Autor : Coletivo

Livro Justiça em Pedaços: Não é um Livro que tens nas mãos; é um Sonho!

Por Élder Ximenes Filho* no GGN

A poeta canadense Anne Carson diz “se a prosa é uma casa, a poesia é um homem em chamas” – palavras têm poderes!

Esta não é uma poesia e eu não sou um poeta” – vibra a língua do rapper inglês Anthony Anaxagorou, desfiando as denúncias das hipocrisias políticas.

Walt Whitman tornou-se ele mesmo a promessa (irrealizada) da Norte-América jovem e solidária: “Eu canto… o corpo elétrico, uma canção de mim mesmo, uma canção de alegrias, uma canção de trabalhos… uma canção do universal”.

“Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo” – apresenta-se em papel nosso Fernando Pessoa.

Assim, nada melhor do que deixar a obra falar por si própria!

Na INTRODUÇÃO de Daniel Serra Azul:

“O Coletivo nasceu em resposta a uma crise em nossa categoria. Posteriormente, percebemos que era uma necessidade histórica… um grupo de integrantes do Ministério Público Brasileiro resolveu se posicionar publicamente, ressaltando sua preocupação com a preservação da ordem jurídica democrática vigente e, em consequência, do devido processo legal… seguimos denunciando como, muitas vezes, a jurisdição é manipulada para contribuir com projetos excludentes e contrários aos princípios constitucionais e da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos… Crítica e Doutrina contextualizadas pela cronologia dos principais eventos contemporâneos ao longo do livro.

Não pretendemos apenas comentar a história contemporânea, mas apresentar uma perspectiva democrática e progressista, especialmente para estudantes ou profissionais com interesse em compreender, com base na realidade concreta e no pensamento crítico, as profundas transformações por que passa o pensamento jurídico e os motivos da inadequação de uma educação jurídica que insiste em processos repetitivos, abstratos, mistificadores.”

No PREFÁCIO de Boaventura de Sousa Santos:

“Trata-se de um conjunto imensamente variado de textos, em geral curtos, que se debruçam, tanto sobre temas da atualidade política, legislativa e judicial, como de temas de reflexão e de análise teórica sobre a questão geral do lugar do direito e dos seus operadores nas sociedades contemporâneas…

Os textos aqui reunidos fazem jus ao ânimo daqueles e daquelas que em boa hora decidiram organizar-se para melhor defender a democracia brasileira e garantir com mais eficácia a dignidade do seu exercício profissional.

A Carta de Princípios que orientam este colectivo é um documento notável que deveria ser lido e estudado por todos os estudantes de direito, especialmente por todos os candidatos a integrar o MP e, em geral, por todos os cidadãos interessados em defender a democracia brasileira… Em minha longa experiência, não conheço outra declaração tão eloquente e ampla como esta…

A oportunidade deste livro não podia ser maior.”

Na APRESENTAÇÃO, de Déborah Duprat:

“Vários e diversos documentos produzidos pelo Coletivo Transforma MP foram reunidos nessa obra e se organizam a partir de duas ideias solidárias entre si: o distanciamento do Ministério Público de seu desenho constitucional e a subversão das principais ideias reguladoras da vida coletiva inscritas na Constituição de 1988…

O Estado projetado pela Constituição de 1988 corresponde à figura do Estado do bem-estar social, Estado provedor de direitos e de implementação de políticas públicas que se orientam pela busca radical da igualdade, com atenção à diversidade da vida coletiva…

A pandemia ainda escancara o tamanho da desigualdade e seu impacto desproporcional…

Ao final, fica-se com a certeza de que se vive no país um estado de exceção, na concepção de Giorgio Agamben… A sua superação depende da compreensão dos fenômenos que o tornaram possível, e disso se encarrega essa obra.

Boa leitura.”

Parafraseando tantas escritas, orgulhoso, anuncio:

– Além de chamas, vidas e ideias – dentro do livro DEMOCRACIA E JUSTIÇA EM PEDAÇOS – você certamente encontrará sonhos poderosos em palavras.

Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP.

Livro do Coletivo Transforma MP será lançado em 2022

A obra “Justiça e Democracia em Pedaços” reúne centenas de artigos críticos de membros do Coletivo, que refletem sobre a situação política, racial e de gênero no país.

Por Marina Azambuja* no GGN

Refletir e se posicionar sobre os fatos que estão ocorrendo no Brasil e no mundo é uma das finalidades do pensamento crítico. No Coletivo Transforma MP, dezenas de integrantes dos vários ramos do Ministério Público Estadual e da União analisam e se posicionam sobre acontecimentos políticos e do universo jurídico, revelados em textos opinativos publicados por diversos veículos, como o Jornal GGN, além da página do Coletivo.

Pensando em dividir estes trabalhos com a sociedade e pessoas operadoras do direito, o Coletivo Transforma MP selecionou os textos que foram e são destaques desde sua fundação, em 2016, quando iniciou-se a ruptura da democracia e o agravamento da crise política. Os conteúdos formaram o livro “Justiça e Democracia em Pedaços”, publicado pela editora Appris.

Segundo o promotor de justiça do Ministério Público do Ceará e coordenador nacional do Coletivo, Élder Ximenes, a obra surgiu como um desdobramento natural da atuação da entidade. “Decidimos coletivamente fazer uma crônica da história recente, apresentando o surgimento do Transforma como resistência e seu crescimento como luta e esperança. O livro traz também excelente doutrina para profissionais e estudantes. Já são 2 volumes grandes, nos formatos físico e digital – já pensando nos próximos!” – relata o promotor. 

O livro inicia-se com múltiplas análises sobre aqueles episódios mais sombrios e seus desdobramentos para a democracia brasileira. Além de apresentar o Coletivo, o escopo da publicação consiste em reunir os artigos em ordem cronológica para contar a história do país desde a ameaça do impeachment em 2016 até os dias atuais. “Trazemos os iniciais Manifestos contra a inconstitucionalidade do impeachment golpista, nossa Carta de Princípios, as Notas Públicas e as centenas de artigos das pessoas associadas. O período desta publicação vai de 2016 até a véspera da eleição municipal (2020) – com a cronologia contingenciada dos principais fatos históricos” – relata Ximenes. 

Outra novidade é que, para ressaltar o caráter cooperativo, democrático e horizontal do Coletivo, a publicação registra não os tradicionais nomes dos Organizadores, mas singelamente “ORGANIZAÇÃO: coletiva e solidária”.

Os dois volumes da obra – que conta com a apresentação de Déborah Duprat e o prefácio de Boaventura de Sousa Santos – serão lançados e vendidos entre os dias 26 a 30 de abril em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, co-organizado pelo TRANSFORMA MP; mas podem ser adquiridos pelo site da editora Appris, em versão impressa e digital. 

O Coletivo Transforma MP fará doações da obra dos livros para entidades relacionadas à Justiça brasileira, bibliotecas de universidades públicas, da Câmara e do Senado federal; além das Escolas Judiciais e para juristas convidados que estarão presentes nas atividades autogestionadas do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia. 

Boa leitura.

*Marina Azambuja é jornalista do Coletivo Transforma MP. 

Transforma MP repudia Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário e ao prêmio Portas Abertas (MP nº 1.099/2022)

O Coletivo Transforma MP assinou nesta terça-feira, 08, uma nota que repudia o Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário e ao prêmio Portas Abertas, instituído pela Medida Provisória nº 1.099/2022. 

O documento emitido pelo Fórum Interinstitucional em Defesa do Direito do Trabalho e da Previdência Social (FIDS), teve o apoio das dezenas de instituições que compõem a entidade, cujo o propósito foi denunciar o Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário e o prêmio Portas Abertas que incentiva pessoas a prestarem serviço voluntário sem gerar vínculo empregatício e sem a proteção ao trabalhador; ambas previstas na legislação trabalhista, Lei nº 9.608/98; e na Constituição Federal brasileira. 

“O Programa, se instituído, violará frontalmente o modelo de proteção social estabelecido pela Constituição, que, em seu art. 1º, demonstra absoluto apreço pela valorização do trabalho, pressuposto para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e para a redução das desigualdades sociais e regionais, objetivos fundamentais da República. Atentará, outrossim, contra o princípio da igualdade, seja por distinguir condições de trabalho, a despeito da identidade de funções, seja por permitir a admissão de pessoas em situação de vulnerabilidade, como trabalhadores(as) de segunda categoria, circunstância que perpetuará o ciclo da pobreza”. 

Para as entidades participantes do FIDS, esta prática, que possui diretrizes similares às da reforma trabalhista de 2017, não será capaz de fomentar a geração de emprego e nem de movimentar a economia, pois afetará o salário dos trabalhadores que impactará diretamente na demanda por bens e serviços. 

De acordo com dados apresentados pela PNAD-C do IBGE, após a inserção da reforma trabalhista, milhões de brasileiros perderam seus postos de trabalho e foram jogados ao mercado informal em condições precárias e sem a garantia de direitos.  

Milton & Ailton: as leituras de mundo e a compreensão do tempo

Maria Betânia Silva, no GGN

Para bem identificar os rostos por trás dos nomes que aparecem no título deste artigo, começo esclarecendo que o sobrenome de Milton é Santos  e o sobrenome de Ailton é Krenak.

Milton, era negro, geógrafo, acadêmico, conhecido internacionalmente pela sua obra e pelas suas críticas, especialmente, contudentes no que se refere à globalização e à mídia convencional. A despeito de ter falecido em 2001, continua vivo pelos trabalhos que produziu e na memória de muita gente que teve a honra de conhecê-lo e/ou de com ele conviver. Seu legado é gigantesco. Ailton é indígena, escritor, jornalista e também internacionalmente conhecido, uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro que usou da tecnologia da informação para integrar os povos indígenas do país, ajudando a dar visibilidade à causa e, ainda, emancipá-los da opressão secular. Para além de serem brasileiros, Milton e Ailton têm em comum a produção e a veiculação de um pensamento originalíssimo, quase “autóctone”. E faço essa afirmação sem receio de estar exagerando.

