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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

‘Pobres criaturas’: a proibição de crianças participarem de Paradas LGBTQIA+

Por Lucas Dias e Renan Quinalha no JOTA

Livre manifestação (de crianças e adolescentes, inclusive) deve ser protegida, ampliada e fomentada

O filme recém-indicado ao Oscar Pobres criaturas (2023) trata do amadurecimento feminino da personagem Bella Baxter, que é trazida de volta à vida após seu cérebro ser substituído pelo do filho que ainda não nasceu.

Em uma cena emblemática, Bella – até então, com pouco contato com a sociedade – não se contém ao ouvir uma banda tocar ao vivo: dança, pula e se delicia com a música. Há uma pulsão e uma ingenuidade na cena, que lembram a postura de crianças que ainda desconhecem um mundo cruel que lhes tolhe a autonomia. Ela se torna um corpo de mulher com uma estrutura psíquica infantil.

Enquanto isso acontece nas telas, o Brasil de 2024 segue chancelando a homotransfobia para todas as faixas etárias: levantamento recente apontou que já entraram em vigor, em 18 estados, 77 leis que materializam ofensivas contra a comunidade LGBTQIA+. Isso significa a promulgação de uma nova lei do tipo a cada duas semanas ao longo de 2023.

São leis que proíbem alunos de aprenderem sobre educação sexual e de gênero nas escolas, que proíbem pessoas trans de usarem banheiros de acordo com sua identidade de gênero e de participarem de competições esportivas na categoria do gênero com que se identificam. 

Uma dessas leis foi aprovada no Amazonas, no ano passado, para proibir crianças e adolescentes de frequentarem paradas LGBTQIA+. Claro, sempre em nome da “proteção” e da “salvação” das crianças, assim como todos os personagens homens do filme tentam “proteger” Bella Baxter.

Lei Estadual 6.469/23 obriga pais, responsáveis legais, realizadores e patrocinadores do evento a garantir que crianças e adolescentes não participem da Parada e estabelece multa de até R$ 10 mil por hora de exposição “ao ambiente impróprio”, sem autorização judicial.

A lei parte de uma premissa que pessoas podem ser influenciadas a se tornarem LGBTQIA+ ao entrarem em contato com esses ambientes, supostamente hostis e inadequados. Como se uma cena de dois homens de mãos dadas ou duas mulheres abraçadas, ou de pessoas LGBTQIA+ dançando e se manifestando, com demonstração pública de seus afetos, fosse induzir uma orientação homossexual em crianças e adolescentes.

A ideia, portanto, é a de segregar: é melhor ficar trancado em casa e não participar de manifestações de larga tradição na luta pela diversidade em nosso país. No filme, Bella Baxter também era trancada em casa por Dr. Godwin “God” Baxter (seu pai e criador) para não ter contato com o ambiente externo.

O autor do projeto de lei destacou que a Parada LGBTQIA+ se tornou local de prática de exposição do corpo, com constante imagem de nudez, simulação de atos sexuais e manifestações que resultam em intolerância religiosa e pode causar traumas na futura personalidade de crianças e adolescentes, já que há disseminação de ideias e imagens “errôneas” sobre a temática concernente ao gênero e à sexualidade.

O foco das paradas, que acontecem desde 1970 nos Estados Unidos e desde os anos 1990 no Brasil, nunca foi exibir publicamente atos de sexo explícito ou pornografia, conteúdos obviamente inadequados para crianças, mas a luta por visibilidade e por reconhecimento de direitos. São passeatas organizados com diligência e cuidado por organizações sérias do movimento LGBTQIA+, que contam com milhões de pessoas anualmente e que sempre contaram com enorme diversidade de apoios para a causa da igualdade, inclusive de famílias heterossexuais com seus filhos e filhas.

Comprovação disso é que não há registro relevante de incidentes, nesses atos públicos, que envolvem qualquer tipo de desrespeito à integridade e ao bem-estar de crianças e de adolescentes, que sempre estão acompanhados de seus responsáveis. Só uma visão abertamente homotransfóbica, que associa pessoas LGBTQIA+ a perversões, pode sustentar tal leitura distorcida de realidade.

Aliás, não é nada nova esse tipo de associação e de uso das infâncias para atacar, em uma cruzada moral, as pessoas LGBTQIA+. Como destaca a antropóloga Gayle Rubin, durante todo o século 20, “nenhum meio para despertar uma histeria erótica foi mais eficiente que conclamar as pessoas para proteger as crianças”.

Desse modo, a intenção discriminatória da referida legislação é evidente ao estabelecer a proteção de crianças a partir do pânico moral de supostas perversidades que poderiam acontecer nas paradas. Perversidades, aliás, que acontecem frequentemente dentro de casa (segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o período da pandemia – com todos em casa – foi recorde em número de abusos e violências contra crianças).

A lei vai na contramão da ruptura institucional operada pela Constituição Federal, que acabou com o regime de censura próprio da ditadura civil-militar, em que as pessoas eram proibidas, em nome da moral e dos bons costumes, de participarem de atos públicos.

De fato, a livre manifestação (de crianças e adolescentes, inclusive!) deve ser protegida, ampliada e fomentada.

Vale dizer que muitos pais e familiares heterossexuais e cisgênero fazem questão de levar às paradas seus filhos e filhas, que muitas vezes são crianças e adolescentes que manifestam uma variabilidade de gênero ou um desejo dissidente da heternormatividade. Em nome deles e por eles, querem construir uma sociedade livre de preconceitos.

Nessa linha, o filósofo Paul Preciado, no artigo “Quem defende a criança queer?”, coloca questões centrais para refletirmos sobre a verdadeira proteção para as crianças que sofrem bullying escolar e outras formas de violência: “Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?”.

Como Bella Baxter, é preciso que a criatura se torne o criador: crianças e adolescentes têm o direito constitucional de participar de Paradas LGBTQIA+ e não são objetos e nem devem ter seus caminhos definidos por legisladores estaduais que criaram um espantalho moral para nutrir seus mais mesquinhos interesses eleitorais.

