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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

As margens não são plácidas: um dia tudo transborda

Por Maria Betânia Silva no GGN

O fenômeno da manipulação de fatos e produção de mentiras se instaurou como a nossa mais importante catástrofe do século XXI.

I – Breve notas sobre a interseccionalidade entre fatos e pensamento

Desde 2016, quando se deu o golpe midiático-empresarial e parlamentar contra a Presidenta Dilma, o Brasil tem vivenciado situações que estremecem cada vez mais as suas instituições, a estabilidade social e elos familiares e de amizade.

Sobre as instituições, nenhuma análise parece caber nos cânones das teorias políticas e jurídicas; quanto à estabilidade social, que em parte dependem das instituições, as esperanças se esvaem, diz-se que mergulhamos num poço sem fundo e, no que tange aos elos familiares, as máscaras, todas, caíram. Tem-se a impressão de que tudo está sofrendo um esgarçamento, um processo de decadência e uma renúncia à decência. Posturas político-partidárias de alguns membros dos poderes do Estado estão profundamente marcadas por ideologias opostas, de sorte que firmar consensos se tornou quase impossível e viver no dissenso algo insuportável. Cresce o sentimento de que os embates são tão necessários quanto imprevisíveis em relação aos efeitos que possam ter, sendo certo que é preciso agir!

Como em qualquer país, o trato da coisa exclusivamente pública, muito se expressa nas relações entre o Executivo e o Legislativo, mas no Brasil isso tem também atraído o Judiciário para a arena política com muito mais freqüência e comprometimento em relação à sua imparcialidade, que não deve ser confundida com neutralidade ideológica.

Inegavelmente, se nota, que há um esforço claudicante do atual governo, na pessoa do Presidente Lula, em recuperar os princípios da República e recompor a partir daí o país. Mas no meio do caminho há Arthur Lira e muitos outros parecidos com ele país afora e em setores estratégicos do projeto de recomposição institucional.

É significativo o número de estudos feitos nessa seara assim como a manifestação pública de pessoas ciosas com o futuro do país, muitas delas fazendo a defesa da institucionalidade, apontando as causas dos problemas, desafiando os discursos carregados de ódio e as atitudes estúpidas que minam a credibilidade do poder do Estado e dificultam, assim, o encontro do Brasil consigo mesmo para o fim de propagar aquilo que efetivamente pode beneficiar a população.  Vive-se sob a égide de um insistente e necessário movimento que prestigia o desenho da vida pública brasileira e dos princípios constitucionais que a regem, sob a exigência das ações que deem a devida concretude ao discurso político construtivo. Lamentavelmente, tudo isso tem se mostrado, ainda, insuficiente.

Um dos fatores dessa insuficiência reside, a meu ver, na existência e manejo das redes sociais, as quais ampliaram exponencialmente o trânsito de opiniões entre todos os segmentos sociais, como se todas as pessoas que os compõem estivessem em pé de igualdade, compartilhando dos mesmos valores éticos. As plataformas de comunicação virtual abrem os espaços para diluição de um paradigma ético e nos dão a sensação de que cada um de nós pode sempre ser ouvido e, ao ser ouvido, de fato, escutado a ponto de influenciar a opinião do outro, orientando-o na construção de algo positivo. Ledo engano.

O acesso às redes sociais, permite para alguns de nós, às vezes, uma manifestação catártica aliada às nossas próprias verdades; para outros, uma manifestação apenas performática e, finalmente, para alguns outros, uma manifestação supostamente informativa calcada numa suposta neutralidade do conteúdo daquilo que é considerado informação. No cruzamento entre esses tipos de comunicação/manifestação nas redes sociais, dá-se um imbróglio e a perda de orientação que nos faz evocar o mito de uma Torre de Babel. Todos falam, mas a comunicação é ruidosa pelas diferentes línguas que são faladas, a compreensão entre os falantes, por seu turno, quase impossível. O céu não se torna um espaço de conquista e a terra persiste como inferno.

É proposital aqui fazer o paralelo com o mito bíblico porque não se pode rejeitar a reflexão intrigante de como tantos desses mitos se prestam a ser metáforas do tempo atual.

É intrigante porque esses mitos estão latentes na formação do nosso modo de pensar e nos levam a um recuo longíquo no tempo, que é por demais indesejável. É intrigante porque  desprestigia os mais variados documentos produzidos pelo ser humano a partir de uma racionalidade firmada nas experiências da vida cotidiana e emancipadas dos dogmas religiosos. É intrigante porque ao longo da História do cotidiano da vida real, construímos aprendizados que nos permitiram e, ainda, nos permitem escolher caminhos promissores.

Porém, de repente, esse edifício de aprendizados parece ceder, dando lugar a mitos que habitam um mundo imaginário, sendo todos eles muito cruéis para o nosso modo de vida e de pouca valia para projetar o nosso futuro.  

Tudo isso, porém, faz parte da linguagem, que é a matéria-prima do processo comunicacional e não há como fugir disso. Assim, no contexto de emergência e consagração das redes sociais, fomentadoras de uma comunicação virtual a linguagem simbólica evocativa dos mitos parece encontrar a sua morada em pleno século XXI. E isso, por conseguinte, nos leva a enfrentar a busca de critérios para distinguir a verdade da mentira.

Nessa perspectiva, convém notar que seja em virtude de uma comunicação catártica, ou de uma performance ou, ainda, de uma atitude informativa supostamente neutra, muito facilmente a gente se vê enclausurado na ideia de que se pode estar, em qualquer circunstância, veiculando uma mentira ou, uma verdade. A comunicação catártica pode ser verdadeira para quem a faz e apenas performática para quem a observa; a comunicação informativa pode ser superficial a ponto de não encarar a verdade ou perceber a mentira que a enreda.

Desse modo, põe-se em dúvida a possibilidade de existência da verdade como pressuposto tanto da boa convivência  quanto de um sincero processo comunicacional entre as pessoas e, enquanto a dúvida se forma, poupam-se questionamentos sobre o que é ou que pode ser mentira. Para a desgraça do país, a mentira sai ganhando e destroçando presente e futuro.

O mais impactante de tudo é que a pretexto de se adotar uma comunicação meramente informativa e não opinativa, a manipulação dos fatos gera diferentes graus de mentiras e os fatos vão sendo deixados num plano secundário. Esse fenômeno não é novo mas se intensificou com a criação das redes sociais.

No Brasil, especialmente, com os seus mais de 200 milhões de habitantes e parte significativa deles com acesso às redes sociais, o fenômeno da manipulação de fatos e produção de mentiras se instaurou como a nossa mais importante catástrofe do século XXI. Embora construída virtualmente, a catástrofe da mentira se desdobra de forma palpável em muitas outras catástrofes, ameaçando a nossa sobrevivência física.  

