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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

As Fridas do século XXI nos convocam para a revolução. Quem vem?

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

A educadora e jornalista Mariana Rosa conta que sua filha “criou uma inflexão no tempo: reviu as medidas e as porções no cálculo minucioso do possível”.

Ao contar os cuidados diários que tem com sua filha para esperar que seu corpo sinalize o momento certo de respirar e de comer, Mariana nos fala de ética: a ética do cuidado, e subverte, com a filha, o tempo. “É preciso aleijar o tempo. Criar brechas, fissuras, para que o ar circule, para que a vida tome fôlego”, disse ela. Aumentando o intervalo das colheradas de comida dada à filha, dos abraços, das ousadias e insubordinações, Mariana e Alice lutam pelas pausas de mil compassos, pelos sambas sobre o infinito e pela revolução.

A revolução é contra o tempo. Mas não contra o tempo do Deus Cronos, esse senhor tão bonito da música de Caetano Veloso, nem contra o Deus Kairós, esse menino fulgás que faz música, letra e dança, na voz – qualquer voz -, da eterna musa Marina.

 A revolução é contra o tempo do Deus Mercado.

Esse Deus que vende normalidade e padrões estéticos como único caminho para a felicidade, essa mercadoria exibida nas vitrines das redes sociais que apenas os outros puderam alcançar. Esses outros que são os brancos, hetero, cis, magros, jovens, sem deficiência, e, claro, ricos. É contra esse Deus que confunde deficiências com incapacidades e que tem, no mesmo checklist, as metas insaciáveis de sucesso e os remédios antidepressivos para dopar os “felizes do instagram”, que elas fazem a revolução.

E não estão sozinhas.

Venho aqui para denunciar essas perigosas mulheres revolucionárias como quem denuncia, anuncia e enuncia a disponibilidade para uma outra lógica de mundo que precisa ser imaginada, sonhada e desejada por nós.

 Falo de Mariana, Laureane, Thais Becker e todas as mulheres com deficiência do coletivo feminista Helen Keller que desafiam padrões e o curso do tempo afirmando suas existências nesse mundo.

Mais do que anticapacitistas, essas mulheres são radicalmente feministas e cientes que a mesma narrativa política que justifica o patriarcado, a opressão racista e a heteronormativa, também massacra as pessoas com deficiência. No espectro de grupos que se identificam pela dor da exclusão, as mulheres com deficiência são as mais ousadas nas propostas de um novo mundo: Atenção senhores todos… empoeirados e engravatados, das cortes superiores de Justiça aos prédios espelhados da Faria Lima…: as mulheres com deficiência desejam!!!  

Desejam audiodescrição antes de reuniões e palestras. Tradução em libras. Rampas em prédios modernos e históricos. Acessibilidade digital. Desejam dançar, escrever, falar. Que se espere, em escuta atenta, por suas falas, mesmo que arrastadas. Desejam não serem mais reduzidas a diagnósticos médicos e a corpos desviantes ou defeituosos que precisam ser curados e reparados. Desejam dizer que podem ser mães, se assim quiserem. E que também fazem amor e sexo, se assim também quiserem, e para além da limitada perspectiva genital. Algumas, com eliminação de barreiras, podem trabalhar e produzir riquezas, outras não. E essas, pasmem senhores, seguem sendo mulheres desejantes, vivas, singulares e inventoras de tempos, linguagens e relações. 

A dissertação de mestrado da educadora Laureane Marília de Lima Costa traz importantes contribuições para a Educação Sexual Emancipatória como ferramenta de luta contra o capacitismo e a misoginia. Muitas mulheres com deficiência foram escutadas.

Laureane lhes escuta e eu escuto Laureane. Ela nos conta que as mulheres com deficiência estão fartas de relacionamentos afetivos marcados pela violência, naturalizada, por vezes, como uma consequência inevitável do estresse que o homem sente por viver com uma mulher com deficiência. Laureane explica que essas mulheres, reféns dos padrões de beleza, aprendem a odiar seus corpos e a sentirem vergonha de serem como são ao ponto de aceitarem todo e qualquer abuso sofrido como única possibilidade de vivência do amor. Muitas justificam o abuso como acidental e que, se não fosse seu problema físico, teriam se defendido sem se machucar tanto. Outras, que já experienciaram dolorosos processos de reabilitação, ponderam que o abuso até que não é tão ruim perto da ideia de não ter, por perto, o homem que ao mesmo tempo que bate, lhes tira da cama todos os dias.

Laureane me apresenta a mulher abusada por um médico ginecologista e, depois, desacreditada pela família.  Afinal, pensa a família, por qual razão um soberbo senhor, desses tão sabidos e poderosos, iria desejar um corpo de mulher com deficiência?

Para além dos dolorosos relatos, Laureane traz de forma clara a perspectiva do modelo social de deficiência, tal qual previsto no artigo 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13146/2015).   

“Até por volta dos séculos XVIII e XIX, o discurso místico e religioso dominava as explicações sobre a deficiência, concebendo-a ora como fruto do pecado, ora como bênção divina, quando então essa narrativa foi questionada pelo modelo médico da deficiência. Assim, a culpa e o azar cederam espaço para a genética, as doenças e os acidentes. O modelo médico ou individual da deficiência entende que o impedimento corporal (lesão) é a causa da desigualdade social e das desvantagens experienciadas pelas pessoas com deficiência, elaborando uma explicação individualista e essencialista sobre a deficiência. A perspectiva biomédica categoriza os corpos como normais ou anormais. Assim, o corpo com deficiência é definido a partir da comparação e contraste com o corpo sem deficiência, logo, a deficiência é definida como um desvio do padrão normal de ser humano, acarretando medicalização e tentativas de correção do corpo com impedimento, enquanto a estrutura social permanece indiscutível.

Do mesmo modo que o discurso místico e religioso foi questionado pelo modelo médico da deficiência, este foi contestado pelo Modelo Social da Deficiência. De acordo com o último, a explicação sobre a deficiência desloca-se do indivíduo para a organização social. Assim, a explicação de que o impedimento corporal causa a deficiência dá espaço à explicação de que a deficiência é fruto da relação entre um corpo com impedimento e uma sociedade com barreiras ambientais e culturais, incapaz de atender à diversidade física, sensorial e intelectual das pessoas.”

Nesta linha, a revolução proposta por nossa Frida brasileira berra nos ouvidos do patriarcado capacitista que a deficiência não está em seus corpos, mas é também uma opressão social, uma narrativa política para justificar um mundo em que uns são melhores que outros. A posição de inferioridade estética, social, política de alguém jamais será natural, biológica ou inevitável.

