Milton & Ailton: as leituras de mundo e a compreensão do tempo

Maria Betânia Silva, no GGN

Para bem identificar os rostos por trás dos nomes que aparecem no título deste artigo, começo esclarecendo que o sobrenome de Milton é Santos  e o sobrenome de Ailton é Krenak.

Milton, era negro, geógrafo, acadêmico, conhecido internacionalmente pela sua obra e pelas suas críticas, especialmente, contudentes no que se refere à globalização e à mídia convencional. A despeito de ter falecido em 2001, continua vivo pelos trabalhos que produziu e na memória de muita gente que teve a honra de conhecê-lo e/ou de com ele conviver. Seu legado é gigantesco. Ailton é indígena, escritor, jornalista e também internacionalmente conhecido, uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro que usou da tecnologia da informação para integrar os povos indígenas do país, ajudando a dar visibilidade à causa e, ainda, emancipá-los da opressão secular. Para além de serem brasileiros, Milton e Ailton têm em comum a produção e a veiculação de um pensamento originalíssimo, quase “autóctone”. E faço essa afirmação sem receio de estar exagerando.

Através dos seus dizeres ou escritos, eles nos ofertam a possibilidade de refletir sobre as formas de ser e de viver, na atualidade, assim como sobre a forma de viver própria aos povos dos quais eles descendem. Milton Santos era neto de negros escravizados, filho de professores, nasceu em Brotas de Macaúbas, na Bahia, tornou-se professor universitário, fez cursos na França, deu aulas na Tanzânia e em universidades no Canadá e EUA, autor de mais de 40 livros, se destacou em todas as atividades acadêmicas que realizou e em virtude das quais também acumulou vários títulos de Doutor Honoris Causa, além de prêmios, inclusive, o mais importante prêmio na área de Geografia: Vautrin Lud. Milton trazia na sua pele a cor da exclusão e na sua cabeça, as mais brilhantes ideias de inclusão. Ailton, por seu turno, é membro de uma comunidade indígena de nome Krenak, nasceu na região do Rio Doce e foi atuante nos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1988 na defesa dos povos originários, é autor de vários livros e recebeu título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Juiz de Fora. A comunidade à qual pertence era no início do século XX  composta por milhares de indivíduos e na atualidade foi reduzida a centenas. Ailton ensina a resistir, com força e bom humor.

As trajetórias de vida que esses dois homens tiveram são bem distintas em muitos aspectos, no entanto, há uma similitude no trabalho intelectual produzido por eles, tendo cada um ao seu modo, merecido, como já assinalado acima, muita visibilidade nos espaços que conquistaram, fora e dentro dos círculos acadêmicos, e essa visibilidade – justa e legítima em relação a eles – os coloca, a rigor, como porta-vozes de uma outra leitura de mundo, regida por uma outra interpretação sobre a noção de tempo e espaço, em maior ou menor grau tributária dos povos dos quais descendem e que os afasta das premissas teóricas e subalternizantes trazidas pelo colonizador europeu. Essas premissas foram justificadoras do projeto de expansão territorial das nações europeias e isso permitiu a produção e acumulação de riquezas (materiais e imateriais) extraídas dos territórios conquistados, consagrando, assim a hegemonia dessas nações sobre a parte do mundo ocidental. Esse projeto também se realizou mediante o apagamento da diversidade dos povos colonizados, homogeneizando-os e desumanizando-os, ao tempo em que se forjava o discurso sobre a ideia de um homem universal. Levado a cabo com muita violência, gerou o extermínio de muitas populações cujo modo de vida era diferente do modo de vida europeu, o que provocou um processo de transformação do mundo em favor do imperialismo, mais especificamente, o de traços anglo-saxão que elevou o capital a um patamar “divino” e fazedor de milagres para poucos. Mas como tudo na História é envolto em contradições, a ideia do homem universal adquiriu novos contornos com o passar do tempo para dar lugar ao pluriuniversal, conceito, aliás, que deita raízes no pensamento filosófico do professor sul-africano Mogobe Ramose. Vive-se, hoje, um momento no qual as diferenças culturais e as atitudes de reação às correntes opressivas servem, paradoxalmente, como um nutriente da própria sobrevivência de vários grupamentos humanos, convertendo-os num fator de instauração de outras perspectivas de vida.