A mídia corporativa brasileira associada às oligarquias do país, por exemplo, ambas regidas pela ganância equivalente àquela dos colonizadores – dos quais, aliás, descendem genética ou ideologicamente – sempre funcionou segundo esse padrão, qual seja: o de pôr os fatos em segundo plano para criar a partir deles a “informação” conveniente aos poderosos, algo que, hoje, conceitualmente, se chama de “narrativas”.

A ocorrência desse tipo de comunicação manipuladora, no Brasil, vem atravessando gerações, modelando o pensamento das pessoas e progressivamente alienando-as da realidade. Desse modo, ora entra em concorrência com os espaços de formação de cidadania, como as escolas, ora se sobrepõe a elas, o que era apenas um processo contínuo de produção de mentiras parece ter se convertido num produto pronto e acabado, consumido avidamente.  

Por conseguinte, as contradições inerentes a qualquer sociedade, no Brasil,  vêm-se aprofundando e, mais especificamente, isso se dá no trato dos assuntos de competência daqueles que representam a parcela mais organizada e institucionalizada da vida política do país. A verdade ou a mentira escorrem entre as brechas do discurso político e na relação entre ele e as ações de governo. Quanto maior a contradição entre esses elementos mais se detona a institucionalidade, banhada no caldo de ignorância que afeta parte da população tomada de ressentimentos ou, quando não, paralisada pelos apelos religiosos de viés fundamentalista freqüentes.

II- As várias faces da tragédia

A tragédia que ora se abate sobre o Rio Grande do Sul é dolorosa por ser realmente uma tragédia e, também, por servir como mais um exemplo de manipulação dos fatos de modo a proteger certas figuras públicas e desprezar o papel de algumas outras.  Uma das formas de exercer essa manipulação consiste em atribuir à natureza impiedosa, a chuva intensa e aos  rios os efeitos danosos sofridos pela população. É como se chuvas torrenciais, numa topografia alagadiça peculiar e rios caudalosos, isolada ou conjuntamente, protagonizassem uma espécie de dilúvio bíblico. De novo, a evocação bíblica, a narrativa em primeiro plano e os fatos em plano secundário; é como se tudo resultasse da ira divina (embora um Deus irado seja, no mínimo, muito pecador!) para fazer expiar as nossas culpas.

Quanto mais se fala da chuva e dos rios maiores as chances de poupar a responsabilidade dos humanos, mais especificamente, das autoridades em cujas mãos se entregou a administração do território riograndense.

No caso das inundações que tomam quase todo o estado do Rio Grande do Sul, a noção de responsabilidade dos governos estaduais e municipais, nas pessoas dos representantes eleitos para o executivo e para parte do legislativo que os apoia, parece não ter a devida relevância quando se assiste a alguns noticiários e se vê certos perfis nas redes sociais. Também, não parece vir ao caso nessa rede comunicacional: a) o debate sobre a escolha de um modelo econômico  ambientalmente devastador orientado pela lógica segundo a qual compartilham-se prejuízos com o Estado para acalentar com lucros o setor privado; b) um modelo urbanístico designado de civilizatório calcado na especulação imobiliária que ignorou deliberadamente as condições originais dos terrenos hoje betumizados. O asfalto agiu como uma espécie de cosmético para edificar negócios e habitações em áreas alagadiças, escondendo as rugas naturalmente formadas sobre a terra para também encobrir as águas que nela se acumulavam.

É bom registrar que este não é um modelo exclusivamente adotado no Rio Grande do Sul. Trata-se de  modelo que se espraia Brasil afora: vide o caso de Maceió que vive o afundamento de um dos seus bairros em troca dos negócios que favorecem a Braskem; vide o caso do Recife (nome originado dos arrecifes presente nas suas praias), uma cidade serpenteada por rios e canais que transbordam a cada maré alta ou depois de uma chuva intensa, enquanto exibe uma arquitetura urbana semelhante a uma tábua de pirulitos à beira mar.

Deve-se enfatizar que sobre a responsabilidade do governador e de prefeitos, em especial, no caso de Porto Alegre, nos espaços midiáticos tradicionais, pelo menos, pesa o silêncio (com raras exceções) e sobram flashes no rosto do governante dandy. A corrente de solidariedade que a tragédia despertou no Brasil inteiro é algo bonito de se ver. É comovente!  Mas é, no mínimo, revoltante saber que governador ignorou alertas científicos sobre as fortes chuvas, mexeu em quase 500 artigos do Código Ambiental do Estado, desmantelou políticas ambientais, não investiu um centavo nas rubricas de órgãos voltados à defesa civil, procedeu de forma a exigir do governo federal uma ação como se tivesse havido um pedido prévio e uma retumbante negativa de ajuda (algo, aliás, desprovido de justificação normativa plausível  sob a ótica da distribuição de competências entre os entes federados) e, por fim, agradeceu a Elon Musk ( dono de uma plataforma digital) sem nada mencionar sobre as ações do governo federal voltadas a mitigar o sofrimento das vítimas das enchentes e, a recuperar a infraestrutura estadual bem como a economia do estado. Como isso não bastasse, o governador divulgou um vídeo com endereço para doações cuja arrecadação cai na conta privada de uma associação ligada ao setor imobiliário. Resta saber quem se beneficiará o valor arrecadado: às vítimas iludidas com modelo imobiliário especulativo ou aos que investiram  no negócio de risco?

Enfim, o que se vê, neste caso, não é uma conjunção dos astros. O que  se vê são os efeitos da ideologia neoliberal que habita a cabeça dos governantes estilosos  que já não conseguem disfarçar a adoção de uma tecnologia genocida, regida pelo negacionismo, a qual, no âmbito administrativo e no plano jurídico, se configura como negligência em um grau tão elevado que faz fronteira com o dolo eventual, segundo a melhor doutrina penal.

Num breve comparativo, a atitude do governo estadual do Rio Grande do Sul segue a cartilha usada durante da pandemia da Covid-19 em 2020-2022 pelo governo federal da época. E a lição que se reproduz é aquela em virtude da qual tudo está encharcado e não é apenas o território do Rio Grande do Sul…tudo está encharcado e não apenas de água. Tudo está encharcado também de sangue tanto no plano físico  quanto teórico. As margens do rio não são plácidas, as margens de tolerância do povo também não, sobretudo quando o fluído que escorre nas veias é o sangue humano.  Tudo está transbordando e sem diques.  

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.


O uso da palavra tragédia – que fique bem claro – nada tem a ver com a força da natureza como algo imprevisível ou improvável. Onde não há ser humano não existe tragédia. A existência do humano é pressuposto da tragédia na vida e na literatura que se inspira na vida como representação num registro narrativo.

O laço verde e os acidentes trabalhistas ampliados

Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense

O verde ilumina edifícios e monumentos no Abril Verde. Alerta para os acidentes e doenças do trabalho

Entre as cores de abril — como na canção de Vinícius —, o verde ilumina edifícios e monumentos no Abril Verde. Alerta para os acidentes e doenças do trabalho. O laço verde na lapela identifica a causa do Dia Mundial em Memória das Vítimas de Acidentes de Trabalho, celebrado hoje, 28 de abril.

