Carnaval em carne. Viva. A luta entre a purpurina e o sangue

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Fevereiro de 2024. O mundo submergia em purpurina. O bloco Pagu lotava o centro de São Paulo com mais de 140 corpos de mulheres diversos, na luta contra o patriarcado que ainda determina a forma, a cor e o tamanho do corpo ideal, transmutadas nas imortais Gal, Rita, Elis e Elza: a catarse do feminino na rua. O chamado para estar atenta e forte.

                            No bairro de Pinheiros, os carros sumiram para Pierrots, Colombinas, bailarinas, “palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados”, tomarem as ruas de assalto nas dezenas de bloquinhos do prazer, clamando que a “vida tá pouca”, sim, “eu quero é muito mais”.

                            O Ó do Borogodó, bar e patrimônio cultural da cidade, ameaçado pela sanha do setor imobiliário, abriu alas no idílico festival de marcha rancho que todo ano organiza. Anaí Rosa, na composição de Jean Garfunkel, lembrou que “o carnaval é instante, quem gosta de futuro é cartomante” e Fernando Szegeri arrancou a máscara para lembrar que a cidade… “a cidade pede ajuda pra poder envelhecer”.

                            O carnaval é mesmo um chamado para o corpo e o tempo, onde a vida verdadeiramente se dá com seus prazeres e agruras. Ao chamar os corpos, todes, para as ruas e para a festa, não porque a dor não existe, mas exatamente porque ela existe, o carnaval enfrenta e zomba da morte.

                            O historiador Luis Antonio Simas é o que melhor explica a festa da carne: “Num mundo cada vez mais individualista o carnaval assusta porque afronta a decadência da vida em grupo, reaviva laços contrários à diluição comunitária, fortalece pertencimentos e sociabilidades, e cria redes de proteção social nas frestas dos desencantos. A festa é coisa de desocupados? Fale isso para os trabalhadores e trabalhadoras da folia!!! O carnaval é, também, para muita gente tratada como sobra -vivente, alternativa de sobrevivência material, afetiva e espiritual. O Brasil não inventou o carnaval, é certo, mas o povo do Brasil vivenciou de tal forma o carnaval, nas pluralidades de suas manifestações, que foi o inverso: o carnaval inventou um país possível e original às margens do projeto de horror que historicamente nos constituiu.  É perturbador para certo brasil excludente, sisudo, inimigo das diversidades, trancafiado, lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa e rueira, tensa e intensa, como lâmina e flor”.

Em lâmina e flor, a festa da carne tomou conta da rede social e de todo o país. Veveta macetou o apocalipse em Salvador, Antônio Nobrega e sua família brincante ocuparam o sambódromo, e a Salgueiro, no Rio de Janeiro, levou o gigante David Kopenawa para as ruas para falar sobre guerras que se fazem sem flechas, sem tiros, e com palavras: “Eu aprendi português, a língua do opressor, pra te provar que o meu penar também é sua dor. Pra falar de amor enquanto a mata chora.”

                            Falar de amor enquanto se morre não é pouca coisa. Na maioria das vezes, é justamente porque não se fala de amor que se morre. Mas nem tudo foi purpurina. Durante o carnaval de 2024, uma cidade não foi corpo, nem tempo. Não fez festa e não falou de amor. A carne sangrava sem parar e a cidade perto do mar morria, sem poder envelhecer.

                            Em São Vicente, litoral sul do Estado de São Paulo, a purpurina foi proibida. Desde setembro de 2023, quando o Governo do Estado de São Paulo anunciou a Operação Escudo em todo litoral sul, em resposta à morte de um Policial Militar, dezenas de corpos saíram às ruas… para velórios.

                            Dentre esses corpos mortos, em número não divulgado oficialmente, estão, também, alguns corpos de policiais militares.

Como os corpos que sangram nem sempre seguem o tempo dos relógios, mas, sobretudo, o das palavras, escapamos do tempo rumo a 2018, na tentativa de revisitar palavras silenciadas que possam fazer eco na festa interditada.

                            Naquele ano, eu, como Promotora de Justiça de Direitos Humanos, ao lado da Promotora de Justiça Criminal da cidade de Campinas, ouvi dezenas de Policiais Militares que eram encaminhados pela Promotora de Justiça da Infância e Juventude da mesma cidade, após a escuta de 75 jovens envolvidos com infrações penais e que traziam, ao Ministério Público, narrativas de violência policial sofrida durante suas abordagens. 

                           “Ele segurou meu braço e disse que tiraria minha tatuagem com a faca. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Jogou minha cabeça contra a parede até eu desmaiar. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eu não tinha arma e ele atirou. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eletrochoque. Coronhadas. Matagal. Junte-se.  Chamou minha namorada, minha irmã … minha mãe, senhora, ele chamou minha mãe de arrombada”. NADA… MAIS.

