Me deixa te amar?

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Meu corpo pede uma escrita de gritos que possa dar conta de alguma retrospectiva de 2021, mas “fracassar é condição de quem escreve”, já disse a jornalista Eliane Brum em Banzeiro ÒKÒTÒ, uma viagem à Amazônia centro do mundo, livro lançado nesse último ano e que é mais do que a leitura do testemunho histórico, político e social de como a humanidade está colocando fim a ela mesma, com direito a palpitações bem mais interessantes e vertiginosas do que as provocadas pela comédia – catástrofe recentemente lançada, “não olhe para cima”, de Adam Mckay.

Ao escolher se mudar para a Amazônia, Eliane a coloca no centro do mundo, fundindo povos e florestas, vidas humanes e não humanes. É seu corpo inteiro, em movimento, que menstrua, tem diarreia, deseja, perde, dói e busca uma nova geografia de sentidos de vida que atravessam, sem dó, nosso corpo de leitor, esburacado com sua escrita. Não é possível sair igual e sem cicatrizes da imersão no seu banzeiro coletivo e singular.

            Me reconheço nessa escrita visceral, no não lugar, na insuficiência e, sobretudo, na violência que nossos corpos brancos, de classe média e de mulheres provocam e sofrem em um mundo que foi capaz de criar um 2021 como o que vivemos.

Começamos o ano com as cenas absurdas de famílias correndo para buscar oxigênio para seus amores não morrerem asfixiados nos corredores abarrotados dos hospitais de Manaus e terminamos com idosos, na Bahia, se agarrando em postes, com água até o pescoço, enquanto sua vida e história submergia na água enlameada do descaso.

            De janeiro a janeiro, em nosso país, faltou ar para amar até o mundo acabar. Mais de 400 mil pessoas que amavam e eram amadas por alguém morreram de COVID, juntando-se às 200 mil que haviam morrido em 2020.

            Os que não morreram asfixiados ou afogados, também perderam o ar e a vontade de amar, tentando explicar a colegas de trabalho, vizinhos e parentes, que hidroxicloroquina curando COVID era um delírio coletivo capitaneado por alguém capaz de defender torturador e produzir escárnio da dor. Perdemos o ar quando vimos que a carta da Pfizer não teve resposta do governo e que a dose de vacina da Covaxin seria quatro vezes mais cara que a da Fiocruz. Asfixiamo-nos com a notícia de que uma operadora de saúde formada por uma rede imensa de hospitais usava cobaias humanas e ameaçava, de demissão, médicos que não prescreviam o famigerado kit covid. Não era “só” ignorância, desespero e negacionismo. Sempre foi, também, ganância. 

            Mas nem a palavra dos melhores cientistas do Brasil e do mundo, nem uma CPI que terminaria apontando a prática de 09 crimes pelo Presidente e seus filhos, nem a Amazônia em chamas, nem as palavras sádicas diariamente cuspidas pelo governo do horror, pareciam afetar uma massa pronta para mitificar o grotesco ético e estético em que nos tornamos nos últimos anos.  

             Em março e abril de 2021, quando atingimos a marca de 3000 vidas perdidas por dia, já estávamos exaustos. Sem virada, o ano “novo” trocou o desespero de 2020 pela sensação devastadora de um profundo cansaço físico e mental.

            O ano só começava e ainda teríamos que aguentar desfiles militares com tanques de guerra fora de época, aglomerações verde/amarelas lotando as ruas do Brasil pelo fim do Supremo Tribunal Federal e por intervenção militar. O povo bradando contra o povo e contra as instituições democráticas pediu a volta do voto em papel porque tinha lido, lá no zap que a amiga da igreja mandou, que a urna eletrônica não era confiável. 

            O ano de 2021 não passou. Se arrastou. Se em 2020 a frase mais ouvida nas reuniões de trabalho foi: “seu áudio está desligado”, em 2021, o “estou muito cansado (a)” ganhou disparadamente.

            De fato, o desamor e o desamar, para quem sabe que amor é ato, exaure.

Mas os brasileiros, segundo pesquisa divulgada pelo psicanalista Christian Dunker, na sua coluna do dia 24 de dezembro do TILT Uol, não escolheram a palavra “exaustão” para marcar o fatídico ano de 2021[1]. Tampouco “depressão” ou “melancolia”.

Escolheram a palavra esperança que, no Brasil, graças a Paulo Freire, é verbo. 