No seio de uma sociedade branca, representada sobretudo por oligarquias econômicas, como é o caso da brasileira e, além disso, muito influenciada pelo pensamento europeu que fez prevalecer a sua episteme sobre aquela presente nos povos colonizados, Milton Santos e Ailton Krenak se emanciparam dessa epistemologia marcadamente colonialista e são referências para superação de tudo aquilo que implica a desqualificação da condição humana. Embora eles se valham da língua herdada pelos colonizadores – como não poderia deixar de ser – criam uma linguagem que é capaz de traduzir o saber característico fomentado na cultura dos povos donde eles descendem e que é interseccionado por aquele saber adquirido ao longo da vida em contextos bem diversos. Essa perspicácia cognitiva traz à baila tanto a violência física e cultural ao qual os seus antepassados estiveram submetidos quanto – numa quase repetição por outros caminhos – explicita os impactos do desenrolar da opressão contra várias populações, na atualidade.  Com isso, Milton Santos e Ailton Krenak apontam para a luta pela sobrevivência humana e preservação da espécie, algo que não se limita aos povos originários, mas se projeta no caminho de todos os povos.

A visão deles a respeito do mundo atual tem pelo menos dois importantes pontos de convergência. O primeiro, é chamar a atenção para os efeitos do capitalismo, mostrando o aprisionamento do ser humano à sociedade de consumo que contribui para conferir uma ilusão sobre o desenvolvimento da espécie humana,  de sorte que questionam o próprio significado da noção de desenvolvimento.  Eles – juntamente com tantos outros – denunciam essa ilusão, fazendo soar o alerta de que, para se manter o desenvolvimento prometido no patamar atual avança-se cada vez mais na extração de recursos naturais, degradando o meio ambiente em nome de um projeto de conforto de vida material individual que se faz acompanhar da diluição de vínculos coletivos. E isto ocorre porque se atribui a cada indivíduo isoladamente considerado a titularidade para exercer poder através da compra de coisas artificiais, mediada pelo dinheiro. Esta é a síntese da síntese dos nossos tempos que demarca a diferença essencial com o que se tinha e ainda se tem, em certa medida, de característica do modo de vida dos povos originários, aí incluídos: o povo indígena e o povo negro, vitimados no processo de dominação colonial que mudou a face da Terra muito significativamente, sobretudo, para nós que nos situamos no Ocidente, muito embora, também, mudanças se tenham engendrado em todo o planeta. O outro ponto de convergência é a crítica feroz que esses pensadores fazem aos meios de comunicação convencionais presentes na sociedade de massa e urbana, os quais funcionam como uma extensão, uma caixa amplificadora de um poder que não abandonou o seu traço colonialista, ainda cooptando as consciências ao reverberar uma história única.

Para melhor apreender a originalidade de pensamento que aproxima esses dois autores…

OUÇAMOS A “VOZ” DE MILTON SANTOS

Milton Santos foi surpreendente na sua trajetória e essa surpresa não se deve apenas ao fato de ter sido um negro bem sucedido no âmbito acadêmico, o que não era nada comum à sua época, mas se deve, sobretudo, ao fato de que produziu um pensamento original tendo por escopo emancipar o ser humano da dominação capitalista desenfreada e instaurar uma visão protetiva da saúde do Planeta. Ele se considerava um intelectual outsider, alguém que não pertencia a partido, a grupos de intelectuais, que não respondia a nenhum credo e que também não participava de qualquer militância, no sentido usual do termo.