O Tribunal Superior do Trabalho realizou oficinas com o tema Um mergulho na informalidade, desenvolvendo oportuna campanha com o mote Democracia é inclusão — os impactos na saúde e segurança do trabalho, dando visibilidade a trabalhadores vulneráveis, em que grassa a subnotificação, como trabalhadores rurais, cuidadores, catadores de materiais recicláveis ambulantes.

O Ministério Público do Trabalho, por sua vez, está realizando extensa programação com o slogan Adoecimento também é acidente do trabalho. Conhecer para prevenir. O chamado ressalta que as doenças também são acidentes que afetam o mundo do trabalho. Há duas classificações básicas para as doenças do trabalho: agudas e crônicas. Nas agudas, instantâneas, os agravos têm maior probabilidade de ganhar registros em dados oficiais.

Essa constatação é comprovada no Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (smartlabbr.org/sst), que registra os agravos mais frequentes nos registros oficiais. São eles: em primeiro lugar, corte, laceração, ferida contusa e punctura; em segundo, fratura; em terceiro, contusão e esmagamento (superfície cutânea); em quarto, distensão e torção; e, em quinto, lesão imediata. No geral, entre 2012 e 2022, entre trabalhadores com carteira assinada, o Smartlab registrou 7,6 milhões de acidentes — uma notificação a cada 51 segundos — e 28.523 óbitos, o equivalente a um óbito a cada 3h47.

No caso das doenças crônicas, que se manifestam ao longo do tempo, podem ser fatais e atingir, inclusive, as gerações futuras, a subnotificação é reconhecida oficialmente como uma grave distorção dos bancos de dados. É o caso das contaminações por agentes químicos, que podem produzir desregulação do sistema endócrino, afetando glândulas e órgãos que regulam e controlam várias funções do organismo, além de alterações genéticas, e que são invisibilizadas pelas limitações do sistema de saúde, pela desinformação, pelas deficiências da fiscalização e pela baixa efetividade das estruturas de punição a infratores. Especificamente em relação às intoxicações por agrotóxicos, a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde admitem que a notificação é de apenas uma em cada 50 ocorrências — ou seja, somente 2% das intoxicações são registradas.

Uma questão relevante, na perspectiva da prevenção e da precaução, em sintonia com a preocupação do mundo civilizado com a moderna pauta ambiental, diz respeito aos acidentes ambientais trabalhistas ampliados. Na complexa sociedade contemporânea, proliferam os exemplos de acidentes ambientais ampliados, com danos agudos ou crônicos. O conceito de acidente ambiental de trabalho com o adjetivo ampliado deriva da epidemiologia, que analisa os fenômenos que extrapolam os limites do empreendimento causador.

O tema é lembrado na nova Norma Regulamentadora nº 1 (NR1, de 9/3/2020) ao tratar do Programa de Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (PGR), orientando que sejam considerados, na gradação da severidade das lesões ou agravos à saúde, a magnitude da consequência e o número de trabalhadores possivelmente afetados. O tema também consta da Convenção n°174 da OIT, como acidente ampliado (acidente maior), que envolve substâncias perigosas e implica grave perigo, imediato ou retardado, para os trabalhadores, a população ou o meio ambiente.

No meio ambiente do trabalho, urbano ou rural, são vários os exemplos de eventos com esse potencial, como nos casos das pulverizações de agrotóxicos e das chuvas de veneno, em que proliferam estudos indicando casos de aborto e malformações de bebês; contaminações por vazamentos ou explosões na indústria química; adoecimentos e lesões no setor frigorífico, em que operários chegam a realizar 90 movimentos por minuto, em ambiente frio, e sujeitos à incidência simultânea de múltiplos fatores de risco, além do vazamento de amônia; e desastres pelo rompimento de barragens.

São situações que demonstram a relevância de que a dor não seja invisibilizada e que prevaleça a diretiva do desenvolvimento sustentável da ONU, cuja concretização demanda posicionamento firme das instituições e das instâncias legitimadas a preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, reconhecido pela Constituição como essencial à sadia qualidade de vida para as gerações presentes e futuras.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

Tio Paulo e o espelho quebrado

Antes que tio Paulo recebesse as homenagens póstumas, tanto ele quanto a sobrinha já estavam em todas as redes sociais

por Mário Henrique Cardoso Caixeta

A insólita cena de uma mulher conduzindo em cadeira de rodas um cadáver, para que ele, supostamente vivo, tomasse empréstimo bancário, gerou intensa comoção, indignação, revolta. – Que absurdo! – Essa mulher é um monstro, merece cadeia! Esses, e outros brados impublicáveis, foram repetidos em todo canto.

Nas imagens, a mulher, depois identificada como sobrinha daquele idoso, instrui o recém-falecido a assinar o contrato, dizendo como ele deveria segurar a caneta e lançar no papel a assinatura, ao que as funcionárias da agência bancária, percebendo o corpo inerte do falecido, diziam que o idoso não estava bem! Talvez ele, falecido, naquela cena bizarra, sem dor, sem emoção, inerte, estivesse bem…, porque, quando vivo, tio Paulo, nome do idoso levado naquelas circunstâncias à agência bancária, estava em estado de absoluta indignidade[1], algo que tantas vezes vi ao longo de minha carreira como promotor de justiça do Ministério Público do estado de Goiás.

Antes que tio Paulo recebesse as homenagens póstumas, tanto ele quanto a sobrinha já estavam em todas as redes sociais; e mais um espetáculo de horror se iniciava, para deleite geral! A sobrinha foi investigada, processada, julgada e condenada em tempo recorde. A justiça, muito célere, cuidou de decretar-lhe a prisão preventiva[2], mesmo porque, se presa não fosse, certamente seria linchada pela turba ensandecida.

Sob perspectiva penal, a conduta da sobrinha poderia se ajustar à hipótese de tentativa de estelionato, tendo por eventual vítima o banco, já que o crime de vilipêndio a cadáver estaria absorvido pelo crime patrimonial e pessoa morta não pode ser sujeito passivo de crime furto ou de estelionato. Pode-se falar, inclusive – e é o mais adequado –, em crime impossível, dada a absoluta ineficácia do meio (artigo 17 do Código Penal). Logo, improvável a presença dos pressupostos para a decretação de prisão preventiva (vide artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal), e certamente a sobrinha criminosa fará jus a acordo de não persecução penal (art. 28-A, do Código de Processo Penal), isso se não demonstrada a inimputabilidade. 

Mas, ainda houvesse em tio Paulo o mínimo sopro de vida, apenas para segurar a caneta e assinar motu proprio o documento que lhe foi apresentado, certamente o empréstimo lhe seria concedido, mesmo que aparentemente tio Paulo não estivesse bem; mesmo que tio Paulo externasse nos olhos quase sem vida um pedido mudo de socorro; mesmo que tio Paulo falecesse poucos instantes depois, ao deixar a agência bancária! Por fim, as funcionárias do banco se sentiriam realizadas, porque, afinal, há meta de produção a bater.