Através dos seus dizeres ou escritos, eles nos ofertam a possibilidade de refletir sobre as formas de ser e de viver, na atualidade, assim como sobre a forma de viver própria aos povos dos quais eles descendem. Milton Santos era neto de negros escravizados, filho de professores, nasceu em Brotas de Macaúbas, na Bahia, tornou-se professor universitário, fez cursos na França, deu aulas na Tanzânia e em universidades no Canadá e EUA, autor de mais de 40 livros, se destacou em todas as atividades acadêmicas que realizou e em virtude das quais também acumulou vários títulos de Doutor Honoris Causa, além de prêmios, inclusive, o mais importante prêmio na área de Geografia: Vautrin Lud. Milton trazia na sua pele a cor da exclusão e na sua cabeça, as mais brilhantes ideias de inclusão. Ailton, por seu turno, é membro de uma comunidade indígena de nome Krenak, nasceu na região do Rio Doce e foi atuante nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1988 na defesa dos povos originários, é autor de vários livros e recebeu título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Juiz de Fora. A comunidade à qual pertence era no início do século XX  composta por milhares de indivíduos e na atualidade foi reduzida a centenas. Ailton ensina a resistir, com força e bom humor.

As trajetórias de vida que esses dois homens tiveram são bem distintas em muitos aspectos, no entanto, há uma similitude no trabalho intelectual produzido por eles, tendo cada um ao seu modo, merecido, como já assinalado acima, muita visibilidade nos espaços que conquistaram, fora e dentro dos círculos acadêmicos, e essa visibilidade – justa e legítima em relação a eles – os coloca, a rigor, como porta-vozes de uma outra leitura de mundo, regida por uma outra interpretação sobre a noção de tempo e espaço, em maior ou menor grau tributária dos povos dos quais descendem e que os afasta das premissas teóricas e subalternizantes trazidas pelo colonizador europeu. Essas premissas foram justificadoras do projeto de expansão territorial das nações europeias e isso permitiu a produção e acumulação de riquezas (materiais e imateriais) extraídas dos territórios conquistados, consagrando, assim a hegemonia dessas nações sobre a parte do mundo ocidental. Esse projeto também se realizou mediante o apagamento da diversidade dos povos colonizados, homogeneizando-os e desumanizando-os, ao tempo em que se forjava o discurso sobre a ideia de um homem universal. Levado a cabo com muita violência, gerou o extermínio de muitas populações cujo modo de vida era diferente do modo de vida europeu, o que provocou um processo de transformação do mundo em favor do imperialismo, mais especificamente, o de traços anglo-saxão que elevou o capital a um patamar “divino” e fazedor de milagres para poucos. Mas como tudo na História é envolto em contradições, a ideia do homem universal adquiriu novos contornos com o passar do tempo para dar lugar ao pluriuniversal, conceito, aliás, que deita raízes no pensamento filosófico do professor sul-africano Mogobe Ramose. Vive-se, hoje, um momento no qual as diferenças culturais e as atitudes de reação às correntes opressivas servem, paradoxalmente, como um nutriente da própria sobrevivência de vários grupamentos humanos, convertendo-os num fator de instauração de outras perspectivas de vida.

No seio de uma sociedade branca, representada sobretudo por oligarquias econômicas, como é o caso da brasileira e, além disso, muito influenciada pelo pensamento europeu que fez prevalecer a sua episteme sobre aquela presente nos povos colonizados, Milton Santos e Ailton Krenak se emanciparam dessa epistemologia marcadamente colonialista e são referências para superação de tudo aquilo que implica a desqualificação da condição humana. Embora eles se valham da língua herdada pelos colonizadores – como não poderia deixar de ser – criam uma linguagem que é capaz de traduzir o saber característico fomentado na cultura dos povos donde eles descendem e que é interseccionado por aquele saber adquirido ao longo da vida em contextos bem diversos. Essa perspicácia cognitiva traz à baila tanto a violência física e cultural ao qual os seus antepassados estiveram submetidos quanto – numa quase repetição por outros caminhos – explicita os impactos do desenrolar da opressão contra várias populações, na atualidade.  Com isso, Milton Santos e Ailton Krenak apontam para a luta pela sobrevivência humana e preservação da espécie, algo que não se limita aos povos originários, mas se projeta no caminho de todos os povos.

A visão deles a respeito do mundo atual tem pelo menos dois importantes pontos de convergência. O primeiro, é chamar a atenção para os efeitos do capitalismo, mostrando o aprisionamento do ser humano à sociedade de consumo que contribui para conferir uma ilusão sobre o desenvolvimento da espécie humana,  de sorte que questionam o próprio significado da noção de desenvolvimento.  Eles – juntamente com tantos outros – denunciam essa ilusão, fazendo soar o alerta de que, para se manter o desenvolvimento prometido no patamar atual avança-se cada vez mais na extração de recursos naturais, degradando o meio ambiente em nome de um projeto de conforto de vida material individual que se faz acompanhar da diluição de vínculos coletivos. E isto ocorre porque se atribui a cada indivíduo isoladamente considerado a titularidade para exercer poder através da compra de coisas artificiais, mediada pelo dinheiro. Esta é a síntese da síntese dos nossos tempos que demarca a diferença essencial com o que se tinha e ainda se tem, em certa medida, de característica do modo de vida dos povos originários, aí incluídos: o povo indígena e o povo negro, vitimados no processo de dominação colonial que mudou a face da Terra muito significativamente, sobretudo, para nós que nos situamos no Ocidente, muito embora, também, mudanças se tenham engendrado em todo o planeta. O outro ponto de convergência é a crítica feroz que esses pensadores fazem aos meios de comunicação convencionais presentes na sociedade de massa e urbana, os quais funcionam como uma extensão, uma caixa amplificadora de um poder que não abandonou o seu traço colonialista, ainda cooptando as consciências ao reverberar uma história única.

Para melhor apreender a originalidade de pensamento que aproxima esses dois autores…

OUÇAMOS A “VOZ” DE MILTON SANTOS

Milton Santos foi surpreendente na sua trajetória e essa surpresa não se deve apenas ao fato de ter sido um negro bem sucedido no âmbito acadêmico, o que não era nada comum à sua época, mas se deve, sobretudo, ao fato de que produziu um pensamento original tendo por escopo emancipar o ser humano da dominação capitalista desenfreada e instaurar uma visão protetiva da saúde do Planeta. Ele se considerava um intelectual outsider, alguém que não pertencia a partido, a grupos de intelectuais, que não respondia a nenhum credo e que também não participava de qualquer militância, no sentido usual do termo.

Sua importância como intelectual pode ser muito bem compreendida no documentário dirigido por Silvio Tendler e que redundou num vídeo intitulado Milton Santos – Globalização: o mundo global visto do lado de cá, disponível no YouTube, em 06.06.2011. Sob os holofotes no set de filmagem de uma entrevista longa feita com ele, lhe foi perguntado se era difícil ser um intelectual negro. A essa pergunta, respondeu: “…é difícil ser negro fora das situações de evidência… e é difícil ser intelectual porque não faz parte da cultura nacional uma palavra de crítica”. Logo se entende que ser as duas coisas ao mesmo tempo é algo dificílimo. E foi difícil para Milton Santos, apesar da genialidade dele.

Pois bem, na abertura do documentário, como que firmando os parâmetros a partir dos quais as reflexões de Milton Santos seriam exploradas, uma frase escrita por Sartre  no prefácio do livro “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon (um outro autor indispensável) é exibida.

A frase diz:

“ é preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico… e, que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e insurreições. Eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro”.

Essa referência a Sartre cria a impressão de que a forma de pensar de Milton Santos talvez não seja regida por uma temporalidade linear e rígida acerca do presente e do futuro.

De fato, Milton Santos transborda os limites dessa marcação temporal, uma vez que  interpreta os fatos da vida como ciclos que abrem a possibilidade de inovar e superar um padrão de comportamento humano correspondente a uma visão linear do tempo no qual não se enxerga as ondulações. Ele aposta nas quebras, recusa comportamentos standards, se mostra atento às descontinuidades que se forjam sob a superfície da realidade que é medida por um tempo artificializado e apressado. Embora tenha manejado os conceitos e adotado o rigor metodológico herdado da epistemologia europeia sob o influxo da qual se formou, ele vai muito além dela e traz uma originalidade somente revelada em virtude do seu pertencimento a um país como o Brasil. A esse respeito ele explicitou ser o Brasil o lugar onde mais facilmente ele pode ser universal. O seu propósito é “tentar ver a partir do presente o que se projeta no futuro”. O tempo presente é central na obra de Milton Santos como momento de construção de formas de vida. O futuro seria a conseqüência natural. O passado foi só a passagem necessária para analisar o que importa: o tempo presente. Em certa medida, é como se essa marcação de passado e futuro fosse apenas porta de acesso para solução dos problemas vivenciados no hoje.

A originalidade de Milton Santos na forma de pensar já se insinua diante da afirmação de que a sua opção pela geografia foi motivada pelo “movimento das populações” no espaço; ele fora instigado por uma certa curiosidade sobre as migrações e talvez isso tenha se dado como um resgate inconsciente daquilo que atravessou o povo negro: uma migração forçada decorrente do poder dos colonizadores sobre os seus corpos, quando o empreendimento das navegações oceano adentro assentou-se no comércio desses mesmos corpos para manutenção dessa conquista territorial que provocou um  impacto nefasto nesse povo seja no seu lugar de origem seja no lugar de destino. Em seguida, Milton Santos esclareceu também que tinha gosto pela História e que isso residiria na valorização do processo de contradições, o que o fazia se considerar um intelectual marxista, mas não ortodoxo; na realidade, um intelectual “marxizante”, nas palavras dele, em virtude do que sentenciou: “se tudo se torna capitalista, obrigatoriamente, a contradição se instala”.

O documentário evolui entre imagens que remetem a fatos históricos reveladores da exclusão social, passando pelas respostas dadas por Milton Santos às perguntas que lhe foram feitas durante a longa entrevista, e por  flashes de palestras que ele proferiu, explicitando as suas críticas ao fenômeno da globalização, entendido, sob a sua ótica, como fábula, como perversidade e como possibilidade de ser alguma outra coisa.