Sua importância como intelectual pode ser muito bem compreendida no documentário dirigido por Silvio Tendler e que redundou num vídeo intitulado Milton Santos – Globalização: o mundo global visto do lado de cá, disponível no YouTube, em 06.06.2011. Sob os holofotes no set de filmagem de uma entrevista longa feita com ele, lhe foi perguntado se era difícil ser um intelectual negro. A essa pergunta, respondeu: “…é difícil ser negro fora das situações de evidência… e é difícil ser intelectual porque não faz parte da cultura nacional uma palavra de crítica”. Logo se entende que ser as duas coisas ao mesmo tempo é algo dificílimo. E foi difícil para Milton Santos, apesar da genialidade dele.

Pois bem, na abertura do documentário, como que firmando os parâmetros a partir dos quais as reflexões de Milton Santos seriam exploradas, uma frase escrita por Sartre  no prefácio do livro “Os Condenados da Terra”, de Frantz Fanon (um outro autor indispensável) é exibida.

A frase diz:

“ é preciso explicar por que o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico… e, que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e insurreições. Eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro”.

Essa referência a Sartre cria a impressão de que a forma de pensar de Milton Santos talvez não seja regida por uma temporalidade linear e rígida acerca do presente e do futuro.

De fato, Milton Santos transborda os limites dessa marcação temporal, uma vez que  interpreta os fatos da vida como ciclos que abrem a possibilidade de inovar e superar um padrão de comportamento humano correspondente a uma visão linear do tempo no qual não se enxerga as ondulações. Ele aposta nas quebras, recusa comportamentos standards, se mostra atento às descontinuidades que se forjam sob a superfície da realidade que é medida por um tempo artificializado e apressado. Embora tenha manejado os conceitos e adotado o rigor metodológico herdado da epistemologia europeia sob o influxo da qual se formou, ele vai muito além dela e traz uma originalidade somente revelada em virtude do seu pertencimento a um país como o Brasil. A esse respeito ele explicitou ser o Brasil o lugar onde mais facilmente ele pode ser universal. O seu propósito é “tentar ver a partir do presente o que se projeta no futuro”. O tempo presente é central na obra de Milton Santos como momento de construção de formas de vida. O futuro seria a conseqüência natural. O passado foi só a passagem necessária para analisar o que importa: o tempo presente. Em certa medida, é como se essa marcação de passado e futuro fosse apenas porta de acesso para solução dos problemas vivenciados no hoje.

A originalidade de Milton Santos na forma de pensar já se insinua diante da afirmação de que a sua opção pela geografia foi motivada pelo “movimento das populações” no espaço; ele fora instigado por uma certa curiosidade sobre as migrações e talvez isso tenha se dado como um resgate inconsciente daquilo que atravessou o povo negro: uma migração forçada decorrente do poder dos colonizadores sobre os seus corpos, quando o empreendimento das navegações oceano adentro assentou-se no comércio desses mesmos corpos para manutenção dessa conquista territorial que provocou um  impacto nefasto nesse povo seja no seu lugar de origem seja no lugar de destino. Em seguida, Milton Santos esclareceu também que tinha gosto pela História e que isso residiria na valorização do processo de contradições, o que o fazia se considerar um intelectual marxista, mas não ortodoxo; na realidade, um intelectual “marxizante”, nas palavras dele, em virtude do que sentenciou: “se tudo se torna capitalista, obrigatoriamente, a contradição se instala”.

O documentário evolui entre imagens que remetem a fatos históricos reveladores da exclusão social, passando pelas respostas dadas por Milton Santos às perguntas que lhe foram feitas durante a longa entrevista, e por  flashes de palestras que ele proferiu, explicitando as suas críticas ao fenômeno da globalização, entendido, sob a sua ótica, como fábula, como perversidade e como possibilidade de ser alguma outra coisa.

