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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

Subordinação sem direitos: o projeto de lei Nem-Nem do governo federal

Por Rodrigo Carelli no GGN

O Projeto de Lei Complementar para regular o trabalho dos motoristas impossibilita a autonomia dos trabalhadores e nega-lhes direitos

Painéis luminosos anunciam o lema “autonomia com direitos”. Na frente dos painéis, representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores sorriem para as fotos. Ao centro, o Presidente Lula satisfeito comemora  o nascimento de “uma nova modalidade no mundo do trabalho.”. Acontecia o festim de lançamento, com pompa e circunstância, do projeto de lei complementar que pretende regular a relação entre motoristas e empresas que se autodenominam plataformas digitais.

O Presidente da República acertou em dizer que está sendo gestada uma nova figura legal de trabalhador, mas, por parte dos trabalhadores brasileiros, não há nada que se comemorar.

O projeto de lei cria uma figura híbrida, algo como um minotauro, só que com cabeça de empresa e corpo de trabalhador, ou melhor, cabeça de autônomo, corpo de empregado. É legítimo “nem-nem”: nem é autônomo, pois o próprio projeto expressamente impede a autonomia de fato; nem é empregado, pois essa situação jurídica lhe é negada pelo projeto. A figura nem-nem está longe de ser um autônomo com direitos, pois não há autonomia, e, para se falar a verdade, quase não se vê direitos no projeto. A nova modalidade criada pode ser vista como um subordinado sem direitos.

A primeira coisa que se percebe no texto é que parece uma cópia desidratada da Prop 22, a proposta legislativa escrita e financiada pelas empresas na Califórnia, levada a plebiscito após campanha para aprovação que custou para as plataformas mais de um bilhão de reais. Os conceitos e termos usados são os mesmos. O conteúdo também, tanto os que definem o que é autonomia, quanto os que não são considerados subordinação. Só que o projeto assumido pelo governo brasileiro como seu vem desidratado de detalhes e também de garantias aos trabalhadores, como veremos mais à frente.

O segundo ponto de destaque é a distância da realidade. As empresas são chamadas de “empresa operadora de aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas”. Como é que se opera um aplicativo, que é apenas um programa instalado em celulares que faz a interface com uma plataforma digital? Quem opera o aplicativo, no único sentido possível, que é acessá-lo e utilizá-lo, de fato, é o motorista. A empresa, por meio do aplicativo, como porta de entrada e saída de dados, controla o trabalhador e captura as informações que vão ser processadas na sua plataforma digital. Percebe-se não somente o distanciamento com a realidade, mas também o desconhecimento de como funciona a atividade econômica que pretende regular.

O terceiro ponto a ser trazido é justamente a ausência de autonomia, ou melhor, a criação de condições que vão impossibilitar completamente a prestação de serviços de forma autônoma. O projeto restringe a autonomia à “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos que se conectará ao aplicativo” (caput do art. 3º), inexistência de exclusividade (art. 3º, § 1º, I) e inexistência de exigência de tempo mínimo ou habitualidade (art. 3º, § 1º, I). Bom, ninguém se conecta a um aplicativo: o trabalhador abre o programa para se conectar à empresa por meio de acesso do aplicativo à plataforma digital da empresa. Tirando esse “detalhe”, nenhuma dessas características são próprias ou exclusivas de trabalhadores autônomos: os trabalhadores em teletrabalho, por exemplo, não têm  horários fíxos. Nenhum trabalhador tem exigência legal de exclusividade. A habitualidade, por sua vez, não é característica de falta de autonomia, mas sim da presença de requisito específico da relação de emprego que é a não-eventualidade.

Algumas ausências também são sentidas como forma de silêncio eloquente e constrangedor, como o argumento muito utilizado pelas empresas para dizerem que seus trabalhadores são autônomos: a possibilidade do trabalhador recusar chamadas ou pedidos, que é uma exigência prevista lei californiana. A precificação do serviço e a remuneração dos trabalhadores também não são tratados pelo projeto, podendo significar que se pretende que continuem totalmente na mão das empresas.

O art. 5º do projeto de lei complementar é surreal. Ele autoriza a subordinação dos trabalhadores às empresas “sem que isso configure relação de emprego”. O dispositivo permite: adoção de normas e medidas para garantir a segurança do serviço; suspensões, bloqueios e exclusões; sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados; sistema de avaliação de trabalhadores e oferta de cursos e treinamentos e benefícios e incentivos aos trabalhadores, ainda que de caráter continuado.

O projeto simplesmente pega todas as características que, segundo a doutrina e a jurisprudência, nacional e internacional, identificam como formas de subordinação e libera seu exercício pelas empresas, impedindo legalmente a formação de vínculo.  Com isso, nega a possibilidade de realização do trabalho com verdadeira autonomia.

Mas os absurdos não param por aí. Há um caminho de volta ao século XIX: o projeto dispõe de jornada máxima de 12 horas e nada prevê acerca de descanso. A prova de que não estamos no século XXI é que as palavras “dados”, “algoritmo” e “inteligência artificial” em relação ao trabalho simplesmente não são usadas em todo o texto. Em uma atividade que é baseada nesses três elementos, a sua ausência no projeto é patente confissão de anacronismo e desconexão com a realidade.