Por algum milagre, macumba ou encantaria, ao que parece, os desenredos de 2021 nos enlutaram sem nos (des)lutar.

Como ensina Freud, no seu famoso texto de 1917, “luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.”. Já, a “melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e da autoestima”.[2] 

Vladimir Safatle, no rastro de Freud, Foucault e outros, reflete que uma das funções do afeto da melancolia é paralisar a capacidade de ação do sujeito. O poder não age coagindo as pessoas diretamente e por muito tempo, porque a coerção externa precisa se fazer 24 horas por dia para ter efeito. A subjugação dos sujeitos funciona, então, na internalização de um poder disciplinar, ou de uma experiência melancólica, que seria a crença da impotência da nossa força. “Não tenho mais nada a fazer, é melhor eu voltar aos meus afazeres e esquecer completamente a minha dimensão social”, exemplifica ele em uma de suas entrevistas.[3]

Mas aqui, e ali, há movimento.

Capengas, mancos e arrastados. Desiludidos, despedaçados, exauridos ou insones, vivemos o luto e as perdas do que tínhamos que viver, coletiva e singularmente. Choramos, gritamos, fizemos escrita-navalha, corpo, cicatriz, flertamos com a tal melancolia, e até desamamos, mas não paralisamos.

Eliane Brum moveu seu corpo para o centro do mundo para desbranquecer e virar rio. Daí fez palavra do corpo e nos carregou para junto dela.

Meu amigo Daniel Omar Pérez, filósofo kantiano, psicanalista lacaniano, professor da UNICAMP com pós dourado na Bonn Universitat (Alemanha), deslocou seu corpo dos muros acadêmicos e do currículo extraordinário. “Não sou um intelectual”, ele me disse esse ano, “sou um militante”.

Falemos da transmissão, disseram os psicanalistas. Sim, a missão é trans. Transdiciplinar, transgênero, transcendental, trans(borda)nte, transparente, transversal, transgressora e transformadora. As redes sociais se inundaram de (trans)missões em forma de aulas e textos. Chorei nas aulas poéticas da psicanalista Ana Laura Prates. O saber, a luta e a vida atravessaram litorais e se movimentaram em palavras.

Também as redes sociais se inundaram com fotos de Kim e Tiê, as lindas gêmeas das “duas mães” artistas, que se somam a outras mulheres apaixonadas que semeiam crianças inteligentes no mundo, como Sofia, que opina sobre livros, e ensina, no ato de cor-agem do seu dia a dia, que “amar alguém só pode fazer bem”.   

   Aqui e ali, nos aquilombamos na “rexistência” possível: nos coletivos como o Transforma MP, nas redes de enfrentamento ao racismo e de valorização da diversidade do MPSP, nos grupos que se aconchegam em escuta, música e poesia. Por vezes, nestes quilombos, arrastei. Por vezes, fui arrastada. E assim fomos. Fomos até onde chegamos.  

Não fugimos do luto que nos coube em 2021. Enlutamos e lutamos para aprender sobre o absurdo que é pedir licença para amar alguém. A única impossibilidade que nos é dada nesta vida é a de adoecer na paralisia da espera, na imobilidade e no silêncio do corpo-palavra, no ressentimento ou na frustração de uma desilusão. Tudo isso também está nas entrelinhas do artigo 3º da Constituição Federal.

Apropriados da nossa capacidade de amar em suas múltiplas e singulares formas, sonharemos. Imaginaremos.  Entregaremos nossos corpos, palavras e lutas a quem suportar a aventura vertiginosa, por vezes exaustiva e dolorosa, da entrega ao compromisso de uma vida desejante e de movimento, que proclama a redução das desigualdades, a luta contra as discriminações e a solidariedade.

 Banzeiro, explica Eliane Brum, “é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É um lugar de perigo entre o onde se veio e o aonde se quer chegar”.

Estamos prontos, Eliane, para o banzeiro do entre mundo. Mesmo sendo tão perigoso ser feliz, seguiremos, em 2022, com nossos corpos dançantes, cantantes e escrevedores no movimento amoroso do rio que flui em nós.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP


[1] https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2021/12/24/esperanca-a-palavra-do-ano.htm

[2] Vide Luto e Melancolia, na tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras (volume 12 das Obras completas de Sigmund Freud)

[3] https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/556554-o-brasil-na-era-dos-esgotamentos-da-imaginacao-politica-uma-nacao-de-zumbis-que-tem-na-melancolia-seu-modo-de-vida-entrevista-especial-com-vladimir-safatle

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