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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

Atos antidemocráticos: MPF obtém condenação da União e do deputado General Girão (RN)

O Ministério Público Federal (MPF) obteve a condenação do deputado federal Eliéser Girão (PL) e da União por danos morais coletivos ao incentivarem os atos antidemocráticos que ocorreram após as eleições em 2022. 

A 4° Vara da Justiça Federal condenou os réus ao pagamento de R$5 milhões em indenizações e a exclusão de conteúdos de ódio e antidemocráticos propagados nas redes sociais do deputado federal Girão. De acordo com a investigação, o deputado divulgou conteúdos que ferem o Estado Democrático de Direito, além de motivar a participação em atos golpistas, que segundo a sentença “afronta o Estado de Direito, a ordem jurídica e o regime democrático, pondo em ameaça a legitimidade do processo eleitoral e a atuação do Poder Judiciário, além de configurar discurso de ódio contra as instituições democráticas com divulgação de notícias falsas (fake news) acerca do resultado das eleições, confundindo e incitando o povo e as Forças Armadas à subversão contra a ordem democrática”.

Também foi comprovado que comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, integrantes da União, repercutiram o conteúdo antidemocrático encorajando a formação de acampamentos. A Justiça determinou que a União deve pagar R$ 2 milhões e promover uma cerimônia com pedido de desculpas dos comandantes envolvidos em até 60 dias. Outro fato importante determinado pela sentença, é que a União deverá promover um curso de formação para integrantes das Forças Armadas, cuja finalidade é conscientização sobre os atos antidemocráticos. 

A União, o estado do Rio Grande do Norte e o município de Natal também foram condenados por omissão na proteção à democracia ao permitirem a manutenção dos acampamentos e obstrução irregular da via em frente ao 16º Batalhão de Infantaria Motorizado (Batalhão Itapiru), na capital potiguar. Em conjunto, os entes deverão pagar mais R$ 1 milhão em danos morais coletivos.

É importante que a defesa da Democracia brasileira seja realizada em todas as esferas governamentais, incluindo MPs estaduais em colaboração com movimentos sociais e que todos os envolvidos em atos golpistas sejam investigados e devidamente responsabilizados.  

O Coletivo Transforma MP divulga para os movimentos sociais e todas as pessoas preocupadas com a democracia brasileira a Petição Inicial e a Sentença, para homenagear o primoroso trabalho e inspirar a continuação e a expansão de investigações semelhantes.

A ACP é na 4a Vara Federal do RN (e ainda cabe recurso): 0803686-05.2023.4.05.8400

ZEZÉ NUNCA ESTEVE AQUI

Reprodução Instagram

Por Plínio Gentil no GGN

Lindo Fernanda Torres premiada com o Globo de Ouro. Merecidíssimo por sua atuação em Ainda estou aqui e por fazer parte de um filme que resgata ponto importante da história brasileira, que gerações mais novas já não enxergam com nitidez.

Insana, como esperado, a pancadaria da direita, que, na falta de argumentos, reclama da situação do país – como se seus governos obscuros não tivessem contribuído para o alto custo de vida, a deterioração do sistema de saúde, o desemprego, a financeirização dos preços dos combustíveis, usados para pagar o parasitismo rentista. Só para lembrar mesmo como esse chororô não ofusca, nem poderia, um milímetro do brilho da atriz, dos outros protagonistas e de todos que trabalharam para que o filme acontecesse. Sem recursos da Lei Rouanet, diga-se de passagem, mas com financiadores de peso e trazendo créditos a nomes conhecidos da produção cinematográfico-televisiva desse porte.

Pois então, trata-se de uma hiperprodução, em quase todos os sentidos. Na recriação da época, no colorido dos cenários, nos figurinos, nos penteados. E também ao retratar a subjetividade de famílias de classe média alta, com seus hábitos e sutilezas. Pois é aí que o conjunto da obra imprime sua marca inconfundível, de um lado denunciando a violência da ditadura, de outro sugerindo padrões de comportamento. Só que estes, de tão perfeitos, perdem realidade. Naquela família todos são inteiramente felizes, embora o mundo em volta fosse um pesadelo. Ninguém briga com ninguém, love is in the air, há um casal exemplar e uma vida de platitudes. Ao perder verossimilhança, o filme projeta um perfil humano agradável ao padrão de sociedade do capitalismo brasileiro, que, se condena o terrorismo de estado, não se escandaliza com a desigualdade social, parece não percebê-la e jamais a denuncia. Deixa nas entrelinhas que é fruto das diferenças individuais, da inteligência e do esforço de cada qual – como nas novelas. Não devia ser este o caso da verdadeira família Paiva. O deputado Rubens não foi cassado, depois morto, por seu amor ao sistema. Mas a produção cinematográfica cuida de apagar esse traço daquela família que foi perseguida, viveu no exílio e decerto não pensava que um intercâmbio estudantil na Europa fosse a coisa mais importante a fazer.

Nisto é que entra Zezé. Para refrescar a memória, ela é, no filme, a empregada doméstica da família. Uma personagem apagada, discreta, silente, que habita um canto da casa. Ninguém sabe de onde veio, que história tem ou como foi parar ali.  Nenhum relevo parece ter o trabalho que faz para que os moradores toquem suas vidas levemente. Estereótipo de doméstica, com um inevitável lenço à cabeça, que em 1971 já andava em desuso, Zezé definitivamente não importa. Em uma palavra, é a imagem que a produção narra como deve ser vista uma funcionária doméstica. Só faltou dizer que era uma “colaboradora”. Zezé assiste a tudo sem importar ao enredo se entende a engrenagem que torna possível o sequestro do patrão. Como se fosse naturalmente incapaz de compreender coisas – que ali eram básicas – como repressão política e conflito de classes. Zezé é invisível. E isto se dá com naturalidade. A naturalidade do modo que o mercado produtor desse nível de arte vê uma empregada doméstica. A mesma normalidade com que é tratada sua demissão quando a família começa a ter dificuldade financeira. O que houve com Zezé depois de perder o emprego? Conseguiu arranjar outro? Pôde continuar alimentando seus filhos? Zezé tinha filhos?