As imagens reproduzidas no documentário mostram muito fortemente como a globalização foi-se acentuando após o Consenso de Washington, o qual impulsionou medidas de privatização da água na Bolívia, por exemplo, e foi alvo de violentos protestos populares, fazendo o governo retroceder. Também, explorou a ideia do aparecimento do Homo Davos, ou seja, a parte da espécie humana reunida em Davos, na Suíça, em 1970, que se empenhou na instituição de um pensamento único, entusiasmado com o livre mercado como trilha para o paraíso.

Enfim, o filme costura bem uma sucessão de vários fatos cada vez mais alinhados com a opressão e a exclusão de um número sempre maior de pessoas, trazendo ao espectador a sensação de que algo semelhante também ocorrera no século XV ao se optar pela navegação e conquista de territórios para além do continente europeu. A globalização é uma continuidade nas descontinuidades, um processo de início lento e que foi se acelerando e gerando um fenômeno captado  pelo olhar atento e perspicaz de Milton Santos cujas manifestações vigorosas soaram como alerta e como aceno para as saídas a serem construídas nos dias de hoje.

As críticas contundentes que ele fez à fome, por exemplo, sustentadas no trabalho de Josué de Castro de quem ele foi um grande admirador, não deixa espaço para dúvidas: a fome é uma opção de poder que define quem deve ser submetido a tamanha indignidade e  nada tem a ver com a produção de alimentos no mundo mas com a distribuição dos alimentos produzidos, há saída para isso. Existe um projeto a ser desfeito e outro a ser executado. De igual modo, ele não poupa críticas quando analisa o papel da mídia ligada ao mundo da produção material e das finanças que a controla de forma eficaz mediante uma interpretação manipulada dos fatos com o propósito produzir uma informação útil – segundo ele – para a instituição do globalitarismo: expressão por ele cunhada e que traz a invenção de um conceito mediante a recriação da língua portuguesa com vistas a conferir à realidade um sentido rigoroso daquilo que efetivamente se vive. Milton Santos, aliás, ressignifica muitos termos cunhados no pensamento europeu, conceituando-os a partir de neologismos em língua portuguesa e com isso firma os reais sentidos das palavras hipocritamente veiculadas pela “boca” do poder midiático hegemônico.

Definitivamente, nada no processo de globalização que se espraia em todos os setores da vida de muitos países massacrando-os em favor do interesse de alguns poucos, em particular no mundo ocidental, escapou da reflexão arguta de Milton Santos, fazendo-o declarar ser a “primeira vez na História que a gente convive com um futuro possível”, o que, por seu turno, o levava a acreditar “ver dentro das cidades formas de solidariedade que têm expressão econômica e política em contraposição à violência”.

Assim, observou, em um tom crítico e com discreta indocilidade que, no Brasil, “…nós decidimos ser europeus, insistimos em ser europeus, nos recusamos a pensar como nós próprios porque achamos mais chique pensar como europeus ou americanos e temos enormes dificuldades para entender o mundo…não sabemos muito o que fazer com o mundo novo porque não descobrimos a forma de pensar esse mundo novo a partir de nós próprios”. Logicamente, essa crítica parece muito mais dirigida a alguns expoentes do universo acadêmico do que ao povo propriamente, o qual, organizado de várias formas, vai rompendo os espaços da prisão que lhe é imposta, em eventos eruptivos de mudança.

Ao final do documentário, Milton Santos arrematou: “estamos fazendo ensaio da humanidade que nunca houve”.

Foi com esse espírito de pensar a partir da sua própria cabeça, manejando com originalidade os instrumentais teóricos apreendidos na Europa e EUA, que Milton Santos nos legou um sistema conceitual de viés crítico em relação à História do mundo no Ocidente e aos processos opressivos que nos desumanizam, nisso fazendo coro ao pensamento de Ailton Krenak que, para além de reagir a essa desumanização,  enxerga o tempo presente como um tempo de construção de um outro mundo. Milton Santos, mesmo havendo percorrido a História, que abriga uma temporalidade de passado, por exemplo, inexistente sob a ótica indígena dos Krenak, estava interessado naquilo que no “vulcão que crepita” (expressão usada por ele) sob a nossa existência para mudar a ordem do absurdo e impedir que a morte triunfe.

Ao criticar o papel da mídia, merece destaque o vaticínio feito por ele sobre a possiblidade de multiplicação de mídias alternativas voltadas a captar os movimentos sociais, os quais ele enxerga como atores do processo de “produção de constrangimento ao globalitarismo”. Via nisso o vulcão crepitando, a esperança de novidades. Nessa perspectiva, ele exaltou o uso de uma tecnologia básica composta por meios de registro de imagens que, operados inteligentemente, podem produzir uma informação capaz de neutralizar essa que nos é imposta de forma repetida por manchetes e fotos adquiridas de uma mesma fonte  cujo objetivo, não é outro senão validar a versão sobre a realidade que é conveniente ao poder hegemônico, através dos grandes veículos de comunicação, na tentativa de silenciar a diversidade. Admirável assistir no âmbito do documentário de Tendler a existência de “cinegrafistas” alternativos que cobrem as formas de resistência e organização das periferias das cidades, por exemplo, e também aquela capitaneada pelo MST como movimento que semeia uma nova ordem, de base solidária.

É curioso mas não surpreendente que, a despeito das diferentes trajetórias de vida e origem Milton Santos e Ailton Krenak tenham convergido para ressaltar o papel e o impacto da tecnologia de informação e comunicação no nosso mundo. Ailton Krenak  fez uso da tecnologia para integrar os povos indígenas, emancipando-os e fortalecendo-os na luta pelos seus direitos e essa atuação é também relatada no filme de Tendler. De outro lado, o papel exercido por Milton Santos, vaticinando e defendendo o crescimento de uma mídia alternativa, foca muito claramente naquelas comunidades que sentem, nas cidades, o peso da opressão e se veem fora da designação do conceito de cidadania, tal como os indígenas que foram, logo de cara, na época do “descobrimento”, melhor dizendo, da invasão, colocados fora da ideia que posteriormente funda o conceito de humanidade.

OUÇAMOS AGORA A “VOZ” DE AILTON KRENAK

No Dia 07 de janeiro deste ano, 2022, Ailton Krenak concedeu uma entrevista a Gustavo Conde no Programa Bom para Todos, transmitido pela TVT e retransmitido por vários outros canais: Grupo Prerrogativa, canal do Conde, todos disponíveis na plataforma do YouTube.

As ideias que povoam a cabeça de Ailton Krenak e consubstanciam muitos dos seus escritos foram mais uma vez repetidas e enfatizadas nessa entrevista. Usando a língua portuguesa com maestria, Ailton cria uma linguagem imagética que desenha os vasos comunicantes entre o ser humano e o Planeta, expressando-se de uma forma que não é só lógica; é também impactante no sentido de promover o deslocamento da nossa vivência urbana para fora de uma zona de conforto sustentada apenas pelos tantos bens materiais que adquirimos, que sonhamos em adquirir, que lutamos para adquirir, o que nos impede de compreender que a vida só tem um tempo: o presente, que vai muito além desses bens e, por isso, precisamos viver e enfrentar a realidade tal como ela se nos apresenta, guerreando pela sobrevivência contra as circunstâncias adversas, porque é assim que, na natureza, a vida se faz. A vida é uma construção cotidiana inadiável e necessária para se mover no tempo espiralado que se repete numa sucessão de mudanças. Tudo está envolto em contradição, numa dialética que insistimos em não admitir por causa do desejo de consumo de bens como finalidade, num tempo linear e de prazer apenas  individual.

Merece destaque a afirmação de Krenak segundo a qual vivemos uma superposição de tempos: de um lado, o social compartilhado e marcado pelo nome dos dias e dos meses, um tempo líquido “que se derrama sobre nós como azeite e no qual as pessoas são acionadas por necessidades reais…”, mas que lhes embota a capacidade de discernir e perceber que estão sempre submetidas à ideia de mercadoria, consumo e carência. Diante disso, concluiu “a humanidade está perdida de si”; de outro lado, muito salutar a visão por ele trazida sobre a concepção do tempo espiralado, pontuando que ele está bem impregnado na vida dos povos vindos da África e naqueles originários da América do Sul. Nesse sentido, do alto de sua sabedoria e boa dose de humor manifestada por alguns sorrisos intermitentes durante a entrevista, Krenak definiu o tempo como um amigo de viagem que se desloca ao nosso lado e não nos ataca.

E prosseguiu afirmando que “…precisamos ter a coragem de construir a partir do agora o que podemos compartilhar como realidade” arrematando que ele, por exemplo, “…habita um mundo de linguagens…como os pássaros que a ele dão sentido para experiência de estar vivo”.

Tudo flui no sistema de pensamento exposto por Ailton Krenak, um ser imbricado à Terra e que transita confortavelmente pelas veredas que nela são abertas por acreditar nessa construção contínua e cotidiana da vida, num tempo de viagem cujo término supostamente certo é, na verdade, imprevisível no espaço da nossa existência. Isto porque a Terra – por ele entendida como um organismo vivo e inteligente – tem uma capacidade de autorregulação que pode até nos cuspir numa só chacoalhada, tratando-nos, a nós, humanos, como espécie de bactérias se a gente a perturbar muito. E concluiu esse raciocínio afirmando que o Homo Sapiens é um serial killer.

Essas reflexões de Ailton Krenak, que guardam provavelmente diferenças irrelevantes com aquelas presentes em outras etnias indígenas, podem parecer perturbadoras para muitos de nós, acostumados e condicionados à lógica do tempo linear herdada do colonizador, o qual, ao enfrentar os mares com uma vaga noção de rota e ter obtido sucesso, se colocou como o centro do mundo, como ser capaz de tudo poder a partir do seu lugar em relação ao Oceano. O colonizador imprimiu no nosso imaginário um complexo de onipotência, de um todo-poderoso que somente ele exerceu e o fez contra nós, colonizados, cada vez mais ávidos em buscar e reorganizar a nossa própria força, para tentar refazer esse imaginário sem a arrogância intoxicante que nos asfixiou.