Os defensores do projeto poderão dizer que há sim direitos garantidos aos trabalhadores. Alguns deles seriam os listados no art. 7º. Não acredito em coincidências, ainda mais que essa estratégia, ou sarcasmo, já foi usada antes, na lei de cooperativas de trabalho. Creio que os projetistas pensaram mesmo em substituir o art. 7º da Constituição pelo disposto no artigo de mesmo número do projeto, que prevê “princípios” pelos quais as empresas devem pautar sua atuação: transparência, redução dos riscos inerentes ao trabalho, eliminação de todas as formas de discriminação, violência e assédio no trabalho, direito à organização sindical, à sindicalização e à negociação coletiva, aboliação do trabalho infantil e eliminação do trabalho análogo ao de escravo.

Bem, a transparência já é imediatamente reduzida no artigo seguinte a mero acesso às informações sobre os critérios de oferta de viagens, pontuação, bloqueio, suspensão e exclusão e critérios de composição da remuneração, por meio de relatório mensal. Não há, como se disse, nem mesmo menção a acesso do sindicato ao algoritmo, como por exemplo prevê a legislação espanhola.

Os demais direitos (incluindo o inacreditável “abolição ao trabalho infantil” em uma atividade de transporte de passageiros, cuja habilitação se dá com 18 anos) são tratados como meros princípios, sem nenhuma densidade jurídica, quase como um panfleto. Muito embora o endividamento que se realiza com trabalhadores pode até identificar a situação de condições análogas à de escravo.

Também pode-se dizer que os trabalhadores passam a ter direito ao salário mínimo. Inicialmente, verificamos que não é isso que garante o projeto. Subvertendo o direito do trabalho em todo o mundo, o tempo de trabalho, pelo projeto, somente é considerado t para a remuneração “o período entre a aceitação da viagem pelo trabalhador e a chegada do usuário ao destino” (art. 9º, § 2º). Ou seja, deve ser verificado quantas horas efetivas de trabalho o trabalhador tem que fazer para conseguir o montante de horas fictícias criadas pelo projeto.

Outro ponto pode ser levantado pelos defensores do nem-nem: há previsão do direito de negociação coletiva. A CLT traz desde 1943 a possibilidade não só de sindicalização como de negociação coletiva para trabalhadores autônomos (art. 511 e seguintes). A previsão, portanto, não inova no mundo jurídico.

A parte previdenciária é a única em que há realmente algum pequeno ganho, que é a contribuição pelas empresas. Mas é uma migalha perto de tantos ganhos auferidos pelas empresas com o projeto. Só que a lei californiana, que serviu de “inspiração”, traz previsão que as empresas assumam integralmente seguro saúde e seguro para acidentes dos trabalhadores, o que não acontece no projeto tropical.

Outro silêncio ensurdecedor do projeto é sobre a justiça competente. A Justiça do Trabalho não é citada em nenhum momento. Somente a figura do dissídio coletivo aparece, mas não se refere ao órgão que terá a jurisdição.

Em suma, é um projeto que, conforme já referido em outro lugar, se assemelha ao Código Negro francês: sob o pretexto de trazer alguns direitos, legitima e legaliza a exploração e, como disse Voltaire, os juristas consultados provam não entender nada de direitos humanos, muito menos de direito do trabalho, diria eu. Traz ao mundo jurídico uma figura nova, o nem-nem, ou o subordinado sem direitos: uma subcategoria para subcidadãos, sem direito a acesso aos direitos fundamentais previstos na Constituição e sem os direitos humanos previstos nos tratados assinados pelo Brasil. Um minotauro, autônomo por definição legal, empregado de fato, que se encontra em um labirinto subterrâneo bem escuro. É um precedente perigoso, que pode tragar todo e qualquer trabalhador para esse local escuro, sem vida e sem direitos.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

O ATIVISMO JUDICIAL E A ESQUERDA NO BRASIL:  UM NAMORO PERIGOSO

Lula Marques/Agência PT

Por Rogério Pacheco Alves* no GGN

A perspectiva crítica de Marx sobre o direito e os tribunais moldou parte da visão da esquerda brasileira. Uma visão negativa, ou, no mínimo, desconfiada.
          As primeiras inflexões ocorrem com o direito alternativo da década de 1980, que acreditava poder domar hermeneuticamente a brutalidade do direito penal em favor dos pobres, e com a Constituição de 1988, que, ao empoderar o Judiciário, abriu os tribunais aos movimentos sociais e à sociedade civil, num processo de acesso à justiça nunca experimentado. E as respostas foram positivas na defesa dos direitos fundamentais das
minorias e dos vulneráveis: cotas universitárias para as populações negras e indígenas, reconhecimento dos efeitos jurídicos das uniões homoafetivas etc. Iniciava-se um feliz e promissor namoro entre a esquerda e o ativista Poder Judiciário brasileiro.