As imagens reproduzidas no documentário mostram muito fortemente como a globalização foi-se acentuando após o Consenso de Washington, o qual impulsionou medidas de privatização da água na Bolívia, por exemplo, e foi alvo de violentos protestos populares, fazendo o governo retroceder. Também, explorou a ideia do aparecimento do Homo Davos, ou seja, a parte da espécie humana reunida em Davos, na Suíça, em 1970, que se empenhou na instituição de um pensamento único, entusiasmado com o livre mercado como trilha para o paraíso.

Enfim, o filme costura bem uma sucessão de vários fatos cada vez mais alinhados com a opressão e a exclusão de um número sempre maior de pessoas, trazendo ao espectador a sensação de que algo semelhante também ocorrera no século XV ao se optar pela navegação e conquista de territórios para além do continente europeu. A globalização é uma continuidade nas descontinuidades, um processo de início lento e que foi se acelerando e gerando um fenômeno captado  pelo olhar atento e perspicaz de Milton Santos cujas manifestações vigorosas soaram como alerta e como aceno para as saídas a serem construídas nos dias de hoje.

As críticas contundentes que ele fez à fome, por exemplo, sustentadas no trabalho de Josué de Castro de quem ele foi um grande admirador, não deixa espaço para dúvidas: a fome é uma opção de poder que define quem deve ser submetido a tamanha indignidade e  nada tem a ver com a produção de alimentos no mundo mas com a distribuição dos alimentos produzidos, há saída para isso. Existe um projeto a ser desfeito e outro a ser executado. De igual modo, ele não poupa críticas quando analisa o papel da mídia ligada ao mundo da produção material e das finanças que a controla de forma eficaz mediante uma interpretação manipulada dos fatos com o propósito produzir uma informação útil – segundo ele – para a instituição do globalitarismo: expressão por ele cunhada e que traz a invenção de um conceito mediante a recriação da língua portuguesa com vistas a conferir à realidade um sentido rigoroso daquilo que efetivamente se vive. Milton Santos, aliás, ressignifica muitos termos cunhados no pensamento europeu, conceituando-os a partir de neologismos em língua portuguesa e com isso firma os reais sentidos das palavras hipocritamente veiculadas pela “boca” do poder midiático hegemônico.

Definitivamente, nada no processo de globalização que se espraia em todos os setores da vida de muitos países massacrando-os em favor do interesse de alguns poucos, em particular no mundo ocidental, escapou da reflexão arguta de Milton Santos, fazendo-o declarar ser a “primeira vez na História que a gente convive com um futuro possível”, o que, por seu turno, o levava a acreditar “ver dentro das cidades formas de solidariedade que têm expressão econômica e política em contraposição à violência”.

Assim, observou, em um tom crítico e com discreta indocilidade que, no Brasil, “…nós decidimos ser europeus, insistimos em ser europeus, nos recusamos a pensar como nós próprios porque achamos mais chique pensar como europeus ou americanos e temos enormes dificuldades para entender o mundo…não sabemos muito o que fazer com o mundo novo porque não descobrimos a forma de pensar esse mundo novo a partir de nós próprios”. Logicamente, essa crítica parece muito mais dirigida a alguns expoentes do universo acadêmico do que ao povo propriamente, o qual, organizado de várias formas, vai rompendo os espaços da prisão que lhe é imposta, em eventos eruptivos de mudança.

Ao final do documentário, Milton Santos arrematou: “estamos fazendo ensaio da humanidade que nunca houve”.

Foi com esse espírito de pensar a partir da sua própria cabeça, manejando com originalidade os instrumentais teóricos apreendidos na Europa e EUA, que Milton Santos nos legou um sistema conceitual de viés crítico em relação à História do mundo no Ocidente e aos processos opressivos que nos desumanizam, nisso fazendo coro ao pensamento de Ailton Krenak que, para além de reagir a essa desumanização,  enxerga o tempo presente como um tempo de construção de um outro mundo. Milton Santos, mesmo havendo percorrido a História, que abriga uma temporalidade de passado, por exemplo, inexistente sob a ótica indígena dos Krenak, estava interessado naquilo que no “vulcão que crepita” (expressão usada por ele) sob a nossa existência para mudar a ordem do absurdo e impedir que a morte triunfe.