À parte a perturbação que as afirmações de Krenak podem causar, a “verdade verdadeira” é que elas nos fornecem igualmente a força e a tranqüilidade necessárias para atravessar esses tempos pandêmicos, por exemplo, no qual a gente é quase que automaticamente levado a pensar no ponto final da existência. Em certa medida, não deixa de ser quando se observa o aumento no número de mortos entre conhecidos e anônimos, dando a impressão que cada um de nós pode ser o próximo. Isso nos lança num incômodo existencial que motiva numa vivência frenética do tempo presente sem “horinhas de descuido”[1] para pensar. Algo talvez que explique a (in)”sanidade” de muitas pessoas a se deslocarem no espaço pandêmico, correndo toda sorte de risco, quase com a mesma intensidade de outrora, como se não fosse haver mais tempo para tanto. Em outras palavras, o comportamento apressado – objeto de crítica por parte de Milton Santos também – se mantém como padrão e foi potencializado durante a pandemia, como forma de impedir a instalação de uma quietude acolhedora acerca do efêmero sentimento de felicidade que nunca foi outra coisa senão isso mesmo: efêmero e independente da velocidade de nossas ações.

Cabe enfatizar que a serenidade da concepção de tempo explicitado por Krenak  e que não se confunde com apatia, fornece a chave para resistir. É como se a luta se travasse silenciosamente a partir do nosso ser interior e, para o exterior de nós se projeta de forma comedida no espaço, posto que o objetivo de viver esse tempo é uma espécie de mistura concomitante entre contemplação e ação cujo objetivo é usufruir da vida como um presente que nos foi ofertado.  Essa fruição nada tem a ver com a viagem de um lugar para outro ou a aquisição de bens materiais. Tem, isto sim, a ver com o tempo que agora dispomos para a viagem interior e a contemplação tanto da natureza visível quanto da compreensão do vírus – que emerge da natureza – invisível a olho nu.

Mas há, ainda, uma outra questão subjacente a essa forma de pensar que pode nos fazer querer pôr em xeque a sua validade e a adoção dela para o nosso modo de viver como “urbanóides”. É que parecemos nos deparar com um choque entre as diferentes formas e sistemas de pensar, aparentemente inconciliáveis. Há uma forma de pensar que é a nossa, que não estamos inseridos na comunidade indígena embora descendamos dela e uma forma de pensar dos indígenas que nunca se desligaram de suas raízes, como é o caso de Ailton Krenak.

Assim, do ponto de vista prático, parecemos convencidos de que a forma de vida  indígena, na origem, seria incapaz de encontrar as medidas eficazes contra os efeitos mais graves da SARS-CoV-2, por exemplo, dando-nos a certeza de que isso nos coloca como superiores, já que o mundo científico que prestigiamos nos trouxe a vacina e salvação.

Certamente, para os desavisados, a forma de pensar e viver dos povos indígenas os priva dos meios necessários à proteção de sua saúde tão importante para sua sobrevivência, e eles dependem do que nós, repito, “urbanóides”, inventamos a partir do nosso conhecimento científico. Esta afirmação, contudo, é falaciosa porque é perfeitamente explicável dentre outras razões pelo fato de que a vida dos povos indígenas somente se mostra ameaçada pelos vírus causadores de doenças que são estranhas ao seu habitat e à sua genética forjada ao longo do tempo num outro ambiente natural. Objetivamente, nós, da cidade, nos transmudamos em um tipo de vírus para eles. As técnicas ancestrais de enfrentamento de doenças que eles manejam lhes são bem úteis para aquilo que eles conhecem, e nesse aspecto, em certa medida, então, o nosso sistema de pensar se iguala ao deles. O nosso modo de pensar permite desenvolver técnicas para cura de doenças que somos capazes de conhecer. Cada povo, portanto, tem sua própria ciência e ela é um saber que emerge de sua vivência na relação com o espaço onde gastam a sua noção de tempo.

Então, se desenvolvemos um saber de cunho tecnológico, produzido pela sociedade urbana, citadina capaz de, em breve tempo, encontrar um fármaco para aliviar o efeito mortífero do vírus: no caso, as vacinas, esse recurso de extrema valia para nós (gente dita civilizada e integrada ao mundo artificial das cidades) significou um mergulho no corpo humano e exigiu, de nós, um certo equipamento porque a isso nos habituamos. Esse proceder não difere tanto daquilo que o corpo do indígena é capaz de fazer. Com equipamentos sem sofisticação, o indígena consegue desde navegar até mergulhar nos rios, além de adentrar nas florestas, estejam eles ou não distanciados no tempo e eventualmente próximos, no espaço geográfico, das nossas cidades.

Percebe-se que não se está diante de formas de pensar inconciliáveis. Não podemos mais nutrir a ideia de choque cultural entre nós (designados de cidadãos no sentido de sermos oriundos de cidades) e os indígenas, aldeados ou integrados à vida citadina. Por mais que esse choque, tenha historicamente ocorrido, isso se deu por um propósito de poder. Há, porém, na atualidade, um outro propósito que se impõe no horizonte de nossa existência como espécie humana, qual seja: o de nos obrigar a mudar a nossa forma de pensar para realizar o encontro das diferenças entre esses dois mundos habitados por nós, os humanos, dentro do Planeta. E isso passa inevitavelmente pelo respeito ao meio natural, pela preservação das florestas, pelo adequado manejo dos recursos hídricos, pelo cuidado com o solo e pela compreensão dos movimentos dos corpos humanos. Por conseguinte, passa também pela valorização da forma de pensar dos povos indígenas, do povo negro aquilombado que são detentores da “tecnologia” de preservação do ambiente natural e produtores de uma episteme preciosa, a qual constitui a base daquilo que erguemos, ao que tempo em que fomos destruindo algo para além de nós mesmos.

Em atenção a isso, é, no mínimo, doloroso, para não dizer odioso pensar nos discursos produzidos pelo Presidente que desgoverna o Brasil e que, ainda, recebe o apoio histriônico de uma minoria da população desprezando a cultura indígena, desqualificando-os os seus representantes, debochando dos negros,  recusando e negando os benefícios da vacina a todos, todas e todes.  Ele ignora a ação do vírus negligenciando a gestão da Pandemia, aplaude e estimula a devastação da Floresta, o que de uma só tacada, projeta o extermínio dos povos que nela habitam e o extermínio da população urbana. Claramente essas são atitudes que estão fora do horizonte de garantia de atributos humanos e instala como que um processo de redução da nossa existência ao estado bacteriano; inflama a Terra, podendo levá-la a nos cuspir e assim nos subtrair a possibilidade de participar da dança cósmica, à qual Ailton Krenak fez referência na sua entrevista.

VIVA A MÍDIA ALTERNATIVA…  INDEPENDENTE

Fácil ver, mais do que nunca, que a nossa atenção enquanto público interessado em obter informações para compreender os fenômenos do  tempo presente e promover as mudanças que desejamos na nossa vida, teve uma significativa guinada porque também engendramos, como vaticinou Milton Santos, a construção de uma mídia designada como alternativa. É nesse espaço comunicacional que ora se produz o sentido de uma nova  vida urbana e agrega outras formas de vida como a indígena. É esse espaço comunicacional o espaço de todas as tribos. O programa de entrevistas Bom para Todos da TVT com a mediação de Gustavo Conde (que tem o seu próprio canal), em substituição Talita Galli, durante o recesso dela, foi muito marcante, ao incluir nomes de muita envergadura no cenário nacional e internacional. Pessoas que dizem e fazem coisas instigantes em virtude do seu ofício cotidiano, outras que lançam ideias intelectualmente gestadas fora da caixa.  São muitos os canais de mídia independente e crítica que merecem a nossa atenção por manifestarem a defesa da dignidade da pessoa humana, um apreço pela democracia e a percepção de contradições da própria democracia. Cito alguns deles: Opera Mundi, canal GGN, 247, Mídia Ninja, Grupo Perrogativas, dentre tantos…

O acesso ao conteúdo produzido pelas mídias alternativas sérias, responsáveis e comprometidas com as maiorias minorizadas e as minorias invisibilizadas não apenas nos permite obter diversidade de informação como é capaz de fazer despertar o vulcão que crepita sob os pés do capital opressor e sufocante da liberdade que não nos pode ser tirada: a de pensar com a nossa própria cabeça e a partir da nossa própria realidade. Agora, não nos sendo possível abolir as plataformas digitais que vieram pra ficar e vão pouco a pouco abocanhando a mídia convencional e multiplicando a mídia alternativa, e mesmo ambas estejam sob império do capital, cabe-nos profissionais de mídia e público dobrar os algoritmos aos nossos propósitos. Sejamos, portanto, sujeitos emancipados e para tanto insurreitos quando atacados na nossa dignidade!

Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça – aposentada – MPPE e membra do Coletivo Transforma MP


[1] A felicidade se acha é  em horinhas de descuido…verso de João Guimarães Rosa, no “Barra da Vaca”.

O Direito Penal e A Cultura do Ódio: em homenagem a Jacson Zílio

Por Elmir Duclerc no Conjur

Nos últimos anos, termos como garantismo e punitivismo transbordaram do ambiente acadêmico para outras áreas da esfera pública, na mesma proporção em que o aparato punitivo começou a ser mobilizado, como nunca visto por esta geração, como arma disponível no embate político.


Para quem milita na academia e no sistema de justiça, dá aflição ver como ditas expressões, que já são especialmente problemáticas (problematizáveis, pelo menos) no ambiente acadêmico, produzem tanta confusão quando são tratados pela mídia tradicional, alternativa e influenciadores de todo gênero.


Já disse em outro lugar que a academia jurídica não escapa dessa urgência (da ciência, em geral) de se debruçar sobre a própria forma de se comunicar com a sociedade e de disputar o sentido das coisas com outros discursos com pretensão de verdade, que se multiplicaram com o advento das mídias digitais e sobretudo das redes sociais.


Por enquanto, o que me ocorre para colaborar nessa tarefa é, primeiro, tentar traduzir da forma mais clara possível essas expressões, para que possam ser bem entendidas por qualquer leitor com um mínimo de boa vontade, ainda que sem (de)formação jurídica. Além disso, pretendo tentar identificar suas possíveis raízes, introjetadas na cultura popular e que se relacionam com as questões do “se” e do “porque” um ser humano deve ser castigado.


O Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli , como se sabe, resulta de uma profunda revisão do direito penal construído no Iluminismo (e hoje positivado nas constituições ocidentais e documentos internacionais de Direitos Humanos). Todo o seu edifício teórico está claramente fundado na possibilidade de uma concepção racional de pena, que recusa a ideia de “fim em si mesmo”, isto é, de mera retribuição do mal, própria de sistemas mágicos e religiosos de solução de conflitos. Ao contrário, a sua fundamentação radicaria em sua utilidade para a pacificação social: desestimular a violência, com a ameaça de pena e, ao mesmo tempo, desestimular a vingança privada e desproporcional da vítima e/ou sua família contra o agressor. Daí decorreria, ademais, a elaboração de um sistema de garantias jurídicas que teria a função precípua de conter a punição dentro do mínimo necessário para alcançar esses objetivos.


A construção teórica do professor Italiano, como se sabe, encontrou solo fértil no Brasil e foi capaz de dividir, de um lado, defensores quase religiosamente comprometidos e críticos não menos determinados, quase sempre animados por uma espécie de rejeição atávica e ignorante a qualquer perspectiva de redução da violência punitiva.

Muito recentemente, entretanto, temos visto surgir outro tipo de reação, mais inteligente e sofisticada, vinda de autores que se deram ao trabalho de estudar a obra de Ferrajoli e reconhecem os seus méritos, mas reclamam contra o que chamam de sua utilização hiperbólica, defendendo, em contrapartida, um certo garantismo penal integral.

Em suma, o que se sustenta é que o garantismo, tal como recepcionado no Brasil, estaria dando excessiva ênfase à proteção de direitos fundamentais individuais em detrimento de interesses públicos e coletivos, produzindo uma elevada e indesejável impunidade.


Os adeptos dessa última vertente, de um modo geral, recusam veementemente o título de punitivistas , que avaliam como depreciativo, e reclamam ser os únicos que, desde preocupações diametralmente opostas às de Ferrajoli (contenção do poder punitivo x ampliação do poder punitivo) realmente entenderam sua obra, apesar de já terem sido publicamente desautorizados pelo próprio autor.


Há, contudo, um aspecto da sua engenhosa e ousada construção teórica que merece ser estudado: de forma colateral e contingente, ela põe em evidência a fragilidade hermenêutica das garantias e da própria ideia de direito penal “mínimo”, ou, n’outras palavras, expõe a suscetibilidade do discurso garantista a mecanismo de neutralização, mediante processos de inversão ideológica . Pense-se, por exemplo, nas dificuldades para a interpretação do axioma que contempla o princípio da lesividade, também conhecido como princípio da insignificância (nulla actio sine injuria), para afastar a punição de condutas formalmente previstas como crime, mas que não chegam a lesionar de maneira significativa o bem jurídico supostamente protegido pela norma penal: o relativo consenso em torno de sua racionalidade não impede que até hoje os tribunais mais elevados do país continuem a confirmar condenações contra gente miserável, por furto de quinquilharias em estabelecimentos comerciais .

De igual modo, pense-se no menoscabo ao princípio do estado de inocência, base fundante do processo penal moderno, quando se pretende sustentar a “prisão em segunda instância”, mesmo contra a letra expressa da Constituição Federal. Por fim, pense-se nas “conquistas” de um certo punitivismo da “esquerda social” , que tem se animado a mobilizar o poder punitivo contra pessoas acusadas de praticar racismo, homofobia, violência doméstica etc.


Para além dessas fragilidades hermenêuticas, a sustentação racional da pena engendrada por Ferrajoli, examinada de lupa, revela os seus próprios limites “racionais”. Isso porque, embora rejeite a lógica da retribuição, denunciada como “mágica” ou “religiosa”, acaba voltando a ela, para reconhecê-la, ainda que pretenda limitá-la. Os seus críticos abolicionistas e simpatizantes da justiça restaurativa, por exemplo, poderiam afirmar que não sobra espaço, no seu utilitarismo, para o “perdão” da vítima. Os seus críticos “de esquerda”, poderiam argumentar com a necessidade “simbólica” de punição rigorosa dos criminosos do patriarcado e da branquitude, invocando uma epistemologia “antirracista” ou “feminista” e até mesmo denunciando o “eurocentrismo colonizante” de uma teoria produzida por um homem branco e italiano.


Descrito (da forma mais clara e sintética que consegui) o cenário das disputas mais ou menos “acadêmicas” em torno em torno das questões do “se” e do “porque” punir, animo-me agora a dar o passo mais ousado: tentar dialogar justamente com categorias que escapam à razão, exatamente no limite em que Ferrajoli (re)encontrou o conceito de “vingança” ou “retribuição”, e onde alguns pretendem acrescentar o “perdão”.


Isso porque ditos conceitos, com os quais trabalhamos diuturnamente na academia e no sistema de justiça, remetem, antes de tudo, à base da mitologia judaico-cristã que, como chave de compreensão da realidade, precede (historicamente) a racionalidade ocidental e opera em camadas mais profundas da psique humana, a ponto de ser muitas vezes ignorada por aquele que acha (como Ferrajoli) que argumenta dentro dos limites da razão.


Em um formidável discurso de apoio a uma chapa para a OAB/SP, o amigo e extraordinário jurista Pedro Serrano traçou brilhantemente a trajetória que, segundo ele, “começou com Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso. Todos somos filhos do mesmo pai. Essa ideia teológica trouxe, muitos séculos depois, na sua secularização, a ideia de que todos, por sermos iguais, por termos uma dignidade mínima, humana, advinda do fato de sermos filhos de Deus, teríamos direitos naturais.”


O processo de “secularização”, portanto, traz consigo a pretensão de dar contornos racionais a uma mitologia que se constituiu bem antes dela em torno dos conceitos acima referidos (crime, castigo e perdão), todos radicados, em última análise, na dicotomia “ódio” (que é constitutivo da ideia de vingança) e “amor” (que parece também compreendido na ideia de “perdão”), e que constituem, no nível dos afetos , as bases últimas para que alguém decida o que fazer com aquele que agrediu um semelhante.


No fundo, são esses os sentimentos que mobilizam, no plano da razão, rigorosamente todos os discursos sobre a questão penal que estão disponíveis, tanto na academia quanto nos espaços “leigos” da esfera pública, e que explicam a recusa dos discursos punitivistas, mobilizados pelo ódio de uma vingança a qualquer custo, a aceitarem os argumentos mais elementares e evidentes, no plano da razão. Até a própria mensagem cristã, como estamos vendo diariamente, sofre com as mais absurdas deturpações para estar a serviço do ódio.


A minha passagem como visiting scholar pelo Seminário Teológico de Princeton, em Princeton-NJ, durante o ano de 2019, colocou-me em contato com uma linha de reflexão teológica que, em certo sentido, parece até mais atenta à tarefa decolonial do que muitos setores do pensamento social contemporâneo. Trata-se de uma teologia “antimissionária”, preocupada em reparar os pecados colonizadores da cristandade ocidental nas américas e na África e abrir-se para um diálogo em pé de igualdade com outras tradições, outras mitologias e mesmo com a ciência.


Lá aprendi que é justo nessas zonas de fronteira em que a matriz (eurocêntrica) colonial de poder (que domina e controla tudo o que produz na academia e na esfera pública) é mais frágil e pode ser “quebrada”. Em termos de poder político e poder punitivo, não será reforçando os discursos de ódio e de vingança (instrumentos prioritários do processo de colonização, não é?) que poderemos evoluir como comunidade humana. Ao contrário, é preciso uma atitude básica de esperança (ainda que utópica) em mecanismos não violentos de solução de conflitos.


Além disso, talvez seja necessário olhar com mais cuidado para a mitologia cristã, que nos constitui inevitavelmente, e para as suas áreas de contato com outras mitologias, bem como com a ciência, pois é também nessas zonas de “fronteira” que será possível encontrar elementos para seguir tentando construir formas de convivência social baseadas no amor ou, se preferirem, num sentimento de empatia, de abertura para o outro e para o reconhecimento da sua dignidade, na mesma proporção em que desejamos que nos seja reconhecida .


O perdão, por exemplo (que não é exclusividade da mitologia cristã), é a irrupção de um “terceiro” que se coloca como alternativa entre a lógica crime-pena, que constitui o cerne de uma racionalidade penal moderna (inclusive a que orienta o discurso racional e legitimador de Ferrajoli), tão disfuncional, em seus desastrosos resultados práticos e tão destrutivamente disponível como arma de disputa política como qualquer outra racionalidade de tipo técnico-instrumental que a modernidade desenvolveu e que, levada às últimas consequências, ameaça seriamente a vida em todo o planeta, para o próprio homem e também para uma parte considerável dos seres vivos com os quais o dividimos a Terra.

Elmir Duclerc é promotor de Justiça na Bahia, associado ao coletivo Transforma MP, mestre e doutor em Direito, professor de Processo Penal da UFBA e ex-presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP.


[1]https://www.conjur.com.br/2021-set-29/elmir-duclerc-assim-ficar-silencio2#:~:text=No%20caso%20do%20direito%20ao,decis%C3%B5es%2C%20para%20o%20grande%20p%C3%BAblico.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Madrid: Trotta. 2008.

[3] FISCHER, Douglas: O que é garantismo (penal) integral? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PALELLA, Eduardo (Org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e a aplicação do modelo garantista no Brasil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 30-77.

[4] Ninguém jamais disse, contudo, que tenha algo de necessariamente pejorativo, bastando, por exemplo, que o termo possar designar todos aqueles que, por qualquer razão, sentem-se mais incomodados com os efeitos da falta de punição do que com o seu excesso, e lutam por mais punição como uma bandeira, como algo desejável. Mas é curioso que quem cabe nesse perfil é quem normalmente se sente ofendido.