          Mas, como o Judiciário não é um bloco monolítico e é um poder político em ascensão no Brasil (atenção hermeneutas e Hermenegildos: não há poder que não seja político!), logo veio a decepção: mesmo em ambiente relativamente democrático e com uma constituição progressista, os tribunais e o Supremo Tribunal Federal podem ser máquinas de guerra contra o dissenso (os mais experimentados haverão de lembrar do Tribunal de Segurança Nacional da ditadura Vargas). Além disso, podem ser colonizados por poderosos interesses corporativos, pelas empresas de aplicativos, por exemplo, que escravizam milhares de jovens país afora, jovens precarizados cujos corpos são lentamente triturados, destituídos de direitos sociais elementares.
         O namoro entre a esquerda e o ativismo judicial, interrompido pelo lawfare lavajatista e seus heróis de ocasião, parece ter sido retomado através do inquérito das Fake News: o Presidente da República agradece publicamente ao Ministro Alexandre de Moraes pelos relevantes serviços prestados à democracia; o Ministro Gilmar Mendes, decano da Corte Suprema, dá as cartas novamente nos bastidores dos processos de nomeação de personagens centrais do sistema de justiça.

     Ocorre que o inquérito das Fake News, para usar a expressão de um ilustre jurista que defendeu habilmente sua juridicidade, gera um imenso “constrangimento epistemológico”, pois reúne na figura do juiz, escolhido a dedo, também a do investigador e a do acusador, em atropelo ao sistema acusatório. O Supremo Tribunal Federal, em uníssono, defende a constitucionalidade das investigações sigilosas, num movimento de sobrevivência política bastante compreensível (trata-se de “perseverar na existência”, já nos dizia o velho Spinoza).

          A direita e a extrema-direita possuem mais clareza sobre o ativismo judicial, consideram-no nocivo à democracia (democracia que a extrema-direita despreza e sabota a todo tempo). E a esquerda brasileira, o que pensa sobre o ativismo? Talvez seja o caso de assumir que o ativismo judicial é estratégico aos seus interesses, uma possibilidade a mais do xadrez político, uma condição dada pelas circunstâncias da vida política (a fortuna de que nos fala Maquiavel). Que seja, pois a política não pode ser pensada a partir de uma moralidade jornalística subserviente a projetos e interesses autocráticos (o combate à corrupção e a defesa da dignidade humana invocados no preâmbulo do AI-5). Mas, como diziam os mais antigos, vento que venta lá, venta cá …

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rogério Pacheco Alves é Professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), Promotor de Justiça no ERJ e Integrante do Coletivo Transforma MP.

Carnaval em carne. Viva. A luta entre a purpurina e o sangue

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Fevereiro de 2024. O mundo submergia em purpurina. O bloco Pagu lotava o centro de São Paulo com mais de 140 corpos de mulheres diversos, na luta contra o patriarcado que ainda determina a forma, a cor e o tamanho do corpo ideal, transmutadas nas imortais Gal, Rita, Elis e Elza: a catarse do feminino na rua. O chamado para estar atenta e forte.

                            No bairro de Pinheiros, os carros sumiram para Pierrots, Colombinas, bailarinas, “palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados”, tomarem as ruas de assalto nas dezenas de bloquinhos do prazer, clamando que a “vida tá pouca”, sim, “eu quero é muito mais”.

                            O Ó do Borogodó, bar e patrimônio cultural da cidade, ameaçado pela sanha do setor imobiliário, abriu alas no idílico festival de marcha rancho que todo ano organiza. Anaí Rosa, na composição de Jean Garfunkel, lembrou que “o carnaval é instante, quem gosta de futuro é cartomante” e Fernando Szegeri arrancou a máscara para lembrar que a cidade… “a cidade pede ajuda pra poder envelhecer”.

                            O carnaval é mesmo um chamado para o corpo e o tempo, onde a vida verdadeiramente se dá com seus prazeres e agruras. Ao chamar os corpos, todes, para as ruas e para a festa, não porque a dor não existe, mas exatamente porque ela existe, o carnaval enfrenta e zomba da morte.

                            O historiador Luis Antonio Simas é o que melhor explica a festa da carne: “Num mundo cada vez mais individualista o carnaval assusta porque afronta a decadência da vida em grupo, reaviva laços contrários à diluição comunitária, fortalece pertencimentos e sociabilidades, e cria redes de proteção social nas frestas dos desencantos. A festa é coisa de desocupados? Fale isso para os trabalhadores e trabalhadoras da folia!!! O carnaval é, também, para muita gente tratada como sobra -vivente, alternativa de sobrevivência material, afetiva e espiritual. O Brasil não inventou o carnaval, é certo, mas o povo do Brasil vivenciou de tal forma o carnaval, nas pluralidades de suas manifestações, que foi o inverso: o carnaval inventou um país possível e original às margens do projeto de horror que historicamente nos constituiu.  É perturbador para certo brasil excludente, sisudo, inimigo das diversidades, trancafiado, lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa e rueira, tensa e intensa, como lâmina e flor”.

Em lâmina e flor, a festa da carne tomou conta da rede social e de todo o país. Veveta macetou o apocalipse em Salvador, Antônio Nobrega e sua família brincante ocuparam o sambódromo, e a Salgueiro, no Rio de Janeiro, levou o gigante David Kopenawa para as ruas para falar sobre guerras que se fazem sem flechas, sem tiros, e com palavras: “Eu aprendi português, a língua do opressor, pra te provar que o meu penar também é sua dor. Pra falar de amor enquanto a mata chora.”