Voltando ao escândalo, ele não se deu porque estava evidente uma situação de violência contra pessoa idosa, embora essa violência estivesse sendo exibida em público durante todo o trajeto até a chegada do recém-falecido à mesa da funcionária da agência bancária. Não foi suficiente à avidez pelo bizarro (pois o bizarro está em cadáver tomar empréstimo) o trânsito tranquilo da sobrinha levando o tio falecido – ou quase – em cadeira de rodas por estacionamentos, corredores de shopping etc., ainda que naquela cadeira estivesse um ser humano completamente vulnerável.

A opacidade dos olhos do cadáver não permitiu que a sociedade se visse nele projetada, e daí o espanto, a repulsa, a ojeriza, e o sentimento atroz de vingança. Ergueram-se então os verdugos, disseminados em rede social, para exclamar a plenos pulmões a crueldade que se comete contra pessoas idosas. Mas, afinal, naquela cadeira de rodas estava uma pessoa idosa? Não. Havia um cadáver, e o cadáver trazia nos “olhos que eram de ver” um espelho quebrado, incapaz de refletir a imagem de uma sociedade que faz da velhice um estorvo; e da pessoa idosa, um fardo.

Platão, na obra A República, retrata um diálogo entre Céfalo e Sócrates. Céfalo, já bastante idoso, concita a Sócrates a visitá-lo sempre, pois a idade não permite a Céfalo ir à cidade. Nesse diálogo, Sócrates diz que para ele é “um prazer conversar com pessoas de idade e bastante avançada. Efetivamente, parece-me que devemos informar-nos junto deles, como de pessoas que foram à nossa frente num caminho que talvez tenhamos de percorrer, sobre as suas características, se é áspero e difícil, ou fácil e transitável. Teria até gosto em te perguntar qual o teu parecer sobre este assunto – uma vez que chegaste já a esse período da vida a que poetas chamam estar “no liminar da velhice” – se é uma parte difícil da vida, ou que declarações tens a fazer”.

Permitir que os olhos da pessoa idosa, como um espelho, nos transmitam a dor, o sofrimento e a angústia do desamparo na quadra final da vida, também nos leva a observar nosso próprio reflexo, de uma sociedade que enxerga no humano apenas mercadoria e que, portanto, só tem valor se for útil ao mercado.

Rubem Alves, com a poesia que lhe é peculiar, nos chamou a atenção para essa forma mesquinha de encarar a velhice: “Chegou o momento da inutilidade, e é isso que você não suporta, pois lhe ensinaram (e você acreditou) que os homens e as mulheres são como as ferramentas, que só valem enquanto forem úteis. Um serrote velho, uma enxada gasta, uma alicate torto, um fósforo riscado, uma lâmpada queimada, não prestam para nada” (Se eu pudesse viver minha vida novamente…).

Vemos e nos vemos, ao mesmo tempo! Ao nos vermos, nos constrangemos, nos calamos, nos envergonhamos, pois sabemos que aquele é nosso destino, e muda-lo exige enfrentamento. Nos acovardamos para, mais tarde, colhermos o amargo do porvir. Tio Paulo, se vivo estivesse, depois de assinado o contrato, voltaria à masmorra em que sobrevivia, mesmo que pouco depois falecesse, e nenhum escândalo haveria, pois para isso o espelho que trazemos nos olhos deve estar quebrado, e só a morte, por enquanto, é capaz disso!

O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Mário Henrique Cardoso Caixeta – Membro do Coletivo Transforma MP desde 2022. Membro do Coletivo Repensando a Guerra às Drogas. Especialista em Direito Processual Civil: O Novo CPC em Perspectiva e as Tutelas Coletivas como Instrumentos de Defesa da Cidadania – Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (2018). Especialista em Criminologia e Política Criminal pela Anhaguera-Uniderp (2015). Mestre em História pela PUC – Goiás na linha de pesquisa Cultura e Poder (2009).  Promotor de justiça no Ministério Público do Estado de Goiás desde agosto de 2000. Bacharel em Direito pela UFU – 2000

[1] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/04/21/tio-paulo-ficava-em-garagem-sem-piso-emprestimo-seria-para-reforma.htm

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/caso-tio-paulo-mulher-que-levou-idoso-morto-para-pegar-emprestimo-tem-prisao-preventiva-decretada/

A política penal de Mahagonny (Brecht) e a punição dos pobres

Por Jacson Zilio no Conjur

Quando Bertold Brecht escreveu “Ascensão e queda da cidade de Mahagonny” e Kurt Weill colaborou na composição da ópera, o modelo de sociedade capitalista estava estremecido pela grande crise que derreteu a economia global.[1] A Alemanha estava economicamente falida e mergulhada no caos político. Com a pobreza batendo à porta e as consequências da perda da Primeira Guerra Mundial ainda presentes, o povo alemão abraçou um projeto populista alternativo ao fraco governo democrático. A crise política (os dois partidos de esquerda, SPD e KPD, não formaram alianças) abriu caminho livre aos tentáculos persecutórios do regime de terror do nacional-socialismo, com a “solução final” num horizonte já desenhável. A estreia da ópera em Leipzig no dia 4 de março de 1930 já demonstrava o clima político da época de crise do capitalismo: protestos dos camisas-marrons nazistas do lado de fora e tumulto do lado de dentro do teatro impediu o maestro, no terceiro ato, de ouvir os próprios músicos.[2]

