Autor : Coletivo

Um olhar crítico sobre o Poder Legislativo Municipal e sua Excelência, o(a) Vereador(a)

“Você não sente nem vê

Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo

Que uma nova mudança em breve vai acontecer

E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo

E precisamos todos rejuvenescer […]

No presente, a mente, o corpo é diferente

E o passado é uma roupa que não nos serve mais

No presente, a mente, o corpo é diferente

E o passado é uma roupa que não nos serve mais […]”

Belchior

Artigo de Márcio Berclaz no GGN

A corrupção do político, especialmente em nosso particular sistema federativo integrado por Municípios, exige o funcionamento adequado de uma rede de controle.

Nessa rede de controle, sob o ponto de vista local, espera-se que o Legislativo esteja disposto a elaborar leis e, sobretudo, fiscalizar o Poder Executivo. Esse é o comando imperativo do artigo 31 da Constituição: “Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal”.

O Poder Legislativo local ostenta papel central na prevenção e no controle da corrupção de tudo o que acontece no âmbito do Município.

Para além disso, a existência de Legislativo Municipal tem uma contribuição decisiva para o Estado Democrático de Direito, precisando ocupar espaço nas reflexões teóricas de sociólogos, filósofos, juristas e, sobretudo, cientistas políticos de maneira especial.

Afinal, em verdadeiro balanço crítico, o que é isto, hoje, o Poder Legislativo Municipal? Qual a qualidade da institucionalidade e dos serviços públicos prestados pelas milhares de Câmaras Municipais de Vereadores existentes ao longo dos 5.568 Municípios brasileiros[1]?

A Câmara Municipal, na origem colonial[2], é a peça ou aposento de uma casa pública que tem essa relevante e distinta função, que se constitui em verdadeiro poder-dever de, etimologicamente, fazer a “verea”, vereda ou caminho[3]

Se fenomenicamente assim ainda não acontece, é sinal de que esse importante e decisivo espaço democrático precisa de melhor significação. Aqui sim talvez haja espaço para uma verdadeira “Reforma Política”, talvez uma das poucas realmente necessárias e que possam aproveitar ao povo brasileiro.

Qual é o olhar da cidadã e do cidadão sobre as Câmaras Municipais?  O que a cidadã e o cidadão projeta de expectativa e desejo a respeito dos seus representantes no Poder Legislativo? Atuação em prol do coletivo ou busca de benefícios individuais?

Até que ponto os agentes políticos do Legislativo Municipal ocupam-se de fazer cumprir a Lei Orgânica como a Constituição do Município como ente da federação?

Qual o grau de qualidade e intensidade democrática dos regimentos internos das Câmaras Municipais, sob a perspectiva participativo-deliberativa?

Até que ponto as Câmaras Municipais das capitais interpretam adequadamente a compreensão do que seja o “decoro” parlamentar e, com isso, dão bons ou maus exemplos para as Câmaras Municipais de Municípios de menor porte no entorno (por exemplo, as regiões metropolitanas)?

Qual o efetivo funcionamento e proveito para o funcionamento da cidade na sua necessária função social das muitas comissões do Legislativo local? Qual o nível de controle de constitucionalidade e de fiscalização da institucionalidade do próprio Poder Executivo? Qual a contribuição desses colegiados para o bom cumprimento do constitucional do Poder Legislativo Municipal?

Até que ponto dever-se-ia exigir uma dedicação exclusiva de Vereadoras e Vereadores como “agentes políticos”, em especial na comparação que se pode fazer de seus deveres e obrigações com outras autoridades da República?

Quanto que representa do orçamento do Município o gasto com a manutenção das Câmaras Municipais?

Qual o histórico de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI`s) do Poder Legislativo Municipal?

Qual o grau de respeito ao artigo 37, II, da Constituição (concurso público, como regra), de parte das Câmaras Municipais de Vereadores de modo geral?

Qual o fluxo e qualidade (inclusive sob a perspectiva, da autonomia[4]) das relações que se estabelecem entre Executivo e o Legislativo na perspectiva municipal, inclusive sob a perspectiva do regime de vetos ou mesmo da matriz de riscos e do histórico de vícios e malfeitos?