                            Falar de amor enquanto se morre não é pouca coisa. Na maioria das vezes, é justamente porque não se fala de amor que se morre. Mas nem tudo foi purpurina. Durante o carnaval de 2024, uma cidade não foi corpo, nem tempo. Não fez festa e não falou de amor. A carne sangrava sem parar e a cidade perto do mar morria, sem poder envelhecer.

                            Em São Vicente, litoral sul do Estado de São Paulo, a purpurina foi proibida. Desde setembro de 2023, quando o Governo do Estado de São Paulo anunciou a Operação Escudo em todo litoral sul, em resposta à morte de um Policial Militar, dezenas de corpos saíram às ruas… para velórios.

                            Dentre esses corpos mortos, em número não divulgado oficialmente, estão, também, alguns corpos de policiais militares.

Como os corpos que sangram nem sempre seguem o tempo dos relógios, mas, sobretudo, o das palavras, escapamos do tempo rumo a 2018, na tentativa de revisitar palavras silenciadas que possam fazer eco na festa interditada.

                            Naquele ano, eu, como Promotora de Justiça de Direitos Humanos, ao lado da Promotora de Justiça Criminal da cidade de Campinas, ouvi dezenas de Policiais Militares que eram encaminhados pela Promotora de Justiça da Infância e Juventude da mesma cidade, após a escuta de 75 jovens envolvidos com infrações penais e que traziam, ao Ministério Público, narrativas de violência policial sofrida durante suas abordagens. 

                           “Ele segurou meu braço e disse que tiraria minha tatuagem com a faca. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Jogou minha cabeça contra a parede até eu desmaiar. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eu não tinha arma e ele atirou. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eletrochoque. Coronhadas. Matagal. Junte-se.  Chamou minha namorada, minha irmã … minha mãe, senhora, ele chamou minha mãe de arrombada”. NADA… MAIS.

                            Ao se debruçar academicamente sobre o trabalho dessas Promotoras de Justiça, a pesquisadora Marina de Oliveira Ribeiro, da UNICAMP, em artigo elaborado para o ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito, nos chamou de “agências dissidentes”, por, segundo ela, nos distanciarmos, com escutas e ações, de um Sistema Judicial marcado pela invisibilização da violência de Estado e permeado por pré-julgamentos morais que tendem a silenciar determinadas vozes.

                            Mas a seletividade moral não se dava apenas em relação a quem falava – meninos pretos e pobres, estigmatizados pelo ato infracional em que estavam envolvidos-, mas também, e sobretudo, pelo que era falado, incluindo, aí, vozes de Policiais Militares. Em dois anos de escutas foi possível perceber que uma violência insidiosa e cruel, de silenciamento e dor, afligia vorazmente os policiais militares escutados, que em desabafos que transbordavam seus corpos fardados, ao se sentirem de alguma forma seguros, sentiam necessidade de falar, ainda que apenas depois que o termo de declarações se encerrava e que a câmera de filmagem do ato processual já estava desligada.

I.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu não consigo me acostumar. Sabe… eu quis ser Policial pra salvar vidas…

                            Silêncio.

                            – Minha mãe…

                            Silêncio.

                            – Eu tive uma mãe muito amorosa… eu não consigo me acostumar… e tudo isso é muito maior que eu… eu não posso contra isso, Dra…

                            II.

– Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu fazia o apoio dos colegas quando a vi saindo algemada… olhei para os braços dela. Ela tinha os braços queimados, respingados de óleo quente, como os da minha avó. Braço de mulher cozinheira e trabalhadora. A droga saiu da nossa viatura. Ela nos xingava demais. Era uma leoa defendendo o filho e gritando que não tínhamos mandado judicial para entrar na casa dela.

                            Silêncio.

                         – Não sei o que a senhora fará com isso porque jamais direi isso formalmente.

                            Silêncio.

– Mas ela era como minha avó…

                            III.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – A senhora sabe, Dra, o que é sair de casa todo dia, pela manhã, com medo de nunca mais ver o filho e a esposa? Todo dia? Sabe o que é chegar em uma periferia, onde vive sua família, e ser recebido com pedrada?

                            A experiência em palavras que nunca estiveram nos autos, mas foram ouvidas, volta, em memória associativa diante da notícia da interdição do carnaval. Não há qualquer dúvida que, sim, há uma guerra de vida e morte, há tempos, e que não começou com a operação escudo. Mas esta guerra, definitivamente, não é entre bandidos e policiais. Tampouco entre sociedade de bem e facínoras assassinos. Ou, ainda, entre “Promofofos que estão querendo transformar o Ministério Público em ONG” – como se ouve nos bastidores de uma instituição em fuga da autocrítica – e os Promotores de Justiça que frequentam velórios de policiais militares, mas jamais lidaram com a dor da escuta destes mesmos homens depois do NADA MAIS, quando, asfixiados em suas fardas, desesperançados e mortos ainda em vida, eles, de alguma forma, pedem ajuda para não matar e não morrer.

                           A guerra é de palavras. A guerra é por escuta em um mundo farto de semideuses sisudos e cheios de certezas.

Escuta das ruas, das marchinhas de carnaval, dos hinos das escolas de samba, dos meninos negros da periferia e, também, dos policiais. Não é mais possível que Promotoras de Justiça, em escuta genuína, sejam considerados “agências dissidentes” em um sistema judicial marcado por clichês e chavões moralistas.