Ao criticar o papel da mídia, merece destaque o vaticínio feito por ele sobre a possiblidade de multiplicação de mídias alternativas voltadas a captar os movimentos sociais, os quais ele enxerga como atores do processo de “produção de constrangimento ao globalitarismo”. Via nisso o vulcão crepitando, a esperança de novidades. Nessa perspectiva, ele exaltou o uso de uma tecnologia básica composta por meios de registro de imagens que, operados inteligentemente, podem produzir uma informação capaz de neutralizar essa que nos é imposta de forma repetida por manchetes e fotos adquiridas de uma mesma fonte  cujo objetivo, não é outro senão validar a versão sobre a realidade que é conveniente ao poder hegemônico, através dos grandes veículos de comunicação, na tentativa de silenciar a diversidade. Admirável assistir no âmbito do documentário de Tendler a existência de “cinegrafistas” alternativos que cobrem as formas de resistência e organização das periferias das cidades, por exemplo, e também aquela capitaneada pelo MST como movimento que semeia uma nova ordem, de base solidária.

É curioso mas não surpreendente que, a despeito das diferentes trajetórias de vida e origem Milton Santos e Ailton Krenak tenham convergido para ressaltar o papel e o impacto da tecnologia de informação e comunicação no nosso mundo. Ailton Krenak  fez uso da tecnologia para integrar os povos indígenas, emancipando-os e fortalecendo-os na luta pelos seus direitos e essa atuação é também relatada no filme de Tendler. De outro lado, o papel exercido por Milton Santos, vaticinando e defendendo o crescimento de uma mídia alternativa, foca muito claramente naquelas comunidades que sentem, nas cidades, o peso da opressão e se veem fora da designação do conceito de cidadania, tal como os indígenas que foram, logo de cara, na época do “descobrimento”, melhor dizendo, da invasão, colocados fora da ideia que posteriormente funda o conceito de humanidade.

OUÇAMOS AGORA A “VOZ” DE AILTON KRENAK

No Dia 07 de janeiro deste ano, 2022, Ailton Krenak concedeu uma entrevista a Gustavo Conde no Programa Bom para Todos, transmitido pela TVT e retransmitido por vários outros canais: Grupo Prerrogativa, canal do Conde, todos disponíveis na plataforma do YouTube.

As ideias que povoam a cabeça de Ailton Krenak e consubstanciam muitos dos seus escritos foram mais uma vez repetidas e enfatizadas nessa entrevista. Usando a língua portuguesa com maestria, Ailton cria uma linguagem imagética que desenha os vasos comunicantes entre o ser humano e o Planeta, expressando-se de uma forma que não é só lógica; é também impactante no sentido de promover o deslocamento da nossa vivência urbana para fora de uma zona de conforto sustentada apenas pelos tantos bens materiais que adquirimos, que sonhamos em adquirir, que lutamos para adquirir, o que nos impede de compreender que a vida só tem um tempo: o presente, que vai muito além desses bens e, por isso, precisamos viver e enfrentar a realidade tal como ela se nos apresenta, guerreando pela sobrevivência contra as circunstâncias adversas, porque é assim que, na natureza, a vida se faz. A vida é uma construção cotidiana inadiável e necessária para se mover no tempo espiralado que se repete numa sucessão de mudanças. Tudo está envolto em contradição, numa dialética que insistimos em não admitir por causa do desejo de consumo de bens como finalidade, num tempo linear e de prazer apenas  individual.