As Câmaras Municipais são lugares onde predomina a transparência[5] ou a opacidade? Qual o nível de transparência sobre o trabalho vivo legislativo? Como são e funcionam, em geral, seus Portais de Transparência e a própria governança eletrônica? Há cumprimento suficiente, por exemplo, do princípio constitucional da publicidade, da Lei de Acesso à Informação (LAI -12.527/11)[6]? Para ficar no básico, há suficiente organização de todos os atos normativos e da legislação municipal?

Qual a estrutura de carreira, em especial de Procuradoria-Jurídica, Contabilidade e Controle interno, no mínimo, que possuem as Câmaras Municipais? Que tipo de assessoria técnica especializada e suporte que essas institucionalidades podem propiciar ao mandato de uma Vereadora ou Vereador?

Qual o planejamento e o grau de fiscalização efetivamente exercido pelos Tribunais de Contas junto às Câmaras Municipais na especificidade do seu papel constitucional[7] no que os objetivos da República se projetam sobre os Municípios, em especial num regime federativo assimétrico como o brasileiro?

Qual a qualidade e a relevância do que se discute e se produz, em geral, nas Câmaras Municipais de Vereadores[8], para muito além de homenagens, inaugurações, mudanças de nomes de rua ou “bate-bocas” individuais entre agentes legislativos, em especial, no controle da execução orçamentária do Município e na construção das políticas públicas que realizam direitos fundamentais e suprem as necessidades da sociedade?

Qual o grau de fundamentação no posicionamento de um Vereador sobre a discussão de um projeto de lei ou mesmo sobre a aprovação ou não das contas de um Chefe do Executivo?

Quantas Câmaras Municipais que não realizam suficientes audiências públicas em horários que a sociedade possa participar ou que invariavelmente teimam em se reunir nas suas sessões ordinárias e extraordinárias em horário de expediente e trabalho da maioria da classe trabalhadora?

Qual o grau de participação e acompanhamento da Câmara dos Vereadores do regular funcionamento dos espaços de democracia participativo-deliberativa, como Conferências e Conselhos?

Qual o “poder de agenda” que se pode conferir às Câmaras Municipais de Vereadores na institucionalidade democrática, em especial para os desafios de implementação de ações, programas e políticas públicas em nível local, em especial no âmbito das políticas básicas de saúde, educação, assistência social, urbanismo[9], meio ambiente, habitação, esporte e cultura/lazer, entre outros?

Qual o grau de escolaridade, experiência profissional ou mesmo de articulação e sensibilidade social dos agentes políticos municipais para enfrentamento dos principais problemas da “polis”?

Quais os critérios e efetivamente o que fazem os órgãos auxiliares e qual o destino que se dá aos recursos públicos que, entre 3,5% a 7% (artigo 29-A da Constituição) suportam a estruturação dos não raro dispendiosos Gabinetes Parlamentares Municipais?

Até que ponto se assiste à perpetuação de “elites parlamentares municipais”[10] em sucessivos mandatos pelo que neles pode haver de pleno ou vazio ou existe suficiente renovação nesses espaços? Qual o grau de relação de agentes políticos com forças vivas da sociedade civil, como, por exemplo, os movimentos sociais-populares, inclusive na perspectiva das suas “indicações” legislativas e da atuação e do uso dos demais instrumentos (projetos, emendas, resoluções etc), em geral?

Qual a disposição para formação permanente ou continuada de agentes políticos que integram o Poder Legislativo? Qual o grau de materialização e suficiência de espaços formativos como Escolas ou Centros de Estudo do Poder Legislativo Municipal? 

Qual a síntese dos polifônicos discursos que ecoam cotidianamente nas Câmaras Municipais de Vereadores? Até que ponto os mandatos servem como instrumentos da vocalização de necessidades coletivas e não individuais-clientelistas, sobre os reais problemas das cidades e não para atendimento de favores clientelistas? 

Qual a importância e os frutos de projetos de Parlamento jovem ou mirim em âmbito Municipal[11]?