                             Da carne festa-purpurina à carne sangue, Darcy Ribeiro também traduziu nossa carne.

                            “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”

                   É urgente a consciência da carne de que somos feitos e de que apenas a palavra falada e escutada é capaz de nos salvar de nossa potência destrutiva para nos levar à festa de carnaval, onde explode nossa potência amorosa e bela.

                   No lugar da purpurina há sangue nas ruas das cidades do litoral sul de São Paulo.

É sangue de pretos, pobres e policiais. É sangue.

                   “Pra te provar que o meu penar também é a sua dor”, ecoa o hino da escola.

                   Quem, afinal, está torcendo pela purpurina?              

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

Referências:

  1. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. Darcy Ribeiro. Editora Companhia das Letras
  2. Rancho da Goiabada – João Bosco e Chico Buarque
  3. Bloco do Prazer – Moraes Moreira
  4. https://www.enadir2023.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6Ijc0NzIiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiYjY0MTFkNmM3YWFiNWI2NjQ3NDk1ZjI0MWY0ZmRlYWIiO30%3D Artigo de Marina Ribeiro, UNICAMP.
  5. Hino da Salgueiro de 2024. Hutukara.

Ainda há juízes em Costa Rica

Por Lorena Porto no Empório do Direito

Até a reforma trabalhista de 2017, prevalecia na Justiça do Trabalho o entendimento de que as empresas não poderiam terceirizar as suas atividades principais (Súmula 331 do TST). O Supremo Tribunal Federal (STF), ao contrário, decidiu pela possibilidade de terceirização de todas as atividades empresariais[1], desde que não houvesse fraude à relação de emprego[2].

Todavia, ao julgarem reclamações constitucionais, Ministros do STF, em decisões individuais ou majoritárias da respectiva turma, vêm adotando entendimento oposto àquele firmado pelo Pleno da Suprema Corte com efeito vinculante. Ou seja, vêm admitindo que basta a contratação formal de um trabalhador com uma roupagem diversa (por exemplo, como sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego[3][4]. Isso subverte o princípio da primazia da realidade, segundo o qual, na análise de uma relação de trabalho, deve-se dar maior importância aos fatos do que à forma: a essência se sobrepõe à aparência. Esse princípio basilar rege o Direito do Trabalho no Brasil e nos demais países do mundo.

Nessas decisões -, além de se violar um princípio de “vigência universal”, nas palavras da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[5] -, os Ministros do STF não trazem a necessária fundamentação, pois não externam os motivos pelos quais os acórdãos da Justiça do Trabalho cassados teriam descumprido o entendimento vinculante (Tema 725).

Há, ainda, decisão de Ministro do STF que afasta a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação em que se alega fraude à relação de emprego[6], o que viola norma constitucional expressa[7].

Essas decisões do STF, além de contrariarem a Constituição da República, afrontam tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Nesse cenário, o que se pode fazer? Parafraseando Drummond, “E agora, José?”

Um possível caminho é o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em regra no prazo de seis meses (art. 46 da Convenção Americana).

Pode-se alegar a violação a garantias judiciais e proteção judicial (arts. 8º e 25 da Convenção Americana), em virtude da análise equivocada dos fatos e da ausência de devida motivação. Ademais, na Opinião Consultiva n. OC-27/21, de 05 de maio de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), ao realizar a interpretação autêntica de dispositivos da Convenção Americana, do Protocolo de San Salvador, da Convenção de Belém do Pará, da Carta da OEA e da Declaração Americana, afirmou o princípio da primazia da realidade, cujo descumprimento poderia constar na denúncia[8]:

Parágrafo 209: “Especificamente, os Estados devem adotar medidas que visem: a) o reconhecimento dos trabalhadores e das trabalhadoras na legislação como empregados e empregadas, se na realidade o são, pois assim devem ter acesso aos direitos trabalhistas que lhes correspondem de acordo com a legislação nacional”. (grifos nossos)

Voto concorrente do Juiz L. Patricio Pazmiño Freire: “Devemos lembrar a máxima do direito do trabalho de que a realidade fática prevalece sobre o nomen iuris e que as relações trabalhistas – onde quer que ocorram – devem ser protegidas por esse direito, sempre à luz do princípio in dubio pro operario” (grifos nossos)

Na mesma Opinião Consultiva, a Corte IDH destaca que o acesso à justiça requer uma jurisdição especializada com competência exclusiva em matéria trabalhista (parágrafo 116). O esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho, promovido pela referida decisão do STF, também pode ser objeto de denúncia.

A necessidade de observância dos tratados internacionais e da jurisprudência da Corte Interamericana foi reafirmada em recentes Recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[9] e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[10].

Além dos Estados-membros da OEA, qualquer pessoa, grupo, sindicato ou ONG pode apresentar denúncia à Comissão Interamericana, que a investiga e busca solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo. Cabe aos tribunais constitucionais ou aos tribunais supremos (como o STF no Brasil) a última palavra no âmbito interno quanto à constitucionalidade, mas cabe à Corte Interamericana, sediada em San José (Costa Rica), a última palavra quanto ao controle de convencionalidade da Convenção Americana.

