Engels e Kautsky, na obra “O socialismo jurídico”, expuseram meticulosamente a impossibilidade de emancipação da população trabalhadora, na sociedade capitalista, por meio do Direito. Para os grandes teóricos, o Direito, fruto da forma social da qual faz parte, só pode mantê-la tal como é — para isso existe —, e jamais poderá contrariar seus principais interesses. O Direito é, em última análise, a forma jurídica da sociedade capitalista.
Ilusões no Direito para a busca de uma sociedade justa e igualitária devem ser prontamente abandonadas. Mas isso não nos deve impedir de denunciar, da forma que for possível, as violações da lei pelos poderes que, ao menos — na verdade só — abstratamente, teriam a tarefa de defender o regime democrático e o respeito à lei. O sistema de Justiça, que tem o honroso papel de fazer cumprir a Constituição, vem falhando miseravelmente no Brasil, corroendo a já por demais combalida democracia.
Da prisão dos réus da Boate Kiss A acusação contra os réus no conhecido processo criminal, por centenas de homicídios (242) por dolo eventual, e por outras centenas (636) por tentativa de homicídio com dolo eventual (coisa que sequer existe), é juridicamente impossível. Qualquer professor de Direito Penal (nem é preciso fazer citação de nenhum deles) ensina que dolo eventual é uma “espécie de dolo”, ou seja, a consciência e vontade de atingir determinado resultado típico.
Na modalidade eventual, o agente “conforma-se com o resultado” como algo possível e, mesmo assim, age. Diversamente do comportamento culposo, no qual o resultado é previsível, mas não quisto, no dolo eventual o agente quer, ainda que subsidiariamente, o resultado. Um dos principais exemplos dados nas universidades é o do atirador que dispara (a depender do tipo e quantidade de projéteis) contra um grupo de pessoas. Ele pode atingir alguma delas ou não. Mas é óbvio que quem atira contra várias pessoas age com a finalidade de atingir o resultado morte, ainda que ela possa não acontecer — para o agente é indiferente.
No caso da boate, não se pode concluir que os réus, ao não tomarem os devidos cuidados com a produção do show — o que fazia do resultado algo previsível —, de qualquer forma que se possa pensar, queriam o resultado morte ou aceitaram sua ocorrência. E o que é pior: que “tentaram matar” os sobreviventes. No exemplo do atirador, ao atingir uma das pessoas do grupo, ele responderia por um homicídio com dolo eventual do falecido e pela tentativa dos outros 20 que estavam no grupo. Não faz sentido.
Mas ilegalidade tão grave — ou pior — foi a decisão do ministro presidente do Supremo Tribunal Federal de determinar a prisão imediata dos réus. Não porque sua prisão provisória é necessária, mas para a (totalmente inconstitucional) execução provisória da pena (artigo 492, I, “e”, CPP). E pior ainda: pela “gravidade” e “reprovabilidade” dos crimes e credibilidade das instituições. Tudo que já foi rechaçado pelo Plenário da corte (também não é preciso citar os acórdãos; são todos de conhecimento público). Como pode o presidente do tribunal decidir monocraticamente contra jurisprudência pacífica do Plenário, e com evidente supressão de instância?
Dessa forma, é cristalino que não são só alguns integrantes do Poder Executivo que representam “risco à democracia”. Os que se dizem seus defensores deveriam se preocupar com o avanço do Poder Judiciário rumo a um estado autoritário.
Da busca e apreensão contra o ex-governador Ciro Gomes O conhecido Ciro Gomes, seu irmão (um senador da República) e outros investigados foram alvo do cumprimento, pela Polícia Federal, de mandados de busca domiciliar por fatos ocorridos há mais de sete anos, em razão de suposta propina recebida em decorrência do processo de licitação para a construção da Arena Castelão, utilizada na Copa do Mundo do Brasil.
Sem adentrar o mérito do caso, a primeira coisa que salta aos olhos é uma medida invasiva dessa ordem tanto tempo após o suposto fato. O mandado de busca domiciliar (como qualquer medida cautelar, excepcional) só pode ser utilizado quando não houver outra forma de se buscar as provas de crime (pelo princípio da inviolabilidade de domicílio).
Pior: a prova que se tem contra os investigados é (ora vejam só) a palavra de delator premiado. É dizer, uma pessoa qualquer diz que esse ou aquele praticou um crime e está autorizada a entrada forçada, pelo Estado, em domicílio particular. É algo que esvazia o princípio constitucional, só passível de afastamento, segundo a Constituição, pela ocorrência de fatos graves como flagrante delito, socorro e desastre.
Ainda pretendo examinar os fundamentos da longa decisão, em data próxima.
Passou da hora de os autointitulados defensores da democracia começarem a exigir, de forma clara e veemente, a abolição dessa aberração jurídica chamada “delação premiada”. Pode ela voltar-se contra qualquer um, a qualquer momento. É um poderosíssimo instrumento de perseguição política.
E muitos aplaudem tais abusos judiciais quando praticados contra inimigos. Toda e qualquer ilegalidade praticada pelo Poder Judiciário deve ser combatida, ainda que a vítima seja pessoa de quem não gostamos. Os direitos e as garantias fundamentais não valem só para quem temos simpatia. É preciso denunciar os abusos judiciais que vêm sendo praticados contra aliados de Jair Bolsonaro (quem me conhece sabe o que eu penso da pessoa), como nos casos de Daniel Silveira e Roberto Jefferson.
Em 2017, fiz uma breve reflexão sobre abusos judiciais e jamais imaginei que, quatro anos depois, veria abusos ainda piores. Pelo andar da carruagem, a democracia vai mesmo para o ralo. O Direito — como o conhecemos — está em profunda decomposição. Quando ilegalidades se tornam tão costumeiras, é difícil imaginar que as coisas podem melhorar de forma pacífica.
Bem que Engels e Kautsky disseram: o fim do Direito é sua completa superação. É a sua morte como forma jurídica de uma sociedade egoísta, individualista, excludente e insensível.
O trágico é que muitos sofrem as graves consequências dessa morte lenta e gradual.
Gustavo Roberto Costaé promotor de Justiça em São Paulo, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador — Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia — ABJD.
Em 04 de maio de 2020 saiu o nosso artigo1 “Agonia das Listas”. Anunciamos dois itens finais mas entregamos apenas um: o 73º daquela lista desassossegadamente urgente. Agora, avançamos na promessa, com alguns enfeites apropriados para a época e mantendo a mesma introdução d’antanho – podem googlar sem pena.
Seguem as novas obviedades (sempre ao alcance dos dedos), na forma de presentinhos embalados nestas reflexões de Natal:
…
74. O Presente da Música! A principal canção natalina brasileira é uma música de protesto contra desigualdade social, ideologia consumista e abandono da juventude. É “Boas Festas” (ou “Anoiteceu”) de Assis Valente, que nos martela a consciência desde 1933. Não cante como se fosse numa língua obscura!
75. O Presente das Estatísticas! COVID, com mais de 5 milhões de mortos2 é a 6ª pior pandemia da história em número de mortos. Vem depois de: Peste Negra / Bubônica (séc. XIV), Gripe Espanhola / era gripe, mas estadunidense (há 100 anos), Praga de Justiniano / Bubônica de novo (séc. 6º), AIDS / HIV (começou há 40 anos) e a Terceira Praga / Bubônica de novo, mas na ásia (sécs. XIX e XX). Pandemia nunca foi novidade; controle pela ciência, sim.
76. O Presente da História! Sabem qual evento pandêmico não é registrado? O extermínio dos povos originários das américas, que sofreram de uma só vez TODAS as pragas trazidas pelos europeus: de 20 a 100 milhões de mortos (difícil estimar), além das culturas apagadas. Afinal, este extermínio foi, no mínimo, um acidente útil ao projeto de colonização. O que mais se aproxima de um “registro” disto é o principal feriado estadunidense: o “Dia de Ação de Graças”.
77. O Presente da Leitura! Mateus 10:34-36: “Não penses que vim trazer paz à terra, não vim trazer a paz, mas uma espada. Pois vim para jogar um filho contra seu pai e uma filha contra sua mãe e uma nora contra sua sogra e os inimigos de um homem serão os de sua própria casa.” Pois é…
78. O Presente da Matrix! A ideologia vive e morre conforme as relações sociais e econômicas concretas de sua época. A crítica sozinha não apressa a mudança destas relações, mas expõe como a ideologia apenas dissimula a verdade – sempre em favor da classe dominante. Antes da mudança, vem a consciência do que existe para mudar. Pachukanis e Lassale sabiam das coisas!
79. O Presente das Promessas para 2022!: emagrecer, alfabetizar alguém, parar de fumar, brigar com neofascistas, malhar perna, sindicalizar alguém, ler coisas do desconforto, gozar mais/com/sem ou apesar, sair de alguma rede, não se ajoelhar e… fazer melhores listas.
