A uberização e a liberdade religiosa

O governo anunciou projeto que regulamentaria o trabalho de “motoristas de aplicativo”; Oobjetivo seria garantir direitos trabalhistas e previdenciários, sem interferir na autonomia para escolher horários de trabalho

Artigo do Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP, Leomar Daroncho, no Correio Braziliense

“Guie-se o operário ao culto de Deus, incite-se nele o espírito de piedade, faça-se principalmente fiel à observância dos domingos e dias festivos. Aprenda ele a amar e a respeitar a Igreja, mãe comum de todos os cristãos, a aquiescer aos seus preceitos, a frequentar os seus sacramentos…”

O governo anunciou projeto de lei complementar que regulamentaria o trabalho de “motoristas de aplicativo”. O objetivo seria garantir direitos trabalhistas e previdenciários, sem interferir na autonomia para escolher horários de trabalho.

Há críticas consistentes ao obstáculo que se criaria ao reconhecimento da relação de emprego, mesmo diante da realidade em que há o controle sobre os trabalhadores, exercido pela empresa que dirige o serviço: fixa tarifas e regras, avalia, pune e premia. O arranjo transfere riscos e custos do negócio ao motorista, legalizando o que hoje vem sendo tratado como fraude.

O projeto garantiria remuneração mínima para os trabalhadores, proporcionalmente ao salário mínimo (R$ 1.412,00). Assim, fixa em R$ 32,10 a hora trabalhada, remunerando exclusivamente o tempo entre a aceitação da viagem e a chegada ao destino. Para além do equívoco conceitual de chamar de “remuneração” o que seria faturamento da atividade, não paga o tempo à disposição, “de espera” e de retorno das corridas.

O projeto esclarece que R$ 24,07 do valor mínimo cobririam custos e tarifas do uso do celular, combustível, manutenção do veículo, seguro automotivo, impostos e depreciação do veículo. Não menciona higienização, multas e franquia do seguro.

A remuneração efetiva seria de R$ 8,03. Dessa forma, a remuneração mensal equivalente ao salário mínimo seria atingida, trabalhando oito horas durante 22 dias.

A proposta conduz à possibilidade concreta de que o trabalhador receba menos de um salário mínimo, caso permaneça à disposição por apenas oito horas por dia, pois não será remunerado pelo tempo de espera, de retorno, em oficinas ou no Detran. Nesse caso, além das despesas de manutenção e combustível, no retorno, o custo fixo referente às despesas do celular, seguro, impostos e depreciação do veículo reduziriam a remuneração líquida do trabalhador.

A proposta é examinada pelo Poder Legislativo em regime de urgência constitucional, enquanto o jornal da Unicamp traz dados da tese de doutorado do pesquisador Bruno Modesto Silvestre, com o título Eu trabalho no meu tempo livre — Lazer e cotidiano sob a uberização — quando o trabalho toma conta da vida.

A pesquisa analisou a rotina de 80 trabalhadores “uberizados”, em São Paulo e Pernambuco. Os “motoristas de aplicativo” trabalham por 14 horas diárias.

Os dados expõem a luta pela sobrevivência, em carga de trabalho semelhante às do início da Revolução Industrial, no século 18, e fazem pensar numa denúncia que o Ministério Público do Trabalho recebeu em 2014.

Um bancário acusou a CEF de obrigá-lo a trabalhar em regime de horas extras constantes, no interior de Mato Grosso. A investigação confirmou a habitualidade da prática. A agência praticava três horas extraordinárias por dia. Em alguns casos, chegava a cinco horas.

O banco não negou. Alegou deficit de pessoal. Acrescentou que pagava as horas com o acréscimo legal. O inusitado do caso é que o trabalhador não apontava falta de pagamento ou fraude nos registros, irregularidades frequentes em tais casos. Dizendo-se religioso, reclamava de não participar do culto e de eventos da sua igreja. Não sabia o horário em que sairia do trabalho.

O banco impedia o exercício da liberdade religiosa, trocada pelo dinheiro da extrapolação habitual da jornada. Remunerar de forma aviltante, ignorando o tempo à disposição, é uma forma de induzir o trabalho por tempo ilimitado.

A Constituição consagra a liberdade religiosa no tópico dos direitos e das garantias fundamentais, considerando inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurando o livre exercício dos cultos e liturgias, protegendo os locais sagrados.

A liberdade religiosa do trabalhador é afetada ao se desconsiderar a pauta civilizatória do limite à duração do trabalho, com prejuízos também na participação familiar e comunitária. São direitos desprovidos de sentido se o ser humano que sobrevive do seu trabalho não dispuser de tempo.

O limite é uma conquista que remonta ao início do século 20, sob a influência da Encíclica Rerum Novarum — sobre a condição dos operários —, do papa Leão XIII, que demonstra preocupação com o número de horas de trabalho e a necessidade de tempo para repouso e aperfeiçoamento moral e religioso.

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