Como dito, para não deixar dúvida, o filme é excelente. Consegue empatia com o público, principalmente porque ele se reconhece naquela família de classe média. Mais por isto, talvez, do que por horror à ditadura. E são esses setores, mais ou menos intelectualizados da classe média, que vão ao cinema e formam opiniões. Mesmo que tais opiniões sejam em parte guiadas pelo viés ideológico da produção, é ótimo que se formem opiniões críticas ao arbítrio da ditadura brasileira, agora que tantos aloprados procuram reescrever a história e negá-la. Mas seria perfeito se o povo mesmo, aqueles 70 ou 80 por cento do Brasil que só fazem trabalhar, também tivesse personagens míticas com quem se identificar, ligadas, direta ou indiretamente, à luta democrática ou vitimadas pela repressão de um regime controlado pelo poder econômico.

Zezé é, sim, vítima da violência sofrida pela família Paiva. Mas a Zezé do filme nada diz, nada pensa.  Zezé não conta. E ela não é vítima apenas por estar ali, naquele lugar e naquela hora. É vítima porque, tudo somado, foi sobre as classes populares e sobre outras Zezés que despencou a parte mais pesada da violência da ditadura. Foi sobre os sindicatos de trabalhadores, as organizações de camponeses, os funcionários públicos, as associações e os partidos que condenavam a exploração do trabalho. Porém relatos sobre o horror da ditadura contra o povo trabalhador quase não ganham visibilidade. Parece não ter havido violência contra ele. Parece que a ditadura empresarial-militar não veio para frear a conquista de direitos da população despossuída. Ou para assegurar o lucro privado na educação e nos transportes. E para impedir a reforma agrária, a reforma urbana. Para garantir a especulação imobiliária, que expulsa o pobre do centro das cidades. É como se, no cenário do filme, Zezé nunca tivesse existido… Na verdade, Zezé nunca esteve ali, nem em lugar nenhum.

 Em países irmãos, também vítimas de ditaduras passadas, são mais frequentes e mais conhecidas produções artísticas que mostram a violência praticada contra o povo em geral, talvez por sua maior politização, que cria demanda por mitos populares, socialmente situados aquém da classe média, que já tem os seus. O filme é ótimo, principalmente por retornar a um tema que nossa Lei de Anistia, cuidadosamente mal interpretada, vai ajudando a ficar desbotado. Mas ao colocar Zezé em seu lugar e ao propor o perfil de uma classe média que não questiona nossas relações sociais, tão excludentes, perde a oportunidade de denunciar a estrutura opressiva do modelo vigente. Para o qual os acontecimentos reais, retratados no filme, são consequências naturais, encaixadas na engrenagem de um sistema que se nutre da superexploração do trabalho e da repartição quase nula de seu produto. Sim, OK, esta não era sua proposta mesmo, como não é a de produções desse porte. Ai de quem falar em luta de classes. Viva Zezé!

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Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Plínio Gentil

Associado fundador do MP Transforma

Professor de Direitos Humanos na PUC-SP

Uberização e livre iniciativa: uma falsa questão constitucional

O que o STF precisa responder é se os trabalhadores uberizados têm direitos constitucionais

Por Cássio Casagrande, Rodrigo de Lacerda Carelli no JOTA

Supremo Tribunal Federal está em vias de julgar o RE 1.446.336, no qual se discute a possibilidade de reconhecimento de vínculo de emprego dos trabalhadores com as empresas criadoras e administradoras de plataformas. O caso foi admitido como Tema de Repercussão Geral 1.291, cujo verbete está assim redigido:

Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, IV; 5º, II, XIII; e 170, IV, da Constituição Federal, a possibilidade do reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa criadora e administradora da plataforma digital intermediadora.

O recurso extraordinário foi interposto em face de decisão proferida pela 8ª Turma do TST, da lavra do relator Alexandre Agra Belmonte, que reconheceu o vínculo de emprego entre a trabalhadora Viviane Pacheco Câmara e a empresa Uber Tecnologia do Brasil.

A tese da recorrente Uber, como se vê do verbete do Tema 1.291, é o de que a aplicação da CLT a seus trabalhadores violaria os princípios da livre iniciativa, da legalidade e da liberdade de trabalho.

A premissa de que o reconhecimento de regime trabalhista aos trabalhadores contratados via plataforma violaria a livre iniciativa adveio do Tema de Repercussão Geral 725, em que o STF entendeu que restrições à terceirização violariam aquele princípio constitucional.

Primeiramente, é preciso observar que não estamos diante de terceirização e por isso parece altamente inadequado trazer a premissa do Tema 725 para o debate. Não existe terceira empresa entre o trabalhador recrutado via aplicativos e as plataformas digitais operadas por empresas de transporte.

Segundo, por que fazer valer a legislação trabalhista ordinária, no caso o art. 3º da CLT, que estabelece os requisitos da relação de emprego, implicaria em violação a livre iniciativa? A Justiça do Trabalho aplica os arts. da 3º e 9º da CLT (este último impondo o princípio da primazia da realidade) a relações de trabalho controversas há mais de 80 anos e nunca se alegou que isso pudesse representar violação à livre iniciativa.

A argumentação de que as relações laborais uberizadas seriam um fenômeno diferente de tudo que havia antes não justifica a situação como uma nova questão constitucional. Sim, efetivamente, é um modelo novo de forma de contrato, mas seu conteúdo não difere, em sua essência, de um conflito trabalhista típico.

Estamos diante de empresas que exercem atividade econômica (no caso setor de transporte) e que para esse fim precisam recrutar e contratar mão de obra permanente, remunerando essa prestação laboral por hora trabalhada ou por tarefa.

Sim, a questão é a de se saber a exata natureza jurídica desta relação. Mas por que a decisão sobre essa questão violaria a livre iniciativa? A livre iniciativa está, no mínimo, equiparada, na Constituição, ao valor social do trabalho, então obviamente não se trata de óbice intransponível ao reconhecimento do vínculo, como nunca foi.

Inclusive, este debate, que vem sendo feito em todo mundo, apenas no Brasil tem suscitado o argumento sobre suposta lesão à “livre iniciativa”. Várias cortes superiores da Europa reconheceram o regime trabalhista para os trabalhadores uberizados: França, Suíça, Inglaterra, Espanha, Alemanha, dentre outros.

Qualquer um que leia a íntegra dessas decisões perceberá que em nenhuma delas o argumento da livre iniciativa sequer foi cogitado. E são países onde, induvidosamente, a livre iniciativa está plenamente assegurada.

Aliás, essa matéria, nos tribunais da Europa, sequer foi decidida como questão constitucional. Os tribunais simplesmente aplicaram a legislação trabalhista ordinária. Não houve invocação de tese constitucional para resolver esses conflitos na Europa.