[5] https://www.conjur.com.br/2021-abr-24/entrevista-luigi-ferrajoli-professor-teorico-garantismo-penal

[6] Sobre o tema, ver BIZZOTO, Alexandre Bizzoto. A inversão ideológica do discurso garantista: a subversão da finalidade das normas constitucionais de conteúdo limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[7] https://www.conjur.com.br/2021-dez-27/nunes-marques-nao-aplica-insignificancia-furto-chicletes

[8] Aproveito aqui o conceito cunhado por Carlos Veiner, citado por Maria Lúcia Karam (Karam, maria Lúcia. A “esquerda punitiva” vinte e cinco anos depois.São Paulo: Tirant lo Blanc,2021, p. 16

[9] https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10224426089652987&id=1028564340&sfnsn=wiwspwa

[10] E aqui surge um oceano de possibilidades de encontro com a psicanálise, não é?

[11] Sobre a relação entre a ideia de punição e a mitologia judaico cristã: Girad, René. A violência e o sagrado; tradução Martha Conceição Gambini; revisão técnica Edgard de Assis carvalho. São Paulo: UNESP, 2008

[12] Não poderia deixar passar a oportunidade de expressar, publicamente, a gratidão ao meu supervisor no programa, um dos mais notáveis intelectuais com quem já tive a oportunidade de dialogar, Raimundo Cesar Barreto Junior, professor associado do Seminário Teológico de Princeton, responsável pela disciplina World Christianity, bem como aos colegas Frederico Piper e Elisa Santos (ambos professores do Depto. de Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora) e sua adorável Helena. Foi realmente um enorme prazer conviver e aprender com vocês.  

[13] Uso o conceito de fronteira nos termos propostos por Glória Anzaldúa (ANZALDUA, Glória. Borderlandas – the new mestiza – La frontera. San Francisco: Aunt Lute, 1987).

[14] No sentido cunhado por Quijano (QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasificacion social. Journal of world-systems research, v. 11, n. 2, p. 342-386) e Mignolo (Mignolo D. Walter et al. On decoloniality : concepts, analytics, práxis. Durham : Duke University Press, 2018).

[15] O “negacionismo” punitivista, inclusive, normalmente permite que os seus acometidos não tenham qualquer pudor em negar expressamente aos outros algo que reclamam insistentemente para si, quando lhes convém, como bem pontuado por Lenio Streck: https://www.conjur.com.br/2019-dez-09/lenio-streck-dallagnol-prescricao-januario-delacao    

[16] A falência do modelo repressivo pode ser medida pela famosa decisão do SFT que declarou o estado de coisas inconstitucional”, pelo surgimento de poderosas organizações criminosas no próprio ambiente do cárcere, bem como pelos altos índices de reincidência.

O Direito Penal e A Cultura do Ódio: em homenagem a Jacson Zílio.


Esse texto já estava pronto, quando fui atropelado pelo impactante artigo do amigo e colega, Jackson Zilio, promotor de justiça em Curitiba-PR, e o seu relato visceral sobre como a atuação das agências de punição, em sua racionalidade-irracional, produziu a morte lenta e dolorosa do seu irmão. Deveria ser leitura obrigatória para quem pretende seguir a carreira do MP, ou mesmo aqueles que não se conformam com os descaminhos da instituição, em grande medida capturada por uma triste cultura do ódio. Saravá, Jackson Zílio! (https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/levaram-meu-irmao-por-jacson-zilio/)

Esse texto já estava pronto, quando fui atropelado pelo impactante artigo do amigo e colega, Jackson Zilio, promotor de justiça em Curitiba-PR, e o seu relato visceral sobre como a atuação das agências de punição, em sua racionalidade-irracional, produziu a morte lenta e dolorosa do seu irmão. Deveria ser leitura obrigatória para quem pretende seguir a carreira do MP, ou mesmo aqueles que não se conformam com os descaminhos da instituição, em grande medida capturada por uma triste cultura do ódio. Saravá, Jackson Zílio! (https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/levaram-meu-irmao-por-jacson-zilio/)

Coletivo Transforma MP apoia decisão do STJ em relação ao HC 705.522/SP

Por Marina Azambuja

O Coletivo Transforma MP emitiu nesta segunda, 17, uma nota favorável ao Habeas Corpus n.º 705.522/SP proferido pelo Superior Tribunal,  durante o julgamento, cujo acórdão faz um apelo ao Ministério Público, para que este “deixe de atuar como mero despachante criminal, ocupado simplesmente de pleitear o emprego do rigor penal”.

A sentença refere-se à denúncia do Ministério Público que acusava um indivíduo de tráfico de drogas por portar 1,54 grama de cocaína e R$64 no bolso, quando foi abordado pela Polícia. 

O caso chegou à segunda instância, a qual o MP-SP acusou o suspeito como traficante e conseguiu a pena de quase sete anos de reclusão. 

Para os integrantes do Coletivo Transforma MP, a atuação do Ministério Público tem colaborado para diversos avanços na democracia brasileira, porém na “seara criminal, insiste na infundada política de “lei e ordem” mesmo diante do fragoroso insucesso verificado ao longo das últimas décadas.”

Para o Coletivo o sistema penal vigente no país, é um instrumento de criminalização da população em estado de vulnerabilidade, acusando negros e pobres em casos insignificantes ou sem a comprovação da prática de um crime consumado. “Afinal, o uso desmedido do sistema penal com a acomodada anuência do titular da ação penal pública tem favorecido a criminalização de condutas irrelevantes praticadas inexoravelmente como reflexos da miséria e da pobreza a que boa parte da população brasileira se encontra submetida.”

A nota também destaca que barrando práticas abusivas, seria possível que as instituições atuantes no sistema penal possam evoluir, promovendo uma justiça mais humana, igualitária e justa.  “Ao contrário, caso repelisse processualmente tais práticas e, consequentemente, favorecesse uma política criminal mais humana, igualitária e justa, as instituições em pouco tempo corrigiriam os rumos e aprimorariam todo o complexo sistema penal do qual participam.” 

Coletivo Transforma MP manifesta-se favorável à vacinação infantil contra a Covid-19

Por Marina Azambuja

O Coletivo Transforma MP manifestou-se nesta quarta-feira (19) a favor da vacinação em crianças entre 5 e 11 anos, como ferramenta fundamental para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 no país. 

De acordo com a nota emitida pela entidade, as sequelas causadas pela infecção ameaçam a vida e a saúde da população. A doença já registrou o óbito de mais 300 crianças e mais de 6 mil casos entre entre o público de 5 a 11 anos, tornando-se a segunda maior causa de mortalidade infantil, e a patologia que mais mata entre as doenças que possuem vacinas. 

Os membros do Coletivo Transforma MP destacam que é dever do Estado promover políticas públicas para prevenir enfermidades que possam atingir o público infantil, e que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a vacinação obrigatória, caso esta seja recomendada pelas autoridades médicas.  

Veja a nota completa!

Levaram meu irmão

Por Jacson Zilio no GGN

A primeira vez que levaram meu irmão foi pela ação insensível de “colegas” algozes do Ministério Público. Sob o argumento ilusório de supostos delitos de usurpação de função pública ou de prevaricação – enxergados pela repressão no exercício regular de direitos contratuais de prestação de serviços médicos cooperados, vigentes desde o ano de 2013 em São Miguel do Iguaçu/PR -, invadiram a casa do bioquímico Charles Zilio, Diretor Administrativo da CESMED, já na primeira hora da manhã, de armas em punho, diante dos pais idosos e dos filhos menores. Ninguém sabia o que buscavam e nada levaram. Deixaram, contudo, assombros, traumas e medos descomunais. Era o ano de 2015. Naquele tempo, os métodos violentos do lavajatismo, de extorsão pela pena aplicada em espetáculos midiáticos e de humilhação pública desnecessária, faziam vítimas e estavam em plena expansão. A prisão durou poucas horas, por força de liminar do Tribunal de Justiça do Paraná, mas foi suficiente para provocar estragos pessoais incomensuráveis e duradouros. Mais de 5 anos depois, por unanimidade, o mesmo tribunal absolveria meu irmão, julgando integralmente improcedentes todas aquelas levianas acusações criminais. A imagem pública, contudo, jamais se restabeleceu por completo, nem se extinguiu o sofrimento do acusado – afinal, uma justiça tardia não desfaz a agressão de uma acusação injusta.

Mas antes dessa decisão do TJ/PR, que corrigiu um equívoco judicial, ainda estava ativo o vírus da Covid e do law fare brasileiro. O primeiro matava por asfixia, incompetência e charlatanismo, sem nenhuma contenção pelo governo negacionista; o segundo, de forma não menos dolorosa, intervinha em processos políticos concretos nas vésperas de pleitos eleitorais, para posicionar o direito penal como arma seletiva de perseguição e linchamento midiático, sempre aliado ao sensacionalismo barato da imprensa, com notícias distorcidas ou maldosas. Eram tempos ásperos.

Nesse momento é que levaram meu irmão pela segunda vez. Amparados por reportagens e fotos de momentos privados postadas em redes sociais, dezenas de homens da polícia federal, comandados por algum acéfalo em busca de fama, deslocaram-se ostensivamente para uma pequena cidade no interior paranaense, mascarados, armados e acompanhados daquela imprensa ávida de espetáculos policiais. Explodiram os portões da casa dele e invadiram o local com violência, novamente na presença da esposa e das crianças. Ninguém sabia o que buscavam e nada levaram. Repetiram isso em outras residências. Levaram médicos, funcionários, empresários e políticos locais. Alardeavam bárbaros crimes licitatórios e o mal cósmico da corrupção, com apropriação de valores imaginários, tudo difundido para gerar uma falsa imagem de gravidade dos fatos. Corrupção, associação criminosa, lavagem de dinheiro e outros delitos integravam o combo perfeito que mobilizou algumas agências penais autoritárias da contemporaneidade. Mais uma vez, a barbárie parece não ter limites. Essa prática, similar àquela sofrida pelo reitor da universidade de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, já estava normalizada em segmentos conhecidos do mundo judicial. O poder punitivo medieval parece sobreviver na atitude de promotores vingativos e de juízes açodados ou dóceis. A histeria popular, fomentada pela comunicação irresponsável de deformadores de opinião, assume dimensão assustadora.