De onde vem e quem são, inclusive sob perspectiva dos recortes de classe, raça[12] e gênero[13], inclusive da esperada laicidade do Estado, os agentes legislativo municipais do Brasil? Qual o perfil de Vereadoras e Vereadores do Brasil?

O quanto se estuda e efetivamente se sabe sobre a organização, estrutura e funcionamento das Câmaras Municipais de Vereadores[14]?

Até que ponto os problemas de um Parlamento Municipal são diversos do que ocorre no âmbito das Assembléias Legislativas Estaduais ou mesmo do Congresso Nacional?

Qual o diagnóstico das Câmaras Municipais de Vereadores nas diferentes regiões e no multifacetado contexto brasileiro, com milhares de Municípios de distinto porte na sua diversificada média de habitantes?

Que olhar pedagógico e crítico que os meios de comunicação social possuem sobre o Poder Legislativo local como instância decisiva de poder numa democracia da proximidade do “ver-a-cidade”?

Qual a contribuição da universidade brasileira e do seu ensino, pesquisa e, sobretudo, extensão, para que haja balanço crítico sobre o funcionamento das Câmaras Municipais como um poder legislativo subnacional específico[15]? Quais o recenseamento ou aproveitamento (inclusive por diferentes linguagens, da literatura, teatro e cinema, por exemplo)  que se tem feito da pesquisa já existe, inclusive sob a perspectiva empírica?

Responder essas e outras questões é uma tarefa e tanto.

Com todos esses questionamentos, quer-se chamar atenção para o fato de que o campo do Legislativo municipal  – que precisa ser uma forte expressão de cidadania situada no espaço e lugar do Município como um custoso ente da federação, na diversidade de porte dos Municípios que integram a federação brasileira de muitas cidades e “Brasis”, impõe que se tenha um olhar mais crítico sobre o que o Legislativo municipal entrega para a sociedade a qual se vincula.

Esse alerta serve não só para a sociedade de modo geral, mas para as instituições que existem para defender os seus mais gerais interesses.

Ao próprio Ministério Público como fiscal dos poderes constituídos há de se compreender que é preciso um planejamento e uma estratégia de acompanhamento do Poder Legislativo Municipal, para muito além do que se percebe no cotidiano das notícias, ainda que isso inclua necessárias investigações sobre abuso em diárias, extorsão/peculato de cargos de assessores ocupantes de cargos comissionados, preferência ou pessoalidade para influência no fluxo ou funcionamento de serviços públicos a partir de nefastas práticas clientelistas, etc.   O Poder Legislativo municipal mantido pelos cofres públicos precisa ser instado a pronunciar-se sobre relevantes problemas de interesse local e, no geral, do que compete ao Município como ente da federação (artigo 30 da Constituição).

Mais do que isso, na perspectiva de que no “Sul” do mundo, antes de uma simples tripartição de poderes, há de ganhar espaço a relevância do “poder cidadão”, inclusive no contexto das discutidas “reformas” (dentre as quais, a política), é de se esperar que se tenha a consciência da necessidade de realizarmos um grande Fórum de debate e o consequente funcionamento de um Observatório Permanente/Painel para verificação do quanto o poder delegado mais ou menos visível dos agentes políticos do Legislativo Municipal mostra-se obediente aos interesses maiores da sociedade ou, ao contrário, mais preocupado como poder fetichizado autorreferencial.

Dada a sua relevância para a credibilidade da própria democracia no controle da voracidade do capital, em especial considerando o atual cenário e a média dos subsídios dos agentes parlamentares municipais a partir do próprio marco constitucional (artigos 29, incisos  I, IV e V, VI da Constituição) e o quanto isso significa na conjuntura dos recursos públicos, precisa-se de maior e melhor  controle social e vigilância sobre a institucionalidade Câmaras Municipais de Vereadores.

A Câmara não pode ser uma instância de prolongamento ou de mero exercício retórico ou formal de controle do Poder Executivo, uma burocrática esfera em que de aprovação e chancela acrítica, mas um espaço onde a voz da sociedade é relevante para que se estabeleça um contraponto com a função  típica de administração.