LUCAS COSTA ALMEIDA DIAS – Procurador da República no Acre, coordenador do Grupo de Trabalho LGBTQIA+ da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) e integrante do Coletivo Transforma MP.
RENAN QUINALHA – Advogado, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também coordena o Núcleo TransUnifesp e presidente do Grupo de Trabalho de Reparação Histórica à População LGBTQIA+ do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania.

A uberização e a liberdade religiosa

O governo anunciou projeto que regulamentaria o trabalho de “motoristas de aplicativo”; Oobjetivo seria garantir direitos trabalhistas e previdenciários, sem interferir na autonomia para escolher horários de trabalho

Artigo do Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP, Leomar Daroncho, no Correio Braziliense

“Guie-se o operário ao culto de Deus, incite-se nele o espírito de piedade, faça-se principalmente fiel à observância dos domingos e dias festivos. Aprenda ele a amar e a respeitar a Igreja, mãe comum de todos os cristãos, a aquiescer aos seus preceitos, a frequentar os seus sacramentos…”

O governo anunciou projeto de lei complementar que regulamentaria o trabalho de “motoristas de aplicativo”. O objetivo seria garantir direitos trabalhistas e previdenciários, sem interferir na autonomia para escolher horários de trabalho.

Há críticas consistentes ao obstáculo que se criaria ao reconhecimento da relação de emprego, mesmo diante da realidade em que há o controle sobre os trabalhadores, exercido pela empresa que dirige o serviço: fixa tarifas e regras, avalia, pune e premia. O arranjo transfere riscos e custos do negócio ao motorista, legalizando o que hoje vem sendo tratado como fraude.

O projeto garantiria remuneração mínima para os trabalhadores, proporcionalmente ao salário mínimo (R$ 1.412,00). Assim, fixa em R$ 32,10 a hora trabalhada, remunerando exclusivamente o tempo entre a aceitação da viagem e a chegada ao destino. Para além do equívoco conceitual de chamar de “remuneração” o que seria faturamento da atividade, não paga o tempo à disposição, “de espera” e de retorno das corridas.

O projeto esclarece que R$ 24,07 do valor mínimo cobririam custos e tarifas do uso do celular, combustível, manutenção do veículo, seguro automotivo, impostos e depreciação do veículo. Não menciona higienização, multas e franquia do seguro.

A remuneração efetiva seria de R$ 8,03. Dessa forma, a remuneração mensal equivalente ao salário mínimo seria atingida, trabalhando oito horas durante 22 dias.

A proposta conduz à possibilidade concreta de que o trabalhador receba menos de um salário mínimo, caso permaneça à disposição por apenas oito horas por dia, pois não será remunerado pelo tempo de espera, de retorno, em oficinas ou no Detran. Nesse caso, além das despesas de manutenção e combustível, no retorno, o custo fixo referente às despesas do celular, seguro, impostos e depreciação do veículo reduziriam a remuneração líquida do trabalhador.

A proposta é examinada pelo Poder Legislativo em regime de urgência constitucional, enquanto o jornal da Unicamp traz dados da tese de doutorado do pesquisador Bruno Modesto Silvestre, com o título Eu trabalho no meu tempo livre — Lazer e cotidiano sob a uberização — quando o trabalho toma conta da vida.

A pesquisa analisou a rotina de 80 trabalhadores “uberizados”, em São Paulo e Pernambuco. Os “motoristas de aplicativo” trabalham por 14 horas diárias.

Os dados expõem a luta pela sobrevivência, em carga de trabalho semelhante às do início da Revolução Industrial, no século 18, e fazem pensar numa denúncia que o Ministério Público do Trabalho recebeu em 2014.

Um bancário acusou a CEF de obrigá-lo a trabalhar em regime de horas extras constantes, no interior de Mato Grosso. A investigação confirmou a habitualidade da prática. A agência praticava três horas extraordinárias por dia. Em alguns casos, chegava a cinco horas.

O banco não negou. Alegou deficit de pessoal. Acrescentou que pagava as horas com o acréscimo legal. O inusitado do caso é que o trabalhador não apontava falta de pagamento ou fraude nos registros, irregularidades frequentes em tais casos. Dizendo-se religioso, reclamava de não participar do culto e de eventos da sua igreja. Não sabia o horário em que sairia do trabalho.

O banco impedia o exercício da liberdade religiosa, trocada pelo dinheiro da extrapolação habitual da jornada. Remunerar de forma aviltante, ignorando o tempo à disposição, é uma forma de induzir o trabalho por tempo ilimitado.

A Constituição consagra a liberdade religiosa no tópico dos direitos e das garantias fundamentais, considerando inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurando o livre exercício dos cultos e liturgias, protegendo os locais sagrados.

A liberdade religiosa do trabalhador é afetada ao se desconsiderar a pauta civilizatória do limite à duração do trabalho, com prejuízos também na participação familiar e comunitária. São direitos desprovidos de sentido se o ser humano que sobrevive do seu trabalho não dispuser de tempo.

O limite é uma conquista que remonta ao início do século 20, sob a influência da Encíclica Rerum Novarum — sobre a condição dos operários —, do papa Leão XIII, que demonstra preocupação com o número de horas de trabalho e a necessidade de tempo para repouso e aperfeiçoamento moral e religioso.

O STF e a uberização

Foto: Divulgação

Por Renan Kalil no Conjur

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalizou a análise do pedido de repercussão geral uma ação proposta por uma motorista que pede o reconhecimento do vínculo de emprego com a Uber. Isso significa que o resultado desse julgamento servirá de parâmetro para outros casos que tratam da mesma matéria em todo o país.

O STF terá a oportunidade de ouvir atores sociais relevantes nesse debate para, munido de dados e informações sobre a dinâmica do trabalho via plataformas digitais, decidir a respeito do tema. Além disso, poderá utilizar algumas lições aprendidas nos recentes casos que envolveram as eleições de 2022, desinformação/fake news e as plataformas digitais. Destaco duas situações que podem ser aplicadas para o caso da Uber, a partir de decisões do Ministro Alexandre de Moraes.