Além disso, a ideia de que a legislação trabalhista é incompatível com a livre iniciativa foi robustamente derrotada no século 20. Lembremos do famoso caso Lochner vs New York, de 1905, da Suprema Corte dos Estados Unidos. A Assembleia Legislativa do Estado de Nova York limitou a jornada de trabalho dos padeiros daquele estado.

A Suprema Corte, com uma composição que era então conservadora e ativista, cujos juízes haviam sido formados no laissez faire do século 19, baseou-se exatamente no argumento de que a lei violava a livre iniciativa. Os Justices sustentavam que a limitação de jornada laboral pelo poder público constituía intervenção indevida do Estado porque estaria ferindo a liberdade de contrato e de trabalho.

Ora, era literal e exatamente a mesma tese patronal apresentada hoje pela empresa Uber no Brasil. Como é sabido, a retrógrada Era Lochner foi superada na administração Franklin D. Roosevelt, com o New Deal, que impôs a legislação trabalhista federal para todas as empresas dos EUA.

Chega a ser espantoso que em pleno século 21 as empresas estão trazendo ao STF uma tese jurídica que era popular no século 19, uma tese reacionária defendida pelos ricos e poderosos contra a classe trabalhadora, e que foi superada pelo Estado Social.

Sim, há uma questão constitucional subjacente ao caso, mas qual é? A verdadeira questão constitucional do RE 1.446.336 é a de se saber se os trabalhadores uberizados têm direitos sociais e previdenciários, e não se a livre iniciativa está sendo restringida – porque de forma alguma o estaria.

Para citar apenas alguns paradoxos da atual situação dos trabalhadores contratados via aplicativos, vê-se a realidade de que muitos, a duras penas, criaram sindicatos representativos da categoria, sendo admitidos pelos poderes Executivo e Legislativo como legítimos atores sociais nos debates sobre o tema. Porém, tais sindicatos não podem fazer negociação coletiva com as empresas do setor, que não reconhecem a relação de trabalho que com eles mantêm. Tampouco se lhes reconhece a legitimidade para suscitar dissídio coletivo.

A alegação de que as plataformas digitais são incompatíveis com a legislação trabalhista tradicional é contraditada pelas práticas das próprias plataformas na Europa e nos EUA.

O pressuposto-base da argumentação das empresas que se valem de plataformas digitais é de que se trata de uma nova forma de relação, bem distinta da tradicional, por se tratar de modelo de negócios incompatível com a “antiquada” relação de emprego. Desta forma, seria impossível para as plataformas digitais continuarem atuando no mercado brasileiro se fossem obrigadas a cumprir a legislação trabalhista.

Esse pressuposto é claramente falso. A sua insustentabilidade é demonstrada pela realidade, pois em vários lugares do mundo as chamadas plataformas de transporte atuam com trabalhadores com vínculo de emprego e com direitos trabalhistas garantidos.

Comecemos pela própria Uber. Na Alemanha, os seus motoristas são e sempre foram empregados, contratados por meio de empresas terceirizadas de transporte. Para o cliente-consumidor o serviço funciona de maneira idêntica a qualquer outro lugar do mundo, bem como a gestão algorítmica realizada pela Uber sobre os trabalhadores. No entanto, os trabalhadores recebem todos os direitos trabalhistas alemães.

Da mesma forma, na Espanha, os motoristas são empregados de empresas de transporte terceirizadas. Em Genebra, na Suíça, depois de derrota judicial no país que reconheceu os motoristas da Uber como empregados, a empresa partiu para a mesma estratégia que havia adotado na Alemanha e na Espanha e terceirizou o serviço, em que os empregados são contratados pelas terceirizadas, com todos os direitos trabalhistas.

A sua operação de entregas, denominada UberEats, desde 2020 já atuava com trabalhadores empregados contratados por terceirizadas, com todos os direitos trabalhistas garantidos. A Uber, em comentário sobre a diretiva europeia com presunção da existência de vínculo de emprego, disse que a obrigação de reconhecer os direitos trabalhistas não atingiria a lucratividade da empresa, afirmando que já haviam provado a “capacidade de crescer em locais como Alemanha e Espanha utilizando o modelo da terceirização”.

Mas não são casos isolados. Na Alemanha, a maior parte das plataformas digitais classifica seus trabalhadores como empregados. A Just Eat, atuante em boa parte da Europa, mesmo sofrendo dumping social das concorrentes que não cumprem com suas obrigações trabalhistas e tributárias, contrata dezenas de milhares de entregadores como empregados. Na Espanha, a maior empresa de entrega no país, a Glovo, informou na semana passada que abandonará o modelo de falsos autônomos e passará a atuar com 100% de empregados, afirmando que nada mudará para o usuário.

E não é só na Europa que as plataformas digitais desmentem o pressuposto de que não conseguem funcionar com o modelo de emprego. Nos Estados Unidos, a plataforma de transporte de pessoas Alto contrata todos os seus motoristas como empregados. Da mesma forma, a plataforma de serviços gerais Blue Crew somente contrata empregados para prestar seus serviços. A plataforma Upshift, também de serviços gerais, oferece a mesma flexibilidade de horários reconhecendo as condições de empregados de seus trabalhadores.

No Brasil também temos exemplos. A plataforma de transporte de passageiros V-1 desde a sua fundação contrata seus motoristas como empregados. A Rappi, plataforma de entregas, contrata os “shoppers”, ou seja, os trabalhadores que fazem as compras nos supermercados, como empregados.

A iFood atua com dois modelos diferentes: contrata entregadores como se fossem autônomos diretamente, mas garante o serviço por meio de contratação de empresas de entrega que arregimentam, organizam e controlam os trabalhadores, chamados de operadores logísticos, em um modelo muito similar ao da Uber na Alemanha, Espanha e Suíça.

Dentro dessa lógica está embutida outra falácia: a de que as empresas não suportariam arcar com os custos derivados da relação de emprego. Ora, aqui no Brasil, se empresas em negócios tão simples como padarias, mercadinhos, oficinas mecânicas e botequins contratam seus trabalhadores como empregados, por que empresas com fundos bilionários, que detêm até bancos com receitas de até R$ 1 bilhão por ano, como a iFood, não conseguiriam arcar com as obrigações trabalhistas?