Se no século XVIII, o Moleiro de Sans-Souci pôde afirmar que “Ainda há juízes em Berlim”, para se proteger da injustiça de um monarca absolutista, no século XXI podemos dizer que “Ainda há juízes em Costa Rica”, para reparar decisões do STF que violam as normas internacionais e a jurisprudência interamericana.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Lorena Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

Notas e referências

[1] Tema 725: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (Leading Case: RE 958.252).

[2] Consta na ementa do acórdão do RE 958.252 a necessidade da “INEXISTÊNCIA DE CARÁTER FRAUDULENTO”, o que foi reafirmado no julgamento da ADI n. 5.625: “Estando presentes elementos que sinalizam vínculo empregatício, este deverá ser reconhecido pelo Poder Público, com todas as consequências legais decorrentes, previstas especialmente na Consolidação da Leis do Trabalho.”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4952236 e em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5094239. Acesso em 29 jan. 2024.

[3] Citam-se, ilustrativamente, as decisões proferidas nas Reclamações n. 53.899/MG, 56.285/SP, 47.843/BA e 53.771/ES. Recentemente, o Procurador-Geral da República (PGR) emitiu parecer no mesmo sentido, contrariamente ao entendimento adotado pelo PGR anterior: https://www.folhape.com.br/economia/pgr-muda-posicao-e-defende-que-nao-ha-vinculo-entre-entregador-e/313465/. Acesso em 29 jan. 2024.

[4] A Reclamação n. 64.018/MG, oriunda de ação trabalhista ajuizada por motorista em face da plataforma digital Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda., foi incluída na pauta de julgamento do Pleno do STF de 08.02.2024: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6800311. Acesso em 29 jan. 2024.

[5] OIT. La relación de trabajo – Conferencia Internacional del Trabajo. 95ª Reunião. Genebra: OIT, 2006. p. 24. No Brasil, extrai-se esse princípio da CLT, notadamente do art. 9º (“Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”) e do art. 442, caput (“Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”).

[6] Pode-se citar a decisão proferida na Reclamação 59795: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6643597. Acesso em 29 jan. 2024. 

[7] “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (…)” (grifos nossos).

[8] CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021 solicitada por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Derechos a la Libertad Sindical, Negociación Colectiva y Huelga, y su relación con otros Derechos, con perspectiva de Género. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_27_esp1.pdf

. Acesso em 29 jan. 2024.

[9] CNJ. Recomendação n. 123, de 7 de janeiro de 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf. Acesso em 29 jan. 2024.

[10] CNMP. Recomendação n. 96, de 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomendao-n-96—2023.pdf

O STF E O FIM DO TRABALHO ESCRAVO (E DOS ACIDENTES DE TRABALHO) NO BRASIL

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

O julgamento do Supremo Tribunal Federal dos trabalhadores para plataformas digitais trará consequências econômicas profundas que não estão sendo debatidas

Por Rodrigo Carelli**

O Supremo Tribunal Federal está prestes a tomar uma decisão que deve fazer desabar as estatísticas do trabalho em condições análogas a de escravo no Brasil. Viva!

Está marcado para o início de fevereiro, pelo seu plenário, o julgamento da existência (ou não) de vínculo empregatício em caso de trabalhador por plataforma digital (seja lá o que isso queira ou possa dizer). Aparentemente a intenção é a de emitir uma decisão vinculante para que a Justiça do Trabalho não possa mais declarar o vínculo nesses casos. Provavelmente a Suprema Corte não irá parar por aí, determinando também a incompetência da Justiça do Trabalho para conhecimento acerca da existência da condição de empregado quando um contrato civil formal estiver em vigor. Não duvido também de que na decisão haja alguma ameaça a algum juiz que ouse tentar verificar a existência do vínculo para além do contrato formal, como ocorre em qualquer outro país do mundo.

Mas o que isso teria a ver com o fim do trabalho escravo e a redução dos números estatísticos do fenômeno? Ora, podendo contratar um trabalhador como prestador de serviços sem o risco da Justiça do Trabalho reconhecê-lo (e responsabilizá-lo), os empregadores irão em massa adotar esse tipo de contratação. Só dar um nome civil ao contrato (seja ele qual for), falar para o trabalhador assinar um papel, e pronto!, imunidade garantida pela mais alta corte do país. Com isso, os escravocratas terão a oportunidade de contratar seus trabalhadores por meio de contratos civis, conseguindo fugir da constatação da condição de escravizado.

Essa possiblidade não é meramente hipotética. Outro dia eu estava em sessão no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, e me deparei com situação idêntica ao que deve se alastrar no Brasil. Era um caso de trabalhadores encontrados em situação análoga a de escravos em um grande festival de música. Eles dormiam no local de trabalho, em papelões lançados ao chão, e recebiam comida imprópria para o consumo humano. Em sua sustentação oral, o advogado da empresa renovou seus argumentos de defesa: não eram empregados, mas sim prestadores de serviço civis, com contrato assinado e tudo. Eram empreendedores, que, no uso de sua autonomia da vontade, colocavam no mercado sua força de trabalho para comercializar bebidas geladinhas junto aos contentes frequentadores do festival. Clamava pela incompetência da justiça especializada, trazendo em seu auxílio a jurisprudência do STF. Neste caso específico, ainda podendo fazê-lo, a turma do tribunal afastou a preliminar e entrou no mérito da causa, verificando que de fato eram todos empregados e estavam realmente em condição desumana.

