que Nossas Babás Não Contavam”, de Oswaldo de Oliveira (1979), parte dos filmes dos Trapalhões e dos quadros de Chico Anysio. Porção apreciável das alegadas 60 mil piadas reunidas por Ary Toledo (5.000 escritas durante a pandemia) tinham cunho misógino e racista…
Há quem fale no declínio da própria comédia como gênero, mas não temos espaço para tão altas elucubrações. Ficamos em que até mesmo a bilionária Holywood tem mudado. E vejam que estamos falando da ponta-de-lança ideológica do “soft-power” que naturaliza a dominação do império no mundo inteiro. Não é pouca coisa!
Creio que isto já dá uma boa idéia da dimensão do problema em termos objetivos. Construamos a partir daqui, nos limites de nossa prosa – que talvez nem seja séria, apenas desengraçada.
Theodor Adorno falou sobre a (im)possibilidade de fazer poesia depois de Auschwitz. Muitos não vão além deste dictum, que serviu mais como provocação sobre as contribuições da cultura germânica do que como uma maldição sobre o futuro da arte. Aqui um vídeo elucidativo sobre a obra “Dialética Negativa”, para quem não tem tempo de ler mas curte audiolivros: https://youtu.be/cyCTMMH7qV8?si=yGyKwpZbXrzWQ6y-.
De todo modo, reforça-se a indagação de para onde estaria caminhando a arte ocidental? Ou melhor: o caminho, seja qual for, terá ainda risos?
Podemos partir da classificação aristotélica dos gêneros teatrais, começando pela tragédia, que conteria uma ação dramática de excelência, com narrativa completa (início, desenvolvimento e conclusão), linguagem elevada e culta, provocando temor e pidedade no público, com objetivo de purgar as emoções (catarse), educando o espírito para superar os desafios da vida e tornar-se bom, belo e virtuoso (kalokagathia).
Ufa – não é para menos que os deuses massacram todo mundo, a mãe mata os filhos e a gente bate palma… olha que nos festivais de Dioniso as competições eram de três em três peças – com torcida, apostas, lembrancinhas, celebridades e tudo!
A comédia (que em grego tem a ver com “canto” e “festa”) faz o contraste. Em linguagem simples e até grosseira cuidava de situações mais mundanas, continha ironias e críticas a comportamento do dia-a-dia, exagerava e ridicularizava pessoas em busca do riso. Sócrates aparece “abobalhado” no As Nuvens de Aristófanes e os medrosos borravam as calças… Eram encenadas nos dias seguintes aos das Tragédias, cinco de uma vez. Serviam de linimento para que os cidadãos se recuperassem da “pancada” anterior. Depois vinham as premiações e muita festa.
Dois mil e quinhentos anos passaram. Claro que neste tempo todo as coisas misturam-se, repetem-se e recriam-se. Mas aqueles “gatilhos” em nossas mentes (independentes da língua ou da cultura) continuam funcionando e despertando reações. Seriam até clichês: a injustiça dos poderosos; o orgulho ao final castigado; o prêmio da perseverança; o choro das mães e…. a casca de banana, o susto do balde d’água. As comédias de situação ou físicas ou “pastelão” são eternas em sua simplicidade – Carlitos, Monsieur Hulot e Trapalhões. Nossos primos gorilas, bonobos e chimpanzés riem uns dos outros e fazem provocações e galhofas… nós continuamos, como bons primatas… Nosso cérebro tem algum tipo de conexões, um certo arranjo que nos torna animais que riem. As relações sociais sofisticadas, economicamente, juridicamente e eticamente complexas – estas é que nos fazem perguntar: devíamos?
Queiramos ou não, continuam funcionando os chistes, que seriam a unidade mínima da comédia. A palavra vem do alemão “witz” (gracejo ou pilhéria). Daí “wit” em inglês, como a capacidade de dialogar com humor, velocidade e inteligência. Freud (https://www.psicanaliseclinica.com/chistes/) considerava o chiste uma das válvulas de escape do inconsciente, comunicando o que não se ousa, através de vias tortas e inferências (eu não digo, mas você adivinha). Do salto entre o não-dito e o captado surge a graça e o riso.
Percebe-se que a comédia que utiliza o texto e não o gestual exige mais da compreensão verbal – daí ser quase impossível traduzir a obra dos irmãos Marx e sua metralhadora de trocadilhos. Mas existe algo que acompanha a evolução da comédia desde o imemorial das pinturas rupestres. Ora, não me digam que não havia humor em algumas das pinturas com orelhas de coelhos, falos gigantes, orgias e danças cambalhoantes nas rochas de Lascaux/França, Baja/México ou na piauiense Serra da Capivara!
Sempre houve um sentimento de medo e deslumbre ante a natureza, a morte, os sonhos – origens das mitologias e religiões. Em paralelo, o fenômeno irresistível do riso e do humor – mesmo quando não tínhamos palavras, teorias ou classificações para isto. É importante frisar que o humor é original e essencialmente anárquico e surpreendente. Resiste ao enquadramento mais do que quaisquer outras formas de expressão. Produz riso ao expor o ridículo de tudo aquilo que se pretende muito sério e importante (e isto pode incluir as boas causas e os heróis). Isto está na base da arte da palhaçaria, desde a Comedia dell’Arte. O humor é naturalmente contestador e “contra tudo o que está aí”. Acrescento que também é contra o que está “acolá” e, especialmente, “aqui”.
Possui, sempre, grande potencial de ofender!
Diz-se que, se produzir arte engajada é difícil, fazer humor “a favor de” é quase impossível! Não sejamos tão radicais: produzir algo de qualidade é sempre difícil em todos os lugares e épocas, mas aí estão as obras de Maiakóvsky (tão longe) e dos gigantes Agildo Ribeiro e Jaguar (tão pertinho).