E ela segue, com o dedo na grande ferida:

Assim como acontece com outros grupos oprimidos, às pessoas com deficiência são impostos estereótipos e distorções, restringindo a integridade de sua humanidade e reduzindo-as apenas a seus aspectos corporais que não se enquadram no padrão de normalidade. Um dos efeitos disso é a naturalização da situação de desigualdade, mantendo a organização social e do trabalho como está, a qual persegue a maximização dos lucros e, deste modo, define o valor das pessoas por sua capacidade produtiva, uma vez que as pessoas com deficiência são consideradas improdutivas, sua falta de produtividade deve ser administrada de modo a atrapalhar o mínimo possível a acumulação de lucro

 Em escritas, discursos, palestras, me sinto convocada nos desejos das Fridas do nosso tempo a sonhar radicalmente com o mundo sob outra lógica, em que a busca pelo lucro de poucos não ceife as múltiplas possibilidades de existência de tantos, e a ética do cuidado seja, definitivamente, uma política pública.

Por falar em sonhos, no corpo que movimenta o mundo, da bailarina Marina Abib, também me vejo, todos os dias, convocada a dançar. Ao ver os vídeos de Marina Abib dançando, antes da encefalite que limitou os seus movimentos, e agora, vejo que o essencial, de singular beleza, permanece, e até com mais intensidade. Hoje, é possível ver o movimento interno que se apagava, antes, pelas habilidades extraordinárias da bailarina consagrada mundialmente.  É possível ver mais que um corpo talentoso dançando, mas é a própria vida, plena de desejo que seguiu, flutuante, desafiando o espaço e o tempo em encantamento próprio.

Não é mais possível não dançar com elas. Não escrever com elas. Não sonhar com elas. Não seguir… seguir… em movimento e busca … com elas.  

Ana, de Clarice Lispector, no conto “Amor”, teve uma epifania quando viu o cego mascando chiclete. Não era piedade. Era uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. “Era a pior vontade de viver”.  

É preciso atravessar as convenções internacionais, a constituição federal e os estatutos para enxergar, também, os corpos de mulheres com deficiência. Vejam só, soberbos senhores que ditam as normas deste mundo, eis a denúncia: as Fridas seguem vivas. Belíssimas, interessantes, desejantes, dançantes, falantes, amantes, movimentando o mundo e fazendo a revolução.

Quem vem?    

Cristiane Corrêa de Souza Hillal

Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma Ministério Público.

Referências:


1) Costa, Laureane Marília de Lima. A perspectiva de mulheres com deficiência sobre gênero e sexualidade: contribuições para a educação sexual emancipatória

http://bdtd.ufj.edu.br:8080/handle/tede/40

2) Lispector, Clarice. Laços de Família. Conto: Amor. Rocco, 1998.

3) Músicas:

Para ver as meninas. Paulinho da Viola

Fulgás. Marina Lima.

Oração ao Tempo. Caetano Veloso

4) @

https://www.instagram.com/marina.abib/#
https://www.instagram.com/coletivohelenkeller/#
https://www.instagram.com/_marianarosa_01/#
https://www.instagram.com/thaisbeckersilveira/#
https://www.instagram.com/laureanelimacosta/#

Transforma MP faz sustentação oral no CNJ em favor da equidade de gênero

O Coletivo Transforma MP, após ter sido habilitado como amicus curiae, foi representado pela Subprocuradora-Geral da República aposentada, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, em sustentação oral no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), durante sessão que ocorreu nesta terça-feira (19), em Brasília.

A sessão ordinária discutiu a proposta de alteração da Resolução nº 106/CNJ, de iniciativa da Conselheira Salise Sanchotene, que visa a dar concretude à Política de Participação Institucional Feminina. A medida configuraria ação afirmativa para a promoção de juízas aos Tribunais, respeitando o princípio da proporcionalidade e em busca da equidade de gênero, contemplando a previsão de novo critério para a formação da lista de promoção de magistrados e magistradas para instâncias de segundo grau. Segundo a proposição, até que cada Tribunal alcance a proporção entre 40% a 60% por gênero, deve haver a alternância entre mulheres e homens na promoção tanto por critério de antiguidade, quanto por merecimento.

Na sustentação, destacou-se que “é uma proposta concreta para a ampliação da representação feminina nos tribunais e encontra respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que enfatiza a necessidade de medidas afirmativas em favor das mulheres para vencer a discriminação indireta e estrutural que mantém as mulheres em situação de desigualdade material. Desigualdades respaldadas em normas aparentemente neutras, como as de promoção nas carreiras do judiciário e do Ministério Público. Assim, a proposta da conselheira Salise preserva a regra constitucional das promoções pelos critérios de merecimento e de antiguidade, tão só regulamentando sua execução adotando perspectiva de gênero.”

Abolição é liberdade, ditadura nunca mais!

ESTRUTURA DO PALACIO DA ABOLICAO – 50 ANOS; © TATIANA FORTES/ GOV. DO CEARA

O Coletivo Transforma MP juntamente com a Coalizão Cearense em Defesa da Democracia e outras entidades e movimentos sociais subscreveram uma nota em apoio ao governador do estado do Ceará, Elmano de Freitas, que colocou fim às homenagens ao ditador Castelo Branco. 

Durante um evento em comemoração aos 44 anos da Lei da Anistia, o governador determinou que o mausoléu do marechal Castelo Branco fosse retirado do Palácio da Abolição, sede do governo cearense, para dar lugar a um monumento em homenagem aos líderes abolicionistas cearenses, como o Dragão do Mar, que lutaram por liberdade.

O cearense Humberto Castelo Branco foi o 1º presidente do regime militar brasileiro. Ele assumiu o governo por meio do decreto AI-1 em 1964. A partir desta data o golpe tomou musculatura e sufocou os direitos e liberdades do povo, além de matar incontáveis jovens, estudantes, professores e críticos da ditadura. 

Em nota, as entidades afirmam que para uma justiça de transição é necessário que haja reparação histórica. 

“A ressignificação de espaços de memória do período de horror é uma reivindicação histórica de movimentos por memória, verdade, justiça e reparação, com amparo expresso nas resoluções do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei n. 12.428/2011.”

A nota está aberta para subscrições individuais e o documento será entregue em breve nas mãos do governador do estado do Ceará, por meio da comissão de representantes das várias entidades.

Quem são os responsáveis pela polarização política?

Um dos antídotos sugeridos por Sunstein é assegurar que os cidadãos sejam expostos a ideias, argumentos e narrativas as mais diversas.

por Régis Richael Primo da Silva no GGN

Nos últimos anos, a ciência política tem se dedicado bastante a estudar as causas da polarização política. O fenômeno da polarização é mundial e parece crescer a cada dia, sendo hoje um dos maiores obstáculos ao fortalecimento da democracia e à paz.