A primeira se refere à natureza jurídica das plataformas digitais. Entender o setor econômico no qual elas atuam é o primeiro passo para promover uma discussão adequada sobre o seu funcionamento e definir as suas responsabilidades. Em geral, todas as plataformas digitais dizem ser empresas de tecnologia. Contudo, a realidade é distinta. Adotar meios tecnológicos sofisticados não as torna empresas de tecnologia. Devemos olhar para a substância do que elas realmente fazem. No caso dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, o Ministro Alexandre de Moraes entendeu que elas devem ser tratadas como meios de mídia, comunicação e publicidade.

Em relação à Uber, é evidente que se trata de uma empresa de transporte de pessoas. Ninguém é seu cliente buscando uma solução tecnológica, mas porque quer fazer uma viagem de carro. Apesar de afirmar que é uma empresa tecnologia nos processos judiciais, declara algo distinto perante outros órgãos públicos. Por exemplo, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), pediu o seu registro como empresa de transporte. Ou seja, para proteger a sua marca, algo de grande importância para o seu negócio, revela o que de fato é.

A segunda tem relação com o papel dos algoritmos nas plataformas digitais. Algoritmos são conjuntos de etapas de um processo em que o objetivo é a solução de um problema ou a execução de uma tarefa. A definição do seu conteúdo ocorre a partir de decisões tomadas por uma pessoa responsável pela sua programação e leva em conta os interesses de quem o criou. Em suas decisões, o Ministro Alexandre de Moraes chamou atenção para a necessidade de examinar o direcionamento de assuntos pelos algoritmos e a remuneração por impulsionamento e monetização.

Quando olhamos para as plataformas de transporte de pessoas, verificamos que elas detêm amplo controle sobre o trabalho realizado a partir do gerenciamento da mão de obra por meio de algoritmos. Isso as permite distribuir atividades entre os trabalhadores, fixar o valor do trabalho, indicar o tempo para realização de uma tarefa, determinar como o serviço deve ser feito, avaliar os motoristas e aplicar sanções – tudo conforme os interesses da empresa. Essa situação foi demonstrada de forma robusta em ação civil pública proposta em face da Uber, a partir de relatório de análise de dados elaborado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), como registrado pelo juiz que reconheceu a existência de vínculo empregatício.

As plataformas digitais não podem ser terra de ninguém, como bem colocado pelo Ministro Alexandre de Moraes. As leis que valem no mundo real, também devem ser aplicadas no mundo virtual. O avanço na compreensão dessas situações – especialmente sobre o que são essas empresas e do papel dos algoritmos – contribuiu para proteger a democracia brasileira. É fundamental que o mesmo seja feito para assegurar direitos mínimos aos trabalhadores.

RENAN KALIL é procurador do Trabalho, pesquisador de pós-doutorado na USP, professor da graduação em Direito no Insper e integrante do Coletivo Transforma MP.

Os problemas do PL que regula o trabalho dos motoristas via aplicativo

Marcello Casal Jr./ABr

Por Renan Kalil na Carta Capital

Impedir o reconhecimento da relação de emprego mesmo diante do exercício do controle sobre os trabalhadores é legalizar a fraude trabalhista

No último dia 4, o governo federal anunciou o envio de uma proposta ao Congresso para regular o trabalho de motoristas que atuam por meio de plataformas digitais. O texto prevê que esses trabalhadores são “autônomos com direitos”, traz definições sobre o que são as plataformas e o modo de execução do trabalho, além de estabelecer regras sobre remuneração mínima, direitos previdenciários e organização sindical.

O projeto, contudo, tem um problema estrutural. Os conceitos que definem a empresa proprietária da plataforma digital, que caracterizam a liberdade do trabalhador e que afastam o enquadramento em uma relação de emprego são inadequados e negam a realidade.

Reduzir essas empresas a meras intermediadoras de viagens entre seus clientes e os motoristas está muito distante do que ocorre no mundo dos fatos. Ninguém abre o telefone celular e acessa o aplicativo da Uber ou da 99 procurando por um motorista específico – até porque, não existe essa opção. O que os clientes buscam é a prestação do serviço de transporte – o que é oferecido pela empresa.

Não à toa que há a opção de avaliar o trabalhador ao final da corrida, pois isso serve para conferir se a viagem foi feita dentro dos parâmetros estabelecidos pela empresa.

As próprias empresas, para que realmente lhes importa, não se consideram como meras intermediárias. No Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), para proteger a sua marca, registram-se como empresas de transporte. Ainda, o conceito estabelecido no Projeto coloca o Brasil na contramão do mundo: decisões de Tribunais no Reino Unido e na União Europeia classificaram a Uber como empresa de transporte.

Caracterizar a autonomia no trabalho somente com a liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos de conexão ao aplicativo, a inexistência de exclusividade e a inexigência de tempo mínimo à disposição é rejeitar a possibilidade de existir um trabalho que, de fato, seja autônomo. 

Para começarmos a pensar em um trabalho com liberdade para os motoristas, eles deveriam poder colocar o preço nas corridas, não serem punidos em caso de rejeição de ofertas de viagens, não serem excluídos da plataforma por terem avaliações abaixo das previstas pela empresa, não terem a quantidade de ofertas de trabalho e de rendimento vinculadas às notas dadas pelos clientes. Porém, não há uma linha sobre isso no Projeto.

Impedir o reconhecimento da relação de emprego mesmo diante do exercício do controle sobre os trabalhadores é legalizar a fraude trabalhista. O conjunto de práticas indicadas no art. 5º do Projeto são exemplos concretos da forma pela qual as empresas impõem as suas diretrizes para a organização do negócio e vinculam os trabalhadores a essas políticas.

As plataformas digitais gerenciam a mão de obra por meio de algoritmos. Isso as permite distribuir atividades entre os trabalhadores, determinar como o serviço deve ser feito, avaliar os motoristas e aplicar sanções – tudo conforme os interesses da empresa. 

