Ainda há juízes em Costa Rica

Por Lorena Porto no Empório do Direito

Até a reforma trabalhista de 2017, prevalecia na Justiça do Trabalho o entendimento de que as empresas não poderiam terceirizar as suas atividades principais (Súmula 331 do TST). O Supremo Tribunal Federal (STF), ao contrário, decidiu pela possibilidade de terceirização de todas as atividades empresariais[1], desde que não houvesse fraude à relação de emprego[2].

Todavia, ao julgarem reclamações constitucionais, Ministros do STF, em decisões individuais ou majoritárias da respectiva turma, vêm adotando entendimento oposto àquele firmado pelo Pleno da Suprema Corte com efeito vinculante. Ou seja, vêm admitindo que basta a contratação formal de um trabalhador com uma roupagem diversa (por exemplo, como sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego[3][4]. Isso subverte o princípio da primazia da realidade, segundo o qual, na análise de uma relação de trabalho, deve-se dar maior importância aos fatos do que à forma: a essência se sobrepõe à aparência. Esse princípio basilar rege o Direito do Trabalho no Brasil e nos demais países do mundo.

Nessas decisões -, além de se violar um princípio de “vigência universal”, nas palavras da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[5] -, os Ministros do STF não trazem a necessária fundamentação, pois não externam os motivos pelos quais os acórdãos da Justiça do Trabalho cassados teriam descumprido o entendimento vinculante (Tema 725).

Há, ainda, decisão de Ministro do STF que afasta a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação em que se alega fraude à relação de emprego[6], o que viola norma constitucional expressa[7].

Essas decisões do STF, além de contrariarem a Constituição da República, afrontam tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Nesse cenário, o que se pode fazer? Parafraseando Drummond, “E agora, José?”

Um possível caminho é o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em regra no prazo de seis meses (art. 46 da Convenção Americana).

Pode-se alegar a violação a garantias judiciais e proteção judicial (arts. 8º e 25 da Convenção Americana), em virtude da análise equivocada dos fatos e da ausência de devida motivação. Ademais, na Opinião Consultiva n. OC-27/21, de 05 de maio de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), ao realizar a interpretação autêntica de dispositivos da Convenção Americana, do Protocolo de San Salvador, da Convenção de Belém do Pará, da Carta da OEA e da Declaração Americana, afirmou o princípio da primazia da realidade, cujo descumprimento poderia constar na denúncia[8]:

Parágrafo 209: “Especificamente, os Estados devem adotar medidas que visem: a) o reconhecimento dos trabalhadores e das trabalhadoras na legislação como empregados e empregadas, se na realidade o são, pois assim devem ter acesso aos direitos trabalhistas que lhes correspondem de acordo com a legislação nacional”. (grifos nossos)

Voto concorrente do Juiz L. Patricio Pazmiño Freire: “Devemos lembrar a máxima do direito do trabalho de que a realidade fática prevalece sobre o nomen iuris e que as relações trabalhistas – onde quer que ocorram – devem ser protegidas por esse direito, sempre à luz do princípio in dubio pro operario” (grifos nossos)

Na mesma Opinião Consultiva, a Corte IDH destaca que o acesso à justiça requer uma jurisdição especializada com competência exclusiva em matéria trabalhista (parágrafo 116). O esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho, promovido pela referida decisão do STF, também pode ser objeto de denúncia.

A necessidade de observância dos tratados internacionais e da jurisprudência da Corte Interamericana foi reafirmada em recentes Recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[9] e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[10].

Além dos Estados-membros da OEA, qualquer pessoa, grupo, sindicato ou ONG pode apresentar denúncia à Comissão Interamericana, que a investiga e busca solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo. Cabe aos tribunais constitucionais ou aos tribunais supremos (como o STF no Brasil) a última palavra no âmbito interno quanto à constitucionalidade, mas cabe à Corte Interamericana, sediada em San José (Costa Rica), a última palavra quanto ao controle de convencionalidade da Convenção Americana.

Se no século XVIII, o Moleiro de Sans-Souci pôde afirmar que “Ainda há juízes em Berlim”, para se proteger da injustiça de um monarca absolutista, no século XXI podemos dizer que “Ainda há juízes em Costa Rica”, para reparar decisões do STF que violam as normas internacionais e a jurisprudência interamericana.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Lorena Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

Notas e referências

[1] Tema 725: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (Leading Case: RE 958.252).

[2] Consta na ementa do acórdão do RE 958.252 a necessidade da “INEXISTÊNCIA DE CARÁTER FRAUDULENTO”, o que foi reafirmado no julgamento da ADI n. 5.625: “Estando presentes elementos que sinalizam vínculo empregatício, este deverá ser reconhecido pelo Poder Público, com todas as consequências legais decorrentes, previstas especialmente na Consolidação da Leis do Trabalho.”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4952236 e em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5094239. Acesso em 29 jan. 2024.

[3] Citam-se, ilustrativamente, as decisões proferidas nas Reclamações n. 53.899/MG, 56.285/SP, 47.843/BA e 53.771/ES. Recentemente, o Procurador-Geral da República (PGR) emitiu parecer no mesmo sentido, contrariamente ao entendimento adotado pelo PGR anterior: https://www.folhape.com.br/economia/pgr-muda-posicao-e-defende-que-nao-ha-vinculo-entre-entregador-e/313465/. Acesso em 29 jan. 2024.

[4] A Reclamação n. 64.018/MG, oriunda de ação trabalhista ajuizada por motorista em face da plataforma digital Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda., foi incluída na pauta de julgamento do Pleno do STF de 08.02.2024: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6800311. Acesso em 29 jan. 2024.

[5] OIT. La relación de trabajo – Conferencia Internacional del Trabajo. 95ª Reunião. Genebra: OIT, 2006. p. 24. No Brasil, extrai-se esse princípio da CLT, notadamente do art. 9º (“Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”) e do art. 442, caput (“Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”).

[6] Pode-se citar a decisão proferida na Reclamação 59795: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6643597. Acesso em 29 jan. 2024. 

[7] “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (…)” (grifos nossos).

[8] CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021 solicitada por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Derechos a la Libertad Sindical, Negociación Colectiva y Huelga, y su relación con otros Derechos, con perspectiva de Género. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_27_esp1.pdf

. Acesso em 29 jan. 2024.

[9] CNJ. Recomendação n. 123, de 7 de janeiro de 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf. Acesso em 29 jan. 2024.

[10] CNMP. Recomendação n. 96, de 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomendao-n-96—2023.pdf

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