Assim, verifica-que não há qualquer incompatibilidade entre o modelo de plataformas digitais de serviços e a relação de emprego. Conforme a circunstância, seja por constrição judicial ou mesmo administrativa, seja por decisões de negócio, as empresas passam normalmente a contratar pelo modelo de emprego, o que não afeta seu modelo de negócio ou a experiência do consumidor.

As empresas que contratam empregados sofrem com a concorrência de outras que descumprem o padrão mínimo estipulado em seus países. O Direito do Trabalho é inseparável do direito regulatório da concorrência, como se dá desde o seu surgimento, em 1802, na Inglaterra, e por isso deve ser abrangente para que o mercado funcione corretamente. O Direito do Trabalho não impede a livre iniciativa. É o não cumprimento de direitos trabalhistas por parte de empresas que pode comprometer a livre concorrência em todo um setor econômico.

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Este texto foi apresentado na audiência pública realizada no STF nos dias 9 e 10/12/2024, convocada pelo ministro Edson Fachin para debater o Tema de Repercussão Geral 1.291.

Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022).

Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.

O STF e os 40 anos de Bhopal

Em 2023, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) marcou posição contra as práticas de uso de agrotóxicos, ressaltando os riscos à saúde, em especial nas causas do câncer.

Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense

Na quarta década da maior catástrofe da indústria química, o Supremo Tribunal Federal (STF) está por decidir uma das mais importantes questões ambientais. Da decisão depende a efetiva proteção dos brasileiros expostos aos agrotóxicos.

Em 3 de dezembro de 1984, a cidade de Bhopal, na região central da Índia, registrou o maior acidente industrial da história. A explosão da fábrica de agrotóxicos deixou entre 4 e 10 mil pessoas mortas imediatamente. A fabricante negou-se a fornecer informações, dificultando o socorro de 200 mil pessoas intoxicadas pela nuvem de veneno. Estimam-se 25 mil casos de cegueira e 50 mil incapacitados para o trabalho. A data emblemática marca o Dia Mundial de Luta Contra os Agrotóxicos.

A desoneração tributária de agrotóxicos é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.553. A ação questiona regras de convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária que reduzem em 60% a base do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços sobre agrotóxicos, além de dispositivos que zeram o Imposto sobre Produtos Industrializados.

Em 5 de novembro, foi realizada audiência pública no STF, conduzida pelo relator, ministro Edson Fachin. Foram dezenas de manifestações de representantes do setor econômico, trabalhadores, governo, cientistas e entidades, além da sociedade civil. 

O setor econômico buscou demonstrar a relevância da atividade econômica que desfruta dos benefícios fiscais há quase 30 anos. Muitos dos representantes de entidades e da sociedade civil demonstraram a iniquidade das vantagens tributárias concedidas a um setor que se anuncia com grande pujança econômica e usa insumos químicos especialmente na produção de commodities de exportação. Foram apresentados dados impactantes do comprometimento do meio ambiente e da saúde de trabalhadores e da população exposta a produtos tóxicos. Chamou a atenção a falta de representante do Ministério da Saúde, área diretamente impactada pelo estímulo ao uso de agrotóxicos.

No Brasil, a tragédia silenciosa e subnotificada é sentida pelas vítimas do espalhamento do veneno na forma de enfermidades crônicas, dado reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde (MS).

No mesmo 5 de novembro, o Ministério da Saúde publicou a Lista atualizada de Doenças Relacionadas ao Trabalho, com o objetivo de orientar as ações de vigilância e promoção da saúde. São mais de 40 enfermidades decorrentes da exposição dos trabalhadores aos agrotóxicos, com várias modalidades de câncer, linfomas, leucemia, hipotireoidismo, Parkinson e depressão.

Em 2023, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) marcou posição contra as práticas de uso de agrotóxicos, ressaltando os riscos à saúde, em especial nas causas do câncer. Indicou que o intensivo uso de agrotóxicos gera grandes malefícios, como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população. O documento aponta o fato de o Brasil permitir o uso de agrotóxicos proibidos em outros países.

A isenção de impostos concedida à indústria de agrotóxicos é apontada pelo Inca como um grande incentivo ao uso que vai na contramão das medidas protetoras, decorrentes do princípio da precaução, que recomenda ações que reduzam progressiva e sustentadamente o uso de agrotóxicos.
Causou surpresa a manifestação da Advocacia Geral da União, favorável à renúncia de receitas, em pauta contrária ao interesse do erário, justamente quando o governo se debate com a crise orçamentária ou colapso fiscal.

Quanto à manifestação dos representantes do Ministério da Agricultura, favorável à continuidade da desoneração e indiferente aos dados que apontam os danos à saúde dos trabalhadores, proprietários ou empregados, chamou a atenção a resistência ao uso da expressão adotada pela lei e pela Constituição: “agrotóxico”, escolhendo usar o eufemismo “defensivos”, que compõe a estratégia de marketing do setor beneficiado pela desoneração.

Essa estudada cautela demonstra um alinhamento com a indústria química que traz preocupação adicional, pois a recente alteração na legislação dos agrotóxicos (Lei nº 14.785 / 2023) concentrou no Ministério da Agricultura a competência exclusiva para o registro de pesticidas. As áreas da Saúde e do Meio Ambiente ficaram com função secundária.

A grave decisão do STF, felizmente, dá-se no contexto em que tem havido compromisso com a Agenda 2030 — Pacto do mundo civilizado com o desenvolvimento sustentável. Há esperanças de que não seja perpetuada a silenciosa tragédia de Bhopal em nossas fronteiras agrícolas.  

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

Eles ainda estão aqui!

Por Gustavo Livio[1]

                Assistimos nos últimos dias a dois eventos bombásticos e inter-relacionados. O primeiro deles, a euforia coletiva despertada pelo filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, uma crítica aberta à ditadura empresarial-militar que narra o drama da família do ex-deputado Rubens Paiva em razão de seu desaparecimento forçado. O segundo, o indiciamento de 37 pessoas pela Polícia Federal no bojo da Operação Contragolpe, dentre os quais se destacam o ex-presidente Jair Bolsonaro, os generais da reserva Braga Netto e Augusto Heleno, além de outros militares de alta patente, todos eles saudosos viúvos da ditadura militar criticada pela película de Walter Salles.