Na sequência do último episódio, como irmão da vítima e professor de direito penal, observei a progressão de medidas judiciais no âmbito de um setor conhecido da justiça federal: manipulação de competência penal inexistente, prisões cautelares usadas como antecipação de condenação ou para determinar colaborações, extorsões patrimoniais camufladas de fiança calculada sobre prejuízos fantasiosos, investigações policiais intermináveis e invasivas de direitos individuais, restrições de uso de bens, proibições de contratos com o poder público e cautelares decretadas para execução da morte civil. Em suma, a “investigação policial” e as medidas cautelares pessoais e empresariais, estendidas a familiares, empregados e amigos que nada sabiam de contratos públicos, converteram-se em reais penas criminais antecipadas. Essas medidas cruéis, semelhantes à morte e às torturas físicas, também são penas criminais, ainda que sob forma camuflada da legalidade, ou conforme procedimentos prévios do devido processo legal. A inversão do princípio da presunção de inocência é o sinal mais claro da farsa ideológica que move a sanha punitiva do atual processo penal brasileiro.

O resultado inevitável pareceu no lado mais frágil, na realidade de um homem de carne e osso, um empresário honesto exposto ao linchamento público, midiático e judicial, julgado e condenado sem processo, sem contraditório, sem acusação formal por denúncia regular. Nesse novo contexto – e antes do julgamento de habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça, fundado na incompetência da justiça federal e na consequente anulação de todos os atos decisórios -, levaram meu irmão pela terceira vez, agora de modo definitivo. Desta vez, em uma ambulância, com alguns homens de branco. Tinha 49 anos, esposa, duas crianças e pais idosos. Infartou. Não resistiu ao método brutal do poder punitivo. Morreu sem dinheiro e sem poder se defender de acusações difusas ou vazias, formuladas a esmo em investigações policiais truculentas. Um ano e meio de sofrimento. Um ano e meio de tortura psicológica. Os bons amigos e familiares ficaram firmes, apesar de que, como já perguntou Cecília Meireles e cantou Chico Buarque, “quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece”? Como disse Brecht, “quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis. Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.”

O utilitarismo autoritário do estado policial, com sua política penal de derramamento de sangue e espalhamento cruel de dor, venceu mais uma vez. Pelas mãos de “palhaços togados submissos às ordens das polícias”, triunfou a desrazão do “direito penal vergonhoso” de que fala Zaffaroni. Perdeu o direito penal liberal. Perdemos todos nós.  Resta o alerta para essa gente que vive do dano que causa aos outros que, fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece (Brecht), especialmente a saudade.

Por Jacson Zilio
Doutor em Direito Penal e Criminologia/Universidad Pablo de Olavide/Espanha
Promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná
Membro do Coletivo Transforma MP

Olhe para o Ser Humano

Por Leomar Daroncho na Rede Brasil Atual

“Não Olhe Para Cima” teria custado 75 milhões de dólares, envolvendo um elenco com 5 vencedores do Oscar. A crítica rotulou o filme como satírico, cômico, trágico e até ficção científica. A sinopse: “Dois astrônomos descobrem um cometa mortal vindo em direção à Terra e partem em um tour midiático para alertar a humanidade. Só que ninguém parece dar muita bola”.

O formato usado pelo diretor Adam McKay pareceu-me excessivamente longo, enfadonho e barulhento, com enredo semelhante ao de desenhos animados da década de 1980 em que um super-herói tenta salvar a Terra de alguma ameaça espacial. O desencanto com o roteiro e com a exposição caricata de duas musas do cinema deve ser minoritário, já que o filme encabeça a relação dos mais populares no serviço de streaming no Brasil. Agrada-me mais a Cate Blanchett de “Conspiração e Poder”, que aborda o jornalismo e o jogo de interesses.

O ator Leonardo Di Caprio esclareceu que o filme seria “uma alegoria sobre as mudanças climáticas”. Seu personagem representaria cientistas climáticos “que tentam falar sobre a urgência do assunto, mas são relegados às últimas páginas dos jornais”.

Dito isso, considerando a profusão de memes e crônicas relacionando atores com personagens da vida real: negacionistas, deslumbrados, alucinados, desonestos, oportunistas, predadores, farsantes, perversos, irresponsáveis, toscos, cruéis e panfletários, identifico problemas na trama que podem comprometer a compreensão acerca das reais ameaças ao planeta e à vida humana na Terra.

É comum que um filme de catástrofe escale personagem que alerta, implora por atenção e é ignorado. Se pretendia destacar o papel dos cientistas climáticos, talvez um protagonista menos deslumbrado e caricato tivesse contribuído para a causa. Além disso, há pelo menos dois problemas na origem da fictícia ameaça ambiental.

Primeiro: com exceção da ficção e das alucinações periódicas de seitas e malucos, não há notícias de alarmes científicos sérios quanto a ameaças climáticas externas, que subitamente aniquilariam a vida na Terra. Ao contrário, há fundadas preocupações com as ameaças decorrentes da ação humana.

A preocupação ambiental levou o Conselho de Direitos Humanos da ONU a reconhecer, em outubro de 2021, que o meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano. A decisão é considerada um passo importante para a construção de um planeta mais saudável e seguro.

Não se imaginavam limites à exploração do meio ambiente, tido como fonte inesgotável de recursos, até a década de 1960. Coube à pacata e ponderada bióloga marinha Rachel Carson o papel de precursora da consciência ambiental moderna. Seu livro: “A Primavera Silenciosa”, de 1962; despertou a preocupação para os danos ambientais causados por pesticidas sintéticos. Carson foi atacada e desqualificada pela poderosa indústria química, sendo vítima de uma campanha midiática de difamação. Há um bom documentário da NetFlix sobre Rachel Carson: “American Experience”.

A questão ambiental só entrou na pauta dos líderes mundiais em 1972. Está completando 50 anos a Declaração de Estocolmo, considerada um Manifesto Ambiental da ONU. Contém 19 princípios e registra a preocupação com a ignorância e a indiferença das consequências ambientais das ações humanas:

“Através da ignorância ou da indiferença podemos causar danos maciços e irreversíveis ao meio ambiente, do qual nossa vida e bem-estar dependem; instigando a difusão do conhecimento e de ações mais sábias como roteiro para a conquista de uma vida melhor, agora e no futuro, com um meio ambiente em sintonia com as necessidades e esperanças humanas”.

A partir daí, vieram muitos encontros, documentos e normas internacionais, tais como: a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1983; o Relatório “Nosso Futuro Comum”, de 1987, com o conceito de desenvolvimento sustentável – incorporado à nossa Constituição de 1988; a Conferência sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92, que adotou a “Agenda 21”, para afastar o mundo do modelo de crescimento econômico, visto como insustentável; a Rio+10, em 2002; a Rio+20, em 2012; e a Cúpula do Desenvolvimento Sustentável de 2015, em que os países definiram os novos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – Agenda 2030.

A ação humana é a preocupação central das discussões, em relação inversa ao mote do filme. O homem ataca o meio ambiente e, na sequência, sofre as consequências do desequilíbrio ambiental. O encontro mundial mais recente COP26, na Escócia, em 2021, foi motivado pelo preocupante Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que retrata eventos climáticos extremos, sem precedentes e com impactos devastadores.

O segundo problema no enredo, caso de fato pretenda retratar uma ameaça ambiental, está na ocorrência súbita da catástrofe, simultaneamente para todo o Planeta. A tragédia ambiental expressa-se de forma silenciosa e gradual, com imagens de esporádicos eventos impactantes, localizados.

O Brasil vem sofrendo reiteradamente com eventos pontuais dessa natureza: incêndios; desmatamento; tempestades de areia, envenenamentos; crise hídrica; enchentes e deslizamentos; secas; e rompimentos de barragens. Também há eventos trágicos silenciosos, na forma de moléstias crônicas, diluídos e invisibilizados pela subnotificação, pela ignorância e pela ausência de imagens chocantes, como se dá com as vítimas de acidentes de trabalho e os contaminados por venenos de uso agrícola, na condição de trabalhadores, habitantes de fronteiras agrícolas ou consumidores de produtos com resíduos. São situações em que a vida na Terra acaba para as vítimas, em tragédias particulares, anônimas e instantâneas, ou converte-se em agonizante limitação incapacitante suportada pela Previdência.

Em alguns casos, mesmo a ameaça que vem de cima está imediatamente ligada à ação humana, como se dá na pulverização aérea. Nesse tópico, registre-se a importância da Lei Zé Maria do Tomé — Lei nº 16.820/2019 — proibindo o despejo de veneno por aviões no Ceará. A Lei está sendo questionada no STF (ADI 6137), dando à nossa Corte Constitucional mais uma oportunidade de concretizar o compromisso brasileiro com os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

Capitulando a interesses econômicos imediatos e ignorando evidências epidemiológicas, a sociedade vem permitindo que a indústria química obtenha autorização para um volume colossal de veneno. No último dia de 2021 foram liberados mais 51 biocidas (são 1.552 agrotóxicos nos últimos 3 anos). Não se observa presteza semelhante na revisão que deveria levar à proibição de produtos banidos do mundo civilizado. Num dos casos, foi autorizado o herbicida Dicamba, contrariando inclusive o Agronegócio que apontou que o produto foi proibido pela Justiça dos EUA, por ser muito perigoso para o meio ambiente.

No mesmo sentido, de forma açodada, o Governo pôs em revisão a NR36, Norma que dispõe sobre o Meio Ambiente do Trabalho seguro nas atividades de frigoríficos. O setor se destaca entre os que mais geram acidentes de trabalho. O Ministério do Trabalho reconhece que ocorreram 23.320 mil acidentes em 2019 (90 acidentes por dia). São 85.123 eventos em 4 anos. Além dos sequelados sobreviventes, a vida na Terra acabou para 64 trabalhadores que morreram em frigoríficos no período. Os dados reais da ação humana são bem mais graves, pois o Governo admite que a subnotificação no setor é superior a 320%.

Numa leitura obtusa, que considera as normas de proteção como meros entraves ao desenvolvimento, setores econômicos pressionam para flexibilizar a legislação ambiental. Ignoram ou são indiferentes às consequências do desmonte do sistema de preservação, como no caso da Lei 14.285, aprovada em 2021, que facilita a ocupação das margens de rios nas áreas urbanas: prenúncio de novas tragédias para as populações ribeirinhas.