Admitir que a adoção dessas práticas pelas plataformas não permite caracterizar o trabalho subordinado é antiquado por enxergar as relações de trabalho com uma visão datada do século passado e incapaz de identificar as novas formas de controle viabilizadas pelo desenvolvimento da tecnologia.

Em termos conceituais, o Projeto não traz muitas novidades em relação ao que está sendo debatido no Congresso Nacional. Todas as definições acima mencionadas já foram previstas em outras propostas, como o PLC 90/2023 (de autoria do Senador Rogério Marinho) e o anteprojeto apontado pelo The Intercept como de autoria do iFood. 

Por fim, é necessário ficarmos atentos aos efeitos que essa ideia pode ter no mercado de trabalho. A sua ampliação para toda e qualquer atividade econômica tem o potencial de reduzir a pó o trabalho formal. É difícil imaginar que uma empresa irá admitir um empregado tendo a opção de contratar um trabalhador por meio de plataforma digital pagando um valor menor.

Os problemas existentes no projeto são graves e merecem reflexão da sociedade. A sua aprovação, nos termos em que foi enviado para o Congresso Nacional, consagra situações que negam a realidade, trata de forma inadequada o tema da regulação do trabalho via plataformas digitais e despreza o papel do Direito do Trabalho enquanto ramo jurídico criado para reduzir a desigualdade econômica existente entre as partes do contrato de trabalho.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Renan Kalil é Procurador do Trabalho, doutor em Direito pela USP, professor da graduação em Direito no Insper e integrante do Coletivo Transforma MP.

Subordinação sem direitos: o projeto de lei Nem-Nem do governo federal

Por Rodrigo Carelli no GGN

O Projeto de Lei Complementar para regular o trabalho dos motoristas impossibilita a autonomia dos trabalhadores e nega-lhes direitos

Painéis luminosos anunciam o lema “autonomia com direitos”. Na frente dos painéis, representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores sorriem para as fotos. Ao centro, o Presidente Lula satisfeito comemora  o nascimento de “uma nova modalidade no mundo do trabalho.”. Acontecia o festim de lançamento, com pompa e circunstância, do projeto de lei complementar que pretende regular a relação entre motoristas e empresas que se autodenominam plataformas digitais.

O Presidente da República acertou em dizer que está sendo gestada uma nova figura legal de trabalhador, mas, por parte dos trabalhadores brasileiros, não há nada que se comemorar.

O projeto de lei cria uma figura híbrida, algo como um minotauro, só que com cabeça de empresa e corpo de trabalhador, ou melhor, cabeça de autônomo, corpo de empregado. É legítimo “nem-nem”: nem é autônomo, pois o próprio projeto expressamente impede a autonomia de fato; nem é empregado, pois essa situação jurídica lhe é negada pelo projeto. A figura nem-nem está longe de ser um autônomo com direitos, pois não há autonomia, e, para se falar a verdade, quase não se vê direitos no projeto. A nova modalidade criada pode ser vista como um subordinado sem direitos.

A primeira coisa que se percebe no texto é que parece uma cópia desidratada da Prop 22, a proposta legislativa escrita e financiada pelas empresas na Califórnia, levada a plebiscito após campanha para aprovação que custou para as plataformas mais de um bilhão de reais. Os conceitos e termos usados são os mesmos. O conteúdo também, tanto os que definem o que é autonomia, quanto os que não são considerados subordinação. Só que o projeto assumido pelo governo brasileiro como seu vem desidratado de detalhes e também de garantias aos trabalhadores, como veremos mais à frente.

O segundo ponto de destaque é a distância da realidade. As empresas são chamadas de “empresa operadora de aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas”. Como é que se opera um aplicativo, que é apenas um programa instalado em celulares que faz a interface com uma plataforma digital? Quem opera o aplicativo, no único sentido possível, que é acessá-lo e utilizá-lo, de fato, é o motorista. A empresa, por meio do aplicativo, como porta de entrada e saída de dados, controla o trabalhador e captura as informações que vão ser processadas na sua plataforma digital. Percebe-se não somente o distanciamento com a realidade, mas também o desconhecimento de como funciona a atividade econômica que pretende regular.

O terceiro ponto a ser trazido é justamente a ausência de autonomia, ou melhor, a criação de condições que vão impossibilitar completamente a prestação de serviços de forma autônoma. O projeto restringe a autonomia à “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos que se conectará ao aplicativo” (caput do art. 3º), inexistência de exclusividade (art. 3º, § 1º, I) e inexistência de exigência de tempo mínimo ou habitualidade (art. 3º, § 1º, I). Bom, ninguém se conecta a um aplicativo: o trabalhador abre o programa para se conectar à empresa por meio de acesso do aplicativo à plataforma digital da empresa. Tirando esse “detalhe”, nenhuma dessas características são próprias ou exclusivas de trabalhadores autônomos: os trabalhadores em teletrabalho, por exemplo, não têm  horários fíxos. Nenhum trabalhador tem exigência legal de exclusividade. A habitualidade, por sua vez, não é característica de falta de autonomia, mas sim da presença de requisito específico da relação de emprego que é a não-eventualidade.

Algumas ausências também são sentidas como forma de silêncio eloquente e constrangedor, como o argumento muito utilizado pelas empresas para dizerem que seus trabalhadores são autônomos: a possibilidade do trabalhador recusar chamadas ou pedidos, que é uma exigência prevista lei californiana. A precificação do serviço e a remuneração dos trabalhadores também não são tratados pelo projeto, podendo significar que se pretende que continuem totalmente na mão das empresas.

O art. 5º do projeto de lei complementar é surreal. Ele autoriza a subordinação dos trabalhadores às empresas “sem que isso configure relação de emprego”. O dispositivo permite: adoção de normas e medidas para garantir a segurança do serviço; suspensões, bloqueios e exclusões; sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados; sistema de avaliação de trabalhadores e oferta de cursos e treinamentos e benefícios e incentivos aos trabalhadores, ainda que de caráter continuado.