80. O Presente da Netflix! Quem gosta de citar Martin Luther King (“A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça por toda parte”) e Anakin Skywalker (“Na verdade, os Jedi são incentivados a amar. Amar incondicionalmente todas as criaturas.”) pode citar Che Guevara (“Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros.” e “Deixe-me dizer-lhe, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor“)
81. O Presente daquela Nova República! O bom velhinho Tancredo Neves disse “O processo ditatorial, o processo autoritário, traz consigo o germe da corrupção. O que existe de ruim no processo autoritário é que ele começa desfigurando as instituições e acaba desfigurando o caráter do cidadão”. Lembrem do diplomata José Jobim, que denunciava os assombrosos desvios de Itaipu e foi “suicidado” pelo governo militar (inclusive enforcado na mesma “pose” que Herzog). Logo, quem defende Ditadura também defende…
82. O Presente da Originalidade! Quando reclamar do consumismo ao redor ou de que as pessoas cada vez mais valorizam o “ter” em lugar do “ser”, vá logo ao original: “A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas.” (Karl Marx, outro bom velhinho)
83. O Presente da Sabedoria! Conforme-se: vacina é todo ano, o resto da vida. Considere um presente da ciência (e é mesmo).
84. O Presente da Geopolítica lá! Os USA-and-ABUSA dominam a cotação de sua moeda. A fidúcia mundial tem como padrão o petrodólar, conforme o sistema internacional de pagamentos Swift. O Iraque pensou em implantar outro padrão independente – mudou de governo e de idéia acusado de ter armas de destruição em massa… Depois, os BRICS (Brasil, Russia, Índia, China e África do Sul) cogitaram nisto – Brasil e Índia mudaram de governo e de idéia…. Agora Russia e China começaram a negociar em yuan… mas eles têm 5G e mísseis hipersônicos, né?
85. O Presente da Geopolítica aqui! Guerras foram travadas por menos do que as promessas do pré-sal. Aqui bastou derrubar um governo e aprovar a Lei 13365/2016 e, para rematar, tocar o atual Projeto de Lei 3178/19 – ambos com autoria de José Serra, solerte Senador.
86. Presente da Antropologia Ululante. Lembre de que Jesus foi minoria, imigrante, marginalizado, perseguido e, de tão teimoso, acabou virando preso político, foi tratado publicamente como “bandido”, depois torturado e morto. Agora, loiro de olhos azuis nunca foi!
87. Presente Para Um Natal em Família: Se em Gênesis 4:3-5 Caim ofereceu o que tinha (pois era agricultor), tal como Abel (pois era pastor), sem que houvessem explicado antes sobre as “primícias” nos ritos sacrificiais (só depois que vêm as regras de Números, 18:12,17 e Levítico 2:1-11) qual a razão de deus haver escolhido um e não o outro? Afinal, onisciente era ele e não os humanos! Eles haviam “herdado” a culpa da desobediência dos pais, mas eles próprios não haviam desobedecido norma alguma! Complicado valorar as condutas atuais com aquele desprezo à anterioridade das leis e à intranscendência das penas típico da idade do bronze.
88. Presente do Merchã Freudiano: Se você der um sabre de luz de verdade para seu filhinho, quem ele matará primeiro? (vale para outras armas)
89. Presente da Coerência Apestante: Quem reclama destas vacinas já tomou muitas, desde criança, quase todas fabricadas com insumos da China. Repare!
90. Presente da Convivência Saudável: Não posso obrigar alguém a vacinar-se, mas não sou obrigado a conviver com quem aceita o risco de ser celeiro de novas cepas para contaminar-me e matar a mim e à minha família. A legislação já está cuidando disto (e o vírus também).
91. Presente da Hagiografia: Se vos sentis pessoas heroicas por não vos vacinardes, segui o exemplo dos santos mártires e aceitai plenamente as consequências com resignação e fé – começai pedindo demissão e ide pregar no deserto a Palavra revelada em Levítico 13:45-46; Números 5:2; 2 Reis 7:3 e 15:5 (ou pelo menos num vlog).
92. Presente das Coisas nos Devidos Lugares: Aquele miliardário cantor / jogador que sofreu um “golpe da barriga”, nada tem a ver com as mais de 30 mil crianças atualmente abandonadas (números do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça). Desde o começo da pandemia houve aumento de 80% dos casos de abrigamento só no RJ, segundo o Ministério Público carioca. Vamos direcionar melhor a solidariedade em 2022.
93. Presente da Automação de Cada Dia: Quando teu patrão encontrar um robô ou programa que te substitua, ele escolherá o prazer de “gerar empregos” ou o legal e velho lucro?
94. Presente do Nobel: Já que os maiores economistas do mundo (além da ONU e do Bill Gates) defendem a renda universal, como dizer que é apenas “coisa de comunista”?
95. Presente do Marketing Absoluto: Uma pastora mexicana autointitulada “Comandante Supremo de los soldados de Cristo” disse que sexo é só para procriação, que bastam 2 minutos para o marido inseminar a esposa e que qualquer coisa além disto é “vício, perversión y socialismo”! Então, antes de ir pra cama, arrepie cantando a Internacional, baixinho, ao pé do ouvido…
96. Presente das Fábulas de Esopo: O escorpião não estava moralmente “errado” quando picou o sapo que o ajudava a atravessar a lagoa, matando a ambos; ele apenas continuou sendo quem sempre foi; o sapo foi quem acreditou na conciliação de classes (não estamos falando de amphibiaX arachnida, viu!).
97. Presente da História como Tragédia: Se primeiro veio a farsa e a gente não aprendeu, pelo menos que se prepare e garanta a proximidade das organizações populares, pois sempre que a esquerda fez aliança com a direita, esta é quem acabou governando e, sem pudores, golpeando.
98. Presente da Vivandeira dos Quartéis: “O Senhor Getúlio não deve ser candidato, se for candidato não deve ser eleito, se for eleito, não deve tomar posse, se tomar posse não pode governar” (Carlos Lacerda, 1950). Serviu para 1963/1964, depois para 2014/2015….
99. Presente de Maradona. Quando os “Fundos Abutres” atacaram sua economia (já mal das pernas, inclusive por más escolhas governamentais) a presidenta Cristina Kirchner foi às ruas conclamar o povo, os sindicatos e as associações. Obteve apoio, em 2014, dos BRICS. Mobilização praticamente instantânea. Povo e países insurgentes não interessam a especuladores. A Argentina mudou de governo e mudou de idéia (com acusações de corrupção etc)…
100. Presente dos Amigos do Saber: Aristóteles era Aristóteles, mas também defendia escravidão, guerra de conquista, aristocracia e patriarcado como as melhores bases possíveis da sociedade. As soluções não aparecem antes dos problemas desenvolverem-se completamente, tampouco as idéias caem prontas do céu! Aliás, de que céu estamos falando mesmo?
101. Presente do Tio Mark. Tecnologia barata, boca-a-boca das redes e crowdfunding abriram espaço para obras de arte fora do cinemão, das grandes galerias e editoras. Mas também trouxeram “Sharknado 2”, Romero Brito e a autoajuda de baixo impacto!
102. Presente Divino Meritocrático. Jeová ou Iemanjá seriam mais subornáveis com promessas de Natal ou de ano-novo? Não confunda Panteão com Panetone.
103. Presente da Boa Nova: Talvez o Messias já tenha nascido pela segunda vez (versão cristã; ETA: 2.000 anos) ou pela primeira vez (versão judaica; ETA: 5.000 anos). Mas se ele fosse aquela criança imigrante, cujo corpinho apareceu na praia de Bodrum, Turquia, dia 02/9/2015 e que foi a imagem mais impactante do século até ser esquecida logo depois?
Ficamos no número 103 menos por motivo numerológico-cabalístico e mais pelo fato de que, na internet, embora jamais se haja escrito nem lido tanto, é impossível prender a atenção após 4 páginas. Se chegou até aqui, receba o nosso mais sincero voto de feliz hoje, sempre!
O Coletivo Transforma MP manifestou-se nesta quinta-feira, 23, sobre as medidas arbitrárias do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luís Fux, ao contrariar a liminar monocrática de Desembargador do Primeira Câmara do Tribunal do Rio Grande do Sul, que impedia o cumprimento imediato de prisão aos condenados no conhecido caso da Boate Kiss de Santa Maria/RS pelo Tribunal do Júri.
De acordo com a instituição, o Ministro Fux fere direito ao habeas corpus e ressuscita as casuísticas e arbitrárias prisões não cautelares provenientes de condenações ainda recorríveis, como fantasmas irresignados com as próprias decisões do Supremo Tribunal Federal.
“Esse populismo punitivista proveniente de quem deveria proteger o direito de liberdade merece repúdio veemente: ao tratar os acusados como condenados definitivos, não apenas viola o princípio da presunção de inocência, mas também destrói o que lhes resta de dignidade humana: são meros objetos na mão de uma política penal seletiva, feita por magistrado voluntarista, em busca de aplausos de leigos e da uma imprensa pouco crítica.”
