Tio Paulo e o espelho quebrado

Antes que tio Paulo recebesse as homenagens póstumas, tanto ele quanto a sobrinha já estavam em todas as redes sociais

por Mário Henrique Cardoso Caixeta

A insólita cena de uma mulher conduzindo em cadeira de rodas um cadáver, para que ele, supostamente vivo, tomasse empréstimo bancário, gerou intensa comoção, indignação, revolta. – Que absurdo! – Essa mulher é um monstro, merece cadeia! Esses, e outros brados impublicáveis, foram repetidos em todo canto.

Nas imagens, a mulher, depois identificada como sobrinha daquele idoso, instrui o recém-falecido a assinar o contrato, dizendo como ele deveria segurar a caneta e lançar no papel a assinatura, ao que as funcionárias da agência bancária, percebendo o corpo inerte do falecido, diziam que o idoso não estava bem! Talvez ele, falecido, naquela cena bizarra, sem dor, sem emoção, inerte, estivesse bem…, porque, quando vivo, tio Paulo, nome do idoso levado naquelas circunstâncias à agência bancária, estava em estado de absoluta indignidade[1], algo que tantas vezes vi ao longo de minha carreira como promotor de justiça do Ministério Público do estado de Goiás.

Antes que tio Paulo recebesse as homenagens póstumas, tanto ele quanto a sobrinha já estavam em todas as redes sociais; e mais um espetáculo de horror se iniciava, para deleite geral! A sobrinha foi investigada, processada, julgada e condenada em tempo recorde. A justiça, muito célere, cuidou de decretar-lhe a prisão preventiva[2], mesmo porque, se presa não fosse, certamente seria linchada pela turba ensandecida.

Sob perspectiva penal, a conduta da sobrinha poderia se ajustar à hipótese de tentativa de estelionato, tendo por eventual vítima o banco, já que o crime de vilipêndio a cadáver estaria absorvido pelo crime patrimonial e pessoa morta não pode ser sujeito passivo de crime furto ou de estelionato. Pode-se falar, inclusive – e é o mais adequado –, em crime impossível, dada a absoluta ineficácia do meio (artigo 17 do Código Penal). Logo, improvável a presença dos pressupostos para a decretação de prisão preventiva (vide artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal), e certamente a sobrinha criminosa fará jus a acordo de não persecução penal (art. 28-A, do Código de Processo Penal), isso se não demonstrada a inimputabilidade. 

Mas, ainda houvesse em tio Paulo o mínimo sopro de vida, apenas para segurar a caneta e assinar motu proprio o documento que lhe foi apresentado, certamente o empréstimo lhe seria concedido, mesmo que aparentemente tio Paulo não estivesse bem; mesmo que tio Paulo externasse nos olhos quase sem vida um pedido mudo de socorro; mesmo que tio Paulo falecesse poucos instantes depois, ao deixar a agência bancária! Por fim, as funcionárias do banco se sentiriam realizadas, porque, afinal, há meta de produção a bater.

Voltando ao escândalo, ele não se deu porque estava evidente uma situação de violência contra pessoa idosa, embora essa violência estivesse sendo exibida em público durante todo o trajeto até a chegada do recém-falecido à mesa da funcionária da agência bancária. Não foi suficiente à avidez pelo bizarro (pois o bizarro está em cadáver tomar empréstimo) o trânsito tranquilo da sobrinha levando o tio falecido – ou quase – em cadeira de rodas por estacionamentos, corredores de shopping etc., ainda que naquela cadeira estivesse um ser humano completamente vulnerável.

A opacidade dos olhos do cadáver não permitiu que a sociedade se visse nele projetada, e daí o espanto, a repulsa, a ojeriza, e o sentimento atroz de vingança. Ergueram-se então os verdugos, disseminados em rede social, para exclamar a plenos pulmões a crueldade que se comete contra pessoas idosas. Mas, afinal, naquela cadeira de rodas estava uma pessoa idosa? Não. Havia um cadáver, e o cadáver trazia nos “olhos que eram de ver” um espelho quebrado, incapaz de refletir a imagem de uma sociedade que faz da velhice um estorvo; e da pessoa idosa, um fardo.

Platão, na obra A República, retrata um diálogo entre Céfalo e Sócrates. Céfalo, já bastante idoso, concita a Sócrates a visitá-lo sempre, pois a idade não permite a Céfalo ir à cidade. Nesse diálogo, Sócrates diz que para ele é “um prazer conversar com pessoas de idade e bastante avançada. Efetivamente, parece-me que devemos informar-nos junto deles, como de pessoas que foram à nossa frente num caminho que talvez tenhamos de percorrer, sobre as suas características, se é áspero e difícil, ou fácil e transitável. Teria até gosto em te perguntar qual o teu parecer sobre este assunto – uma vez que chegaste já a esse período da vida a que poetas chamam estar “no liminar da velhice” – se é uma parte difícil da vida, ou que declarações tens a fazer”.

Permitir que os olhos da pessoa idosa, como um espelho, nos transmitam a dor, o sofrimento e a angústia do desamparo na quadra final da vida, também nos leva a observar nosso próprio reflexo, de uma sociedade que enxerga no humano apenas mercadoria e que, portanto, só tem valor se for útil ao mercado.

Rubem Alves, com a poesia que lhe é peculiar, nos chamou a atenção para essa forma mesquinha de encarar a velhice: “Chegou o momento da inutilidade, e é isso que você não suporta, pois lhe ensinaram (e você acreditou) que os homens e as mulheres são como as ferramentas, que só valem enquanto forem úteis. Um serrote velho, uma enxada gasta, uma alicate torto, um fósforo riscado, uma lâmpada queimada, não prestam para nada” (Se eu pudesse viver minha vida novamente…).

Vemos e nos vemos, ao mesmo tempo! Ao nos vermos, nos constrangemos, nos calamos, nos envergonhamos, pois sabemos que aquele é nosso destino, e muda-lo exige enfrentamento. Nos acovardamos para, mais tarde, colhermos o amargo do porvir. Tio Paulo, se vivo estivesse, depois de assinado o contrato, voltaria à masmorra em que sobrevivia, mesmo que pouco depois falecesse, e nenhum escândalo haveria, pois para isso o espelho que trazemos nos olhos deve estar quebrado, e só a morte, por enquanto, é capaz disso!

O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Mário Henrique Cardoso Caixeta – Membro do Coletivo Transforma MP desde 2022. Membro do Coletivo Repensando a Guerra às Drogas. Especialista em Direito Processual Civil: O Novo CPC em Perspectiva e as Tutelas Coletivas como Instrumentos de Defesa da Cidadania – Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (2018). Especialista em Criminologia e Política Criminal pela Anhaguera-Uniderp (2015). Mestre em História pela PUC – Goiás na linha de pesquisa Cultura e Poder (2009).  Promotor de justiça no Ministério Público do Estado de Goiás desde agosto de 2000. Bacharel em Direito pela UFU – 2000

[1] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/04/21/tio-paulo-ficava-em-garagem-sem-piso-emprestimo-seria-para-reforma.htm

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/caso-tio-paulo-mulher-que-levou-idoso-morto-para-pegar-emprestimo-tem-prisao-preventiva-decretada/

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