O projeto simplesmente pega todas as características que, segundo a doutrina e a jurisprudência, nacional e internacional, identificam como formas de subordinação e libera seu exercício pelas empresas, impedindo legalmente a formação de vínculo.  Com isso, nega a possibilidade de realização do trabalho com verdadeira autonomia.

Mas os absurdos não param por aí. Há um caminho de volta ao século XIX: o projeto dispõe de jornada máxima de 12 horas e nada prevê acerca de descanso. A prova de que não estamos no século XXI é que as palavras “dados”, “algoritmo” e “inteligência artificial” em relação ao trabalho simplesmente não são usadas em todo o texto. Em uma atividade que é baseada nesses três elementos, a sua ausência no projeto é patente confissão de anacronismo e desconexão com a realidade.

Os defensores do projeto poderão dizer que há sim direitos garantidos aos trabalhadores. Alguns deles seriam os listados no art. 7º. Não acredito em coincidências, ainda mais que essa estratégia, ou sarcasmo, já foi usada antes, na lei de cooperativas de trabalho. Creio que os projetistas pensaram mesmo em substituir o art. 7º da Constituição pelo disposto no artigo de mesmo número do projeto, que prevê “princípios” pelos quais as empresas devem pautar sua atuação: transparência, redução dos riscos inerentes ao trabalho, eliminação de todas as formas de discriminação, violência e assédio no trabalho, direito à organização sindical, à sindicalização e à negociação coletiva, aboliação do trabalho infantil e eliminação do trabalho análogo ao de escravo.

Bem, a transparência já é imediatamente reduzida no artigo seguinte a mero acesso às informações sobre os critérios de oferta de viagens, pontuação, bloqueio, suspensão e exclusão e critérios de composição da remuneração, por meio de relatório mensal. Não há, como se disse, nem mesmo menção a acesso do sindicato ao algoritmo, como por exemplo prevê a legislação espanhola.

Os demais direitos (incluindo o inacreditável “abolição ao trabalho infantil” em uma atividade de transporte de passageiros, cuja habilitação se dá com 18 anos) são tratados como meros princípios, sem nenhuma densidade jurídica, quase como um panfleto. Muito embora o endividamento que se realiza com trabalhadores pode até identificar a situação de condições análogas à de escravo.

Também pode-se dizer que os trabalhadores passam a ter direito ao salário mínimo. Inicialmente, verificamos que não é isso que garante o projeto. Subvertendo o direito do trabalho em todo o mundo, o tempo de trabalho, pelo projeto, somente é considerado t para a remuneração “o período entre a aceitação da viagem pelo trabalhador e a chegada do usuário ao destino” (art. 9º, § 2º). Ou seja, deve ser verificado quantas horas efetivas de trabalho o trabalhador tem que fazer para conseguir o montante de horas fictícias criadas pelo projeto.

Outro ponto pode ser levantado pelos defensores do nem-nem: há previsão do direito de negociação coletiva. A CLT traz desde 1943 a possibilidade não só de sindicalização como de negociação coletiva para trabalhadores autônomos (art. 511 e seguintes). A previsão, portanto, não inova no mundo jurídico.

A parte previdenciária é a única em que há realmente algum pequeno ganho, que é a contribuição pelas empresas. Mas é uma migalha perto de tantos ganhos auferidos pelas empresas com o projeto. Só que a lei californiana, que serviu de “inspiração”, traz previsão que as empresas assumam integralmente seguro saúde e seguro para acidentes dos trabalhadores, o que não acontece no projeto tropical.

Outro silêncio ensurdecedor do projeto é sobre a justiça competente. A Justiça do Trabalho não é citada em nenhum momento. Somente a figura do dissídio coletivo aparece, mas não se refere ao órgão que terá a jurisdição.

Em suma, é um projeto que, conforme já referido em outro lugar, se assemelha ao Código Negro francês: sob o pretexto de trazer alguns direitos, legitima e legaliza a exploração e, como disse Voltaire, os juristas consultados provam não entender nada de direitos humanos, muito menos de direito do trabalho, diria eu. Traz ao mundo jurídico uma figura nova, o nem-nem, ou o subordinado sem direitos: uma subcategoria para subcidadãos, sem direito a acesso aos direitos fundamentais previstos na Constituição e sem os direitos humanos previstos nos tratados assinados pelo Brasil. Um minotauro, autônomo por definição legal, empregado de fato, que se encontra em um labirinto subterrâneo bem escuro. É um precedente perigoso, que pode tragar todo e qualquer trabalhador para esse local escuro, sem vida e sem direitos.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

O ATIVISMO JUDICIAL E A ESQUERDA NO BRASIL:  UM NAMORO PERIGOSO

Lula Marques/Agência PT

Por Rogério Pacheco Alves* no GGN

A perspectiva crítica de Marx sobre o direito e os tribunais moldou parte da visão da esquerda brasileira. Uma visão negativa, ou, no mínimo, desconfiada.
          As primeiras inflexões ocorrem com o direito alternativo da década de 1980, que acreditava poder domar hermeneuticamente a brutalidade do direito penal em favor dos pobres, e com a Constituição de 1988, que, ao empoderar o Judiciário, abriu os tribunais aos movimentos sociais e à sociedade civil, num processo de acesso à justiça nunca experimentado. E as respostas foram positivas na defesa dos direitos fundamentais das
minorias e dos vulneráveis: cotas universitárias para as populações negras e indígenas, reconhecimento dos efeitos jurídicos das uniões homoafetivas etc. Iniciava-se um feliz e promissor namoro entre a esquerda e o ativista Poder Judiciário brasileiro.