A peça musical narra a história de três malandros (Fatty, Moses e Begbick) que, em fuga e retidos no deserto próximo a uma zona de mineração, decidem então fundar, da noite para o dia, uma cidade-arapuca (Netzestadt): Mahagonny. Os fundadores prometem uma vida de prazeres, sem proibições. A cidade, uma espécie moderna de Sodoma e Gomorra, apresenta-se como um espaço de utopia do prazer e ociosidade, embora, na realidade, representasse mais bem uma armadilha destinada a capturar o dinheiro dos mineiros. A cidade-ouro (Goldstadt), povoada por prostitutas e burgueses insatisfeitos, cresce rapidamente devido a sua boa reputação: tu tens permissão (du darfst) de tudo, de agir como quiser, claro, desde que tenhas dinheiro para consumir. Afinal, com concordam Begbick, Fatty e Moses, dinheiro dá tesão (Geld macht sinnlich). Logo chegam as primeiras prostitutas (Jenny e seis companheiras) em busca de homens que paguem. Fatty e Moses estacam uma bandeira, anunciam a “cidade do ouro” de Mahagonny e que prometem prazer, paz e harmonia, aos trabalhadores de outras grandes cidades. A notícia espalha-se entre os descontentes de todos os continentes. Muitos partem em viagem. A promessa do paraíso de consumo capitalista, retratado na felicidade em troca de dinheiro e mercadorias, animou um grupo de lenhadores enriquecidos por duros anos de trabalho (Jim, Jack, Bill e Joe). Jim Mahoney exige a autorrealização radical de todos. Tu tens permissão (du darfst). Mas logo depois, Jim fica infeliz pelos sinais crescentes de proibição, do álcool barato e da vida aborrecida. Jim faz as malas e decide a deixar a cidade. Indagado porque iria partir, Jim diz ter visto um cartaz escrito “aqui é proibido” (Weil ich eine Tafel sehen musste, darauf stand: „Hier ist verboten“). E indaga a Begbick: “Veja só, tu fizeste cartazes e ali escreveste: isto é proibido; isto não pode. Mas daí não surgiu a felicidade.” (Siehst du, du hast Tafeln gemacht und darauf geschrieben: das ist verboten und dieses darfst du nicht und es entstand kein Glückseligkeit). Portanto, nada é proibido, tudo é permitido:  es nichts verboten, du darfst es! Os seus amigos resistem e tentam dissuadi-lo: Mahagonny tem tudo. Mas Jim acha que falta algo (Aber etwas fehlt). Quando o dinheiro dos lenhadores mostra-se insuficiente e os negócios entram em crise, os próprios fundadores também planejam partir. Tudo muda, entretanto, quando um furacão destrutivo aproxima-se da cidade, pois a iminência da catástrofe, que surpreendentemente não acontece, reforça a ideia de Jim de que é preferível quebrar os cartazes e as leis proibicionistas impostas por Begbick. Assim como faria o furacão. Ora, se a morte é sempre iminente, então todas as proibições são inúteis. Assim, “tu tens permissão” (du darfst) retorna como o maior mandamento da cidade. É permitido fazer tudo (Alles darf man dürfen).

Apesar de Jim Mahoney ser inicialmente aclamado pelos demais, a situação dele muda. Para cada dia de prazer em Mahagonny são necessários pelo menos 5 dólares. Jim gasta uma segunda rodada e apercebe-se de que não tem mais dinheiro. Moses exige o pagamento da conta e prende Jim. Ele então é algemado e submetido a julgamento por dívidas. Também outro cidadão, Tobby Higgins, é julgado por assassinato. Este, porém, convence a viúva Begbick e suborna o tribunal. É absolvido. Enquanto isso, sem ajuda dos amigos para pagarem suas dívidas, Jim é imputado por vários delitos. Finalmente, após confessar que não tinha dinheiro e não ceder aos olhares de corrupção de Begbick, Jim Mahoney é condenado a pena de morte por não pagar três garrafas de uísque e executado. O povo aplaude a barbárie. Nas suas últimas palavras, Jim ressalta que a felicidade que comprou não era felicidade e a liberdade à custa de dinheiro não era liberdade (Die Freude, die ich kaufte, war keine Freude und di Freiheit für Geld war keine Freiheit). Mahagonny mergulha no caos. A cidade está em chamas e uns contra os outros. Cortejos de manifestantes levam inscrições repletas de pautas contraditórias.

A história de Mahagonny retrata a desumanidade do terror monetário e consumista da sociedade capitalista. Conforme Adorno, nós vivemos em Mahagonny, onde tudo é permitido, menos uma coisa: não ter dinheiro.[3] Aí está o fundamento da ordem capitalista: todos são tratados como mercadorias que podem ser compradas e vendidas. A anarquia na produção de mercadorias é projetada na anarquia do consumo: não mais “penso, logo existo”, menos ainda “trabalho, logo existo”, mas sim “consumo, logo existo.”[4] Nesse contexto de totalitarismo financeiro, base da ideologia neoliberal, não é de se admirar que os grandes monopólios e as grandes corporações transnacionais tomem o posto historicamente reservado à política, como uma forma de neocolonialismo que suplanta o poder soberano dos estados nacionais.[5]   

No que se refere à política penal de Mahagonny, os dois julgamentos mostram o funcionamento do sistema punitivo com espetacularização dos julgamentos, corrupção dos julgadores, desigualdade de tratamento dos acusados e desproporcionalidade entre pena e gravidade da ofensa. Em suma: um direito penal de luta contra os pobres que não é muito diferente da realidade atual.

Assim, punir os pobres não é algo exclusivo de Mahagonny. Os exemplos são muitos. Recentemente, em todos os poderes essa lógica perversa de punição se fortalece.

Em primeiro lugar, punir os pobres está embutido na execução eterna da pena de multa aos pobres. O condicionamento da extinção da punibilidade ao cumprimento da pena de multa acarreta danos à dignidade do preso e à finalidade reintegrativa da pena de prisão. As consequências da decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.032/DF, de Rel. do Ministro Flávio Dino, são contraditórias com as conclusões da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Afinal, marginaliza ainda mais os egressos do sistema carcerário e despreza o objetivo de ressocialização. A conclusão da 3ª Seção do STJ, que se contenta com a autodeclaração de pobreza para extinção da punibilidade, é a única que não ofende o fim de ressocialização de pessoas presas. Isso porque sem essa extinção da pena os presos pobres não conseguem a reabilitação (art. 93 do CP), que facilita a busca por emprego formal, já que confirma a negativa de anotações penais. Ao contrário, a ausência de extinção por falta de pagamento pode forçar o preso ao trabalho precário informal e, em algumas situações, ao retorno às condições delitivas prévias. Portanto, é uma interpretação contraproducente, que se traduz num sobrepunição da pobreza. O contingente da população prisional em laborterapia e escolarizado é ínfimo e, portanto, sem os direitos do art. 25 da LEP, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa sem ingressar no círculo vicioso de desespero.[6] Não por outra razão é que o CNJ editou a Resolução no 425/2021, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e estabeleceu: “Art. 29. Deverá ser observada a vulnerabilidade decorrente da situação de rua no momento de aplicação da pena, evitando-se a aplicação da pena secundária de multa. Parágrafo único. No curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa.” Enfim, a interpretação fria da realidade do sistema carcerário reforça a punição dos pobres e viola o artigo art. 3º, I e III, da CF e a Regra 107 das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela). Se essas normas são inaplicadas, então tudo é permitido na execução penal, menos não ter dinheiro.

Em segundo lugar, punir os pobres está na manutenção da criminalização de posse de drogas para consumo pessoal. Os pobres são os que mais sofrerem com a atual política de drogas e seguiram estocados em masmorras com a eventual aprovação da absurda PEC 45/2023. Mas nas democracias ocidentais, por sorte, o poder legislativo não pode tudo. Ainda que por meio de emenda constitucional, os direitos de liberdade, de autonomia pessoal, de disposição da própria saúde individual e da dignidade humana não podem ser suprimidos ou esvaziados por um legislador conservador de plantão. A manutenção da criminalização não poderá sequer impedir que o poder executivo delimite, por ato administrativo da própria da autoridade sanitária, quais são as substâncias consideradas ilícitas. Tampouco impedirá que sejam definidas as quantidades mínimas de posse de qualquer tipo de drogas, a fim de evitar um limbo na diferenciação entre traficantes e usuários. Na ausência de clareza, inclusive pelo território que habitam, os pobres são definidos pela autoridade policial como traficantes, enquanto os ricos são imunizados como meros consumidores, independentemente da quantidade. Parece claro aqui que há um corte racial e social que gere o funcionamento do aparato punitivo. Outra vez: tudo é permitido no direito penal de drogas, menos não ter dinheiro.