De tudo pode-se tirar uma certeza: a “forma” do chiste e sua graça irresistível podem manifestar-se sobre quaisquer temas… até os terríveis! Não ressalto nem a polêmica do A Vida é Bela de Roberto Benigni (humor num campo de concentração demonstrando a superioridade da força vital sobre a barbárie). Falo de situações bem mais corriqueiras e chãs. Repare bem: via de regra, numa piada ou num videoziinho engraçado, sempre há alguém dando-se mal de algum jeito: uma queda, um susto, um ridículo, uma decepção… Extrapolando, quero pontuar a existência de piadas que não deveriam existir, sobre sofrimentos e atos monstruosos – como pedofilia e racismo – mas que existem e enquadram-se como “humor”. Torturadores faziam graça e riam entre si. Crianças podem rir quando vêem alguém machucar-se. Nós começamos a sorrir quando algém começa em ton jocoso: “Sabe o fulano, pois então…”. Este humor inato pressupõe, normalmente, uma compartilhada presciência de que algo ocorre/ocorreu de forma engraçada – mesmo que o fato em si não o seja. O fenômeno do riso pode veicular crueldade, mas vem dos mesmos arquétipos e e das mesmas conformações mentais de cada um de nós. Aqueles risos, por abjetos que fossem, integram o terrível amálgama da natureza humana. Acreditar na excepcionalidade do mal (e não em sua banal repetibilidade) é um erro que devemos evitar, com bem ensinou Hannah Arendt.
Hoje em dia, palavras sobram e como! Com o advento das redes sociais, nunca se escreveu tanto na história da humanidade. Com o Youtube e o TikTok, nunca se filmou tanto. Da mesma forma, jamais se falou ou mostrou-se tanta bobagem! Mesmo que a qualidade surja da quantidade depurada, isto leva algum tempo e esforço. Seguindo o fluxo, obras humorísticas multiplicam-se ao infinito. Todos sabem que os conteúdos mais chamativos, ofensivos, lacradores e polêmicos recebem mais visualizações e podem dar mais dinheiro. Comediantes-influenciadores brotam e desaparecem como os filósofos-influenciadores, os investidores-influenciadores, personais-influenciadores… todos surfando na onda dos “coaches” (e a maioria morre na praia, sedenta de monetização).
Como em quaisquer atividades humanas, tende-se à especialização. Comediantes fazem o velho show de piadas (o gourmetizado “stand-up”) e, naturalmente, formam seus públicos. Há poucos generalistas reais e a fluência das bilheterias (e “likes”) vai depurando o que atrai certo público e o que afasta outro.
Um bom exemplo é o de Bruna Louise (primeira mulher brasileira a ter um show solo na Netflix). Ela faz humor de costumes, sempre abordando sexualidade com um viés feminista e traz situações da própria vida (ficcionalizadas, claro). Atualizando a tradição do palhaço, ela brinca consigo mesma, compartilhando situações hilariamente vexatórias. Expõe ao ridículo os “hétero-top” no privado e o patriarcado no público. Atrai fãs correspondentes. Produzem e consomem, assim, um humor que pode ser “ofensivo” (como qualquer outro) – mas escolhe atuar contra quem é privilegiado na sociedade ou, pelo menos, contra quem não está sob algum risco existencial.
Exemplo contrário é o do sobredito Leo Lins (e outros). Não é difícil deduzir que seu público seria formado por homens brancos inseguros das próprias masculinidade e competência profissionais. Logo, adotam os “espantalhos” dos movimentos feminista, negro, dos povos originários, LGBTQIA+. Coerentemente, são contra cotas, contra imigração, contra nordestinos…. Enfim, produzem e consomem o humor que é também “ofensivo” em potencial (como qualquer outro) – mas escolhem como objetos discursivos os grupos minorizados ou pessoas sob risco existencial.
Mas existe algo ainda mais insidioso que às vezes passa despercebido: não seria tão problemático este humor se apenas se fixasse em contradições internas, exageros e eventuais momentos ridículos. A questão maior é que aponta para a naturalização sistêmica e cultural dos processos de exploração e submissão. Acaba, pior do que ensinando, comemorando que as coisas “são como são” e reforçando que ridículo é tentar mudar o status quo.
As palavras têm poder e o humor desnuda até os reis… mas também pode chutar quem já está caído. Daí a frase tão correta: o humor não tem limites, mas os humoristas devem ter.
onde entram os personagens de desenho do título?
Bem, se você assistiu os episódios clássicos de Pica-Pau (do inicial “Knock knock” de 1940 até a virada do “Barbeiro de Sevilha” de 1944) percebeu que se trata de um perfeito sociopata – embora muito engraçado. É aquela versão com pernas listradas e dentes bem aparentes. Ele sadisticamente abusa de outros personagens mais fracos, sem qualquer provocação, apenas pelo prazer de maltratar e humilhar. Ele só admite fazer as coisas “do seu jeito”, apesar do direito alheio.
Da mesma Warner Brothers, estreando em abril de 1938, o Pernalonga também destrói hilariamente seus adversários. Todavia, isto ocorre em resposta a uma provocação: ele está sendo caçado ou teve a toca destruída (certa vez pela especulação imobiliária). Daí, defende seus direitos e vinga-se!
Claro que todos são circunscritos pelo ambiente cultural da época. Claro que não é nenhum crime gargalhar com ambos. Mas fica a provocação: quando escuta uma piada, lá no fundo, você ri com o Pica-Pau ou com o Pernalonga?
Por Élder Ximenes Filho, Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP
O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.