O STF e a uberização

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Por Renan Kalil no Conjur

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou a análise do pedido de repercussão geral uma ação proposta por uma motorista que pede o reconhecimento do vínculo de emprego com a Uber. Isso significa que o resultado desse julgamento servirá de parâmetro para outros casos que tratam da mesma matéria em todo o país.

O STF terá a oportunidade de ouvir atores sociais relevantes nesse debate para, munido de dados e informações sobre a dinâmica do trabalho via plataformas digitais, decidir a respeito do tema. Além disso, poderá utilizar algumas lições aprendidas nos recentes casos que envolveram as eleições de 2022, desinformação/fake news e as plataformas digitais. Destaco duas situações que podem ser aplicadas para o caso da Uber, a partir de decisões do Ministro Alexandre de Moraes.

A primeira se refere à natureza jurídica das plataformas digitais. Entender o setor econômico no qual elas atuam é o primeiro passo para promover uma discussão adequada sobre o seu funcionamento e definir as suas responsabilidades. Em geral, todas as plataformas digitais dizem ser empresas de tecnologia. Contudo, a realidade é distinta. Adotar meios tecnológicos sofisticados não as torna empresas de tecnologia. Devemos olhar para a substância do que elas realmente fazem. No caso dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, o Ministro Alexandre de Moraes entendeu que elas devem ser tratadas como meios de mídia, comunicação e publicidade.

Em relação à Uber, é evidente que se trata de uma empresa de transporte de pessoas. Ninguém é seu cliente buscando uma solução tecnológica, mas porque quer fazer uma viagem de carro. Apesar de afirmar que é uma empresa tecnologia nos processos judiciais, declara algo distinto perante outros órgãos públicos. Por exemplo, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), pediu o seu registro como empresa de transporte. Ou seja, para proteger a sua marca, algo de grande importância para o seu negócio, revela o que de fato é.

A segunda tem relação com o papel dos algoritmos nas plataformas digitais. Algoritmos são conjuntos de etapas de um processo em que o objetivo é a solução de um problema ou a execução de uma tarefa. A definição do seu conteúdo ocorre a partir de decisões tomadas por uma pessoa responsável pela sua programação e leva em conta os interesses de quem o criou. Em suas decisões, o Ministro Alexandre de Moraes chamou atenção para a necessidade de examinar o direcionamento de assuntos pelos algoritmos e a remuneração por impulsionamento e monetização.

Quando olhamos para as plataformas de transporte de pessoas, verificamos que elas detêm amplo controle sobre o trabalho realizado a partir do gerenciamento da mão de obra por meio de algoritmos. Isso as permite distribuir atividades entre os trabalhadores, fixar o valor do trabalho, indicar o tempo para realização de uma tarefa, determinar como o serviço deve ser feito, avaliar os motoristas e aplicar sanções – tudo conforme os interesses da empresa. Essa situação foi demonstrada de forma robusta em ação civil pública proposta em face da Uber, a partir de relatório de análise de dados elaborado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), como registrado pelo juiz que reconheceu a existência de vínculo empregatício.

As plataformas digitais não podem ser terra de ninguém, como bem colocado pelo Ministro Alexandre de Moraes. As leis que valem no mundo real, também devem ser aplicadas no mundo virtual. O avanço na compreensão dessas situações – especialmente sobre o que são essas empresas e do papel dos algoritmos – contribuiu para proteger a democracia brasileira. É fundamental que o mesmo seja feito para assegurar direitos mínimos aos trabalhadores.

RENAN KALIL é procurador do Trabalho, pesquisador de pós-doutorado na USP, professor da graduação em Direito no Insper e integrante do Coletivo Transforma MP.

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