“…a atitude do Presidente do Supremo Tribunal Federal – alheio às graves funções do seu cargo -, está na mesma direção de alguns “atos antidemocráticos” que muitos têm afirmado veementemente combater.”
A instituição teve as suas missões delineadas pela Constituição Federal de 1988, tendo como finalidade defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.
O Dia Nacional do Ministério Público foi instituído em fevereiro de 1993 por meio da Lei nº 8.625, também conhecida como a Lei Orgânica do Ministério Público.
Apesar de toda a estrutura institucional, o Ministério Público ainda precisa evoluir para que continue sendo um instrumento para a garantia dos direitos fundamentais de todas as pessoas, conforme determina a Constituição Federal.
Desde sua fundação, em 2016, o Coletivo Transforma MP tem lançado um olhar crítico sobre o papel e a atuação do Ministério Público brasileiro, sempre com foco no irrestrito respeito aos direitos humanos e na defesa dos direitos das pessoas vulnerabilizadas, com vistas à efetivação de um ideal de igualdade material e de respeito à diversidade, em constante e permanente interlocução com a sociedade.
Nesse período, diversas notas técnicas e manifestações foram emitidas, revelando o posicionamento da entidade, denunciando os desmontes sociais ocorridos no país e questionando a atuação do sistema de justiça. Ações foram propostas na defesa da democracia e dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal.
O Coletivo Transforma MP parabeniza e agradece a todes servidores, membres e juristas que lutam diariamente para promover uma transformação necessária na entidade. Que possamos continuar juntos e firmes para enfrentar o ano de 2022 em prol de uma sociedade mais justa e solidária.
A exploração, o preconceito, a violência e o sofrimento físico e moral de milhões de trabalhadoras sempre estiveram presentes na história do Brasil.
Na literatura, Carolina Maria de Jesus, em sua obra mais importante “Quarto de Despejo”, joga luz à realidade da vida sofrida das moradoras das comunidades, mais precisamente na Favela do Canindé, na cidade de São Paulo. Mãe solo, negra, catadora de recicláveis e lavadeira, Carolina retratava em seu diário sua vida de dificuldades e lutas. Nessa obra, ela descreve a exaustão diária ocasionada pelo excesso de trabalho, pela invisibilidade e pelas humilhações, escancarando sua desvalorização na sociedade, como mulher negra e catadora. Também faz críticas ao sistema desigual em que era obrigada a viver, sempre insistindo em não aceitar tal realidade miserável. Ela sonhava em dar dignidade aos seus filhos e morar em uma casa de tijolos. Uma vida de luta e resistência.
Carolina inspira muitas mulheres e assim perpetua seu legado de vida, de luta e de escrita. E inspiradas na leitura de “Quarto de Despejo”, quase duzentas mulheres – Carolinas – negras de todos os Estados da federação emprestaram suas vozes para a construção do livro “Carolinas”, FLUP, Bazar do Tempo.
“Carolinas” foi forjado a partir de um projeto idealizado pela FLUP – Festa Literária das Periferias – em parceria com o Ministério Público do Trabalho e com outras instituições, contando com a participação, além das autoras publicadas, de jornalistas, escritoras e escritores.
O projeto teve como ponto de partida um processo de formação que se iniciou no dia 12 de maio de 2020 e terminou no dia 19 de agosto de 2020, com encontros semanais, totalizando quinze encontros, para debater Carolina Maria de Jesus, sendo que o ciclo foi chamado de: “Uma revolução chamada Carolina”.
Os encontros ocorreram por meio de redes sociais e plataformas digitais e, conforme descreveu Júlio Ludemir (organizador e diretor da FLUP) no Prólogo do livro, “criou-se ali um emocionante grupo de terapia, em que o acolhimento era a palavra-chave. Embora jamais tenham tido a oportunidade de tomar uma cerveja juntas, o Zoom não escondia o brilho nos olhos de cada uma delas durante a escuta das companheiras. Era como se estivessem ouvindo o próprio relato. Ou então a história de uma familiar muito próxima. Nunca a literatura brasileira traduziu com tanta precisão a palavra Ubuntu, com a qual uma das etnias do povo sul-africano exprimiu seu sentimento de solidariedade”.
Neste espaço, adiante, rendo homenagens a todas as Carolinas do livro – trazendo pequenos excertos de algumas de suas vozes:
Nair Camilo Faria, “Invisível aqui dentro da minha casa”: “Eu sou casada e tenho cinco filhos mas quero dizer que mesmo assim me sinto invisível e desprezada. Eu saio para trabalhar e ninguém vê, e quando chego do trabalho ninguém me vê também nem para perguntar como foi o meu dia…”.
Andréia Gomes, “Instinto de sobrevivência”: “O Homem Sem Nome pensa na sua maloca, nas histórias das pessoas com quem anda pelas ruas e sente vontade de chorar. Quem vai querer ler as nossas histórias? Sabem que com os abismos mais esgarçados encontrar olhos que queiram realmente ver e sentir está mais escasso”.
Camila de Oliveira Silva, “Entre a rua, este quarto e o ser”: “Alguma vez já quis pedir ao dia que me levante. Não sei seguir por essa hora em chamas, nesse amarelo aberto que cai sobre o dia, que não me socorre. Às vezes, antes de ir à rua, me pego querendo ir direto para a noite”.
Jamile Menezes da Silva, “s/d”: “E o cabelo… É, sobre ele teria que fazer um registro específico. Mas, resumindo, recordo que os procedimentos químicos começaram aos 5 anos. E só me livrei deles aos 25 anos. Eu era a típica criança que chorava durante o processo de alisamento. Ardia. Doía.”.
Lilian Rocha, “Chuto pedra”: “Carolina, retorno para a minha cidade com a certeza de que os meus pés poderão ainda ter cheiro de barro, mas agora chuto a desgraça, a falta de infância, o descrédito, a pobreza, a graxa, a cachaça. A partir de amanhã, só chuto bola, levanto taças e ganho medalhas. Seguirei a minha intuição, não desistirei do meu sonho, assim como você”.
Que nenhuma Carolina desista de seu sonho.
*Eliane Lucina é Procuradora do Ministério Público do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP
O Coletivo Transforma MP, divulgou uma nota nesta sexta-feira, 10, em apoio e solidariedade ao Procurador da República de Mossoró/RN, Emanuel de Melo Ferreira.
A Corregedoria Nacional do Ministério Público abriu um procedimento disciplinar instaurado contra o procurador, em consequência de uma publicação em rede social – em claro descompasso com o direito constitucional de manifestação. Igualmente, o mesmo é alvo de procedimentos disciplinares a partir de Ações Civis Públicas manejadas no exercício de suas normais atribuições – que incluem e até pressupõem a possibilidade de crítica às políticas públicas de quaisquer Órgãos e Entidades da União, inclusive o próprio Ministério Público.
Em nota o Coletivo Transforma MP enfatiza que a atuação dos Órgãos Disciplinares (Corregedorias Geral e Nacional) desviam-se de sua missão constitucional, mostram-se antidemocráticas e com viés político e, especialmente, afetam as garantias constitucionais asseguradas aos membros do Ministério Público. Estas são instrumentos essenciais para a defesa do Estado Democrático de Direito – exatamente pela vigilância corajosa por parte dos Procuradores da República, dos Procuradores do Trabalho e dos Promotores de Justiça.
Outro fato importante destacado no documento é que a entidade de fiscalização não vem se incomodando com postagens conservadoras, agressivas e perigosamente antidemocráticas divulgadas de maneira muito mais incisiva por outros tantos membros do Ministério Público, notoriamente veiculadas nas mídias sociais.
A Constituição tem palavras ditas, mal ditas e um grande fosso, onde se guardam as não ditas.
Quando o assunto é chão, o Sistema de Justiça berra o direito à propriedade privada, sussurra o direito social à moradia e se cala, impotente, diante dos artigos que falam de uma tal função social da propriedade.
Que função é essa, afinal? Para quem funciona a propriedade privada?
Há quase 1500 pessoas, hoje, na cidade de Valinhos, interior do Estado de São Paulo, fazendo palavras, casas, horta, música, festas, lágrimas, ruas e arpirellas do que foi silenciado nos cantos da Constituição nunca lida.
Chego no acampamento que se enuncia na negação da morte: “Marielle Vive”, se lê no portão que se abre. Paro diante de um mural grafitado com o sorriso da vereadora carioca brutalmente assassinada e junto com minha colega, me apresento: somos as Promotoras de Justiça que estão há um ano, em reuniões virtuais, tentando buscar alternativas autocompositivas para a ocupação. Somos do NUIPA – Núcleo de Incentivo em Autocomposição do MPSP.
Nos abraçam com os olhos.
O MST desta região é liderado por um casal de educadores que já morou no acampamento e que, hoje, mora na periferia de Campinas com o bebê de 2 anos. Eu conhecia seu chorinho das reuniões virtuais enquanto esperava o colo da mãe.
Olho ao redor e vejo senhoras chegando com suas cadeiras e se colocando em uma roda. Uma roda de espera. No centro, uma cesta gigante de verduras e legumes e uma caixa d’água.