O cidadão comum, que participa do debate público nos encontros do dia a dia e nas redes sociais, também está preocupado com a polarização política. Mas ele não precisa da ciência política para concluir que o grande responsável pela polarização é o “outro”, isto é, seu adversário político. A verdade é que o debate sobre as causas da polarização está, também ele, polarizado. De um modo geral, a esquerda culpa a direita, a direita culpa a esquerda, e os centristas culpam ambas – esquerda e direita.

Cass Sunstein, professor de Direito em Harvard, apresenta, porém, uma perspectiva diversa. Para ele, quando pessoas com ideias políticas semelhantes reúnem-se em grupos e conversam entre si, elas se tornam mais extremistas em suas posições políticas e mais intolerantes com quem pensa diferente.

A afirmação parece contraintuitiva, mas é o que algumas evidências mostram. Há algum tempo, Sunstein conduziu, com alguns colegas, um pequeno experimento na área da democracia. Eles reuniram 60 cidadãos americanos, os dividiram em grupos de 6 pessoas, e os membros de cada grupo foram convidados a deliberar sobre questões como uniões civis entre casais do mesmo sexo, ações afirmativas e aquecimento global. Como o experimento foi planejado, foi possível separar os grupos em “liberais” e “conservadores”. Sunstein e seus colegas primeiro pediram às pessoas que declarassem suas opiniões individual e anonimamente. Depois, as mesmas pessoas deveriam discutir essas questões com seu grupo e, em seguida, adotar um veredito público. Por fim, os participantes do experimento fariam suas declarações anônimas finais como indivíduos.

Concluído o experimento, os resultados foram perturbadores: segundo Sunstein, “em quase todos os grupos, seus membros acabaram adotando posições mais radicais depois de falarem uns com os outros”. Sunstein também notou que o experimento tornou os grupos liberal e conservador mais ideologicamente homogêneos, sufocando, assim, a diversidade interna. A conclusão de Sunstein é que a discussão interna nos grupos ajudou a ampliar a divisão entre liberais e conservadores.

A gravidade disso reside no fato de que, a cada minuto, esse pequeno experimento está sendo reproduzido nas mídias sociais e em muitos países. No Twitter, por exemplo, ao seguir pessoas que pensam como você, e ler o que elas têm a dizer, caro leitor, provavelmente você se tornará mais inflexível em sua posição. E isso sem sequer notar a mudança.

Um dos antídotos sugeridos por Sunstein contra a polarização é assegurar que os cidadãos sejam expostos a ideias, argumentos e narrativas as mais diversas. O problema está em como fazer isso, já que as plataformas de mídia social criam para seus usuários experiências personalizadas. Diariamente, somos submetidos a notícias, artigos, vídeos e postagens que adotam pontos de vista semelhantes aos nossos. Com isso, em vez de termos nossa visão de mundo desafiada, ela é cada vez mais reforçada. Logo, no mesmo passo em que nos sentimos mais confiantes em defender nossos pontos de vista, mais nos tornamos desconfiados e intolerantes com quem pensa diferente de nós. O pluralismo de ideias, um dos pilares da democracia, cede lugar ao fanatismo, e nossos interlocutores já não são vistos apenas como rivais no campo das ideias, mas como inimigos malvados a serem eliminados.

Um outro desafio à polarização é que não basta sermos expostos a opiniões diversas, dentro e fora dos nossos grupos ideológicos. Sem a disposição para ouvir, e a empatia para encarar o interlocutor rival como alguém de boa-fé, isso de nada adianta. Como esperar que haja diálogo genuíno, se estamos cada vez mais raivosos e certos das soluções que propomos para os problemas do mundo?

Uma terceira dificuldade é o narcisismo moral que tem se tornado hegemônico no século XXI. As pessoas já não são consideradas boas por aquilo que elas fazem: por serem gentis, pacificadores, ajudarem os necessitados, cultivarem o perdão, servirem ao próximo etc. Hoje, alguém é reconhecido como “bom” se professa determinada crença e manifesta essa crença em suas redes sociais. Alguém pode ser um péssimo pai, um profissional preguiçoso e um cidadão presunçoso e arrogante e, ainda assim, poderá ser reconhecido como “bom” se tiver as ideias “certas” (aprovadas por seu grupo) sobre as questões polêmicas do mundo moderno e as expressar publicamente: já não somos julgados por nossas virtudes e vícios, mas pelas opiniões que professamos. A polarização é também um efeito do narcisismo moral do mundo contemporâneo.

Não é fácil sair da situação em que nos encontramos. As redes sociais nos tornaram mais agressivos e hostis. São cada vez mais comuns, em debates pela internet, os ataques pessoais e os insultos. Julgamos tudo e todos, reagindo quase sempre instantaneamente a qualquer notícia ou postagem, sem pausa para checagem e reflexão. Substituímos a dúvida metódica pela certeza dogmática, e o silêncio prudente pelo ruído interminável da lacração e do cancelamento.

O filósofo italiano Norberto Bobbio tinha sua receita para o debate público: “avaliar todos os argumentos antes de se pronunciar, controlar todos os testemunhos antes de decidir, e não se pronunciar e nunca decidir à maneira de oráculo do qual dependa, de modo irrevogável, uma escolha peremptória e definitiva”. Mas Bobbio faleceu há quase 20 anos, e o diálogo verdadeiramente genuíno está fora de moda.

Amós Oz, escritor israelense, propôs como remédio para o fanatismo o senso de humor e a curiosidade. Humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, dizia Oz, e, dificilmente, alguém que ri de si mesmo se torna fanático. A curiosidade, para Oz, é a virtude que faz com que nos coloquemos no lugar do outro e nos abramos a novas perspectivas. Um curioso fanático simplesmente nunca existiu.

Infelizmente, a polarização está longe de acabar, pois sequer percebemos que somos nós mesmos que a alimentamos diariamente. Continuamos a acreditar que o inferno é sempre o outro. Tudo poderia, porém, ser muito diferente se começássemos reconhecendo que não precisamos ir além do nosso próprio coração para encontrar a fonte de toda a violência no mundo. Quem sabe essa pequena verdade nos fizesse despertar do sono da razão e pudesse ser o remédio eficaz de que a democracia e a paz tanto necessitam.

Régis Richael Primo da Silva é membro do Ministério Público Federal no Ceará e integrante do Coletivo Transforma MP.

Transforma MP envia notícia-crime ao Procurador-Geral do Rio de Janeiro para apurar intolerância política

Por Marina Azambuja

O Coletivo Transforma MP enviou uma petição ao Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Luciano Oliveira Mattos de Souza, com a finalidade de solicitar a apuração de eventuais crimes e adoção de medidas preventivas contra intolerância política. 

O caso apresentado no documento diz respeito ao ataque que a deputada Lúcia Marina dos Santos e seus companheiros sofreram no último sábado (12) durante uma reunião que ocorreu em Nova Friburgo. De acordo com vídeos divulgados pela internet, Lúcia Marina e militantes foram agredidos fisicamente e verbalmente após a disseminação de notícias falsas sobre a reunião. 