Merece destaque a afirmação de Krenak segundo a qual vivemos uma superposição de tempos: de um lado, o social compartilhado e marcado pelo nome dos dias e dos meses, um tempo líquido “que se derrama sobre nós como azeite e no qual as pessoas são acionadas por necessidades reais…”, mas que lhes embota a capacidade de discernir e perceber que estão sempre submetidas à ideia de mercadoria, consumo e carência. Diante disso, concluiu “a humanidade está perdida de si”; de outro lado, muito salutar a visão por ele trazida sobre a concepção do tempo espiralado, pontuando que ele está bem impregnado na vida dos povos vindos da África e naqueles originários da América do Sul. Nesse sentido, do alto de sua sabedoria e boa dose de humor manifestada por alguns sorrisos intermitentes durante a entrevista, Krenak definiu o tempo como um amigo de viagem que se desloca ao nosso lado e não nos ataca.

E prosseguiu afirmando que “…precisamos ter a coragem de construir a partir do agora o que podemos compartilhar como realidade” arrematando que ele, por exemplo, “…habita um mundo de linguagens…como os pássaros que a ele dão sentido para experiência de estar vivo”.

Tudo flui no sistema de pensamento exposto por Ailton Krenak, um ser imbricado à Terra e que transita confortavelmente pelas veredas que nela são abertas por acreditar nessa construção contínua e cotidiana da vida, num tempo de viagem cujo término supostamente certo é, na verdade, imprevisível no espaço da nossa existência. Isto porque a Terra – por ele entendida como um organismo vivo e inteligente – tem uma capacidade de autorregulação que pode até nos cuspir numa só chacoalhada, tratando-nos, a nós, humanos, como espécie de bactérias se a gente a perturbar muito. E concluiu esse raciocínio afirmando que o Homo Sapiens é um serial killer.

Essas reflexões de Ailton Krenak, que guardam provavelmente diferenças irrelevantes com aquelas presentes em outras etnias indígenas, podem parecer perturbadoras para muitos de nós, acostumados e condicionados à lógica do tempo linear herdada do colonizador, o qual, ao enfrentar os mares com uma vaga noção de rota e ter obtido sucesso, se colocou como o centro do mundo, como ser capaz de tudo poder a partir do seu lugar em relação ao Oceano. O colonizador imprimiu no nosso imaginário um complexo de onipotência, de um todo-poderoso que somente ele exerceu e o fez contra nós, colonizados, cada vez mais ávidos em buscar e reorganizar a nossa própria força, para tentar refazer esse imaginário sem a arrogância intoxicante que nos asfixiou.

À parte a perturbação que as afirmações de Krenak podem causar, a “verdade verdadeira” é que elas nos fornecem igualmente a força e a tranqüilidade necessárias para atravessar esses tempos pandêmicos, por exemplo, no qual a gente é quase que automaticamente levado a pensar no ponto final da existência. Em certa medida, não deixa de ser quando se observa o aumento no número de mortos entre conhecidos e anônimos, dando a impressão que cada um de nós pode ser o próximo. Isso nos lança num incômodo existencial que motiva numa vivência frenética do tempo presente sem “horinhas de descuido”[1] para pensar. Algo talvez que explique a (in)”sanidade” de muitas pessoas a se deslocarem no espaço pandêmico, correndo toda sorte de risco, quase com a mesma intensidade de outrora, como se não fosse haver mais tempo para tanto. Em outras palavras, o comportamento apressado – objeto de crítica por parte de Milton Santos também – se mantém como padrão e foi potencializado durante a pandemia, como forma de impedir a instalação de uma quietude acolhedora acerca do efêmero sentimento de felicidade que nunca foi outra coisa senão isso mesmo: efêmero e independente da velocidade de nossas ações.