Em terceiro lugar, punir os pobres está na lógica da flexibilidade de buscas pessoais e domiciliares. O STJ, outra vez, avançou muito nesse tema de direitos individuais, fixando critérios objetivos, em benefício direto aos mais vulneráveis, que são os únicos abordados discricionariamente na rua e que possuem seus lares invadidos pela polícia. À polícia, como o poder punitivo de Mahagonny, tudo é permitido; aos pobres, ao contrário, nada é permitido, nem caminhar na rua sem ser humilhado nem ter o descanso do lar livre de suspeitas, principalmente quando não se tem dinheiro.

Em quarto lugar, punir os pobres é o pano de fundo da restrição de saídas temporárias na execução da pena privativa de liberdade. Revogar as saídas temporárias viola os direitos das pessoas presas, de manter ativo contato social, na perspectiva da função ressocializadora da pena. O veto parcial do projeto de lei 2.2253/2022 é insuficiente: reativar o inconstitucional exame criminológico está à direita do processo civilizatório e constitui, na prática, um outro muro de concreto na progressão de regime. Por certo, gerará descontrole dos presídios, violência e aumento da população carcerária, apesar da frontal contradição com a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Como se vê, os pobres encarcerados não possuem sequer os direitos civilizatórios mais elementares de esperança progressiva da liberdade.

Enfim, a genialidade de Brecht desvelou a mecânica crua do capitalismo, em que o dinheiro ainda governa a vida humana na sua totalidade e na qual tudo se reduz ao valor de troca de mercadoria, em todos os âmbitos. Mas não é só isso. A política penal de Mahagonny segue vigente na realidade de carne e osso dos pobres enjaulados do mundo. Nessa lógica, não basta a execução aplaudida na cadeira elétrica de Jim Mahoney. Para essa gente perversa, é preciso mais: querem gozar do sofrimento daqueles que não se adaptam ao poço de dinheiro de Mahagonny contemporânea. A sociedade punitiva da atual era do confinamento converte a prisão em aspirador social e máquina de moer.[7] A prisão, portanto, hoje é “zona de estocagem”, em que as funções reabilitadoras do encarceramento cedem à dimensão primitiva do castigo e da mera neutralização.[8] Nesse contexto, de trabalho desclassificado, a regulação social da pobreza não se dá mais com objetivo de inclusão social, mas sim por meio de mecanismos de controle por repressão penal.[9] O sofrimento e a humilhação voltam a ocupar centralidade na atual onda punitiva do capitalismo. O individualismo, o mundo de puro consumo utópico e o horror aplaudido de Mahagonny ainda tem muito que nos ensinar no horizonte político, social, moral e ético.

Jacson Zilio é Promotor de Justiça do MPPR e integrante do Coletivo Transforma MP.


[1] BRECHT, Bertolt, WEILL, Kurt. Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny. Wien/Leipzig: Universal-Edition A.G., 1929. BRECHT, Bertolt, WEILL, Kurt. Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny. Erste Auflage. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2013.

[2] STUART, Jeffries. Grande hotel abismo: a escola de Frankfurt e seus personagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p.137.

[3] ADORNO, Theodor W. “Mahagonny”. Trad. Jamie Owen Daniel. In: Discourse: Journal for Theoretical Studies in Media and Culture. Vol. 12. Article 5, Wayne State University Press, 2013, p. 5.

[4] STUART, Jeffries, op. cit., p.139.

[5] ZAFFARONI, Eugênio Raùl. Colonização punitiva e totalitarismo financeiro. A criminologia do ser-aqui. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2021.

[6] REsp 1785383 SP; e 1785861 SP, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021.

[7] ARANTES, Paulo Eduardo. Zona de espera. Uma digressão sobre o tempo morto da onda punitiva contemporânea. In. O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 141.

[8] ARANTES, Paulo Eduardo. Zona de espera, op. cit., p.

[9] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Guerras, migrações, xenofobia: o que você tem a ver com isso?

Coletivo recebe especialista em migrações para debater ascensão do ódio e xenofobia

O Coletivo Transforma MP receberá a Dra. Thais França para discutir a ascensão do ódio e xenofobia em todo o mundo.

A discussão será mediada pelo Promotor de Justiça do Ministério Público do Ceará e integrante do Coletivo Transforma MP, Élder Ximenes Filho, e terá como debatedoras as procuradoras e integrantes do Coletivo, Maria Betânia Silva (MPPE) e Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (MPT).

O debate virtual acontecerá no dia 30 de abril às 18h e será transmitido pelo canal do Coletivo Transforma MP no Youtube.

Thais França é Investigadora integrada do CIE-Iscte do ISCTE. Sua prática académica é feminista, anti racista e descolonial. Possui doutoramento pela Universidade de Coimbra, onde escreveu sua tese sobre imigração de mulheres brasileiras para Portugal. Trabalha sobretudo com temas ligados à migração, género, raça/racismos, desigualdades sociais e estudos descoloniais. É membro da coordenação da rede IMISCOE (International Migration Research Network) e da Rede ENIS (European Network on International Student Mobility: Connecting Research and Practice). Concluiu em 2024 o projeto “Mapping Out: Portugal on the European anti-immigrant movements map” em parceira com o PRIO da Noruega financiado pelo esquema EEA Grants Portugal. Atualmente coordena o projeto “Inclusion+ Tackling the challenges of Erasmus+ mobility inclusion and diversity at higher education level”.

‘Pobres criaturas’: a proibição de crianças participarem de Paradas LGBTQIA+

Por Lucas Dias e Renan Quinalha no JOTA

Livre manifestação (de crianças e adolescentes, inclusive) deve ser protegida, ampliada e fomentada

O filme recém-indicado ao Oscar Pobres criaturas (2023) trata do amadurecimento feminino da personagem Bella Baxter, que é trazida de volta à vida após seu cérebro ser substituído pelo do filho que ainda não nasceu.

Em uma cena emblemática, Bella – até então, com pouco contato com a sociedade – não se contém ao ouvir uma banda tocar ao vivo: dança, pula e se delicia com a música. Há uma pulsão e uma ingenuidade na cena, que lembram a postura de crianças que ainda desconhecem um mundo cruel que lhes tolhe a autonomia. Ela se torna um corpo de mulher com uma estrutura psíquica infantil.