De acordo com o Coletivo foram praticados os crimes: Injúria qualificada, constrangimento ilegal; perseguição, todos com aumento de pena, além de incitação ao crime. 

A entidade pediu ao Procurador-Geral a abertura de procedimento investigatório Criminal (PIC) e a abertura de procedimento administrativo (PA) para que medidas cabíveis sejam adotadas em face dos responsáveis. 

QUEM TEM MEDO DE GREVE?

Por Lorena Vasconcelos Porto* no GGN

A hora mais escura é quando vai amanhecer (Provérbio sefardita)

As recentes greves gerais realizadas na França contra a reforma da previdência ocuparam espaço relevante no noticiário nacional . Não é a primeira vez que os franceses usam esse instrumento para protestar contra políticas econômicas e sociais do Governo. E o mesmo ocorre na Itália, por exemplo .
No Brasil, ao contrário, tais greves têm sido consideradas ilegais pela jurisprudência majoritária dos Tribunais Trabalhistas. Basta pesquisar em motores de busca na rede mundial de computadores as palavras “greve abusiva” ou “greve ilegal” para encontrar inúmeras decisões judiciais nesse sentido. Foram declaradas abusivas, por exemplo, greves realizadas em 2017 contra as reformas trabalhista e previdenciária . Até mesmo uma greve de funcionários de empresa estatal contra demissões foi considerada política . Mas por quê?


A Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, conferiu grande amplitude ao direito de greve, prevendo que cabe “aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.


A greve é reconhecida como um direito em diversos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA, o Protocolo de San Salvador e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.


Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é reconhecida pelo Brasil desde 1998, há três categorias de greves: as trabalhistas, que buscam melhorar as condições laborais ou de vida dos trabalhadores; as sindicais, que veiculam as reivindicações coletivas dos sindicatos; e as que contestam políticas públicas. A mesma Corte adverte que a legalidade é um elemento central para o exercício do direito de greve, de modo que as condições e requisitos para considerá-la lícita não devem ser complexos a ponto de inviabilizá-la na prática .


A Corte Interamericana também considera lícita a greve de solidariedade, que é realizada em apoio às reivindicações de trabalhadores de grupo ou categoria distinta. Adota, assim, o conceito de greve do Comitê de Liberdade Sindical da Organização Internacional do Trabalho – OIT , que também considera lícitas as greves políticas e de solidariedade .


No Brasil, ao contrário, a Justiça do Trabalho tem apresentado posicionamento majoritário pela ilicitude de tais greves, pelo fato de não veicularem reivindicações que possam ser atendidas diretamente pelo empregador por meio da negociação coletiva. Ademais, tem exigido a observância de uma série de requisitos para a validade do movimento paredista, por vezes com base na própria Lei de Greve (Lei n. 7.783/89), o que vai de encontro à amplitude do direito assegurado pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A necessidade de observância desses tratados e da jurisprudência da Corte Interamericana, bem como do controle de convencionalidade das normas internas -, entre as quais, a Lei de Greve -, foi reafirmada em recentes Recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) .


A greve foi e tem sido a grande arma dos trabalhadores e dos sindicatos para criar direitos e torná-los mais eficazes, e não apenas para fins trabalhistas, mas para a promoção das classes oprimidas em geral. Por isso, as leis estão sempre tentando capturá-la, e ela sempre buscando fugir . A greve evidencia que, sem os trabalhadores, responsáveis pela produção da riqueza, o empregador se torna impotente, sendo este o seu maior medo. É por isso que os donos dos meios de produção pressionam o Estado por reformas legislativas e decisões judiciais que diminuam a força dos sindicatos, minem os direitos trabalhistas e esvaziem o direito de greve , além de promoverem a demonização dos movimentos paredistas nos meios de comunicação. A própria legalização da greve foi uma forma de controlá-la e limitá-la, pois, como já advertia Bernard Edelman, a greve é operária, o direito de greve é burguês.
Em países com democracia mais consolidada e desenvolvimento socioeconômico mais elevado, como França e Itália, as greves não são objeto de proibições e restrições excessivas pelo Estado, sendo também aceitas e até apoiadas pelo conjunto da sociedade. A hostilização das greves no Brasil contribui para a fragilização da democracia e o aprofundamento das desigualdades.

Lorena Vasconcelos Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia e da Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Membros do Coletivo Transforma MP protocolam ACP contra governo de SP e secretaria de Educação volta atrás

Nesta quarta-feira (16) o Ministério Público de São Paulo juntamente com a Defensoria Pública protocolaram uma Ação Civil Pública (ACP) contra a decisão do governo do estado de São Paulo de ficar de fora do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). 

Em coletiva de imprensa realizada na última semana, o secretário estadual de Educação, Renato Feder, alegou que os estudantes da rede pública não acessam os livros didáticos disponibilizados nas escolas. Para os autores da ação, a decisão do estado de São Paulo de não aderir ao PNLD para anos finais do ensino fundamental fere os princípios da gestão democrática do ensino público, da liberdade de ensinar, aprender e pesquisar e do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas.

As instituições também destacaram a necessidade da participação do magistério e dos Conselhos de Escola nas deliberações sobre escolhas de recursos didáticos e progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa às unidades escolares.

Após decisão da Justiça, a Secretaria da Educação de SP afirma que voltará a aderir ao PNLD. 

Os integrantes do Coletivo Transforma MP, Fernanda Peixoto, Bruno Orsini e João Faustinoni, que compõem o Grupo de Atuação Especial de Educação (GEDUC), foram uns dos responsáveis pela ACP por parte do MPSP.

Coletivo Transforma MP recebe moção na Câmara municipal do Rio

O Coletivo Transforma MP recebeu uma Moção de Reconhecimento destinada a entidades jurídicas e sociais que lutam pela democracia, pelos direitos humanos e por uma sociedade mais justa.

A cerimônia foi organizada pela vereadora do Rio de Janeiro Luciana Boiteux e ocorreu nesta nesta sexta-feira (11). 

O Coletivo foi representado pela Promotora de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro, Érika Puppim, que durante sua fala ressaltou que de nada adianta o MP “defender uma sociedade” que é machista, racista, e genocida com a população negra, jovem e periférica. Outro fato abordado por Puppim foi a necessidade do Ministério Público assumir sua missão constitucional no que tange o controle externo da polícia para evitar que mais mortes ocorram diariamente, como a tragédia da última semana que matou o menino Thiago Menezes Flausino, na Cidade de Deus.

Uma espinha na ‘garganta’ da democracia brasileira

Por Maria Betânia Silva no GGN

Para o cidadão comum bem informado, associar a palavra ‘Constituição’ ao texto constitucional, serve para reforçar o caráter normativo dela.