          Mas, como o Judiciário não é um bloco monolítico e é um poder político em ascensão no Brasil (atenção hermeneutas e Hermenegildos: não há poder que não seja político!), logo veio a decepção: mesmo em ambiente relativamente democrático e com uma constituição progressista, os tribunais e o Supremo Tribunal Federal podem ser máquinas de guerra contra o dissenso (os mais experimentados haverão de lembrar do Tribunal de Segurança Nacional da ditadura Vargas). Além disso, podem ser colonizados por poderosos interesses corporativos, pelas empresas de aplicativos, por exemplo, que escravizam milhares de jovens país afora, jovens precarizados cujos corpos são lentamente triturados, destituídos de direitos sociais elementares.
         O namoro entre a esquerda e o ativismo judicial, interrompido pelo lawfare lavajatista e seus heróis de ocasião, parece ter sido retomado através do inquérito das Fake News: o Presidente da República agradece publicamente ao Ministro Alexandre de Moraes pelos relevantes serviços prestados à democracia; o Ministro Gilmar Mendes, decano da Corte Suprema, dá as cartas novamente nos bastidores dos processos de nomeação de personagens centrais do sistema de justiça.

     Ocorre que o inquérito das Fake News, para usar a expressão de um ilustre jurista que defendeu habilmente sua juridicidade, gera um imenso “constrangimento epistemológico”, pois reúne na figura do juiz, escolhido a dedo, também a do investigador e a do acusador, em atropelo ao sistema acusatório. O Supremo Tribunal Federal, em uníssono, defende a constitucionalidade das investigações sigilosas, num movimento de sobrevivência política bastante compreensível (trata-se de “perseverar na existência”, já nos dizia o velho Spinoza).

          A direita e a extrema-direita possuem mais clareza sobre o ativismo judicial, consideram-no nocivo à democracia (democracia que a extrema-direita despreza e sabota a todo tempo). E a esquerda brasileira, o que pensa sobre o ativismo? Talvez seja o caso de assumir que o ativismo judicial é estratégico aos seus interesses, uma possibilidade a mais do xadrez político, uma condição dada pelas circunstâncias da vida política (a fortuna de que nos fala Maquiavel). Que seja, pois a política não pode ser pensada a partir de uma moralidade jornalística subserviente a projetos e interesses autocráticos (o combate à corrupção e a defesa da dignidade humana invocados no preâmbulo do AI-5). Mas, como diziam os mais antigos, vento que venta lá, venta cá …

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rogério Pacheco Alves é Professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), Promotor de Justiça no ERJ e Integrante do Coletivo Transforma MP.

Carnaval em carne. Viva. A luta entre a purpurina e o sangue

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Fevereiro de 2024. O mundo submergia em purpurina. O bloco Pagu lotava o centro de São Paulo com mais de 140 corpos de mulheres diversos, na luta contra o patriarcado que ainda determina a forma, a cor e o tamanho do corpo ideal, transmutadas nas imortais Gal, Rita, Elis e Elza: a catarse do feminino na rua. O chamado para estar atenta e forte.

                            No bairro de Pinheiros, os carros sumiram para Pierrots, Colombinas, bailarinas, “palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados”, tomarem as ruas de assalto nas dezenas de bloquinhos do prazer, clamando que a “vida tá pouca”, sim, “eu quero é muito mais”.

                            O Ó do Borogodó, bar e patrimônio cultural da cidade, ameaçado pela sanha do setor imobiliário, abriu alas no idílico festival de marcha rancho que todo ano organiza. Anaí Rosa, na composição de Jean Garfunkel, lembrou que “o carnaval é instante, quem gosta de futuro é cartomante” e Fernando Szegeri arrancou a máscara para lembrar que a cidade… “a cidade pede ajuda pra poder envelhecer”.

                            O carnaval é mesmo um chamado para o corpo e o tempo, onde a vida verdadeiramente se dá com seus prazeres e agruras. Ao chamar os corpos, todes, para as ruas e para a festa, não porque a dor não existe, mas exatamente porque ela existe, o carnaval enfrenta e zomba da morte.

                            O historiador Luis Antonio Simas é o que melhor explica a festa da carne: “Num mundo cada vez mais individualista o carnaval assusta porque afronta a decadência da vida em grupo, reaviva laços contrários à diluição comunitária, fortalece pertencimentos e sociabilidades, e cria redes de proteção social nas frestas dos desencantos. A festa é coisa de desocupados? Fale isso para os trabalhadores e trabalhadoras da folia!!! O carnaval é, também, para muita gente tratada como sobra -vivente, alternativa de sobrevivência material, afetiva e espiritual. O Brasil não inventou o carnaval, é certo, mas o povo do Brasil vivenciou de tal forma o carnaval, nas pluralidades de suas manifestações, que foi o inverso: o carnaval inventou um país possível e original às margens do projeto de horror que historicamente nos constituiu.  É perturbador para certo brasil excludente, sisudo, inimigo das diversidades, trancafiado, lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa e rueira, tensa e intensa, como lâmina e flor”.

Em lâmina e flor, a festa da carne tomou conta da rede social e de todo o país. Veveta macetou o apocalipse em Salvador, Antônio Nobrega e sua família brincante ocuparam o sambódromo, e a Salgueiro, no Rio de Janeiro, levou o gigante David Kopenawa para as ruas para falar sobre guerras que se fazem sem flechas, sem tiros, e com palavras: “Eu aprendi português, a língua do opressor, pra te provar que o meu penar também é sua dor. Pra falar de amor enquanto a mata chora.”

                            Falar de amor enquanto se morre não é pouca coisa. Na maioria das vezes, é justamente porque não se fala de amor que se morre. Mas nem tudo foi purpurina. Durante o carnaval de 2024, uma cidade não foi corpo, nem tempo. Não fez festa e não falou de amor. A carne sangrava sem parar e a cidade perto do mar morria, sem poder envelhecer.

                            Em São Vicente, litoral sul do Estado de São Paulo, a purpurina foi proibida. Desde setembro de 2023, quando o Governo do Estado de São Paulo anunciou a Operação Escudo em todo litoral sul, em resposta à morte de um Policial Militar, dezenas de corpos saíram às ruas… para velórios.

                            Dentre esses corpos mortos, em número não divulgado oficialmente, estão, também, alguns corpos de policiais militares.

Como os corpos que sangram nem sempre seguem o tempo dos relógios, mas, sobretudo, o das palavras, escapamos do tempo rumo a 2018, na tentativa de revisitar palavras silenciadas que possam fazer eco na festa interditada.