É sobre esperas, afinal, que vamos todos falar.
A espera das crianças por computador para assistirem aulas. A espera pelo tratamento do braço que dói, da coluna que entortou. A espera de que sejam reconhecidos como moradores de Valinhos e possam receber cestas básicas. A espera do transporte escolar. A espera para serem ouvidos pelo Sistema de Justiça. Por mim, por nós.
Enquanto esperam por chão, água e dignidade, plantam, falam e bordam.
Assim como as mulheres chilenas, na década de 70, que passavam mensagens secretas em arpirellas – bordados de tecidos coloridos -, contra a ditadura de Pinochet, as mulheres do acampamento aprenderam que as esperas não são possíveis em silêncio. Só é suportável esperar nas letras. Letras faladas, escritas e costuradas.
Os tecidos coloridos nos gritam sonhos. Respondem o que é e para quem serve a tal função social da propriedade que esqueceram de explicar nas aulas de direito. Em fragmentos remendados de pano colorido, vejo famílias felizes vivendo em comunidade, em um dia de sol, trabalhando na terra cercada de área preservada, em uma casa colorida por flores, com água pra plantar, beber e banhar.
“Está vendo que bordei pedrinhas brilhantes na caixa d´água? É porque água vale como diamante”, me explicou a Marielle bordadeira.
Durante os dois anos de pandemia, faltou água no acampamento de Valinhos. Com a intervenção do NUIPA, a Prefeitura aumentou a frequência e regularidade da entrega de caminhão pipa, mas o problema ainda espera solução.
Nas várias reuniões virtuais feitas sob nossa intervenção, a espera pelo chão e pela água cedia, muitas vezes, para uma espera mais urgente: a de ter sua existência reconhecida.
“Essa área é muito valorizada do ponto de vista imobiliário, não tem cabimento cogitar de um assentamento popular aqui”; “não podemos estimular uma ‘favelização’ da cidade”; “essas pessoas não nasceram em Valinhos, precisam voltar para onde vieram”; “se eles criaram o problema com essa invasão, que arquem com as consequências”; “não podemos agir ideologicamente, temos que ser técnicos”…
É assustadora, para não dizer cínica, a facilidade com a qual naturalizamos a manutenção da exclusão social, que passa a ser vista como uma postura “técnica”, “não ideológica”, ética e esteticamente aceitável.
A reforma agrária, a segurança alimentar, o direito social de moradia e a função social da propriedade, tão “tecnicamente” previstas na Constituição Federal como o direito de propriedade privada, anuncia cidades justas e também bonitas, porque não há beleza nos 19 milhões que, hoje, passam fome nas ruas do Brasil.
Quem andar pelo acampamento Marielle Vive não verá mansões cercadas de muros e seguranças privados. Verá crianças livres, andando de mãos dadas nas ruas. Verá uma grande horta orgânica em forma de mandala da qual saem doações para periferia da cidade. Verá uma cozinha comunitária, onde todos os dias se fazem panelas de arroz, feijão e verduras para quem aparecer com fome. Será convidado para conhecer uma casa com cercas de bambus em forma de coração, e se nela parar por mais de cinco minutos para olhar o canto de meditação voltado para o horizonte, sairá com um vasinho de suculenta nas mãos: “presente”, vai te dizer um desconhecido, sorrindo.
Quem andar no acampamento Marielle Vive não verá uma só casa de alvenaria, mas encontrará flores de todos os tipos pelos caminhos de terra batida. Vai dar de cara com uma biblioteca comunitária, com consultório médico e uma sala de dentistas improvisada, onde profissionais da saúde se revezam, aos finais de semana, para cuidar de gente, incluindo eles mesmos, no acalento do sonho de mundo feito de mais doação que venda.
Vai ver a caixa d’água, aquela que guarda diamantes, e que espera estar cheia o ano todo, bem no centro do acampamento. Nela, verá três rostos pintados. Rostos de espera do que nunca aconteceu.
Um deles foi atropelado e morto, na frente do acampamento, por uma caminhonete dolosamente jogada contra dez pessoas. Seu corpo em sacrifício evitou a morte dos demais companheiros.
Outro entrou para as estatísticas de acidentes de trabalho fatais, apesar de, ironicamente, tantos associarem os integrantes de movimentos sociais a “vagabundos”. Uma maquita cortou seu corpo de trabalhador brasileiro ao meio.
O último cansou de esperar. Seu nome era Pedro, mas poderia ser Triz. Pedro não suportou o perigo de ser feliz. A espada, presa por um fio sobre sua cabeça, tal qual a anedota grega de Dâmocles, caiu. Pedro se enforcou, sem água e sem chão, em um dia qualquer, em meio a milhares que morriam de COVID no ano de 2021.
Quem andar pelas ruas do acampamento Marielle Vive, em Valinhos, andará por palavras. As não ditas. Mal ditas. Silenciadas e choradas.
O corpinho que esperava o colo da mãe nas reuniões virtuais que fizemos continuava saltitando na minha frente.
Eu, que ali cheguei carregando em silêncio a dor da minha espera pessoal no nada, por nada, saí carregando palavras, fotos, duas arpirellas, uma cesta de verduras, um vasinho de suculenta e a barriga cheia de comida de fogão de lenha.
Quase um mês depois de nossa visita, a ação de reintegração de posse foi julgada pelo Tribunal de Justiça: um mês para as mais de 450 famílias saírem do acampamento.
Mas pobres não desaparecem com sentenças. Seguem ocupando espaço porque ainda não aprenderam, com a Beatriz de Chico Buarque, a andar sem os pés no chão.
E seguem, assim como Marielle Franco, fazendo palavras da espera e da morte. Marielle vive e, agora, também “Marielle fica”, gritam. É preciso viver para não partir, ou se partir. Sentir, falar. Viver é verbo e movimento.
Dias depois, o Ministro Barroso, em decisão liminar recém confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, prorrogou a decisão da ADPF 828 para dizer o que todos já sabiam: a pandemia não acabou, inclusive para os que insistem em querer existir. Em nome da dignidade da pessoa humana, estão suspensos os despejos, no campo e na cidade, em todo país, até 31 de março de 2022.
Corpos mobilizados, deslocados, atravessados e feridos fizeram festa. Três meses a mais para mostrarem que existem e que precisam de chão e água. Música. Crianças de laço na cabeça. Panelas de arroz, feijão, mandioca e salada foram servidas para quem chegasse. O verbo sorrir também existe.
No acampamento, parece que a esperança não é a de Espinoza. Não é a esperança servidão, de valência invertida e complementar do medo, que apenas paralisa. Ela é freiriana mesmo. Verbo. Mobilizadora e arrebatadora.
O desejo desejado e sustentado estica palavras. A espera para espera-ânsia, esperança, e se lança no impossível do acontecimento. Ele virá. A transformação é mente, corpo e coração. Cor – agem.
Para sempre, sempre, por um triz, Marielle vive e Marielle fica.
Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça e integrante do Coletivo Transforma MP
Votação de candidato da extrema direita mostra que disputas entre memórias antagônicas sobre o passado
recente seguem vivas
Na história de países, sociedades e civilizações, existem momentos que parecem conter mais do que o presente. O Chile parece estar em meio a um desses momentos. Ao mesmo tempo em que uma Assembleia Constituinte paritária, plural e inclusiva se reúne para redigir uma nova Constituição – para enfim superar a Carta autoritária imposta por Pinochet em 1980, em plena ditadura –, o país está em processo eleitoral, com a escolha do futuro presidente da República.
Realizadas as eleições no dia 21 de novembro, o candidato que obteve maior número de votos (classificado, portanto, para o 2o turno marcado para o dia 19 de dezembro) é um admirador do ditador Pinochet, que mantém uma postura elogiosa em relação ao período autoritário (1973-1990). O Chile está, assim, encapsulado num denso presente, pressionado por uma herança autoritária persistente e pela perspectiva de um futuro diverso.
O passado que não passa: a pesada herança da ditadura
O dia 11 de setembro de 1973 é, para a história chilena, um dia interminável. Para parte dos chilenos, representou o começo de um período de mortes, torturas, violação de direitos e o fim das liberdades políticas; para outra parte, representou a salvação da “chilenidade” e dos valores cristãos e ocidentais contra o comunismo, que pôs fim à agitação política institucional e nas ruas desenrolada desde os anos 1960.
Os militares bombardearam o Palácio de la Moneda e puseram fim ao governo socialista de Salvador Allende com um golpe de Estado. A Junta Militar, constituída pelos chefes comandantes das três Forças Armadas e dos Carabineros, invocou poderes excepcionais por meio da declaração do estado de sítio, previsto na Constituição de 1925, e passou a exercer os Poderes Executivo e Legislativo, nenhum deles sujeito ao controle judicial. A Junta Militar tornou-se, essencialmente, a sua própria Constituição.