Se existisse uma decisão vinculante, os magistrados não teriam outra escolha senão dar razão à empresa, pedir desculpas, pois não se tratava de trabalho escravo contemporâneo, mas sim de empreendedores que gozavam sua liberdade econômica, patrões que ordenavam a si mesmos carregar pesadas mochilas com as bebidas e tinham livremente escolhido dormir no chão e comer alimentação vencida.

Qual empregador, podendo firmar um contrato com menos ônus, tributários ou trabalhistas, vai preferir contratar como empregado seus trabalhadores? Qual empregador, mesmo socialmente responsável e consciente, vai arriscar contratar empregados se seus concorrentes vão ter vantagem concorrencial com menos custos decorrente de contratações sem direitos e ainda eliminar riscos frente ao Poder Judiciário?

É claro que vai haver uma debandada geral do que ideologicamente chamam de regime da CLT (em verdade é o regime constitucional de direitos fundamentais no trabalho previsto no art. 7º e seguintes da Constituição da República).  É a Economia, estúpido!, como diria certo presidente estadunidense. Com isso, não somente veremos a queda no número de trabalhadores em situação análoga à de escravo, mas também teremos um desabamento na quantidade de acidentes de trabalho, olha que maravilha! Alguém sabe o número de trabalhadores contratados por plataformas digitais que se acidentaram ou morreram realizando seu novíssimo empreendimento de entregar comida ou transportar pessoas? Ninguém sabe. Esses dados não existem, as empresas tratam esses trabalhadores (olha eu aqui de novo chamando empresários livres de operários) como clientes, parceiros civis, e acreditam não ter obrigações de registro dessas ocorrências. Esses acidentes, com morte, afastamentos ou sequelas, não são contabilizados como de trabalho, permanecendo incógnitos em nossos hospitais públicos e cemitérios, como também nos seguros e estatísticas de acidente de trânsito.

Haverá a percepção estatística de que temos um país com menos trabalhadores escravizados e com raros acidentes de trabalho. Porém, lá na realidade (que parece importar pouco hoje em dia), estando os empresários (os verdadeiros) livres (olha a verdadeira liberdade aí, gente!) de cumprir com as normas de proteção, inclusive ambientais de segurança e saúde no trabalho, o trabalho escravo só vai aumentar e os acidentes vão acontecer de maneira muito mais frequente, como ocorre silenciosamente com motoristas e entregadores.

Outras estatísticas serão afetadas também: a de empregos formais, resultando inevitavelmente em uma queda na arrecadação previdenciária. A renda do trabalhador também sofrerá declínio gigantesco, pois não será necessário observar-se nem salário-mínimo, quanto mais pisos salariais negociados por sindicato. E, convenhamos, sindicatos para quê no novo desenho do mercado de trabalho? É a Economia, estúpido!, poderia ser novamente trazido aqui. E a renda do trabalhador e a queda de arrecadação afetam toda a Economia.

As consequências econômicas da decisão que será tomada pelo Supremo Tribunal Federal são colossais e estão sendo muito pouco debatidas. Entretanto, como responsabilizar uma Suprema Corte, que não é submetida ao escrutínio popular do voto, sobre um colapso econômico? De qualquer forma, ela haverá de ser chamada pela população, pelos sindicatos, pela mídia e pelos demais poderes a dar conta de sua decisão ideológica, sem respaldo no texto constitucional, que ao pretender mudar de forma radical todo o arranjo principal da sociedade nos levará a uma grave e real crise em pouco tempo. (Mas alguns ainda dirão que pelo menos haverá liberdade…)

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

**Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

Coletivo Transforma MP e entidades repudiam pesquisa do CFM com viés ideológico contra vacina de Covid-19 em crianças

O Coletivo Transforma MP se juntou à entidades brasileiras de saúde, entre elas a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), para apoiar a nota em defesa da saúde e da ciência.

Em nota, as instituições repudiam a atitude do Conselho Federal de Medicina (CFM) ao promover pesquisa de opinião com médicos sobre a eficácia das vacinas contra Covid-19 aplicadas em crianças entre seis meses e cinco anos. 

“A pesquisa parece não ter outro propósito senão o de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina para Covid- 19, fundada em puro negacionismo médico-científico e teorias da conspiração.” 

O documento também destaca que as vacinas desenvolvidas durante a pandemia de Coronavírus foram implementadas no pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) ao calendário vacinal da criança, baseado em decisão da Câmara Técnica Assessora em Imunizações (CTAI) do Ministério da Saúde. 

As entidades evidenciaram que o método de imunização foi estudado e aprovado por profissionais comprometidos e sérios que testaram todas as etapas necessárias de maneira transparente, portanto não cabe ao CFM desestimular a vacinação infantil contra Covid-19, contrariando a ciência e a ética médica. 