                            Naquele ano, eu, como Promotora de Justiça de Direitos Humanos, ao lado da Promotora de Justiça Criminal da cidade de Campinas, ouvi dezenas de Policiais Militares que eram encaminhados pela Promotora de Justiça da Infância e Juventude da mesma cidade, após a escuta de 75 jovens envolvidos com infrações penais e que traziam, ao Ministério Público, narrativas de violência policial sofrida durante suas abordagens. 

                           “Ele segurou meu braço e disse que tiraria minha tatuagem com a faca. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Jogou minha cabeça contra a parede até eu desmaiar. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eu não tinha arma e ele atirou. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eletrochoque. Coronhadas. Matagal. Junte-se.  Chamou minha namorada, minha irmã … minha mãe, senhora, ele chamou minha mãe de arrombada”. NADA… MAIS.

                            Ao se debruçar academicamente sobre o trabalho dessas Promotoras de Justiça, a pesquisadora Marina de Oliveira Ribeiro, da UNICAMP, em artigo elaborado para o ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito, nos chamou de “agências dissidentes”, por, segundo ela, nos distanciarmos, com escutas e ações, de um Sistema Judicial marcado pela invisibilização da violência de Estado e permeado por pré-julgamentos morais que tendem a silenciar determinadas vozes.

                            Mas a seletividade moral não se dava apenas em relação a quem falava – meninos pretos e pobres, estigmatizados pelo ato infracional em que estavam envolvidos-, mas também, e sobretudo, pelo que era falado, incluindo, aí, vozes de Policiais Militares. Em dois anos de escutas foi possível perceber que uma violência insidiosa e cruel, de silenciamento e dor, afligia vorazmente os policiais militares escutados, que em desabafos que transbordavam seus corpos fardados, ao se sentirem de alguma forma seguros, sentiam necessidade de falar, ainda que apenas depois que o termo de declarações se encerrava e que a câmera de filmagem do ato processual já estava desligada.

I.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu não consigo me acostumar. Sabe… eu quis ser Policial pra salvar vidas…

                            Silêncio.

                            – Minha mãe…

                            Silêncio.

                            – Eu tive uma mãe muito amorosa… eu não consigo me acostumar… e tudo isso é muito maior que eu… eu não posso contra isso, Dra…

                            II.

– Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu fazia o apoio dos colegas quando a vi saindo algemada… olhei para os braços dela. Ela tinha os braços queimados, respingados de óleo quente, como os da minha avó. Braço de mulher cozinheira e trabalhadora. A droga saiu da nossa viatura. Ela nos xingava demais. Era uma leoa defendendo o filho e gritando que não tínhamos mandado judicial para entrar na casa dela.

                            Silêncio.

                         – Não sei o que a senhora fará com isso porque jamais direi isso formalmente.

                            Silêncio.

– Mas ela era como minha avó…

                            III.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – A senhora sabe, Dra, o que é sair de casa todo dia, pela manhã, com medo de nunca mais ver o filho e a esposa? Todo dia? Sabe o que é chegar em uma periferia, onde vive sua família, e ser recebido com pedrada?

                            A experiência em palavras que nunca estiveram nos autos, mas foram ouvidas, volta, em memória associativa diante da notícia da interdição do carnaval. Não há qualquer dúvida que, sim, há uma guerra de vida e morte, há tempos, e que não começou com a operação escudo. Mas esta guerra, definitivamente, não é entre bandidos e policiais. Tampouco entre sociedade de bem e facínoras assassinos. Ou, ainda, entre “Promofofos que estão querendo transformar o Ministério Público em ONG” – como se ouve nos bastidores de uma instituição em fuga da autocrítica – e os Promotores de Justiça que frequentam velórios de policiais militares, mas jamais lidaram com a dor da escuta destes mesmos homens depois do NADA MAIS, quando, asfixiados em suas fardas, desesperançados e mortos ainda em vida, eles, de alguma forma, pedem ajuda para não matar e não morrer.

                           A guerra é de palavras. A guerra é por escuta em um mundo farto de semideuses sisudos e cheios de certezas.

Escuta das ruas, das marchinhas de carnaval, dos hinos das escolas de samba, dos meninos negros da periferia e, também, dos policiais. Não é mais possível que Promotoras de Justiça, em escuta genuína, sejam considerados “agências dissidentes” em um sistema judicial marcado por clichês e chavões moralistas.

                             Da carne festa-purpurina à carne sangue, Darcy Ribeiro também traduziu nossa carne.

                            “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”

                   É urgente a consciência da carne de que somos feitos e de que apenas a palavra falada e escutada é capaz de nos salvar de nossa potência destrutiva para nos levar à festa de carnaval, onde explode nossa potência amorosa e bela.

                   No lugar da purpurina há sangue nas ruas das cidades do litoral sul de São Paulo.

É sangue de pretos, pobres e policiais. É sangue.

                   “Pra te provar que o meu penar também é a sua dor”, ecoa o hino da escola.

                   Quem, afinal, está torcendo pela purpurina?              

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

Referências:

  1. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. Darcy Ribeiro. Editora Companhia das Letras
  2. Rancho da Goiabada – João Bosco e Chico Buarque
  3. Bloco do Prazer – Moraes Moreira
  4. https://www.enadir2023.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6Ijc0NzIiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiYjY0MTFkNmM3YWFiNWI2NjQ3NDk1ZjI0MWY0ZmRlYWIiO30%3D Artigo de Marina Ribeiro, UNICAMP.
  5. Hino da Salgueiro de 2024. Hutukara.

Ainda há juízes em Costa Rica

Por Lorena Porto no Empório do Direito

Até a reforma trabalhista de 2017, prevalecia na Justiça do Trabalho o entendimento de que as empresas não poderiam terceirizar as suas atividades principais (Súmula 331 do TST). O Supremo Tribunal Federal (STF), ao contrário, decidiu pela possibilidade de terceirização de todas as atividades empresariais[1], desde que não houvesse fraude à relação de emprego[2].