Atente-se para o ensinamento de Maria Teresa Miceli Kerbauy como estudiosa do tema: “aparentemente, os poucos estudos disponíveis sobre o legislativo local apontam para a manutenção de suas características seculares, relacionada à baixa capacidade de legislar e a uma atuação fraca diante de um executivo forte. Vários fatores internos e externos serviriam para explicar esta atuação, que não sofreu alterações apesar de mudanças nos arranjos institucionais  locais, no aumento da circulação da informação e da criação de mecanismos de interlocução com a sociedade civil. A confirmação deste papel do legislativo local depende de uma agenda de pesquisa que cubra as várias possibilidades de análise que o tema oferece, o que poderia contribuir para um melhor entendimento da democracia no Brasil, já que é nos Municípios que a dinâmica da representação e da participação tem alcançado a sua maior expressão”[16].

É por isso que a sempre bem-vinda interpelação democrática precisa ter lente e olhar para a imagem e ação das Câmaras Municipais de Vereadores e de suas Excelências, Vereadoras e Vereadores, inclusive para perceber o quanto que o seu fazer cotidiano repercute na vida do povo na crise das cidades[17].

Não por acaso há inviolabilidade penal dos agentes legislativos locais[18], ainda que isso não permita mais espaço para “abuso de prerrogativa”.

Mais do que nunca, é tempo de “ver-a-cidade” (e veracidade) no autêntico  trabalho que dece ser cobrado dos agentes políticos do Legislativo Municipal.

Saber como se legisla e como se fiscaliza em certas janelas de tempo é fundamental, inclusive para que se possa fazer balanço crítico sobre o real proveito social do funcionamento dos Legislativos Municipais como espaços ideais para a circulação do poder cidadão. Esse cidadão que, ordinariamente, tem a legitimidade e o poder de “conferir” e “cassar” o mandatos de seus representantes.

O Parlamento Municipal- que pode ter de 9 a 55 integrantes, com subsídio de 20 a 75% de um Deputado Estadual, como instituição da esfera pública composta de agentes políticos que, no atendimento das demandas sociais, precisam atuar com “decoro” compatível com a elevada missão constitucional,  precisa ocupar espaço relevante na pedagogia popular cidadã, inclusive para maior crédito e satisfação e, sobretudo, responsividade. Por isso passa o aperfeiçoamento e a adjetivação de parte significativa da nossa democracia. Quer-se um Legislativo Municipal, como diz a música que serviu de intróito, ganhe as cores de uma nova roupa colorida para fazer que a democracia da cidade (e os direitos humanos nas “tramas de libertação exigidas politicamente e com a intenção de serem sancionadas institucionalmente”[19]) possa rejuvenescer, na mesma proporção do crescimento do número[20] e do subsídio dos Vereadores; se assim não for, que o povo faça a mudança em breve acontecer.

*Márcio Soares Berclaz. Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Membro do MP PR desde 2004, membro do Coletivo Transforma MP e do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais -IPDMS


[1] Dos 853 de MG, 645 de SP, 497 do RS, 417 da BA, 399 do PR, 295 de SC, 245 de GO, 224 do PI, 223 da PB, 217 do MA, 184 de PE, 184 de CE, 167 de RN, 144 do PA, 141 de MT, 139 de TO, 102 de AL, 92 do RJ, 79 de MS, 78 do ES, 75 do SE, 62 do AM, 52 de RO, 22 do AC, 16 do AP e, por fim, 15 de RR.

[2] BUENO, Eduardo. Dicionário da Independência: 200 anos em 200 verbetes. Porto Alegre: Editora Piu, 2020, p. 21: “Na Idade Média, os homens-bons (como eram chamados ou cidadãos de relevância social) de uma cidade ou vila elegiam um conjunto de oficiais para administrar a localidade. Como esses oficiais em geral se reuniam numa câmara (peça ou aposento de uma casa), o próprio órgão de administração local passou a ser chamado de Câmara. A partir do Renascimento, as câmaras das cidades mais importantes ficaram conhecidas como Senado ou Senado da Câmara. Os integrantes da Câmara encarregados de fazer as leis em âmbito municipal eram os vereadores. Foi essa a  estrutura do poder legislativo que o Brasil herdou de Portugal e que, em termos gerais, segue a mesma”.