1.Breves anotações sobre a ideia de Constituição

Um dos temas que mais amplia os estudos e debates no âmbito da teoria constitucional está relacionado à plurivocidade do termo Constituição, o qual, na Grécia Antiga, fora definido por Aristóteles como “o modo de ser de um povo” expressão da politea, assim se mantendo por muito tempo. A partir da Revolução Francesa (1789) o termo passa a adquirir uma forte conotação político-ideológica, sendo associado ao marco de um Estado que se organiza em torno da vontade popular consignada numa declaração de direitos e deveres do cidadão. Historicamente isso pareceu concretizar o ideal democrático de viés liberal facilitado pelo dogma da tripartição de poderes do Estado no exercício das funções executiva, legislativa e judiciária em relação às quais se impõem limitações recíprocas para serem mantidas em um estado de equilíbrio e, assim, conferir a estabilidade desejada ao poder do Estado.

Considerando a proeminência que a declaração textual de direitos e deveres do cidadão assumiu no processo histórico revolucionário do século XVIII, na França, mas não apenas nesse século e tampouco só na França,  os direitos dos cidadãos se tornam parte irrenunciável do conceito de Constituição, o que, mais tarde, abre caminho para reivindicar um sentido normativo dos direitos que se incorporam ao texto constitucional definidor da organização política de um país cujo governo esteja comprometido com a vontade popular.

Progressivamente outros eventos históricos ligados ou não às revoluções liberais também contribuíram para conferir à Constituição um sentido normativo, passando a considerá-la como a Lei Maior do país. Ou seja, uma lei em relação à qual todas as demais obrigatoriamente com ela devem se compatibilizar, sob pena de em não o fazendo serem invalidadas no interior da ordem jurídica. Nessa perspectiva, a forma escrita se torna predominante na apresentação da Constituição. Mas isso comporta exceções. A mais relevante das exceções de Constituição não escrita, baseada predominantemente no costume, é a do Reino Unido onde, embora se declare a Constituição como um plexo de costumes de caráter vinculante ao qual se incorporam também leis escritas seculares, o país há poucos anos investiu numa estrutura de Corte para se ocupar da força normativa dos seus costumes. Certo é, então, que a ideia de supremacia da Constituição escrita ou costumeira e, por conseguinte, da sua desejável força normativa, se torna inconteste.

No entendimento do cidadão comum medianamente informado, no Brasil e alhures, associar a palavra ‘Constituição’ ao texto constitucional, parece também servir para reforçar o caráter normativo dela. Ter esse texto sob a forma escrita torna-o palpável para exigir o seu cumprimento.  Assim, a importância da ideia de ter uma constituição escrita define com clareza para nacionais e estrangeiros, os contornos do Estado, os direitos a serem respeitados e os limites de exercício de poder do governo.

Apesar dos variados enfoques teóricos que exploram a plurivocidade do termo Constituição explicando-o sob um ponto de vista exclusivamente jurídico, político, sociológico ou cultural- dialético, todos eles, a rigor, não se distanciam daquilo que disse Aristóteles. Tudo converge para a compreensão do que é “o modo de ser de um povo”.

Nos tempos atuais, a normatividade do texto constitucional é o que há de mais precioso para garantir a estabilidade política de um país, servindo como um filtro que decanta eventuais abusos e conflitos entre os poderes do Estado representados por suas mais altas autoridades e, ademais, serve como uma plataforma de compromisso para a concretude dos direitos da população. A normatividade da Constituição, na verdade, serve como valioso argumento para neutralizar conflitos desagregadores da vida nacional e legitimar medidas legais que demandam a denominada “violência simbólica do Estado” para manter íntegra a ordem jurídica naquilo que contempla o bem-estar, o respeito e a dignidade da maioria do povo. A maior contribuição sobre a importância da supremacia normativa da Constituição advém da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen que concebeu esse aspecto como um dogma, inaugurando com rigor uma abordagem do Direito denominada de Dogmática Jurídica.

Sob essa perspectiva, é que as Cortes Constitucionais surgem como locus privilegiado para afirmar o sentido do texto constitucional que é, em certa medida, menos abrangente do que as normas constitucionais[1]. Embora esse assunto suscite questionamentos infindáveis e pertinentes, por vezes até muito incômodos, outras vezes temerários, a ideia das Cortes Constitucionais encarregadas de interpretar e fixar o sentido do texto aparece até o momento insuperável porque, ainda, não se inventou um Estado que consiga funcionar a contento, sem atuação dessas Cortes, em situação de crise política e /ou jurídica. No BR, o STF, que acumula várias competências jurisdicionais, exerce também a função de Corte Constitucional conferindo uma interpretação ao texto que permita fazer valer a normatividade dele.

Num sentido metafórico, a palavra Constituição e sua força normativa está na boca de todos, mas pouca gente tem paladar para saboreá-la no ponto ideal. Para uns ela é doce; para outros, salgada; para tantos outros, amarga. E ela pode ter todos esses sabores, sendo todos eles aceitáveis porque, antes de qualquer coisa, a Constituição como Lei Maior do país é um alimento necessário para a vida política e é dele que se pode extrair os nutrientes saudáveis para o corpo social. Por isso a Constituição será tanto mais apreciável em virtude dos ingredientes usados na sua feitura.

2.Um pouco dos antecedentes históricos

No caso do Brasil, critique-se o que se quiser na Constituição de 1988, que, aliás, já passou por sérias modificações desde a sua promulgação, mas dela não se pode retirar a áurea histórica de luta a favor da democracia. Ela surge como um sonho que no Brasil fora adiado por mais de 21 anos, tempo durante o qual o país vivia sob um sono profundo de horror e o desejo de sair dele. Ao longo desse tempo, o país acordado, vivia um pesadelo; dormindo, tinha um sonho encantador que se desvanecia quando a manhã chegava. 

Foi nesse interregno entre o sono longo e perturbador e um acordar efusivo que o texto constitucional de 1988 nasceu, trazendo na sua face a beleza dos Direitos Fundamentais e na garganta o art.142. Na atualidade, a democracia tão duramente construída e tão precariamente vivida deparou-se – e ainda não se livrou – da ameaça constante do art.142 cujo texto sujeito a maldosas interpretações, dispõe:

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por inciativa, de qualquer destes, da lei e da ordem.

Esse dispositivo constitucional, realmente, é um espinho na garganta da democracia brasileira!