Todavia, ao julgarem reclamações constitucionais, Ministros do STF, em decisões individuais ou majoritárias da respectiva turma, vêm adotando entendimento oposto àquele firmado pelo Pleno da Suprema Corte com efeito vinculante. Ou seja, vêm admitindo que basta a contratação formal de um trabalhador com uma roupagem diversa (por exemplo, como sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego[3][4]. Isso subverte o princípio da primazia da realidade, segundo o qual, na análise de uma relação de trabalho, deve-se dar maior importância aos fatos do que à forma: a essência se sobrepõe à aparência. Esse princípio basilar rege o Direito do Trabalho no Brasil e nos demais países do mundo.

Nessas decisões -, além de se violar um princípio de “vigência universal”, nas palavras da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[5] -, os Ministros do STF não trazem a necessária fundamentação, pois não externam os motivos pelos quais os acórdãos da Justiça do Trabalho cassados teriam descumprido o entendimento vinculante (Tema 725).

Há, ainda, decisão de Ministro do STF que afasta a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação em que se alega fraude à relação de emprego[6], o que viola norma constitucional expressa[7].

Essas decisões do STF, além de contrariarem a Constituição da República, afrontam tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Nesse cenário, o que se pode fazer? Parafraseando Drummond, “E agora, José?”

Um possível caminho é o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em regra no prazo de seis meses (art. 46 da Convenção Americana).

Pode-se alegar a violação a garantias judiciais e proteção judicial (arts. 8º e 25 da Convenção Americana), em virtude da análise equivocada dos fatos e da ausência de devida motivação. Ademais, na Opinião Consultiva n. OC-27/21, de 05 de maio de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), ao realizar a interpretação autêntica de dispositivos da Convenção Americana, do Protocolo de San Salvador, da Convenção de Belém do Pará, da Carta da OEA e da Declaração Americana, afirmou o princípio da primazia da realidade, cujo descumprimento poderia constar na denúncia[8]:

Parágrafo 209: “Especificamente, os Estados devem adotar medidas que visem: a) o reconhecimento dos trabalhadores e das trabalhadoras na legislação como empregados e empregadas, se na realidade o são, pois assim devem ter acesso aos direitos trabalhistas que lhes correspondem de acordo com a legislação nacional”. (grifos nossos)

Voto concorrente do Juiz L. Patricio Pazmiño Freire: “Devemos lembrar a máxima do direito do trabalho de que a realidade fática prevalece sobre o nomen iuris e que as relações trabalhistas – onde quer que ocorram – devem ser protegidas por esse direito, sempre à luz do princípio in dubio pro operario” (grifos nossos)

Na mesma Opinião Consultiva, a Corte IDH destaca que o acesso à justiça requer uma jurisdição especializada com competência exclusiva em matéria trabalhista (parágrafo 116). O esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho, promovido pela referida decisão do STF, também pode ser objeto de denúncia.

A necessidade de observância dos tratados internacionais e da jurisprudência da Corte Interamericana foi reafirmada em recentes Recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[9] e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[10].

Além dos Estados-membros da OEA, qualquer pessoa, grupo, sindicato ou ONG pode apresentar denúncia à Comissão Interamericana, que a investiga e busca solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo. Cabe aos tribunais constitucionais ou aos tribunais supremos (como o STF no Brasil) a última palavra no âmbito interno quanto à constitucionalidade, mas cabe à Corte Interamericana, sediada em San José (Costa Rica), a última palavra quanto ao controle de convencionalidade da Convenção Americana.

Se no século XVIII, o Moleiro de Sans-Souci pôde afirmar que “Ainda há juízes em Berlim”, para se proteger da injustiça de um monarca absolutista, no século XXI podemos dizer que “Ainda há juízes em Costa Rica”, para reparar decisões do STF que violam as normas internacionais e a jurisprudência interamericana.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Lorena Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

Notas e referências

[1] Tema 725: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (Leading Case: RE 958.252).

[2] Consta na ementa do acórdão do RE 958.252 a necessidade da “INEXISTÊNCIA DE CARÁTER FRAUDULENTO”, o que foi reafirmado no julgamento da ADI n. 5.625: “Estando presentes elementos que sinalizam vínculo empregatício, este deverá ser reconhecido pelo Poder Público, com todas as consequências legais decorrentes, previstas especialmente na Consolidação da Leis do Trabalho.”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4952236 e em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5094239. Acesso em 29 jan. 2024.

[3] Citam-se, ilustrativamente, as decisões proferidas nas Reclamações n. 53.899/MG, 56.285/SP, 47.843/BA e 53.771/ES. Recentemente, o Procurador-Geral da República (PGR) emitiu parecer no mesmo sentido, contrariamente ao entendimento adotado pelo PGR anterior: https://www.folhape.com.br/economia/pgr-muda-posicao-e-defende-que-nao-ha-vinculo-entre-entregador-e/313465/. Acesso em 29 jan. 2024.

[4] A Reclamação n. 64.018/MG, oriunda de ação trabalhista ajuizada por motorista em face da plataforma digital Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda., foi incluída na pauta de julgamento do Pleno do STF de 08.02.2024: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6800311. Acesso em 29 jan. 2024.

[5] OIT. La relación de trabajo – Conferencia Internacional del Trabajo. 95ª Reunião. Genebra: OIT, 2006. p. 24. No Brasil, extrai-se esse princípio da CLT, notadamente do art. 9º (“Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”) e do art. 442, caput (“Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”).

[6] Pode-se citar a decisão proferida na Reclamação 59795: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6643597. Acesso em 29 jan. 2024. 

[7] “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (…)” (grifos nossos).

[8] CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021 solicitada por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Derechos a la Libertad Sindical, Negociación Colectiva y Huelga, y su relación con otros Derechos, con perspectiva de Género. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_27_esp1.pdf

. Acesso em 29 jan. 2024.

[9] CNJ. Recomendação n. 123, de 7 de janeiro de 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf. Acesso em 29 jan. 2024.

[10] CNMP. Recomendação n. 96, de 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomendao-n-96—2023.pdf