[3] “Originário do grego, o vocábulo antigo do vereador tem da palavra ‘verea’, que significa vereda, caminho. O  vereador, portanto, seria o que vereia, trilha, ou orienta os caminhos. Existe no idioma brasileiro o verbo verear, que é o ato de exercer o cargo e as funções de vereador. Resumindo, o vereador é a ligação entre o governo e o povo. Ele tem o poder de ouvir o que os eleitores querem, propor e aprovar esses pedidos na câmara municipal e fiscalizar se o prefeito e seus secretários estão colocando essas demandas em prática. Por isso, é importante que o eleitor acompanhe a atuação do vereador para verificar se o trabalho está sendo bem desenvolvido. Ao vereador cabe elaborar as leis municipais e fiscalizar a atuação do Executivo – no caso, o prefeito. São os vereadores que propõem, discutem e aprovam as leis a serem aplicadas no município. Entre essas leis, está a Lei Orçamentária Anual, que define em que deverão ser aplicados os recursos provenientes dos impostos pagos pelos cidadãos. Também é dever do vereador acompanhas as ações do Executivo, verificando se estão sendo cumpridas as metas do governo e se estão sendo atendidas as normas legais”. Fonte: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Setembro/vereador-conheca-o-papel-e-as-funcoes-desse-representante-politico, acessoem 23 de maio de 2022.

[4]  BAZANI, Adriana Aparecida Oliveira. “Poder Legislativo Municipal: uma análise da produção normativa de políticas públicas de iniciativa parlamentar na Câmara Municipal de Vitória-S (2009-2019). Dissertação de Mestrado. Vitória-RS: Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória- EMESCAM: 2021, p. 110/111: “Isto porque, na maioria das cidades brasileiras, o cenário mais comum tem sido o de um forte protagonismo do Poder Executivo, enquanto as Câmaras Municipais enfrentam as limitações impostas pela legislação e outros obstáculos para a formulação de políticas públicas locais. A falta de expressão no cenário político, ou o desempenho quase sempre subordinado ao Poder Executivo geralmente leva à ideia de certa inutilidade do referido órgão. Entretanto (…) a Câmara Municipal é órgão de representação popular indispensável ao regime democrático e possui estreita relação com a cidadania, que foi erigida à categoria de princípio fundamental da República Federativa do Brasil a partir da Constituição de 1988.

[5] TRANSPARÊNCIA BRASIL. Opacidade domina sites de Câmaras Municipais da Região Metropolitana do Rio. Notícia de 05 de novembro de 2020. Acesso em 23 de maio de 2022. https://blog.transparencia.org.br/camaras-rmrj/

[6] FALCONIERY, Andressa Fioravanti. Transparência das Câmaras municipais das capitais do Brasil. Dissertação de Mestrado. Fundação Getúlio Vargas (RJ), 2016. “O estudo pretende avaliar o nível de transparência das Câmaras dos vereadores das capitais do país. Para isso, criou-se duas metodologias baseadas nos oito princípios de dados abertos. Uma mede o nível de cumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI – 12.527) por parte dos órgãos; a outra mede o nível de transparência sobre o trabalho legislativo. As avaliações foram feitas em 39 websites oficiais das 26 Câmaras. (…) A baixa performance no caso da LAI indica, ao mesmo tempo, uma falta de detalhamento dos itens requeridos no artigo 8º da lei 12.527 e uma baixa preocupação das Câmaras em atendê-la. Em relação às informações legislativas, nota-se uma falta de padronização dos sites, indicando carência de normas que orientem a transparência desses dados”.

[7] NETO, Joaquim Marcelino Joffre. Câmaras Municipais do Brasil – um Estudo introdutório do afastamento dos Legislativos Municipais de suas funções constitucionais. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FGV/SP, 2001.