Segundo as investigações até aqui divulgadas, as operações “Punhal Verde Amarelo” e “Copa 2022” tinham objetivos explicitamente golpistas que envolviam o assassinato do então recém-eleito Presidente Lula, seu vice, Geraldo Alckmin e o Ministro Alexandre de Moraes. As reuniões foram arquitetadas na casa do General Braga Netto e contaram com a participação do General Mário Fernandes, do Tenente-Coronel Hélio Ferreira Lima e de dois majores, Rafael Martins de Oliveira e Rodrigo Bezerra, estes quatro últimos já presos. A “Operação Copa 2022”, dedicada ao assassinato do Ministro Alexandre de Moraes, esteve incrivelmente próxima de se consumar e foi abortada de última hora em razão de um adiamento da sessão do STF que ocorria na data marcada para a operação.

O Brasil conta com uma excessiva variedade de partidos políticos. Hoje, são 29. Mas a eles devemos adicionar um partido clandestino; um partido que, a despeito da ausência de registro formal junto ao TSE, interfere decisivamente nos rumos da vida política do país: o Partido Fardado[2]. Desde a República Velha, passando pelos turbulentos anos da década de 1930, pela redemocratização em 1946, pela Ditadura empresarial-militar de 1964-1985 e até os dias de hoje, os Militares historicamente se autoproclamaram detentores de um suposto e ilegítimo “poder moderador” que lhes permitiria interferir nos poderes constituídos para garantir o “interesse nacional e a “ordem pública”, dos quais, claro, eles se avocam como grandes intérpretes. Não faz muito tempo que o Partido Fardado e seus asseclas defenderam a absurda tese de que o artigo 142 da Constituição permitiria que o Presidente eleito poderia determinar uma “Intervenção Militar” a fim de “restaurar a ordem”. A controvérsia ganhou tamanha relevância que a Câmara dos Deputados e o STF foram instados a se manifestar –  contrariamente, é claro.

O Partido Fardado, é claro, não está sozinho. Conta com o suporte luxuoso de sua grande sócia, a alta burguesia, e com o inflamado rancor de uma classe média ressentida composta por adoradores de pneus e hordas conservadoras neopentecostais. Essa tríade – os militares, a alta burguesia e parcela significativa do neopentecostalismo – compõe a base de massas do conservadorismo neofascista brasileiro. Sim, neofascista! Porque um movimento de massas de classe média, ultranacionalista, militarista, anticomunista e fundamentalista religioso carrega consigo as mesmas características centrais do movimento italiano, dê você o nome que quiser dar.

Walter Benjamin, em seu consagrado Teses sobre o Conceito de História, escreveu que “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras””[3]. Sim, eles ainda estão aqui. A ditadura militar não deixou apenas “resquícios”, mas todo um corpo político fluido extremamente influente com grandes privilégios institucionais (aposentadorias robustas e tribunais específicos) e que volta e meia se arvora do poder de bastião de uma “ordem” cujo conteúdo é ditado por eles próprios. Mas mais importante do que isso: esses sucessivos “agoras” têm se perpetuado diante de uma irresponsabilidade quase monárquica dos militares, uma espécie de absolutismo de farda. E não me refiro apenas à Lei de Anistia de 1979 e nem à atual articulação da direita para anistiar os golpistas do dia 08.01.2023. Refiro-me ao fato de que, salvo raríssimas exceções, a história brasileira demonstra que militares de alta patente não são responsabilizados pelos crimes que cometem contra o funcionamento regular das instituições civis (e foram vários…). Refiro-me também à ausência deliberada de uma Justiça de Transição que, ao não acertar as contas com seu passado, saturou o tempo presente de amargos “agoras” que retornam para assombrar o pouco de democracia que temos.

Conrado Hubner escreveu na internet que “Braga Netto não está preso porque o sistema chegou a um limite de quem pode prender”. Eu apenas alteraria o tempo verbal para dizer que esse limite sempre existiu. Não “chegamos a um limite”, o limite é constitutivo de um sistema jurídico erguido sobre uma sociedade de classes. Uns são presos por nada; outros não são presos por nada. A seletividade é constitutiva do Direito Penal, sabemos disso desde sempre. Mas estamos acostumados a olhar para os selecionados e deixamos de mirar os não-selecionados, aqueles a quem a mão do Poder Punitivo não alcança porque, na prática histórica, mais importante do que a subsunção de um fato a um tipo penal é o poder do agente que comete o fato. A Lei nunca foi e nunca será igual para todos enquanto a estrutura da sociedade for marcada por um profundo antagonismo entre as classes sociais na qual o Partido Fardado divide historicamente o Olimpo com a alta burguesia.

Eles ainda estão aqui. Na verdade, sempre estiveram. Não me refiro aos militares como pessoas, mas aos militares organizados em um Partido Fardado. Partido este que desde o Império se aliou às oligarquias agrárias e burguesas para, juntas, se manterem intocáveis no Olimpo do poder (não por acaso o brasão da Polícia Militar ostenta um pé de cana-de-açúcar e um pé de café). Este partido, que cultiva abertamente um gosto peculiar pelas atrocidades da Ditadura Militar – que eles chamam de “revolução” – está sempre à espreita para interferir direta ou indiretamente nos rumos políticos do país.

Mas Walter Benjamin, de novo, nos lega uma das mais motivadoras lições da Filosofia da História: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”[4]. Alguma centelha de esperança brota da articulação dos dois eventos recentes que mencionei no início. O filme fornece a memória das atrocidades da ditadura militar e o indiciamento inédito da Polícia Federal demonstra alguma centelha de esperança de que a irresponsabilidade monárquica do Partido Fardado pode ser rompida no futuro breve. O Brasil tem a oportunidade única de encerrar um jejum de séculos de irresponsabilidade penal dos militares de alta patente por crimes cometidos contra as instituições civis. É claro que nenhuma punição isolada corresponderá a uma Justiça de Transição, essa Justiça com “J” maiúsculo tão ausente no Brasil. Outros países da América Latina tiveram a oportunidade de acertar as contas com seu nebuloso passado autoritário e por isso criaram uma memória coletiva em torno das atrocidades cometidas. Por aqui, ao contrário, a força do Partido Fardado impediu que fizéssemos, e por isso volta e meia vemos manifestações de massa exibindo cartazes em defesa de uma “intervenção militar” ou deputados federais exaltando notórios torturadores no plenário da Câmara dos Deputados.