O processo de elaboração da Constituição de 1980, outorgada pelo regime, e a arquitetura do estado de exceção que se seguiu foram marcados por uma profunda desconfiança em relação à democracia, por um desejo de ordem em face da instabilidade política até então observada e por uma rejeição da intervenção do Estado no domínio econômico e na propriedade privada.
Em suma, por uma desconfiança em relação à política, tomada não como instrumento de canalização de conflitos coletivos inerentes à vida social, mas como causa mesma dos conflitos. Jaime Guzmán, principal nome da comissão de reforma constitucional instituída por Pinochet, sabia que eventualmente os militares teriam que deixar o poder, de forma que seria crucial, para ele, estabelecer mecanismos para impedir que as reformas promovidas fossem desmanteladas em um contexto democrático.
A ditadura militar chilena não foi uma mera intervenção para a retirada de um governo esquerdista, mas um verdadeiro projeto fundacional de uma nova ordem político-jurídica autoritária, no qual o constitucionalismo desempenhou um papel fundamental – tanto para sua institucionalização e desenvolvimento, quanto definindo as possibilidades e limites do posterior processo de transição para a democracia. A Constituição de 1980 é a pedra fundamental deste projeto de “democracia protegida” e sacralização dos mercados.
Publicado em 11 de agosto de 1980 pela Junta Militar, o texto foi levado a plebiscito popular na data emblemática de 11 de setembro daquele ano, sétimo aniversário do golpe militar – em um contexto de violenta repressão à oposição política, assassinatos e desaparecimentos forçados, partidos políticos dissolvidos, ausência de liberdades políticas, de expressão e de reunião, sem registros eleitorais, sem um órgão de controle do processo eleitoral e com violação das próprias normas estabelecidas pela Junta Militar.
A “democracia protegida” da Constituição de 1980 se institucionalizou no Chile por meio do reconhecimento de um pluralismo político limitado. Doutrinas que “atentem contra a família” ou “fundadas na luta de classes” eram consideradas
inconstitucionais. A Constituição, além disso, blindava-se por meio de quórum qualificadíssimo necessário para a reforma. Para além da Constituição formal, diversas matérias ficaram sujeitas à regulamentação por “leis orgânicas constitucionais”, que exigiam aprovação de três quintos dos parlamentares de cada Casa. A adoção do sistema eleitoral binomial arrematava as “trapaças” constitucionais, pois favorecia que as duas coalizões majoritárias sempre recebessem um número equilibrado de cadeiras no Congresso Nacional, independentemente da margem de votação de cada uma delas. Qualquer modificação substancial do regime político-constitucional dependeria, assim, da aquiescência das forças políticas de sustentação da ditadura.
A “democracia” da Constituição chilena de 1980 não era protegida apenas contra a participação política, mas também contra a possibilidade de que um novo governo eleito pudesse utilizar instrumentos constitucionais para distribuir renda, interferir na suposta racionalidade dos mercados e atentar contra a propriedade privada. No cerne deste projeto está o “princípio da subsidiariedade”, que afirma que o Estado só pode intervir na economia em situações extraordinárias, quando o setor privado não puder, por si só, cumprir determinada função econômica. A Constituição dificulta a criação de empresas públicas, exige pagamento prévio e em dinheiro para qualquer desapropriação e reconhece uma concepção extremamente alargada de propriedade sobre qualquer bem material ou imaterial.
O fim da ditadura no Chile e o início da transição democrática trouxe certamente o fim da violência política e a volta de liberdades civis e políticas fundamentais, mas o modelo econômico aberto, desregulamentado e com ênfase no sistema financeiro foi mantido por sucessivas coalizões governantes, de todos os espectros do campo político; no campo dos direitos sociais – como saúde, educação e previdência social – a racionalidade ortodoxa imposta no período das “modernizações” pinochetistas foi mantida. A crise desse modelo eclodiu em Santiago há poucos anos.
A fragilidade do futuro e o processo constituinte
Outubro de 2019. Após o anúncio do aumento do preço do bilhete de metrô em Santiago, o Chile entra em ebulição. Como visto em outros países da América do Sul, a majoração do preço do transporte funcionou como um gatilho para uma explosão social e política que possui inúmeras razões históricas.
A desigualdade social trazida pelo modelo ultraliberal da ditadura de Pinochet é a principal delas. Sistemas de saúde, educação e previdência em poder da iniciativa privada, discrepância de renda e oportunidades e estratificação social aliam-se à invisibilidade e exclusão de povos originários, trabalhadores pobres e grupos minoritários.
O “estallido”, como ficou conhecido o movimento de protestos que se seguiu após a divulgação do aumento do preço da passagem, não foi monopolizado por nenhum partido ou organização. A partir de manifestações marcadas pela horizontalidade e espontaneidade, o panorama político chileno se transformou rapidamente. Novas lideranças surgiram e entrou em cena uma agenda inclusiva em prol do reconhecimento de povos originários e do estabelecimento de direitos sociais. Houve muita repressão das forças de segurança, com manifestantes mortos e mutilados.
Esses movimentos obtiveram uma grande vitória: após a pauta aparecer amplamente nos protestos, foi convocada uma Convenção Constituinte. A classe política, pressionada pelas manifestações e pela repercussão da repressão estatal, precisou ceder. E então a Constituinte se instalou, com várias novidades: eleição com paridade de gênero, composição com povos originários, prevalência de constituintes do campo da esquerda não institucionalizada.
Foi eleita presidente da Convenção Elisa Loncón, uma professora de linguística pertencente ao povo Mapuche. Dentre os objetivos de grande parte dos constituintes estão a ampliação dos espaços de participação popular na política institucional no Chile, os direitos sociais à saúde e à educação, a reforma do sistema privado de aposentadorias, com a criação de um sistema solidário, e a retomada do papel do Estado na distribuição de renda e na realização de investimentos públicos direcionados, que contribuam para a transição para uma economia verde.
E vieram as eleições presidenciais. Como dito acima, o candidato mais votado, que alcançou quase 28% dos votos no primeiro turno, José Antonio Kast, se localiza na extrema direita do campo político e é um apoiador declarado da ditadura de Pinochet. O candidato da esquerda, Gabriel Boric, alcançou quase 26% das preferências. Ambos se enfrentarão no segundo turno em 19 de dezembro.
Kast se valeu de um discurso de “lei e ordem” que emula o pinochetismo mais duro, a partir de uma agenda anti-imigração, contrária às lutas indígenas no sul do Chile e pelo reestabelecimento da “ordem pública” em face do “estallido social”, negando as graves violações de direitos humanos praticadas pelas forças de segurança e internacionalmente denunciadas.
A campanha de Kast representou uma força antagônica aos impulsos transformadores do processo constituinte em curso, seja em virtude do seu discurso ultraconservador e contrário à igualdade de gênero (suas propostas incluem a extinção do Ministério da Mulher e a revogação da lei que descriminalizou algumas hipóteses de aborto), seja em virtude do seu discurso reticente em relação às mudanças climáticas, seja porque o próprio candidato é um defensor da ditadura, da Constituição de 1980 e crítico aberto do processo constituinte, tendo feito campanha pelo “não” no plebiscito nacional que decidiu pela instalação da Convenção. Seu discurso encontrou um terreno mais fértil em face das incertezas decorrentes dos efeitos econômicos da pandemia e das indefinições políticas atuais no país.
A memória emdisputa: Constituição para quem?
O processo que o Chile vivencia hoje é singular por força dessa concentração temporal. Herança autoritária e perspectiva democratizante, passado e futuro, se colocam no mesmo momento presente. O que está em jogo, ao final de tudo, não é apenas um modelo de Constituição, é mais do que isso. O que se decidirá nos próximos dias é o alcance do constitucionalismo chileno.
A onda de protestos, marchas e manifestações que caracterizou o “estallido” tinha um eixo comum: demanda por inclusão e reconhecimento. Décadas de acumulação de riqueza, de baixa participação política, de simbiose entre elite governante e complexo empresarial-financeiro produziram uma energia única que se traduziu na convocação e funcionamento de uma Convenção Constituinte.
A votação de Kast, entretanto, mostra que as disputas entre memórias antagônicas sobre o passado recente seguem vivas, travadas publicamente no debate nacional. O risco – no Chile, no Brasil e em vários outros países que lidam com um passado autoritário – é de que todo projeto futuro de nação seja sabotado pela incapacidade e bloqueio do trabalho de luto pelos traumas do passado.
Se isso se concretizar, um processo de transformação política que se iniciou com demandas de participação e inclusão encontrará uma barreira intransponível num sentimento de nostalgia, de uma curiosa memória da opressão. Como disse Faulkner, em citação tantas vezes reproduzida, mas que permanece atual, “o passado não está morto. Ele sequer passou”.
CRISTIANO PAIXÃO – Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
ANDRÉ FREIRE AZEVEDO – Professor assistente de direito público, direito constitucional e teoria do direito da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), doutorando em direito (UnB) na linha de pesquisa “Constituição e Democracia”, coordenador do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular da UFOPA (NAJUP Cabano), mestre e graduado em direito (UFMG).