Melhor seria que o texto constitucional de 88, que representou o fechamento de um ciclo de governos autoritários liderados por militares, não existisse com esse conteúdo. Melhor seria não mencionar as Forças Armadas que engrossam seu efetivo com as polícias militares dos estados, consideradas como suas forças auxiliares e que no cotidiano de vida local dispõem de uma parcela de policiais encarregada de amedrontar a população civil. Melhor seria que em vez dessa previsão expressa de submissão das Forças Armadas ao Presidente da República, o qual, na prática, tem que atuar sozinho em relação a elas, ‘confrontando-as sem se confrontar’, tivesse  sido prevista uma Justiça de Transição para fazer os militares responderem pelos crimes por eles cometidos durante a ditadura, quando estiveram formalmente chefiando o Brasil. Melhor seria com a Justiça de Transição inibir os que se veem hoje tentados a repetir o passado até numa versão muito pior. Melhor seria…

É desejável que nos livremos, de uma vez por todas, do receio e da vergonha de sermos governados por porta-vozes das FFAA e, ainda, de suportar a convivência com parcela degenerada delas, movidas apenas por ambição de poder e idiossincrasias, em completo desprezo ao texto constitucional de 1988.

Mas a História não é exatamente como se deseja, ela é sempre um processo que assume diferentes formas e velocidades, movendo dialeticamente as engrenagens sociais e as instituições existentes. Às vezes a História é lenta demais, às vezes é veloz mas é sempre implacável, inclusive, no sentido de que nunca prescinde do povo para adquirir a velocidade possível e segura de fazê-lo chegar ao destino desejado.

No Brasil, identificam-se traços na nossa formação histórica que atestam a continuidade de uma trajetória contrastante com eventos isolados de descontinuidades. Esses traços expressam de forma muito preocupante as particularidades do nosso país, ampliando as incógnitas sobre o futuro. De forma bem resumida, destacam-se:

a) três séculos e meio de escravidão (o tempo da infâmia!) reatualizado nas inúmeras e quase cotidianas ocorrências de descoberta de pessoas  que trabalham em “condições análogas a de escravos” e a ignóbil prática do racismo; b) longo período monárquico que projetava a herança da monarquia portuguesa em solo brasileiro, sem um rompimento verdadeiro de laços com a metrópole, reatualizando o sentimento traduzido pela expressão “complexo de vira lata” e bem fortalecido pela sabujice dos membros de parcelas privilegiadas da sociedade; c) surgimento de uma oligarquia agrária, entusiasta do “progresso” feito por meio da grilagem de terra, com extermínio indígena e devastação florestal, refratária a um projeto de reforma agrária que permita uma distribuição das riquezas que o país produz e das que poderia explorar. Uma oligarquia saudosa dos “Tempos do Imperador” que também se mostra insatisfeita e traidora c quando sofre um mínimo de restrição quanto aos seus objetivos e d) criação de uma Guarda Nacional (1831) convertida, posteriormente, em força de segurança (1918) assim como a formação de um Exército[2] cuja atuação esteve sempre associada aos economicamente poderosos contra a população civil.

Somados, todos esses fatos fizeram com que o país em vez de banir o autoritarismo como regra para o exercício do poder que se manifestava em favor das classes abastadas contra o restante da população, passasse a cultivá-lo, em detrimento, portanto, de princípios democráticos voltados à igualdade na distribuição das riquezas e à liberdade permeada por diálogos transparentes e criadores de consenso a serem vivenciados com a devida responsabilidade.

Ora, o apoio incondicional de forças armadas, por exemplo, à classe hegemônica do passado e perpetuada no tempo foi talvez o mais relevante elemento para firmar no horizonte do país o modelo de poder autoritário. Um poder que nega a transparência dos negócios em favor dos interesses de uma única classe social, sacrifica a vida da população civil brasileira e ainda lhe sequestra a dignidade.

Vale lembrar que forças armadas atuaram decisivamente na destituição do Imperador (1889) em virtude do desgaste de sua autoridade junto às oligarquias para, então, proclamar a República. Embora, conceitualmente, a República seja definida como coisa pública, algo do interesse do povo e sob o domínio deste, no solo brasileiro, ela vingou originalmente apenas como argumento para fazer prevalecer o interesse das classes dominantes contra o povo, o qual, diga-se de passagem, também durante o Império não foi protagonista da História nacional, apesar da resistência e vitórias inesquecíveis em algumas batalhas. Enfim, a República brasileira nasceu deformada em relação aos ideais da forma de governo republicano e culturalmente não se livrou por completo de traços do anacronismo monárquico. Não por acaso, o título de Rei e Rainha é ainda conferido aos que se destacam nas suas atividades, indo do Rei da música ao Rei dos Pastéis.

Breve, desde 1889 a sociedade brasileira espera alcançar o ideal republicano como um solo fértil para a sua democracia, porém, a trajetória nesse sentido, como se vê, mostra-se árdua.

3. De olho no futuro sem medo das sombras do passado

Se de um lado, deve-se admitir que sofremos da falta de uma mobilização popular unificada e bem orientada politicamente para se contrapor ao interesse das oligarquias; de outro lado, é preciso reconhecer que conspirou contra essa mobilização e ainda conspiram forças muito bem armadas, tributárias de uma lógica de violência voltada à proteção do interesse de classes poderosas do ponto de vista econômico e que hoje pouco importa se são ou não classes produtivas nos limites da lei ou fora deles. O caráter colonizador subsiste nas veias abertas do país, sendo manifestado pela opressão, a exploração da força de trabalho, a segregação racial e imposição de valores hegemônicos das oligarquias forjadas no passado.

Desde 2016, quando se deu o golpe judicial-parlamentar-oligárquico e midiático contra a Presidenta Dilma legitimamente eleita e absolutamente honesta, isso ficou mais do que claro. Foi nesse momento que setores das Forças Armadas receberam o sinal necessário para retomar o papel que sempre tiveram na História do Brasil: a) o de compor o governo e assim o fizeram, a convite do ex-vice-Presidente Michel Temer; b) o de defender como legítimos os interesses dos economicamente poderosos; e o de c) servir de escudo de segurança para eles. Aliás, no passado recente, pareceu natural que essas viessem a compor o Gabinete de Segurança Institucional – tal como no Império. Enquanto isso…fora dessa estrutura formal, as forças armadas, não param de exibir  “competência de ação” em desfavor de direitos fundamentais dos civis, em especial no Rio de Janeiro que esteve sob intervenção e continua sendo palco-piloto dessa performance desrespeitosa, mesmo sem uma intervenção. Uma performance que se alastra pelo país.

Diante desse retorno ao passado, numa ‘marcha à ré veloz desde de 2016’ – que tem sido alvo de alguma resistência pouco expressiva quanto aos seus efeitos – a impressão que se tem  é que o Brasil se constituiu  fraturado sem que a fratura tenha sido bem calcificada. Não obstante a luta dos africanos escravizados e dos afrodescendentes, bem assim da luta dos  indígenas, sempre resistentes em favor dos seus direitos fundamentais, e, ainda, da adesão de vários segmentos sociais que foram se constituindo ao longo da História do país para engrossar as fileiras da resistência em busca da emancipação, assiste-se com certa descrença e repugnância um solapamento do projeto democrático de país  através da presença cada vez maior de setores das forças armadas e das polícias militares, o que se acentuou desde que um capitão indisciplinado, para dizer o mínimo, chegou à Presidência como legítimo representante do poder militar no país.