Responsabilidade penal não é Justiça de Transição. Mas é um passo indispensável para tatuar na pele da história um sonoro e rotundo “Não”. Uma potente mensagem: “Vocês não podem interferir nos rumos do governo legitimamente eleito e permanecer impunes”. Temos em mãos uma oportunidade de ouro de processar, julgar e punir militares de alta patente por crimes cometidos contra nossa superficial democracia. Como um presente saturado de “agoras”, Eles ainda estão aqui! E continuarão aqui até que seja feita uma profunda reforma nas Forças Armadas para a qual a possibilidade de responsabilização criminal é um passo inicial fundamental, embora não suficiente. Que o Procurador-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal tenham a coragem e o apoio popular para dar esse passo.

REFERÊNCIAS

  1. BENJAMIN, WALTER. Teses sobre o conceito de História. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2015/10/02/walter-benjamin-teses-sobre-o-conceito-de-historia/. Acesso em: 21.11.2024

*Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.


[1] Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.

[2] E por “Partido Fardado”, refiro-me não aos militares em si mesmos, mas à organização de militares de alta patente para interferir nos rumos políticos do país.

[3] BENJAMIN, WALTER. Teses sobre o conceito de História. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2015/10/02/walter-benjamin-teses-sobre-o-conceito-de-historia/. Acesso em: 21.11.2024

[4] Ibidem.

Coletivo Transforma MP assina nota em defesa da democracia

O Coletivo Transforma MP e diversas entidades e movimentos sociais assinaram a nota da Coalizão em Defesa da Democracia, que repudia os atos golpistas praticados desde 2022 até os dias atuais. 

O documento enfatiza o perigo que as tentativas de golpes representam para o país e para o povo brasileiro, fragilizando a Democracia, a soberania nacional e a Constituição Federal de 1988. 

As entidades destacaram que o caso se torna ainda mais grave por apresentar membros do Exército brasileiro que deveriam defender a pátria e obedecer ao povo ao invés de conspirar contra o Estado. Outro fato destacado em relação aos militares é o uso excessivo dos recursos públicos para custear remunerações acima do teto estabelecido e com compras luxuosas que não estão relacionadas com a função do exército. 

“A Coalizão em Defesa da  Democracia, que congrega autoridades, organizações e intelectuais que acompanharam de perto as eleições para garantir a lisura do processo eleitoral e defender os procedimentos democráticos adotados pela lei e pela justiça eleitoral brasileira, vem agora exigir celeridade das autoridades de investigação, processo e punição dos envolvidos nos atos acima mencionados.”

O Brasil é um país marcado por golpes, mas também carrega muita luta e organização social da sociedade civil e entidades. Precisamos nos fortalecer para barrar os atentados à democracia e garantir uma sociedade segura e sem ameaças. 

Os atos golpistas

Na última terça-feira, dia 19 de novembro de 2024, o Brasil acordou estarrecido ao tomar conhecimento da existência de uma quadrilha de pessoas ligadas às forças de segurança brasileira que, segundo o relatório da Polícia Federal encaminhado ao Ministério Público e ao Supremo Tribunal Federal (STF), teria planejado, organizado e encaminhado em 2022 atos para assassinar os então Presidente e Vice-Presidente eleitos e um dos ministros do STF que ocupava a presidência do Tribunal Superior Eleitoral. 

Coletivo Transforma MP faz representações a todas as Procuradorias de Justiça sobre o caso Córtex

O Coletivo Transforma MP enviou ofícios a todas as Procuradorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal requerendo providências no sentido de assegurar que todos os sistemas de informação e bancos de dados utilizados em investigações pelos Órgãos de inteligência e pelo Sistema de Justiça sejam republicanamente auditáveis, controláveis e acessíveis apenas por pessoas com atribuições legais para investigar os casos concretos aos quais estejam vinculadas. 

A preocupação surgiu após notícia da Agência Pública sobre possíveis falhas no sistema Córtex, administrado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. 

O Córtex é uma plataforma que concentra imagens e informações sigilosas sobre milhões de brasileiros, centralizando diversos bancos de dados. Segundo apurado pela matéria, estariam ocorrendo acessos por agentes que não estariam ligados a investigações específicas ou que não teriam sequer atribuições de investigar, como guardas municipais, além de acesso irrestrito por militares. A sociedade civil a quem todas estas instituições servem, precisa ter conhecimento sobre esse monitoramento. 

Tais informações são  “dados sensíveis” e não podem ser disponibilizadas sem que seja legalmente necessário ou sem o consentimento do indivíduo, conforme determina a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A exceção seria admissível apenas com a existência de inquéritos, ações judiciais ou procedimentos administrativos formalizados legalmente e conforme a estrita necessidade. Caso contrário, desvios de finalidade podem ocorrer, com o monitoramento de adversários políticos de eventuais agentes públicos, o que configuraria abuso de poder inadmissível numa democracia.

Em outubro deste ano o Ministério Público Federal instaurou, de ofício, Inquérito Civil para apurar tais fatos. Todavia, é preciso atentar para o fato de que o Córtex e diversos outros sistemas e bancos de dados são acessados também pelas polícias, pelo poder judiciário e pelos ministérios públicos dos Estados e do DF. É preciso garantir a segurança e a integridade dos mesmos, para que não ocorram as falhas que aparentemente afetaram o Córtex. Os MPs estaduais poderão, inclusive, atuar de forma colaborativa com o MPF.

O Coletivo Transforma MP, preocupado com as garantias democráticas, formalizou as 27 representações, confiando na atuação dos integrantes dos vários ramos do Ministério Público Brasileiro, no cumprimento de seu papel constitucional de garantidores do Estado Democrático de Direito.