Pouco anos antes de 2016, o Brasil começou a ser inundado por eventos que estremeceram as suas instituições, tendo alguns deles evoluído para o desmonte de muitas delas. As análises que cotidianamente foram e continuam sendo feitas, desde então, para explicar à sociedade o que está acontecendo parecem não caber nos cânones políticos e jurídicos, exaustivamente, repetidos por um significativo número de estudiosos e de pessoas ciosas do futuro do país.
Fomos abatidos pelo sentimento de que os cânones em relação à vida política saudável são palavras vazias diante da nossa realidade, o que é tão lamentável quanto desesperador. Política se tornou sinônimo de algo aberrante e repulsivo, como se não houvesse possibilidade para o seu exercício em prol da coletividade. Justiça, sinônimo de vingança. Engana-se quem pensa assim.
É justamente na seara da Política que o ser humano é testado para equilibrar razão e emoção e saber como fazer Justiça. Também, é nessa seara sobretudo que o ser humano deve fazer uso da linguagem (o seu maior diferencial em relação aos outros seres viventes). Uma linguagem que traduza esse equilíbrio, que seja carregada de sentido e sentimento alvissareiro; uma linguagem que demonstre empatia, depois do falante haver emprestado os ouvidos à dor alheia; uma linguagem verdadeira que anuncie com clareza e sinceridade os objetivos do ser falante; uma linguagem que aponte de forma coerente e consistente o caminho para a realização de um projeto de acolhimento das necessidades da maioria da população. Enfim, uma linguagem na qual o sujeito falante inclui respeitosamente o outro e rejeita, terminantemente, um projeto de poder individual em benefício próprio.
Ao constatar a perda do significado da Política como algo valoroso e essencial na e para vida de toda e qualquer pessoa, as análises feitas sobre o contexto político-jurídico brasileiro a partir de cânones não são desprovidas de sentido. Ao contrário, são, no mínimo, atitudes de resistência para resgatar os salutares sentidos da vida política do país e compreender alguns outros que estão sendo precária e voluntariamente forjados para levar a uma situação de caos em benefício de algumas poucas pessoas e de alguns setores econômicos vorazes no que se refere aos seus lucros. Nada mais “eficaz” e perigoso para atingir o caos numa sociedade do que nutrir o ódio e a inveja, naturalizando essa retórica apavorante, que só pode ser protagonizada por pessoas fracas de caráter, cognitivamente limitadas e acovardadas diante da existência complexa do mundo da vida.
Do ponto de vista daquilo que os mais importantes teóricos da Política e do Direito nos ofereceram ao longo de séculos de História do Ocidente – e apesar das críticas que podem ser dirigidas ao processo que culminou no culto excessivo da liberdade individual em detrimento do interesse coletivo – muitos artigos publicados em jornais acadêmicos ou não, sobre conceitos como: democracia, presidencialismo, parlamentarismo, racismo, sexismo, machismo, capitalismo, Corte Constitucional, comunismo, punitivismo, abolicionismo penal, etc trazem argumentos pertinentes e se mostram fiéis às lições deixadas por vivências do passado diante do torpor do presente. O problema é que, na atualidade, o debate público foi sequestrado e tem sido manejado de forma esquisita, por pessoas que galgaram espaço de poder e não levam em conta as contradições e superação delas como fator inerente à História. Abraça-se a História de mão única, imprimindo à realidade ares aterrorizantes ao tempo em que, rompe-se com o sentido das palavras, sem lhes conferir nenhum outro. Vivemos uma guerra cultural que fere de morte o diálogo.
O contexto é, portanto, de manipulação grosseira e forçada quanto ao sentido que as palavras têm originalmente e quanto àquele que elas poderiam adquirir naturalmente ao longo de uma convivência social saudável. Esse fenômeno de manipulação da linguagem, sufocando o sentido das palavras é algo sério e precisa ser enfrentado. Isto porque ao frustrar totalmente o diálogo entre as pessoas tanto supera a ficção, quanto rejeita a identificação exata do nosso tempo presente com eventos históricos do passado, criando algo disruptivo de forma inédita para a geração atual. A violência quanto ao sentido construtivo e possível das palavras nos faz cair num vácuo e nos desorienta, deixando subsistir apenas a própria violência. Com isso nos deparamos com o fracasso civilizatório e retrocedemos como espécie.
Esse fenômeno está ocorrendo em alguns países, mas, no Brasil se percebe que ele está bem acentuado e muito facilmente gera o incômodo de que o desenho das nossas instituições políticas e do sistema de justiça trazido no texto da Constituição de 1988 (assim como a previsão dos mecanismos que acionam o funcionamento delas, mesmo que inspirado no modelo de outros países onde as coisas funcionam relativamente bem, e embora reproduzido aqui com algumas imperfeições, além de haver adquirido pitadas do jeito de ser brasileiro) esse desenho institucional foi num curto espaço de tempo borrado pela sucessão dos fatos graves que vivenciamos e foi-se apagando, se desfazendo, se mostrando quiçá inútil para nos colocar num horizonte de sentido existencial. A sensação é que tudo não passava de um castelo de cartas, agora, no chão, enterrando-se num buraco.
A instabilidade política e jurídica que vem ocorrido no Brasil embaralha, ultrapassa e destrói, por exemplo, o chamado dogma da separação e harmonia de funções entre os poderes do Estado, sem pôr no lugar nada que valha a pena para dar alguma segurança à sociedade. Executivo, Legislativo e Judiciário são como tecidos esgarçados e imprestáveis para uma costura entre eles. Evidentemente, acreditar que esse esgarçamento deve ser levado até as últimas consequências é cavar a cova do Brasil como sociedade, como país, como Estado.
O dogma da separação de poderes que se expressa através dessas três funções e foi consagrado a partir de obra de Montesquieu é um importante legado para o mundo. Isto porque esse autor exaltou a necessidade de limitação do exercício do poder político para a este conferir alguma estabilidade social e o fez inspirado na experiência política da Inglaterra construída em torno do parlamentarismo. A tese de Montesquieu cobre várias áreas do conhecimento e resultou no clássico, “O Espírito das Leis”, difundindo o parlamentarismo como o melhor sistema de governo. Efetivamente o parlamentarismo muitas vezes assim funciona: nunca de forma determinante e automática. Tudo depende da História do país e do contexto no qual ele é implantado.
No caso inglês, por exemplo, o parlamentarismo é a forma de governo que acolhe representantes da classe social considerada superior, na Câmara dos Lordes e representantes das demais classes sociais, designada de Câmara dos comuns. Por serem essas duas câmaras representativas da configuração histórica da sociedade desde sempre submetida à realeza, um parlamentar que seja filiado ao partido majoritário no interior do Parlamento é escolhido para representar o governo do país. Na prática, essa escolha implica atribuir a um parlamentar a administração do país, levando-o a ocupar o cargo de Primeiro-Ministro que se investe do poder de escolher aqueles parlamentares que formarão a sua equipe.
Dito isto, é bom que se saiba, que numa sociedade como a inglesa, onde a aristocracia não desapareceu e é a classe social que orbita em torno da realeza, o sistema parlamentarista pende para manutenção dos interesses dessa classe social. Isto porque o partido político que a representa, em geral, tem uma participação expressiva no Parlamento e, não raro, forma a maioria, na Câmara dos Lordes. Na prática, então,politicamente, está-se diante de um país conservador e embora a aristocracia, que éetimologicamente identificada ao governo “dos melhores” tal como definido por Platão na formulação sobre as formas puras e impuras de governo, não significa o melhor para a maioria da população. Guardadas as peculiaridades de cada lugar, outras formas de governo ganham relevo e transbordam impurezas.
Na época de Montesquieu, contudo, supostamente a aristocracia ainda era identificada ao que se tinha de melhor na sociedade inglesa… e isso talvez não correspondesse à realidade. Na atualidade, então, menos ainda…
Assim, o parlamentarismo, na Inglaterra, sempre funcionou como um catalisador dos interesses da aristocracia e da Coroa, a qual, para ser mantida na cabeça dos reis e rainhas, ensaia continuamente uma conciliação com os interesses das classes sociais vistas como inferiores, e que se fazem representar por aqueles parlamentares componentes da Câmara dos comuns.
Também, é bom lembrar que, na perspectiva de Platão sobre as formas de governo, a eventual degeneração da aristocracia corresponde à oligarquia. Aliás, as lições deixada esse filósofo são assustadoramente atuais. Segundo ele, a democracia é uma forma pura de governo baseada no povo e a sua forma impura seria a anarquia; já a Monarquia, degenerada, se converteria em tirania.
Pois bem, diante de todas essas noções envolvendo o dogma da separação de poder e a forma de governo, o Brasil dá mostras de uma degeneração política generalizada, tendendo a exibir uma mistura das formas impuras de governo. Não seria absurdo ventilar a hipótese de que nunca tivéssemos vivido isoladamente a pureza de nenhuma das formas de governo mas as vivenciamos de forma embaralhada, desde sempre. Hoje, quando olhamos para um lado, vemos a democracia degenerando em anarquia; olhamos para o outro, vemos a oligarquia a todo vapor desde sempre no solo brasileiro, a forma degenerada de aristocracia e, por fim, paira sobre nós a sensação de que poderemos sucumbir a uma tirania, sem monarca, lógico, mas sob o comando de alguém que se sente como tal.