Cabe enfatizar que a serenidade da concepção de tempo explicitado por Krenak  e que não se confunde com apatia, fornece a chave para resistir. É como se a luta se travasse silenciosamente a partir do nosso ser interior e, para o exterior de nós se projeta de forma comedida no espaço, posto que o objetivo de viver esse tempo é uma espécie de mistura concomitante entre contemplação e ação cujo objetivo é usufruir da vida como um presente que nos foi ofertado.  Essa fruição nada tem a ver com a viagem de um lugar para outro ou a aquisição de bens materiais. Tem, isto sim, a ver com o tempo que agora dispomos para a viagem interior e a contemplação tanto da natureza visível quanto da compreensão do vírus – que emerge da natureza – invisível a olho nu.

Mas há, ainda, uma outra questão subjacente a essa forma de pensar que pode nos fazer querer pôr em xeque a sua validade e a adoção dela para o nosso modo de viver como “urbanóides”. É que parecemos nos deparar com um choque entre as diferentes formas e sistemas de pensar, aparentemente inconciliáveis. Há uma forma de pensar que é a nossa, que não estamos inseridos na comunidade indígena embora descendamos dela e uma forma de pensar dos indígenas que nunca se desligaram de suas raízes, como é o caso de Ailton Krenak.

Assim, do ponto de vista prático, parecemos convencidos de que a forma de vida  indígena, na origem, seria incapaz de encontrar as medidas eficazes contra os efeitos mais graves da SARS-CoV-2, por exemplo, dando-nos a certeza de que isso nos coloca como superiores, já que o mundo científico que prestigiamos nos trouxe a vacina e salvação.

Certamente, para os desavisados, a forma de pensar e viver dos povos indígenas os priva dos meios necessários à proteção de sua saúde tão importante para sua sobrevivência, e eles dependem do que nós, repito, “urbanóides”, inventamos a partir do nosso conhecimento científico. Esta afirmação, contudo, é falaciosa porque é perfeitamente explicável dentre outras razões pelo fato de que a vida dos povos indígenas somente se mostra ameaçada pelos vírus causadores de doenças que são estranhas ao seu habitat e à sua genética forjada ao longo do tempo num outro ambiente natural. Objetivamente, nós, da cidade, nos transmudamos em um tipo de vírus para eles. As técnicas ancestrais de enfrentamento de doenças que eles manejam lhes são bem úteis para aquilo que eles conhecem, e nesse aspecto, em certa medida, então, o nosso sistema de pensar se iguala ao deles. O nosso modo de pensar permite desenvolver técnicas para cura de doenças que somos capazes de conhecer. Cada povo, portanto, tem sua própria ciência e ela é um saber que emerge de sua vivência na relação com o espaço onde gastam a sua noção de tempo.

Então, se desenvolvemos um saber de cunho tecnológico, produzido pela sociedade urbana, citadina capaz de, em breve tempo, encontrar um fármaco para aliviar o efeito mortífero do vírus: no caso, as vacinas, esse recurso de extrema valia para nós (gente dita civilizada e integrada ao mundo artificial das cidades) significou um mergulho no corpo humano e exigiu, de nós, um certo equipamento porque a isso nos habituamos. Esse proceder não difere tanto daquilo que o corpo do indígena é capaz de fazer. Com equipamentos sem sofisticação, o indígena consegue desde navegar até mergulhar nos rios, além de adentrar nas florestas, estejam eles ou não distanciados no tempo e eventualmente próximos, no espaço geográfico, das nossas cidades.