Coletivo Transforma MP parabeniza Vera Lúcia por nomeação no TSE

Foto: redes sociais

O Coletivo Transforma MP parabeniza a nova ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo, que foi nomeada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no último sábado (23). O nome de Vera Lúcia foi escolhido por Lula após o Supremo Tribunal Federal (STF) recomendar uma lista tríplice com indicações para o cargo. 

Vera Lúcia deve ocupar o cargo da ministra Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, que finalizará o seu mandato em breve. 

A futura ministra é a segunda mulher negra a compor a Corte, atrás de Edilene Lobo, que foi nomeada pelo presidente em junho deste ano. 

Em setembro o Coletivo Transforma MP emitiu uma nota apoiando a indicação de mulheres negras e progressistas para o STF, e Vera Lúcia foi uma das pessoas sugeridas, pois tem acompanhado seu trabalho e acredita na capacidade transformadora que possui. 

Entendemos que para uma democracia efetiva é necessário que haja representatividade de todos os grupos populacionais, cabendo ao Judiciário, como um dos Poderes da República, a atuação contramajoritária, contribuindo para a redução das desigualdades presentes na sociedade brasileira, como preconiza nossa Constituição.

Parabéns, Vera Lúcia. 

Boas festas?

Por Plínio Gentil no GGN

Em Gaza e seus arredores milhões de pessoas vivem a incerteza do dia seguinte. São habitantes da região – os palestinos -, descendentes dos que há dois mil anos ali foram se estabelecendo. Têm casas, filhos, trabalho e, mesmo em tempo de paz, submetem-se a um verdadeiro apartheid étnico, que lhes impõe incontáveis restrições. Se nunca foram propriamente senhores desse território, que se estende para muito além dali e há tempos é sujeito a domínio estrangeiro, nele viviam em absoluta maioria até 1948. Nesse ano uma resolução da ONU formalizou o que já vinha sendo posto em prática: a ocupação da área por colonos identificados com a tradição judaica, vindos principalmente do leste europeu. Terras eram compradas com financiamento de judeus bilionários e distribuídas aos interessados em ir para a “terra prometida”. A ocupação começava primeiro pela povoação, depois pela implantação de instituições exclusivas, depois por meio de ação militar e paramilitar, como a explosão do Hotel King David, em Jerusalém, que deixou mais de noventa mortos, dirigida por um futuro primeiro-ministro do futuro Estado de Israel.
Para legitimar a ocupação, planejada desde o fim do século XIX, desenvolveu-se uma doutrina política, o sionismo, inicialmente laica, mas que viu na aliança com o judaísmo e suas instâncias religiosas o elemento ideal para um amálgama capaz de unir toda uma etnia. Os judeus, desde o ano 70 DC, se integraram a vários estados e nações mundo afora e sua reunião num único território não era uma demanda expressiva, menos ainda consensual, entre eles. O holocausto nazista contra os judeus, graças ao justo repúdio que causou em todo o mundo, forneceu ao sionismo, sem querer, o ingrediente que faltava para a criação do estado judaico, o que obteve aprovação até mesmo da União Soviética.
Então o sionismo ganhou ares de doutrina libertária e o mundo parece não ter percebido que, aos poucos, ela se materializava num movimento em busca da colonização de um território habitado por outros povos e a implantação de um estado teocrático, já que estabelecido em bases religiosas, destinado a uma etnia específica.
Isto não poderia, é claro, ser obtido pacificamente, mas aí entra o interesse geopolítico das grandes economias ocidentais, pois a região visada era um importante entreposto entre o Ocidente e o Oriente e, mais relevante que isso, numa área próxima a enormes reservas de petróleo. Era preciso manter ali um regime amigo e politicamente alinhado aos interesses das petroleiras ocidentais, daí o apoio político, econômico e militar desde sempre dado ao estado de Israel.
Só que, no ponto a que as coisas chegaram, Israel começa a ser um amigo incômodo. A matança da população palestina, cujos dados hoje apontam para cerca de vinte mil vítimas, a metade crianças e mulheres – civis portanto –, vem provocando protestos significativos em todo o mundo. Essa oposição à violência israelense, embora minimizada pela mídia empresarial, parte muitas vezes da própria comunidade judaica, que faz questão de se dizer não representada pela ação militar contra a Palestina. Enfim, o governo israelense vai ficando isolado e seu principal aliado, do outro lado do Atlântico, por conta desse apoio já não tem certeza de reeleger seu presidente.
O sionismo, que por dezesseis anos foi considerado racismo pela ONU, nada tem a ver com judaísmo, ou semitismo, termo usado para generalizar o conjunto de cultura, história e religião dos judeus. Mas a equiparação enganosa dos dois conceitos é conveniente ao sionismo e a triste ironia do destino é que ninguém como ele está fazendo tanto pelo anti-semitismo, o que é uma consequência previsível da onda mundial de condenação à violência militar israelense e da crescente perda de apoio político de Israel.
É hora de governos, movimentos, partidos, intelectuais, artistas, a academia, associações, sindicatos, coletivos e todas as pessoas de boa vontade, humanistas e amantes da paz, de quaisquer matizes ideológicos, dizerem um basta – não apenas retórico – ao que se converteu num genocídio, transmitido em tempo real e que, por isso mesmo, não pode ser ignorado por ninguém. É cínico falar em boas festas enquanto as coisas continuarem assim.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Plínio Gentil é Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.