Desse modo, foi ficando evidente que em vez de cumprirem um papel de luta para defender o país contra o processo de destruição e entrega de suas riquezas aos representantes de nações estrangeiras[3], parte das forças militares assume e assumiu o papel de sempre, o de ser um fator de desestabilização da democracia e violador do verdadeiro sentimento patriótico, o qual se consubstancia na defesa do povo brasileiro e do seu bem-estar conforme a promessa trazida no texto constitucional de 1988.

Tudo isso é uma obviedade já dita de várias formas e por diversas outras pessoas, nos mais diferentes espaços de comunicação desde 2016. Também é algo que foi até sinalizado por algumas outras, bem antes dessa data, lá pelos idos de 2013, 2014, em especial, quando a Lava Jato começou a espetacularizar a Justiça e criminalizar a política.

Eventos de toda ordem se sucederam no país desde então e o sentimento de retrocesso histórico, retração democrática, emergência do Leviatã, desrespeito à Constituição de 1988, foram e ainda são expressões que traduzem o espanto e a indignação de muitos cidadãos brasileiros. Pergunta-se com frequência como descemos a um patamar tão baixo de civilidade e naturalizamos o estado de ofensivas ao bem-estar, à dignidade e à vida humana?

Arrisca-se aqui a dizer que, em parte, esse espanto advém de uma incompreensão sobre a lógica que rege os acontecimentos atuais como heranças do passado e que claramente estão eivados de elementos nazifascista alardeados através de argumentos como a defesa – hipócrita – da pátria e da família e a defesa – absolutamente sincera – da propriedade, sob as ‘bençãos” das armas.

Em outras palavras, a República veste as roupas rotas do Imperador e é imperialista para dentro das nossas fronteiras, cumprindo esse papel sob os auspícios de outro Império, que é gigante e não adormece nunca porque conhece, treina e pratica bem as técnicas da desumanização que caracterizam o nazifascismo.

Vive-se assim uma correlação lógica entre os traços da nossa própria História, a geopolítica internacional e estudos de teoria constitucional que sugeriam um modelo infalível de emancipação política e conquista democrática. Os elementos de caráter sócio-cultural subjacentes ao significado do termo Constituição, em geral pouco valorizados diante do prestígio adquirido pela Dogmática Jurídica como argumento teórico da ideia da Constituição dotada de supremacia normativa e que emergiu pouco antes da Segunda Guerra Mundial, precisam ser pontuados para uma melhor compreensão da tecelagem histórica que nos envolve.

4- O simbólico e o fator real de poder

No âmbito da teoria constitucional, não é raro o uso da expressão “fator real de poder”. Isso remete ao trabalho do teórico alemão Ferdinand Lassalle que, em 1862, escreveu um opúsculo intitulado “A Essência de uma Constituição”, na tradução brasileira.

Essa expressão emerge da ideia defendida por Lassalle de que a Constituição de um país é definida como “a soma dos fatores reais de poder”. Disso decorre que a Constituição escrita pode não manter com esses fatores qualquer correspondência e, nesse caso, não passaria de uma “folha de papel”. A assertiva de Lassale é incômoda para maior parte dos juristas e fonte de desencanto para eles e para o cidadão comum. Definitivamente, a Constituição do país não pode ser reduzida a uma folha de papel, é o que alguns dizem e o que muitos outros pensam!

Sucede que Lassalle adota um conceito sociológico de Constituição, o qual difere, substancialmente, do conceito jurídico-normativo que os juristas costumam invocar para defender e afirmar a constituição escrita como referencial normativo do mais elevado nível no arcabouço jurídico do país e, por conseguinte, torná-la uma garantia de eficácia sobre a realidade na qual a negação de direitos seja praticada.

A perspectiva trazida por Lassalle, é bom que se diga, não tem a pretensão de negar a força normativa do texto constitucional, conforme ponderação feita por Marcelo Neves[4]. Ao contrário, segundo Marcelo Neves, Lassalle até sugeria (talvez desejasse) uma equiparação entre texto e norma constitucional, partindo do pressuposto de que a norma não faria parte da realidade pois que o texto talvez pudesse projetar o que se passa na sociedade, numa relação de dependência absoluta, quase mecânica. Assim, pode-se concluir que ao enfatizar que a Constituição é uma “folha de papel”, Lassalle quis apenas descortinar o que na realidade da vida de um país se passa: um desencontro entre o que está escrito no texto da constituição e as forças que atuam na sociedade.

Essa abordagem, então, para além de permitir que se busque identificar quais os fatores reais de poder numa determinada sociedade, tem também uma função didática para suscitar a tese aqui trazida: a de que, no Brasil, há “normas” estranhas ao texto constitucional com eficácia maior do que aquelas classicamente denominadas normas constitucionais. Há, portanto, uma variação na eficácia do que se considera constitucional.

No livro “A Essência da Constituição”, Lassalle identifica na sociedade do seu tempo os fatores reais de poder, dentre os quais estariam os banqueiros, burgueses, Igreja, força militar. A soma desses fatores é que constituiriam a sociedade. São, de outro modo, a Constituição do país e, nesse sentido, não estando contemplados no texto constitucional, atuam de forma a tornar a Constituição escrita uma folha de papel. Tem razão Lassalle ao falar em fator real de poder como componente da realidade. Deixa de ter tanta razão assim ao sugerir/desejar que se esses componentes estivessem no texto constitucional atuariam sob limitações, negando o fato de que tudo se reduz a uma “folha de papel” e que essa folha pode cumprir um papel simbólico para dele extrair alguma normatividade. Aliás, ironicamente, um episódio recente da história brasileira ilustra bem o poder real e simbólico de uma “folha de papel”: a minuta do golpe de 08 de janeiro de 2023. Uma vez escrito, o golpe ficou na folha de papel!  Mas o poder simbólico dessa folha disse muito.

O conceito sociológico de constituição, na perspectiva defendida por Lassalle é, sem dúvida, muito instigante. Não é demais afirmar que no Brasil, as Forças Armadas e as forças que formalmente na CF/88 foram declaradas como suas auxiliares, as polícias militares dos Estados, desde sempre se configuraram e ainda se configuram como um “fator real de poder”. Estar ou não no texto, na verdade, é um detalhe que pode oscilar entre o real e o simbólico.

É um fator real de poder porque cria suas próprias regras, como no passado remoto, ou descumpre aquelas que foram criadas para limitá-lo em sua ação. Na prática prevalece a ordem “do cale a boca e levante as mãos pro alto, quando o disparo não vem primeiro”! E este é um fator real de poder muito problemático. Repita-se: uma “espinha na garganta da democracia”. Mas, de outro lado, isso não é suficiente porque a médio e longo prazo não como se sustentar. É autofágico!