Outra ameaça muito grave tramita no Senado, estimulando comportamentos predatórios. O Projeto de Lei nº 2159/2021, já aprovado pela Câmara dos Deputados. A proposta contempla inclusive a possibilidade de obtenção de Licença Ambiental por mera declaração do empreendedor, eliminando ou  fragilizando a proteção ao meio ambiente. Espera-se que o Senado Federal, na função de Casa Revisora, impeça que o conjunto de dispositivos lesivos à saúde humana e ao meio ambiente prospere. Desperta preocupação semelhante a proposta de alteração do Código de Mineração, que não deveria ignorar o aprendizado das tragédias que deram cabo a centenas de vidas em Mariana e Brumadinho.

Há vários ataques ao meio ambiente sendo planejados e praticados. A questão requer escolhas, da sociedade e das instituições, entre os interesses envolvidos e as consequências decorrentes. Essa ponderação está numa das frases intrigantes do filme de McKay, “A gente sempre tem escolhas. Às vezes só precisa optar por uma boa”.

O fictício asteroide espacial funcionou na fábula. Na vida real, há sinais em abundância de que o Ser Humano é o algoz e a vítima, mas também pode ser a solução. As escolhas são humanas; as consequências, também. Portanto, olho no Ser Humano e nas Instituições Humanas!

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP

Me deixa te amar?

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Meu corpo pede uma escrita de gritos que possa dar conta de alguma retrospectiva de 2021, mas “fracassar é condição de quem escreve”, já disse a jornalista Eliane Brum em Banzeiro ÒKÒTÒ, uma viagem à Amazônia centro do mundo, livro lançado nesse último ano e que é mais do que a leitura do testemunho histórico, político e social de como a humanidade está colocando fim a ela mesma, com direito a palpitações bem mais interessantes e vertiginosas do que as provocadas pela comédia – catástrofe recentemente lançada, “não olhe para cima”, de Adam Mckay.

Ao escolher se mudar para a Amazônia, Eliane a coloca no centro do mundo, fundindo povos e florestas, vidas humanes e não humanes. É seu corpo inteiro, em movimento, que menstrua, tem diarreia, deseja, perde, dói e busca uma nova geografia de sentidos de vida que atravessam, sem dó, nosso corpo de leitor, esburacado com sua escrita. Não é possível sair igual e sem cicatrizes da imersão no seu banzeiro coletivo e singular.

            Me reconheço nessa escrita visceral, no não lugar, na insuficiência e, sobretudo, na violência que nossos corpos brancos, de classe média e de mulheres provocam e sofrem em um mundo que foi capaz de criar um 2021 como o que vivemos.

Começamos o ano com as cenas absurdas de famílias correndo para buscar oxigênio para seus amores não morrerem asfixiados nos corredores abarrotados dos hospitais de Manaus e terminamos com idosos, na Bahia, se agarrando em postes, com água até o pescoço, enquanto sua vida e história submergia na água enlameada do descaso.

            De janeiro a janeiro, em nosso país, faltou ar para amar até o mundo acabar. Mais de 400 mil pessoas que amavam e eram amadas por alguém morreram de COVID, juntando-se às 200 mil que haviam morrido em 2020.

            Os que não morreram asfixiados ou afogados, também perderam o ar e a vontade de amar, tentando explicar a colegas de trabalho, vizinhos e parentes, que hidroxicloroquina curando COVID era um delírio coletivo capitaneado por alguém capaz de defender torturador e produzir escárnio da dor. Perdemos o ar quando vimos que a carta da Pfizer não teve resposta do governo e que a dose de vacina da Covaxin seria quatro vezes mais cara que a da Fiocruz. Asfixiamo-nos com a notícia de que uma operadora de saúde formada por uma rede imensa de hospitais usava cobaias humanas e ameaçava, de demissão, médicos que não prescreviam o famigerado kit covid. Não era “só” ignorância, desespero e negacionismo. Sempre foi, também, ganância. 

            Mas nem a palavra dos melhores cientistas do Brasil e do mundo, nem uma CPI que terminaria apontando a prática de 09 crimes pelo Presidente e seus filhos, nem a Amazônia em chamas, nem as palavras sádicas diariamente cuspidas pelo governo do horror, pareciam afetar uma massa pronta para mitificar o grotesco ético e estético em que nos tornamos nos últimos anos.  

             Em março e abril de 2021, quando atingimos a marca de 3000 vidas perdidas por dia, já estávamos exaustos. Sem virada, o ano “novo” trocou o desespero de 2020 pela sensação devastadora de um profundo cansaço físico e mental.

            O ano só começava e ainda teríamos que aguentar desfiles militares com tanques de guerra fora de época, aglomerações verde/amarelas lotando as ruas do Brasil pelo fim do Supremo Tribunal Federal e por intervenção militar. O povo bradando contra o povo e contra as instituições democráticas pediu a volta do voto em papel porque tinha lido, lá no zap que a amiga da igreja mandou, que a urna eletrônica não era confiável. 

            O ano de 2021 não passou. Se arrastou. Se em 2020 a frase mais ouvida nas reuniões de trabalho foi: “seu áudio está desligado”, em 2021, o “estou muito cansado (a)” ganhou disparadamente.

            De fato, o desamor e o desamar, para quem sabe que amor é ato, exaure.

Mas os brasileiros, segundo pesquisa divulgada pelo psicanalista Christian Dunker, na sua coluna do dia 24 de dezembro do TILT Uol, não escolheram a palavra “exaustão” para marcar o fatídico ano de 2021[1]. Tampouco “depressão” ou “melancolia”.

Escolheram a palavra esperança que, no Brasil, graças a Paulo Freire, é verbo. 

Por algum milagre, macumba ou encantaria, ao que parece, os desenredos de 2021 nos enlutaram sem nos (des)lutar.

Como ensina Freud, no seu famoso texto de 1917, “luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.”. Já, a “melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e da autoestima”.[2] 

Vladimir Safatle, no rastro de Freud, Foucault e outros, reflete que uma das funções do afeto da melancolia é paralisar a capacidade de ação do sujeito. O poder não age coagindo as pessoas diretamente e por muito tempo, porque a coerção externa precisa se fazer 24 horas por dia para ter efeito. A subjugação dos sujeitos funciona, então, na internalização de um poder disciplinar, ou de uma experiência melancólica, que seria a crença da impotência da nossa força. “Não tenho mais nada a fazer, é melhor eu voltar aos meus afazeres e esquecer completamente a minha dimensão social”, exemplifica ele em uma de suas entrevistas.[3]

Mas aqui, e ali, há movimento.

Capengas, mancos e arrastados. Desiludidos, despedaçados, exauridos ou insones, vivemos o luto e as perdas do que tínhamos que viver, coletiva e singularmente. Choramos, gritamos, fizemos escrita-navalha, corpo, cicatriz, flertamos com a tal melancolia, e até desamamos, mas não paralisamos.

Eliane Brum moveu seu corpo para o centro do mundo para desbranquecer e virar rio. Daí fez palavra do corpo e nos carregou para junto dela.

Meu amigo Daniel Omar Pérez, filósofo kantiano, psicanalista lacaniano, professor da UNICAMP com pós dourado na Bonn Universitat (Alemanha), deslocou seu corpo dos muros acadêmicos e do currículo extraordinário. “Não sou um intelectual”, ele me disse esse ano, “sou um militante”.

Falemos da transmissão, disseram os psicanalistas. Sim, a missão é trans. Transdiciplinar, transgênero, transcendental, trans(borda)nte, transparente, transversal, transgressora e transformadora. As redes sociais se inundaram de (trans)missões em forma de aulas e textos. Chorei nas aulas poéticas da psicanalista Ana Laura Prates. O saber, a luta e a vida atravessaram litorais e se movimentaram em palavras.

Também as redes sociais se inundaram com fotos de Kim e Tiê, as lindas gêmeas das “duas mães” artistas, que se somam a outras mulheres apaixonadas que semeiam crianças inteligentes no mundo, como Sofia, que opina sobre livros, e ensina, no ato de cor-agem do seu dia a dia, que “amar alguém só pode fazer bem”.   

   Aqui e ali, nos aquilombamos na “rexistência” possível: nos coletivos como o Transforma MP, nas redes de enfrentamento ao racismo e de valorização da diversidade do MPSP, nos grupos que se aconchegam em escuta, música e poesia. Por vezes, nestes quilombos, arrastei. Por vezes, fui arrastada. E assim fomos. Fomos até onde chegamos.  

Não fugimos do luto que nos coube em 2021. Enlutamos e lutamos para aprender sobre o absurdo que é pedir licença para amar alguém. A única impossibilidade que nos é dada nesta vida é a de adoecer na paralisia da espera, na imobilidade e no silêncio do corpo-palavra, no ressentimento ou na frustração de uma desilusão. Tudo isso também está nas entrelinhas do artigo 3º da Constituição Federal.

Apropriados da nossa capacidade de amar em suas múltiplas e singulares formas, sonharemos. Imaginaremos.  Entregaremos nossos corpos, palavras e lutas a quem suportar a aventura vertiginosa, por vezes exaustiva e dolorosa, da entrega ao compromisso de uma vida desejante e de movimento, que proclama a redução das desigualdades, a luta contra as discriminações e a solidariedade.

 Banzeiro, explica Eliane Brum, “é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É um lugar de perigo entre o onde se veio e o aonde se quer chegar”.

Estamos prontos, Eliane, para o banzeiro do entre mundo. Mesmo sendo tão perigoso ser feliz, seguiremos, em 2022, com nossos corpos dançantes, cantantes e escrevedores no movimento amoroso do rio que flui em nós.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP


[1] https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2021/12/24/esperanca-a-palavra-do-ano.htm

[2] Vide Luto e Melancolia, na tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras (volume 12 das Obras completas de Sigmund Freud)

[3] https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/556554-o-brasil-na-era-dos-esgotamentos-da-imaginacao-politica-uma-nacao-de-zumbis-que-tem-na-melancolia-seu-modo-de-vida-entrevista-especial-com-vladimir-safatle