O inferno do só pensar

Imagem: Millôr Fernandes

Por Élder Ximenes Filho no GGN

“Livre Pensar é só Pensar” foi frase de efeito, artigo e coluna do grande Millor Fernandes no seminal jornal de humor e política O Pasquim1 – chegou a ser tão influente que terroristas de extrema-direita (na última ditadura civil-militar) lançavam bombas em bancas e livrarias que o vendiam.
Naquele tempo, só o teu pensar poderia até te matar! Continuou-se pensando e agindo até a ditadura cair de podre e o pensar livrar-se da censura. O agir deste pensar trouxe a democracia e manteve aceso o sonho dum Brasil solidário, humano e descolonizado. Com todos os riscos, pensava-se, escrevia-se, divulgava-se e, principalmente, agia-se: panfletava-se, pixava-se, piqueteava-se, ajudava-se, fugia-se, retornava-se, apedrejava-se, guerrilhava-se, organizava-se, sindicalizava-se, associava-se, greveava-se, lutava-se e (quando voltaram as eleições) votava-se…
Duas gerações, uma internet e várias guerras híbridas após a redemocratização tivemos um golpe moderno implementado (2016) e outro tentado (2023). De lá para cá o que mais se fez é “Só pensar”, aliás, cada vez mais livre, inclusive nas formas: textões, memes lacrantes e vídeos lindos. Ou seja: analisa-se, reanalisa-se, retroanalisa-se…
O problema é que faz tempo relegamos todos aqueles “agires” para muito depois do “Só pensar”. Aguardamos a análise definitiva, a resposta, o roteiro induvidoso do processo histórico a descer dos céus. A ação passou a ser repostar a última análise e aguardar a próxima – que, talvez, traga consigo os chinelos do destino e o mapa do futuro.
Já disseram antes que andamos “cegos de tanta luz”, que o excesso de informação é imobilizante e dissemina mais dúvidas do que certezas. Mas quem disse que é preciso ter certeza para viver? Baixamos das árvores e saímos das cavernas com a certeza do sucesso? Claro que não! Tanto assim que nossos primos2 (tão hominídeos como nós) saíram pelo mundo e foram extintos. Escapamos nós, os violentos e desconfiados homo sapiens, mas também gregários, solidários e sonhadores. Qual o impulso? As necessidades básicas do momento: moradia, alimento, sexo e segurança (aqui incluído não virar comida de um bicho mais forte). Não é preciso refletir muito para ver que, no essencial, os motivos são os mesmos, variam os formatos.
Seis milhões de anos de muita ousadia, de riscos assumidos ante a morte. Viemos guiados, no máximo, por algumas vagas ideias em nosso cérebro que começava a processar padrões e projetar abstrações. A trilha para a água (evitando o lobo) chegou ao projeto do satélite (prevendo o furacão). Tanto numa experiência como noutra, houve baixas, mas chegamos até aqui pois aprendemos. E este aprendizado foi de agir-pensar e pensar-agir. Simultâneo e recíproco. As mãos e os pés ensinando ao espírito o que era preciso! A mente convencendo o corpo do que era possível! Uma pessoa puxando a outra e o grupo caminhando. Muitas vezes guerreando, mas principalmente colaborando, assimilando e crescendo3. Em nome de uma ficção qualquer, incorporada num xamã, rei ou filósofo, perseveramos em números vastos, embora as certezas fossem poucas e mudassem conforme lugar e tempo. Os caçadores-coletores que migraram para o desconhecido fiaram-se em pouco mais do que numa esperança: a palavra de um indivíduo que apontou (sem provas) e disse “o jeito é ir por ali”. E fomos, embora muitos tenham ficado. Os soldados em Stalingrado obedeceram5: “Nenhum passo atrás”. E vencemos os nazistas, embora tantos hajam morrido.
Sem certezas absolutas. Com muita dúvida mesmo. Fomos. Vencemos. Porque era o jeito!
Em pouco4 tempo ocupamos todos os lugares, com muito sofrimento, mas atingimos um patamar onde objetivamente existem soluções para todas aquelas necessidades básicas: é possível que todo mundo more e alimente-se dignamente, viva seguro e namore de vez em quando. É verdade que existem as elites que açambarcaram os recursos, convencendo a maioria a entregar as riquezas de seu tempo, a troco de bem pouco. Mas antes nem recursos existiam, fora paus e pedras! Nem ideias havia sobre riquezas, tempo e revoluções. No imenso curso da história, “esta” humanidade já realizou o mais difícil (começando por também não ser extinta). Em termos muito, muito amplos, há razão para otimismo… se não pararmos!
O grande poeta Leonard Cohen6 compôs a canção “On That Day”, na qual um novaiorquino “médio” e até meio bobo, vê o atentado de 11 de Setembro e não entende nada. Não sabia das motivações (religião, ódio, vingança, justiça). Apenas viu que havia perigo e, no mesmo dia, apresentou-se ao serviço (quartel de bombeiros ou do exército). Sem acesso aos grandes planos ou ideologias, na dúvida trouxe o que tinha: seu tempo e suas mãos…
Antes das várias orações diárias, os muçulmanos precisam purificar-se, fazendo as abluções. Limpam sequencialmente as mãos (pois estas cuidam do corpo), a boca e as narinas (para delas virem a boa palavra e o bom alento), o rosto e os olhos (bem mostrar-se ao mundo e vê-lo de modo puro), os braços (ligam as mãos ao corpo), as orelhas (ouvir com perfeição) e os pés (conduzem todo o corpo pelo mundo). A oração como ação e prática material além (ou antes) de espiritual.
Na canção “A Messe é Grande”, dos freis portugueses Miguel de Negreiros e Acílio Mendes7 entoa-se: “A messe é grande e o pão é abundante: Venham mãos repartir! // Muitos têm fome e sede de justiça: Quem lhes quer acudir? // A messe é grande e falta muita gente! // É preciso rogar Ao Deus da messe // que mande operários Para o mundo salvar. ” Novamente, um canto-convocação; não contemplativo, mas inseparável de um estar-agir no mundo.
As grandes religiões ou mitologias ou ideologias, como ficções condutoras (podendo levar à emancipação ou à escravidão), são formalmente8 os grandes chamados para a ação organizada.
Sempre o agir do ser humano, que ainda se acostuma a viver em grandes grupos – mas que jamais esteve parado.

Até agora só disse obviedades, não é?
Pois então compartilhemos este mistério, cá entre nós:
– Se a coisa deu certo há tanto tempo e em tantos lugares, porque diabos não conseguimos sair do grupo do Zap?
Humildemente creio que nunca, jamais precisamos da utópica certeza, do caminho limpo, do líder imaculado, da luz maravilhosa… noutras palavras, da mais-que-perfeita análise político-econômico-ético-religiosa em versos alexandrinos ou ritmo de funk. As necessidades são as mesmas… é preciso decidir pela ação.
Se quiser, baixe o PDF. Vamos ler um pouco sobre práxis em Marx9 ou em Paulo Freire10: a estreita relação entre uma interpretação da realidade e da vida e a consequente prática que decorre daí, levando a uma ação transformadora. Sem separar teoria/reflexão de ação/transformação do mundo. Sem esperar uma pela outra. Retroalimentam-se e melhoram uma à outra.
Mas baixe para o celular e vai lendo no caminho, viu! Caminhar é o que interessa.
Melhor ainda (pois “é o jeito”): vamos adotar por hoje uma ideia/análise dentre tantas dos grupinhos – e nem precisa ser bonita. Mas de qualquer jeito vá para a rua, para a passeata, para o comício. Compareça e discuta na reunião do condomínio ou da associação ou do clube. Aborde gente na rua, no transporte, no comércio. Leve mais alguém. Convença uma pessoa por dia, basta uma – pois caminhar é o que interessa.
Primeiro, permita que sua ação ensine ao seu pensar… depois você pode mudar de análise, uai!
Ah, mas e a “militância digital” não tem importância? Tem, mas isto você faz com uma das mãos, enquanto a outra segura a bandeira!