Enquanto isso acontece nas telas, o Brasil de 2024 segue chancelando a homotransfobia para todas as faixas etárias: levantamento recente apontou que já entraram em vigor, em 18 estados, 77 leis que materializam ofensivas contra a comunidade LGBTQIA+. Isso significa a promulgação de uma nova lei do tipo a cada duas semanas ao longo de 2023.

São leis que proíbem alunos de aprenderem sobre educação sexual e de gênero nas escolas, que proíbem pessoas trans de usarem banheiros de acordo com sua identidade de gênero e de participarem de competições esportivas na categoria do gênero com que se identificam. 

Uma dessas leis foi aprovada no Amazonas, no ano passado, para proibir crianças e adolescentes de frequentarem paradas LGBTQIA+. Claro, sempre em nome da “proteção” e da “salvação” das crianças, assim como todos os personagens homens do filme tentam “proteger” Bella Baxter.

Lei Estadual 6.469/23 obriga pais, responsáveis legais, realizadores e patrocinadores do evento a garantir que crianças e adolescentes não participem da Parada e estabelece multa de até R$ 10 mil por hora de exposição “ao ambiente impróprio”, sem autorização judicial.

A lei parte de uma premissa que pessoas podem ser influenciadas a se tornarem LGBTQIA+ ao entrarem em contato com esses ambientes, supostamente hostis e inadequados. Como se uma cena de dois homens de mãos dadas ou duas mulheres abraçadas, ou de pessoas LGBTQIA+ dançando e se manifestando, com demonstração pública de seus afetos, fosse induzir uma orientação homossexual em crianças e adolescentes.

A ideia, portanto, é a de segregar: é melhor ficar trancado em casa e não participar de manifestações de larga tradição na luta pela diversidade em nosso país. No filme, Bella Baxter também era trancada em casa por Dr. Godwin “God” Baxter (seu pai e criador) para não ter contato com o ambiente externo.

O autor do projeto de lei destacou que a Parada LGBTQIA+ se tornou local de prática de exposição do corpo, com constante imagem de nudez, simulação de atos sexuais e manifestações que resultam em intolerância religiosa e pode causar traumas na futura personalidade de crianças e adolescentes, já que há disseminação de ideias e imagens “errôneas” sobre a temática concernente ao gênero e à sexualidade.

O foco das paradas, que acontecem desde 1970 nos Estados Unidos e desde os anos 1990 no Brasil, nunca foi exibir publicamente atos de sexo explícito ou pornografia, conteúdos obviamente inadequados para crianças, mas a luta por visibilidade e por reconhecimento de direitos. São passeatas organizados com diligência e cuidado por organizações sérias do movimento LGBTQIA+, que contam com milhões de pessoas anualmente e que sempre contaram com enorme diversidade de apoios para a causa da igualdade, inclusive de famílias heterossexuais com seus filhos e filhas.

Comprovação disso é que não há registro relevante de incidentes, nesses atos públicos, que envolvem qualquer tipo de desrespeito à integridade e ao bem-estar de crianças e de adolescentes, que sempre estão acompanhados de seus responsáveis. Só uma visão abertamente homotransfóbica, que associa pessoas LGBTQIA+ a perversões, pode sustentar tal leitura distorcida de realidade.

Aliás, não é nada nova esse tipo de associação e de uso das infâncias para atacar, em uma cruzada moral, as pessoas LGBTQIA+. Como destaca a antropóloga Gayle Rubin, durante todo o século 20, “nenhum meio para despertar uma histeria erótica foi mais eficiente que conclamar as pessoas para proteger as crianças”.

Desse modo, a intenção discriminatória da referida legislação é evidente ao estabelecer a proteção de crianças a partir do pânico moral de supostas perversidades que poderiam acontecer nas paradas. Perversidades, aliás, que acontecem frequentemente dentro de casa (segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o período da pandemia – com todos em casa – foi recorde em número de abusos e violências contra crianças).

A lei vai na contramão da ruptura institucional operada pela Constituição Federal, que acabou com o regime de censura próprio da ditadura civil-militar, em que as pessoas eram proibidas, em nome da moral e dos bons costumes, de participarem de atos públicos.

De fato, a livre manifestação (de crianças e adolescentes, inclusive!) deve ser protegida, ampliada e fomentada.

Vale dizer que muitos pais e familiares heterossexuais e cisgênero fazem questão de levar às paradas seus filhos e filhas, que muitas vezes são crianças e adolescentes que manifestam uma variabilidade de gênero ou um desejo dissidente da heternormatividade. Em nome deles e por eles, querem construir uma sociedade livre de preconceitos.

Nessa linha, o filósofo Paul Preciado, no artigo “Quem defende a criança queer?”, coloca questões centrais para refletirmos sobre a verdadeira proteção para as crianças que sofrem bullying escolar e outras formas de violência: “Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?”.

Como Bella Baxter, é preciso que a criatura se torne o criador: crianças e adolescentes têm o direito constitucional de participar de Paradas LGBTQIA+ e não são objetos e nem devem ter seus caminhos definidos por legisladores estaduais que criaram um espantalho moral para nutrir seus mais mesquinhos interesses eleitorais.

LUCAS COSTA ALMEIDA DIAS – Procurador da República no Acre, coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+ da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) e integrante do Coletivo Transforma MP.
RENAN QUINALHA – Advogado, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também coordena o Núcleo TransUnifesp e presidente do Grupo de Trabalho de Reparação Histórica à População LGBTQIA+ do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania.

A uberização e a liberdade religiosa

O governo anunciou projeto que regulamentaria o trabalho de “motoristas de aplicativo”; Oobjetivo seria garantir direitos trabalhistas e previdenciários, sem interferir na autonomia para escolher horários de trabalho

Artigo do Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP, Leomar Daroncho, no Correio Braziliense

“Guie-se o operário ao culto de Deus, incite-se nele o espírito de piedade, faça-se principalmente fiel à observância dos domingos e dias festivos. Aprenda ele a amar e a respeitar a Igreja, mãe comum de todos os cristãos, a aquiescer aos seus preceitos, a frequentar os seus sacramentos…”

O governo anunciou projeto de lei complementar que regulamentaria o trabalho de “motoristas de aplicativo”. O objetivo seria garantir direitos trabalhistas e previdenciários, sem interferir na autonomia para escolher horários de trabalho.

Há críticas consistentes ao obstáculo que se criaria ao reconhecimento da relação de emprego, mesmo diante da realidade em que há o controle sobre os trabalhadores, exercido pela empresa que dirige o serviço: fixa tarifas e regras, avalia, pune e premia. O arranjo transfere riscos e custos do negócio ao motorista, legalizando o que hoje vem sendo tratado como fraude.

O projeto garantiria remuneração mínima para os trabalhadores, proporcionalmente ao salário mínimo (R$ 1.412,00). Assim, fixa em R$ 32,10 a hora trabalhada, remunerando exclusivamente o tempo entre a aceitação da viagem e a chegada ao destino. Para além do equívoco conceitual de chamar de “remuneração” o que seria faturamento da atividade, não paga o tempo à disposição, “de espera” e de retorno das corridas.