Talvez por isso alguns militares tenham querido capturar o espaço do legislativo para defender suas pautas historicamente cristalizadas, instrumentalizando a Constituição escrita. A rigor, o papel da força militar desde antes da República não mudou substancialmente e a sua atuação na sociedade permanece associada à defesa do interesse dos economicamente poderosos do país (oligarquias) contra a população civil, que é tomada como inimiga. Ademais, com o passar do tempo, essa força militar vem se convertendo, ela própria, numa oligarquia. Eis o que há de diferente em relação ao passado e que se revela, ainda pior, na realidade.

É triste e revoltante observar o montante de recursos que a força militar ‘abocanha’ do Tesouro Nacional e a gestão que faz desses recursos, sem resistência dos demais poderes do Estado. Tudo se passa em nome da ordem, das idiossincrasias e não da lei! Muito menos em nome da democracia!

Ora, uma vez inserida no texto constitucional, a força militar (Exército, Marinha e Aeronáutica e com seu braço estendido nos estados, as polícias militares) deveriam se mover nos limites ali estabelecidos. No entanto, como fator real de poder que sempre foram e ainda são, essa força atua fora de todos os limites e, às vezes, tenta disfarçar a sua influência, para dizer o mínimo, sobre poder do governo civil.  Logicamente, o governo do ex-vice-presidente Michel Temer não esteve sob a influência da força militar, ele foi a reencarnação dela. Foi a porta que se abriu para que essa força voltasse ao cenário político, desta feita, descaradamente.

Dito isto, soa bastante oportuno aqui trazer à reflexão algo que amplia a percepção sobre o poder real que uma força militar deveria exercer no interior de um Estado cujo governo se esforça em ser regido pela vontade soberana do seu povo, muito especialmente, quando esse povo se expressou nas urnas e se expressa nas ruas, escapando das sabotagens.

Há mais ou menos um mês o mundo tem sido sacudido pelas notícias sobre o Levante militar ocorrido no Níger, país africano fornecedor do urânio que abastece  usinas nucleares francesas. Historicamente o Níger vem sendo submetido ao processo de neocolonialismo capitaneado pela França, mas como nem tudo dura para sempre, o Presidente do país que compactuava com isso e sacrificava o povo foi deposto por forças militares. A situação atual tem gerado preocupações no mundo todo dado o potencial de engendrar outros arranjos na geopolítica, com repercussões, inclusive, nos desdobramentos do conflito OTAN/EUA (Ucrânia) x Rússia.

Os militares que fizeram o Levante no Níger desafiam com muita vontade e consistência argumentativa a hegemonia das potências ocidentais em territórios africanos, contando, em especial, com o apoio explícito de um grupo de países, como é o caso do Mali, da Burkina Faso e até  forças separatistas da Nigéria, país que tem uma base de drones estadunidenses instalada supostamente para combater o terrorismo; militares que recebem treinamento dos EUA e que viram crescer estranha e  exponencialmente a violência em seu território com participação de grupos terroristas. Além dos países citados, outros países demonstraram simpatia pela luta anticolonial que motivou o Levante, como é o caso da Argélia, país “escolado” no sofrimento imposto pelo colonialismo francês.

Especialistas em conflitos internacionais ponderam que embora o novo governo do Níger conte com a liderança de militares, não parece apropriado  falar-se em golpe militar no contexto desse país. A razão que desaconselha o uso dessa expressão é porque os militares  que travam a luta anticolonial por lá estão no cumprimento de sua principal função, qual seja: defender a soberania do seu país contra o saque protagonizado historicamente pela França em relação às riquezas que o Níger tem em seu solo. Ou seja, os militares do Níger parecem estar agindo de modo a sustentar a justificativa de existência de militares em qualquer parte do mundo: a defesa das fronteiras do país, das suas riquezas e do povo ao qual essas riquezas pertencem.

Eles estão deixando clara a insatisfação com o estado de subserviência do governo anterior aos interesses dos EUA e que foram proveitosos para a França, que, como se sabe, tem um histórico de colonização no Norte da África. Em virtude disso, parecem mesmo determinados a lutar em favor do povo do seu país e não contra o povo. Aliás, têm recebido o apoio desse povo nas ruas.  Esse apoio deu fôlego para que soberanamente decidissem cortar a transmissão dentro das fronteiras do Níger da mídia francesa assim como suspender a remessa de urânio para a França.

Logicamente, os desdobramentos desse Levante são imprevisíveis mas algo aí já se descortina: são militares que não batem continência para a bandeira da França, nem elegem como seus inimigos o povo do país que representam, como sói acontecer com militares de alguns outros países. Só pra lembrar, no Brasil, o ex-Presidente derrotado nas eleições de 2022 chegou a bater continência para a bandeira dos EUA. Isso soa tão estranho como estranhas são as idas e vindas infindáveis para realizar palestras por lá, passar férias e depositar “bens” de origem duvidosa. Estranheza também é pensar como ao longo da História, militares da Nigéria ou do Brasil aprendem exercícios táticos nos EUA e fazer um test-drive no solo do seu próprio país contra os seus compatriotas.

E como tudo na vida é aprendizado, o que se passa no mundo nos põe com as “barbas de molho”. A conquista da democracia depende de um povo que não curva a espinha, um povo que escolhe como seu representante alguém cuja cabeça se mantém erguida nas circunstâncias mais adversas, saboreando o gosto da Constituição escrita.

Maria Betânia Silva – Procuradora de Justiça Aposentada do MPPEMembra do Coletivo Transforma – MP 


[1] Teoricamente costuma-se fazer uma distinção entre texto constitucional e normas constitucionais, sendo certo que o texto é um ponto de partida indispensável para a existência das normas, sem, no entanto, se confundir com elas.

[2] Estudos sobre a origem do Exército brasileiro registram que é comum entre os seus membros a ideia de que o Exército surge por ocasião da Batalha dos Guararapes, em 1648. Como quer que seja, este artigo não tem por propósito enfocar o surgimento dos diversos ramos das FFAA no Brasil, mas chamar a atenção para os processos que tornaram a força armada um elemento de defesa do interesse de uma classe economicamente privilegiada.

[3] A Lava Jato, logicamente, embora não tenha sido mencionada nesse ponto do texto, foi a parcela do sistema de Justiça que capinou o terreno e o fertilizou para fazer brotaro golpe. Isso também já não é novidade mas nunca é demais registrar para que nunca se esqueça que a Constituição de 1988 foi aviltada pela atuação voluntarista e voluntariosa de alguns representantes do sistema de justiça, nas diversas instituições que o compõem: Tribunais dos mais variados níveis e membros do Ministério Público.

[4] Marcelo Neves. A Constitucionalização Simbólica. São Paul: WMF Martins Fontes, 2007. Pág.59