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, promotor de Justiça e membro do TRANSFORMA MP.


  1. Tudo digitalizado e acessível na Biblioteca Nacional – aproveite: https://bndigital.bn.gov.br/acervodigital
  2. Pelo menos 21 espécies, segundo o Smithsonian: https://humanorigins.si.edu/evidence/human-fossils/species
  3. Os primos champanzés combatem grupos rivais, preparam emboscadas… mas os europeus possuem uns 3% de DNA neandertal (ou seja, entre as brigas, amor se fez).
  4. Da revolução agrícola até agora são uns 12 mil anos – num planetinha onde a vida surgiu há 4 bilhões de anos e que já passou por cinco extinções massivas.
  5. A ordem nº 227, do Comissariado de Defesa do Povo, a partir de 1942: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_n%C3%BAmero_227
  6. Antes que alguém reclame, digo logo que ele simpatizava com o sionismo conservador, sim – o que não muda em nada a maravilha de seus versos. Aprendamos a separar pessoa de obra.
  7. https://www.capuchinhos.org/images/musica/cd_k7/vive_da_palavra/a5_a_messe_grande.pdf
  8. Yuval Harari, em “Sapiens” bem divulga esta teoria que aqui demais simplificamos – embora não seja o autor originário, mas o mais didático.
  9. Na “Segunda Tese sobre Feuerbach” (googla que acha)
  10. No “Pedagogia do Oprimido” (idem, né?)

O cavalo no telhado e a Constituição

Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense

Além das investidas individuais predatórias contra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, tem havido iniciativas legislativas que ignoram a Constituição e os compromissos do Brasil com a Agenda 2030 da ONU

O cavalo subiu no telhado. Não foi um gatinho, foi um equino. Um cavalo zaino, de pelagem castanho-escura, foi resgatado de cima do telhado em que esteve ilhado por quatro dias durante a trágica enchente que abateu o Rio Grande do Sul. As aflitivas imagens do resgate tornaram o animal um símbolo da tragédia ambiental e da resistência do povo gaúcho.

Enquanto isso, a Constituição Federal está completando 36 anos. Promulgada em 5 de outubro de 1988, a Carta é celebrada por reconhecer vários direitos e garantias, essenciais para o cidadão e para a sociedade. Mas há um em especial que deve ser destacado pela clareza e contundência com que foi enunciado.

A Constituição proclama que temos, todos, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225). A sadia qualidade de vida, de todos os seres humanos, é um direito que impõe ao Poder Público e à coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

A primeira referência à legislação ambiental no país deu-se, no interesse da Coroa, com o Regimento do Pau-Brasil, em 1605. As duras punições, que iam do confisco à pena de morte, não foram suficientes para proteger as florestas da sanha predatória.

Em 2024, a escalada de eventos extremos — secas, enxurradas, inundações, deslizamentos, assoreamentos de cursos d’água, nuvens de poeira, incêndios florestais, desmatamentos, pulverização de produtos extremamente tóxicos sobre povoados, campos e florestas, recordes de temperaturas e baixa umidade — demonstra as consequências da deliberada ação humana contra o meio ambiente. Por vezes, a catalogação do direito como fundamental não se mostra suficiente para impor a proteção ambiental em face de interesses imediatos concretos.

Além das investidas individuais predatórias contra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, tem havido iniciativas legislativas que ignoram a Constituição e os compromissos do Brasil com a pauta civilizatória global representada pela Agenda 2030 da ONU.

Em 2021, a Lei nº 14.285 alterou o Código Florestal, permitindo a redução de áreas de proteção permanente nas margens de rios urbanos. A medida ameaça o meio ambiente e as pessoas, agravando os efeitos de enchentes. A lei é questionada no Supremo Tribunal Federal  (ADI 7146) por ferir o regime constitucional de repartição de competências. Leis ambientais de municípios e estados somente poderiam aumentar o rigor das normas nacionais, jamais reduzi-lo. 

Em 2022, a Lei nº 14.515/22 autoriza que empresas do setor agropecuário criem o próprio programa de defesa sanitária, atividade em que o Brasil era referência mundial. A lei investe contra o Estado e o poder de polícia nos temas ambientais e de saúde pública, jogando contra a credibilidade da produção brasileira na disputa por mercados mais exigentes. Por atribuir aos trabalhadores das indústrias e estabelecimentos agropecuários a responsabilidade de fiscalizar, aferir e certificar a salubridade de produtos e procedimentos do processo produtivo, reduzindo a participação do Estado, a lei está sendo questionada no STF (ADI 7351).

Em 2023, a Lei nº 14.785 alterou a regulação para aprovação, comercialização e uso de agrotóxicos. A lei que facilita o uso de produtos extremamente tóxicos, ignorando o alerta de cientistas e de instituições, nacionais e internacionais, para as consequências arrasadoras na saúde e no meio ambiente está sendo questionada no STF (ADI 7701). O tema do estímulo aos agrotóxicos, por meio da concessão de isenções tributárias, também é objeto de questionamento no STF (ADI 5553).

Em meio à fumaça, o inusitado pedido de ministros do governo brasileiro à União Europeia de adiamento da norma que exige commodities livres de desmatamento expõe a preocupação com as consequências do descaso com os compromissos ambientais. Certamente, depõe contra a pretensão brasileira de ser reconhecido como líder na pauta climática.

A anedota do gato no telhado retrata o raciocínio que ameniza a péssima notícia, homeopaticamente dosada: subiu, escorregou, caiu e, infelizmente, morreu. No Brasil de 2024, quem subiu foi um cavalo.

O histórico recente do STF é de sintonia com a pauta que envolve a adoção de medidas ousadas, abrangentes e essenciais para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsividade das instituições políticas. Assim, tem freado as investidas predatórias. A Corte está sendo convocada a concretizar o compromisso do Estado brasileiro com a Agenda 2030.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.