O projeto esclarece que R$ 24,07 do valor mínimo cobririam custos e tarifas do uso do celular, combustível, manutenção do veículo, seguro automotivo, impostos e depreciação do veículo. Não menciona higienização, multas e franquia do seguro.

A remuneração efetiva seria de R$ 8,03. Dessa forma, a remuneração mensal equivalente ao salário mínimo seria atingida, trabalhando oito horas durante 22 dias.

A proposta conduz à possibilidade concreta de que o trabalhador receba menos de um salário mínimo, caso permaneça à disposição por apenas oito horas por dia, pois não será remunerado pelo tempo de espera, de retorno, em oficinas ou no Detran. Nesse caso, além das despesas de manutenção e combustível, no retorno, o custo fixo referente às despesas do celular, seguro, impostos e depreciação do veículo reduziriam a remuneração líquida do trabalhador.

A proposta é examinada pelo Poder Legislativo em regime de urgência constitucional, enquanto o jornal da Unicamp traz dados da tese de doutorado do pesquisador Bruno Modesto Silvestre, com o título Eu trabalho no meu tempo livre — Lazer e cotidiano sob a uberização — quando o trabalho toma conta da vida.

A pesquisa analisou a rotina de 80 trabalhadores “uberizados”, em São Paulo e Pernambuco. Os “motoristas de aplicativo” trabalham por 14 horas diárias.

Os dados expõem a luta pela sobrevivência, em carga de trabalho semelhante às do início da Revolução Industrial, no século 18, e fazem pensar numa denúncia que o Ministério Público do Trabalho recebeu em 2014.

Um bancário acusou a CEF de obrigá-lo a trabalhar em regime de horas extras constantes, no interior de Mato Grosso. A investigação confirmou a habitualidade da prática. A agência praticava três horas extraordinárias por dia. Em alguns casos, chegava a cinco horas.

O banco não negou. Alegou deficit de pessoal. Acrescentou que pagava as horas com o acréscimo legal. O inusitado do caso é que o trabalhador não apontava falta de pagamento ou fraude nos registros, irregularidades frequentes em tais casos. Dizendo-se religioso, reclamava de não participar do culto e de eventos da sua igreja. Não sabia o horário em que sairia do trabalho.

O banco impedia o exercício da liberdade religiosa, trocada pelo dinheiro da extrapolação habitual da jornada. Remunerar de forma aviltante, ignorando o tempo à disposição, é uma forma de induzir o trabalho por tempo ilimitado.

A Constituição consagra a liberdade religiosa no tópico dos direitos e das garantias fundamentais, considerando inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurando o livre exercício dos cultos e liturgias, protegendo os locais sagrados.

A liberdade religiosa do trabalhador é afetada ao se desconsiderar a pauta civilizatória do limite à duração do trabalho, com prejuízos também na participação familiar e comunitária. São direitos desprovidos de sentido se o ser humano que sobrevive do seu trabalho não dispuser de tempo.

O limite é uma conquista que remonta ao início do século 20, sob a influência da Encíclica Rerum Novarum — sobre a condição dos operários —, do papa Leão XIII, que demonstra preocupação com o número de horas de trabalho e a necessidade de tempo para repouso e aperfeiçoamento moral e religioso.

O STF e a uberização

Foto: Divulgação

Por Renan Kalil no Conjur

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou a análise do pedido de repercussão geral uma ação proposta por uma motorista que pede o reconhecimento do vínculo de emprego com a Uber. Isso significa que o resultado desse julgamento servirá de parâmetro para outros casos que tratam da mesma matéria em todo o país.

O STF terá a oportunidade de ouvir atores sociais relevantes nesse debate para, munido de dados e informações sobre a dinâmica do trabalho via plataformas digitais, decidir a respeito do tema. Além disso, poderá utilizar algumas lições aprendidas nos recentes casos que envolveram as eleições de 2022, desinformação/fake news e as plataformas digitais. Destaco duas situações que podem ser aplicadas para o caso da Uber, a partir de decisões do Ministro Alexandre de Moraes.

A primeira se refere à natureza jurídica das plataformas digitais. Entender o setor econômico no qual elas atuam é o primeiro passo para promover uma discussão adequada sobre o seu funcionamento e definir as suas responsabilidades. Em geral, todas as plataformas digitais dizem ser empresas de tecnologia. Contudo, a realidade é distinta. Adotar meios tecnológicos sofisticados não as torna empresas de tecnologia. Devemos olhar para a substância do que elas realmente fazem. No caso dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, o Ministro Alexandre de Moraes entendeu que elas devem ser tratadas como meios de mídia, comunicação e publicidade.

Em relação à Uber, é evidente que se trata de uma empresa de transporte de pessoas. Ninguém é seu cliente buscando uma solução tecnológica, mas porque quer fazer uma viagem de carro. Apesar de afirmar que é uma empresa tecnologia nos processos judiciais, declara algo distinto perante outros órgãos públicos. Por exemplo, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), pediu o seu registro como empresa de transporte. Ou seja, para proteger a sua marca, algo de grande importância para o seu negócio, revela o que de fato é.

A segunda tem relação com o papel dos algoritmos nas plataformas digitais. Algoritmos são conjuntos de etapas de um processo em que o objetivo é a solução de um problema ou a execução de uma tarefa. A definição do seu conteúdo ocorre a partir de decisões tomadas por uma pessoa responsável pela sua programação e leva em conta os interesses de quem o criou. Em suas decisões, o Ministro Alexandre de Moraes chamou atenção para a necessidade de examinar o direcionamento de assuntos pelos algoritmos e a remuneração por impulsionamento e monetização.

Quando olhamos para as plataformas de transporte de pessoas, verificamos que elas detêm amplo controle sobre o trabalho realizado a partir do gerenciamento da mão de obra por meio de algoritmos. Isso as permite distribuir atividades entre os trabalhadores, fixar o valor do trabalho, indicar o tempo para realização de uma tarefa, determinar como o serviço deve ser feito, avaliar os motoristas e aplicar sanções – tudo conforme os interesses da empresa. Essa situação foi demonstrada de forma robusta em ação civil pública proposta em face da Uber, a partir de relatório de análise de dados elaborado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), como registrado pelo juiz que reconheceu a existência de vínculo empregatício.

As plataformas digitais não podem ser terra de ninguém, como bem colocado pelo Ministro Alexandre de Moraes. As leis que valem no mundo real, também devem ser aplicadas no mundo virtual. O avanço na compreensão dessas situações – especialmente sobre o que são essas empresas e do papel dos algoritmos – contribuiu para proteger a democracia brasileira. É fundamental que o mesmo seja feito para assegurar direitos mínimos aos trabalhadores.

RENAN KALIL é procurador do Trabalho, pesquisador de pós-doutorado na USP, professor da graduação em Direito no Insper e integrante do Coletivo Transforma MP.