Na atualidade brasileira, os exemplos disso se acendem como flashes. Um dos mais evidentes coincide acertadamente com a trajetória da atuação do ex-juiz Sérgio Moro, que se coloca, hoje, como alguém disposto ao sacrifício para salvar o Brasil de suas mazelas. Ora, ora, menos Dr. Sérgio, por favor! Quando juiz, Sérgio Moro não salvou o Brasil da corrupção; como Ministro da Justiça muito menos, pensou inclusive na excludente de ilicitude para ação atentatória à vida praticada por policiais; como eventual Presidente, esse seu passado em nada o favorece. Aliás, aprofundaria a nossa tragédia.
Cabe lembrar que ele se aliou a Jair Bolsonaro, tornando-se seu ministro da Justiça mesmo sabendo que se tratava de um político declaradamente amante da tortura, conforme se viu na sessão de julgamento do impeachment da então Presidente Dilma Roussef, ocorrida na Câmara de Deputados, no dia 17 de abril de 2016. E isso é, no mínimo, indigesto: um ministro da Justiça que se alia a um simpatizante efusivo da tortura!
A estreia do ex-juiz na vida política partidária transborda, assim, de hipocrisia e pode ser uma caixa de pandora ainda maior do que a atual. Ao se filiar a um partido político e se lançar candidato à Presidência da República ele não pode escapar da pergunta: “o que pensa da tortura?” E como isso não bastasse, ele precisa se explicar quanto à ajuda que deu na pavimentação do caminho de Jair Bolsonaro para assumir o poder. Disso ele não prestou contas nem ao CNJ, nem ao STF que, recentemente, o declarou parcial nos julgamentos em que proferiu contra o ex-Presidente Lula.
Rememorando…
Como membro do Poder Judiciário, o ex-juiz Sérgio Moro agiu de forma muito similar a um tirano, nada a ver exatamente como um juiz, sendo guiado pela sanha punitivista permeada por idiossincrasias; ele atropelou os cânones do Direito brasileiro e adotou os parâmetros de um poder político degenerado. Só impurezas…
Ao conduzir os processos relacionados à Operação Lava Jato, que compactou investigações sobre atos de corrupção que teriam sido praticados na Petrobrás nos contratos com empreiteiras para realização de obras Brasil afora, o senhor Sérgio Moro proferiu decisões juridicamente precárias, livrando uns réus da prisão e pesando a mão sobre outros. E isso não foi algo inédito na sua carreira. O Banestado é, ainda, uma névoa. O pior de tudo, no caso da Lava Jato é que Sérgio Moro conduziu suas decisões quase que exclusivamente baseado apenas em palavras de pessoas submetidas à pressão psicológica (o que se assemelha a uma espécie de tortura), as quais teriam fornecido informações úteis arranjadas pelos membros do Ministério Público Federal atuantes em Curitiba, através da aplicação abusiva da Lei nº12850/13 a qual, em condições normais temperatura e pressão, já é um abuso. Para tanto, ele se mostrou sempre afinado com a coordenador da equipe ministerial, o ex-procurador da República, Deltan Dallagnol, também um outro candidato estreante no cenário político partidário e eleitoral.
As informações úteis, tratadas como delações de conteúdo inquestionável, foram convertidas em prova daquilo que não provavam, já que eram versões sobre um mesmo fato, cada vez contadas de diferentes maneiras. Por isso podem ser designadas de “arranjos”.
Nada disso passou em branco ao olhar de importantes nomes do cenário jurídico brasileiro, e de coletivos de juristas, como o Prerrogativas. Não faltaram alertas sobre ser a Lava Jato uma farsa, posto que, aquilo que no processo se designava prova, na verdade, implicava uma tomada da parte pelo todo, sem elos consistentes, sem uma demonstração técnico-pericial séria. Faltavam provas, sobravam convicções.
Todavia, a despeito de tudo, a Operação Lava Jato foi exaltada, em especial, pela mídia corporativa em nome do combate ao crime de corrupção, se revelando, ao fim e ao cabo, uma chave publicitária imprescindível para demonizar a política brasileira e associar partidos políticos a uma organização criminosa, e muito especificamente o PT, que esteve, antes de 2016, no governo do país. Assim, ora o combate à corrupção foi publicidade, ora discurso messiânico capaz de operar milagres. Deu-se a junção degenerada do Direito e da Política através do uso fundamentalista de um discurso de viés moralista num formato religioso.
Agora, demonstrado que a Operação Lava Jato foi a própria corrupção do sistema judicial brasileiro e que desarranjou a vida política nacional, tendo como protagonistas Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, entre outros, mesmo assim, ambos ancorados num discurso de pseudo pureza institucional pretendem migrar para a política eleitoral. Trarão a pureza para essa esfera? Certamente que não! E a ironia da História é chegarem declaradamente à política partidária depois de terem inescrupulosamente feito política escandalosa para levar à condenação Luiz Inácio Lula da Silva, sem a indicação de provas ou identificação de atos concretos de corrupção por ele praticados. Lula hoje é o favorito, de novo, nas pesquisas eleitorais para ocupar a cadeira da Presidência e como se fosse Presidente do Brasil foi tratado em recente viagem pela Europa, sendo agraciado com honrarias, declarações de respeito e admiração pelo governo que fez e pela pessoa humana que é.
É preciso lembrar que na esteira do espetáculo que Sergio Moro e Deltan Dallagnol protagonizaram, eles contribuíram para degenerar a democracia brasileira em uma forma anárquica de governo, assumida por Michel Temer em 2016 e sucedida por Jair Bolsonaro, ainda mais anárquico. Puseram Luiz Inácio Lula da Silva, na prisão por 580 dias, impedindo-o de concorrer à Presidência da República em 2018, além de aviltar os seus sentimentos mais profundos para viver o luto pelo falecimento do seu irmão e do seu neto, o que ocorreu quando ele, ainda, se encontrava preso. Hoje, ele finalmente voltou a gozar da liberdade e dos direitos políticos graças a uma decisão do STF que anulou todos os processos movidos contra ele justamente por reconhecer a parcialidade de quem o julgou, ao modo daquilo que fazem os tiranos.
Com a entrada em cena de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol a representação política por meio do voto, algo tão importante numa democracia representativa, pode definitivamente se esvaziar de sentido, caso esses dois personagens sejam beneficiados do gesto teatral que se habituaram a fazer, incorporando o aleatório ao script que ousam reverberar. Em algum lugar do passado, numa situação hipotética de involução das espécies, eles estariam assemelhados a ratos que ambicionam um enorme pedaço de queijo.
2016, o ano do teatro midiático, parlamentar e judicial em estado de degeneração, que tirou da Presidência Dilma Roussef, acenando-lhe com o cinismo de um “Tchau, querida!” ficará na História do país como a revelação d’O Espírito das Leis Brasileiras. Resumidamente, na formulação teórica sobre a Separação de Poderes, para exaltar o parlamentarismo inglês, Montesquieu afirmou que “as leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”. Pois bem, no Brasil, ficamos, portanto, atônitos com as leis que prevaleceram (relações necessárias para quem?) que expôs a crueldade da realidade brasileira: machista, elitista, racista, tudo que considerávamos minimizado pelo desenho institucional trazido na Constituição de 1988 e que, não obstante tenha lá as suas imperfeições, nos conferia o sentimento de que o povo brasileiro conquistaria a cidadania plena num panorama de estabilidade política e relação civilizada entre as funções de poder do Estado. Pensávamos, assim, que tínhamos dado um nó na História sem trilhar o gosto de sangue que ela oferta num processo revolucionário e que foi o caminho trilhado por outros povos até chegar ao amadurecimento democrático, que definiu a sua forma e regime de governo.
A despeito disso, não dá pra esquecer que a nossa História tem, sim, algum gosto de sangue derramado pelos quase quatro séculos de escravidão e ataques contínuos para conseguir o extermínio da população indígena. Tampouco se pode olvidar os períodos autoritários que atravessamos, em especial, o da ditadura militar. Mas o que dói é saber que o sangue derramado sobre esse solo coincide sempre com o dos vencidos. Não há manchas de sangue dos que saíram como vencedores. As nossas lutas contra a opressão não foram derrotas, mas também não significaram a eliminação dela. O sossego histórico nas nossas vidas vem da canção, uma felicidade tão efêmera como “a gota de orvalho numa pétala de flor”.
Pena! A sensação é que escorregamos – sem nos darmos conta- na nossa própria História, e esse escorrego talvez tenha decorrido da suposição de que pusemos a ditadura na lata do lixo de um passado estragado. Hoje, os fantasmas que ela criou emergem e circulam como uma substância altamente contaminante a nos causar pânico, sendo uma sombra que obscurece nossos sonhos e nos atormenta no nosso horizonte próximo e até longíquo.