                            Ao se debruçar academicamente sobre o trabalho dessas Promotoras de Justiça, a pesquisadora Marina de Oliveira Ribeiro, da UNICAMP, em artigo elaborado para o ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito, nos chamou de “agências dissidentes”, por, segundo ela, nos distanciarmos, com escutas e ações, de um Sistema Judicial marcado pela invisibilização da violência de Estado e permeado por pré-julgamentos morais que tendem a silenciar determinadas vozes.

                            Mas a seletividade moral não se dava apenas em relação a quem falava – meninos pretos e pobres, estigmatizados pelo ato infracional em que estavam envolvidos-, mas também, e sobretudo, pelo que era falado, incluindo, aí, vozes de Policiais Militares. Em dois anos de escutas foi possível perceber que uma violência insidiosa e cruel, de silenciamento e dor, afligia vorazmente os policiais militares escutados, que em desabafos que transbordavam seus corpos fardados, ao se sentirem de alguma forma seguros, sentiam necessidade de falar, ainda que apenas depois que o termo de declarações se encerrava e que a câmera de filmagem do ato processual já estava desligada.

I.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu não consigo me acostumar. Sabe… eu quis ser Policial pra salvar vidas…

                            Silêncio.

                            – Minha mãe…

                            Silêncio.

                            – Eu tive uma mãe muito amorosa… eu não consigo me acostumar… e tudo isso é muito maior que eu… eu não posso contra isso, Dra…

                            II.

– Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu fazia o apoio dos colegas quando a vi saindo algemada… olhei para os braços dela. Ela tinha os braços queimados, respingados de óleo quente, como os da minha avó. Braço de mulher cozinheira e trabalhadora. A droga saiu da nossa viatura. Ela nos xingava demais. Era uma leoa defendendo o filho e gritando que não tínhamos mandado judicial para entrar na casa dela.

                            Silêncio.

                         – Não sei o que a senhora fará com isso porque jamais direi isso formalmente.

                            Silêncio.

– Mas ela era como minha avó…

                            III.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – A senhora sabe, Dra, o que é sair de casa todo dia, pela manhã, com medo de nunca mais ver o filho e a esposa? Todo dia? Sabe o que é chegar em uma periferia, onde vive sua família, e ser recebido com pedrada?

                            A experiência em palavras que nunca estiveram nos autos, mas foram ouvidas, volta, em memória associativa diante da notícia da interdição do carnaval. Não há qualquer dúvida que, sim, há uma guerra de vida e morte, há tempos, e que não começou com a operação escudo. Mas esta guerra, definitivamente, não é entre bandidos e policiais. Tampouco entre sociedade de bem e facínoras assassinos. Ou, ainda, entre “Promofofos que estão querendo transformar o Ministério Público em ONG” – como se ouve nos bastidores de uma instituição em fuga da autocrítica – e os Promotores de Justiça que frequentam velórios de policiais militares, mas jamais lidaram com a dor da escuta destes mesmos homens depois do NADA MAIS, quando, asfixiados em suas fardas, desesperançados e mortos ainda em vida, eles, de alguma forma, pedem ajuda para não matar e não morrer.

                           A guerra é de palavras. A guerra é por escuta em um mundo farto de semideuses sisudos e cheios de certezas.

Escuta das ruas, das marchinhas de carnaval, dos hinos das escolas de samba, dos meninos negros da periferia e, também, dos policiais. Não é mais possível que Promotoras de Justiça, em escuta genuína, sejam considerados “agências dissidentes” em um sistema judicial marcado por clichês e chavões moralistas.

                             Da carne festa-purpurina à carne sangue, Darcy Ribeiro também traduziu nossa carne.

                            “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”

                   É urgente a consciência da carne de que somos feitos e de que apenas a palavra falada e escutada é capaz de nos salvar de nossa potência destrutiva para nos levar à festa de carnaval, onde explode nossa potência amorosa e bela.

                   No lugar da purpurina há sangue nas ruas das cidades do litoral sul de São Paulo.

É sangue de pretos, pobres e policiais. É sangue.

                   “Pra te provar que o meu penar também é a sua dor”, ecoa o hino da escola.

                   Quem, afinal, está torcendo pela purpurina?              

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

Referências:

  1. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. Darcy Ribeiro. Editora Companhia das Letras
  2. Rancho da Goiabada – João Bosco e Chico Buarque
  3. Bloco do Prazer – Moraes Moreira
  4. https://www.enadir2023.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6Ijc0NzIiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiYjY0MTFkNmM3YWFiNWI2NjQ3NDk1ZjI0MWY0ZmRlYWIiO30%3D Artigo de Marina Ribeiro, UNICAMP.
  5. Hino da Salgueiro de 2024. Hutukara.

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