Percebe-se que não se está diante de formas de pensar inconciliáveis. Não podemos mais nutrir a ideia de choque cultural entre nós (designados de cidadãos no sentido de sermos oriundos de cidades) e os indígenas, aldeados ou integrados à vida citadina. Por mais que esse choque, tenha historicamente ocorrido, isso se deu por um propósito de poder. Há, porém, na atualidade, um outro propósito que se impõe no horizonte de nossa existência como espécie humana, qual seja: o de nos obrigar a mudar a nossa forma de pensar para realizar o encontro das diferenças entre esses dois mundos habitados por nós, os humanos, dentro do Planeta. E isso passa inevitavelmente pelo respeito ao meio natural, pela preservação das florestas, pelo adequado manejo dos recursos hídricos, pelo cuidado com o solo e pela compreensão dos movimentos dos corpos humanos. Por conseguinte, passa também pela valorização da forma de pensar dos povos indígenas, do povo negro aquilombado que são detentores da “tecnologia” de preservação do ambiente natural e produtores de uma episteme preciosa, a qual constitui a base daquilo que erguemos, ao que tempo em que fomos destruindo algo para além de nós mesmos.

Em atenção a isso, é, no mínimo, doloroso, para não dizer odioso pensar nos discursos produzidos pelo Presidente que desgoverna o Brasil e que, ainda, recebe o apoio histriônico de uma minoria da população desprezando a cultura indígena, desqualificando-os os seus representantes, debochando dos negros,  recusando e negando os benefícios da vacina a todos, todas e todes.  Ele ignora a ação do vírus negligenciando a gestão da Pandemia, aplaude e estimula a devastação da Floresta, o que de uma só tacada, projeta o extermínio dos povos que nela habitam e o extermínio da população urbana. Claramente essas são atitudes que estão fora do horizonte de garantia de atributos humanos e instala como que um processo de redução da nossa existência ao estado bacteriano; inflama a Terra, podendo levá-la a nos cuspir e assim nos subtrair a possibilidade de participar da dança cósmica, à qual Ailton Krenak fez referência na sua entrevista.

VIVA A MÍDIA ALTERNATIVA…  INDEPENDENTE

Fácil ver, mais do que nunca, que a nossa atenção enquanto público interessado em obter informações para compreender os fenômenos do  tempo presente e promover as mudanças que desejamos na nossa vida, teve uma significativa guinada porque também engendramos, como vaticinou Milton Santos, a construção de uma mídia designada como alternativa. É nesse espaço comunicacional que ora se produz o sentido de uma nova  vida urbana e agrega outras formas de vida como a indígena. É esse espaço comunicacional o espaço de todas as tribos. O programa de entrevistas Bom para Todos da TVT com a mediação de Gustavo Conde (que tem o seu próprio canal), em substituição Talita Galli, durante o recesso dela, foi muito marcante, ao incluir nomes de muita envergadura no cenário nacional e internacional. Pessoas que dizem e fazem coisas instigantes em virtude do seu ofício cotidiano, outras que lançam ideias intelectualmente gestadas fora da caixa.  São muitos os canais de mídia independente e crítica que merecem a nossa atenção por manifestarem a defesa da dignidade da pessoa humana, um apreço pela democracia e a percepção de contradições da própria democracia. Cito alguns deles: Opera Mundi, canal GGN, 247, Mídia Ninja, Grupo Perrogativas, dentre tantos…

O acesso ao conteúdo produzido pelas mídias alternativas sérias, responsáveis e comprometidas com as maiorias minorizadas e as minorias invisibilizadas não apenas nos permite obter diversidade de informação como é capaz de fazer despertar o vulcão que crepita sob os pés do capital opressor e sufocante da liberdade que não nos pode ser tirada: a de pensar com a nossa própria cabeça e a partir da nossa própria realidade. Agora, não nos sendo possível abolir as plataformas digitais que vieram pra ficar e vão pouco a pouco abocanhando a mídia convencional e multiplicando a mídia alternativa, e mesmo ambas estejam sob império do capital, cabe-nos profissionais de mídia e público dobrar os algoritmos aos nossos propósitos. Sejamos, portanto, sujeitos emancipados e para tanto insurreitos quando atacados na nossa dignidade!

Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça – aposentada – MPPE e membra do Coletivo Transforma MP


[1] A felicidade se acha é  em horinhas de descuido…verso de João Guimarães Rosa, no “Barra da Vaca”.

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