Essas pinceladas da História recente do país parecem uma projeção da deformidade do passado e isso deve nos fazer pensar muito seriamente num modelo de Justiça que não lave a jato as condutas desses estreantes na cena política brasileira: Sérgio Moro e Deltan Dallagnol assim como de alguns outros que anunciem ter a mesma pretensão, e que colaboraram para o estado de coisas que nos aflige. Em relação a ambos, por exemplo, já é possível afirmar que dos atos praticados durante o exercício de suas funções dentro do sistema de Justiça, um prejuízo econômico foi causado ao país, por haverem levado empresas importantes à recuperação judicial, causando a demissão de milhares de pessoas; também causaram um prejuízo político, fragilizando o sistema eleitoral do país e no qual agora se embrenham para se catapultarem a cargos eletivos, quando, antes, tramaram a saída de um candidato à Presidência da República, manipulando o sistema jurídico-processual.
Assim, em relação a eles, espera-se que a sociedade brasileira se conscientize de lutar pela Memória, Verdade e Justiça tal como o exemplo inspirador recentemente trazido pelo Tribunal do Genocídio montado no teatro da PUC – SP, no último dia 25 de novembro, para julgar as ações e omissões do Presidente Jair Bolsonaro na gestão da Pandemia.
O Tribunal do Genocídio foi um dos eventos de resistência mais positivamente inspiradores ocorridos nos últimos tempos no país. Isto porque resgatou numa representação cuidadosa, racional e séria sobre o funcionamento de um Tribunal de opinião voltado ao debate profundo e argumentativo acerca da Justiça. Nunca as palavras pronunciadas nesse Tribunal fizeram tanto sentido. Ele foi o palco que trouxe de volta o significado das coisas e das palavras e fomentou uma esperança de horizontes de vida coletiva, construtiva, civilizada e equilibrada. A despeito de ter-se configurado como um Tribunal de opinião, em virtude do que a emoção também fluiu na fala dos que dele participaram, a representação do julgamento do Presidente Jair Bolsonaro foi um resgate de como a justiça tem que ser buscada e ser realizada.
Ora, reflitamos sobre o que foi a Justiça nas maõs dos lavajatistas, hoje candidatos a cargos eletivos. Ela se converteu num valor esvaziado de conteúdo e aviltante na forma, isto porque eles nem foram autênticos no exercício das funções que exerceram no seio do sistema de Justiça e por isso mesmo também não podem exibir autenticidade na esfera da vida político-partidária. Eles são verdadeiramente fingidores e estão longe, muito longe de nos trazer alguma poesia como o “poeta que finge a dor que deveras sente”, como diria Fernando Pessoa.
Eles foram exatamente o oposto do que se pode ver na representação do Tribunal do Genocídio que contou com: a) a ex-procuradora da República, Debora Duprat encarregada de sustentar a acusação contra o Presidente Jair Bolsonaro, imputando-lhe a prática de cinco crimes, dentre eles, o de genocídio; b) o advogado Fábio Tofic na defesa do Presidente, argumentando que não vê configurada, no caso, a prática do genocídio, por não enxergar o enquadramento das ações e omissões na descrição desse tipo penal, embora tenha admitido a ocorrência dos demais crimes, dentre ele, o de crime contra a Humanidade; c) a condução serena da desembargadora aposentada Kenarik Boujikian e d) a formação de um corpo de jurados representativos da diversidade de segmentos sociais que, no púlpito, manifestaram as suas opiniões acerca dos crimes, fundamentando-as.
A fala objetiva e técnica da acusação foi um alento e um resgate de um Ministério Público equilibrado, sem estrelatos, focado nos fatos donde nasce uma argumentação coerente e direta carregada de preocupação em demonstrar, através de documentos (muitos deles relativos ao trabalho da realizado pela CPI do Senado) a razão pela qual os crimes imputados estavam devidamente comprovados e o de genocídio se manifestava de forma gritante em relação às populações indígenas.
Foi particularmente salutar ouvir os argumentos do advogado de defesa cuja atuação, sem dúvida alguma, se mostrava extremamente espinhosa ante o fato de que o Brasil ostenta a assustadora cifra de mais de 614 mil mortes ocasionadas pela Covid-19. Sobretudo, a fala da defesa era difícil porque esgrimava contra estudos que apontam no sentido de que centenas de milhares de vidas poderiam ter sido poupadas se medidas sanitárias recomendadas por autoridades científicas tivessem sido rigorosamente adotadas pelo alto escalão do governo na área de saúde, submetidos à coordenação displicente do Presidente da República. Isso sem contar com o fato de que hábitos simples poderiam ter sido estimulados pelo próprio Presidente, para servir de exemplo à população, como o uso de máscaras. Ou ainda, se o governo não tivesse se esforçado para iludir a população com o discurso de tratamento precoce contra Covid-19, insuflando-a a consumir e até distribuindo fármacos como a ivermectina e a hidroxicloquirina declaradamente ineficazes para prevenir a doença, além de terem graves efeitos colaterais quando prescritos em doses contínuas, longas e alentadas.
Durante a manifestação no púlpito, as falas dos jurados foram tocantes, a do médico sanitarista Arthur Chioro merece destaque porque trouxe à tona o argumento não explorado pela defesa de que as populações indígenas, composta de vários grupos étnicos facilmente identificáveis como os descendentes dos habitantes originários do país, estão diretamente submetidas aos cuidados do governo federal que deve lhes fornecer toda a assistência médica necessária à preservação de suas vidas e à preservação de toda cultura que exibem como patrimônio social, linguístico e epistemológico do Brasil mais profundo e remoto.
A ocorrência desse Tribunal tem que servir de inspiração e orgulho sobre a resistência que podemos ter e da “virada de jogo” que somos capazes de produzir antes, durante e depois do período eleitoral, construindo um Parlamento que seja representativo dessa resistência e elegendo um Presidente humanista, desconectado do ódio.
Temos assim uma semente para fazer crescer a rejeição desses aventureiros políticos, lembrando que a derrota deles implica abrir o caminho para submeter o atual Presidente da República a um julgamento de verdade, sério e sob a acusação de crime de genocídio porque afinal admitir que ele praticou crime contra a Humanidade e não cometeu genocídio seria instaurar o paradoxo: o de negar a identidade e etnia dos indígenas que por essa condição, como descendentes dos habitantes originários do país, foram relegados à própria sorte ao invés de terem recebido cuidados extra pelo governo federal face à pandemia a fim de preservar a vida deles e fazer subsistir a sua cultura, que tem expressão máxima no trato deles com a floresta, algo fundamental para luta contra as mudanças climáticas que é o grande desafio de futuro no mundo.
Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça Aposentada – MPPE e Membra do Coletivo Transforma – MP
As entidades jurídicas Coletivo por um Ministério Público Transformador (Coletivo Transforma MP), Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Associação Advogadas e Advogados Públicas para a Democracia (APD), Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC), Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia, Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA) e o Movimento Policiais Antifascismo; emitiram na última sexta-feira, 26, uma carta conjunta que fora entregue ao Senado com argumentos e fundamentos para a não aprovação do advogado-geral da União, André Mendonça, durante a sabatina de ingresso ao Supremo Tribunal Federal.
Para os juristas, a indicação de André Mendonça ao STF representa um retrocesso nos pilares da Justiça brasileira e da democracia, pois sabe-se que o advogado-geral da União possui alinhamento ideológico ao governo de Jair Bolsonaro; este que tem promovido desmontes sociais e negligenciado a seriedade e as graves consequências da pandemia de Covid-19 no país. “A inusitada prática sem dúvida representou o amesquinhamento do processo de escolha do Ministro do STF e verdadeiro menoscabo tanto ao Tribunal da Cidadania como à Procuradoria-Geral da República, findando por dar contornos diferentes à sabatina, já que a aprovação do candidato representará a aceitação pelo parlamento dos excessos cometidos pelo Executivo no decorrer do processo.”
Outro fato importante sobre o sabatinado é que durante sua trajetória no governo Bolsonaro, Mendonça feriu a Constituição Federal ao subestimar os princípios institucionais para atender as demandas do chefe do Poder Executivo, utilizando sua crença como juízo de valor e desprezando o preceito da separação de Estado e Religião.
A utilização da Lei de Segurança Nacional, elaborada durante o período ditatorial brasiliero, também é uma das características antidemocráticas de André Mendonça que empregou a norma jurídica para perseguir e criminalizar críticos ao Governo Federal, ferindo a liberdade de expressão garantida pela Carta Magna de 1988.
Portanto os coletivos jurídicos solicitam aos senadores responsáveis pela sabatina que revejam a indicação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal, para que sejam realizadas audiências Públicas de esclarecimento e sobre a importância do tema com toda a sociedade civil brasileira, com a finalidade de apontar outro nome capaz para a substituição do ministro Marco Aurélio Mello na suprema corte.