[8] MIRANDA, A. V. Legislar? Um estudo do papel do legislativo municipal na produção de leis no interior do Paraná. Dissertação de Mestrado Toledo: UNIOESTE, 2015.

[9] ALMEIDA, Patricia Sene de. Políticas distributivas e cidade: o comportamento legislativo de Vereadores e sua relação com a gestão do espaço urbano na RMC. Dissertação de Mestrado. Curitiba: PUC-PR, 2021.

[10] AMARAL, Tiago Valenciano Previatto. As elites políticas de Maringá: um estudo sobre a Câmara Municipal, 1997-2012. Dissertação de Mestrado. Maringá: Universidade Estadual de Maringá (UEM), 2011.

[11] ROCHA, Thais Damaris da. Programa Câmara Jovem: limites e possibilidades de um processo de socialização política. Dissertação de Mestrado.  Cascavel-PR: UNIOESTE, 2012. 

[12] Folha de São Paulo, 15 de maio de 2022. “Lugar de negro…”: “No livro ‘Lugar de Negro, de Lélia Gonzales e Carlos Hasenbalg, a análise de diversos modos de dominação deixa evidente a constância de um espaço físico ocupado por dominadores e dominados, no qual o lugar natural do homem branco costuma ser o do privilégio. No dia a dia, a violência política de raça, que impulsiona ataques a parlamentares pretos e pardos Brasil afora, é uma das expressões desse critério de divisão social. O exemplo mais recente envolve o vereador Renato Freitas de Curitiba.

[13] RIOS, Genilria de Almeida. Representação feminina na Câmara de Vereadores de Fortaleza. Dissertação de Mestrado. Fortaleza-CE: Universidade Federal do Ceará, 2014.

[14] ROCHA, M. M; e KERBAUY,  M.T.M (Org). Eleições, partidos e representação política nos Municípios brasileiros. Juiz de Fora: Editora UFJF,  2014, p. 28: “Sabe-se pouco sobre a organização e a estrutura das Câmaras Municipais no Brasil. Espera-se que a enorme diversidade em termos de porte populacional e capacidade fiscal gerem perfis muito diferentes no formato e nos procedimentos das Câmaras e, logo, no grau de desenvolvimento institucional e modernização dessas instituições. Os esforços para superar a carência histórica de dados sobre o Legislativo local no país ainda não permitiram a elaboração de um quadro completo e representativo da estrutura e do funcionamento das Câmaras Municipais considerado-as em toda sua diversidade. 

[15] Nas poucas referências feitas ao longo deste texto, quer-se mostrar que já existem muitas pesquisas que precisam de descobrimento e desvelamento.

[16] KERBAUY, Maria Teresa Miceli. As câmaras municipais brasileiras: perfil de carreira e percepção sobre o processo decisório local. Opinião Pública, Campinas, Vol. XI, n. 2, outubro de 2004, p. 337-365. Disponível em:  https://www.scielo.br/j/op/a/3JPmBy4ZMsZPfx4jzqntKDt/?lang=pt.

[17] BUENO, Eduardo. Dicionário da Independência: 200 anos em 200 verbetes. Porto Alegre: Editora Piu, 2020, p. 29: Cidadão – em sua essência, a palavra de origem latina já faz referência ao significado mais explícito: cidade. Ou seja, refere-se às pessoas que vivem em cidades (…)”.

[18] TORON, Alberto Zacharias. A inviolabilidade penal dos vereadores no Estado democrático de Direito. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003.

[19] RUBIO, David Sánchez. Fazendo e desfazendo direitos humanos:  Santa Cruz do Sul-RS: EDUNISC, 2010, p. 35: “Simultaneamente ao aumento de forças que impõem posicionamentos de não reconhecimentos, aqueles que sofrem o sufoco das verticalidades, e dos abusos de poder, reagem. As assimetrias sociais determinam dominações estruturais ou sistemáticas que em muitas ocasiões se enfrentam através de resistências que produzem e reproduzem relações e lógicas não discriminatórias. Nesses processos se gestam reivindicações de autonomia, de autoestima e de reconhecimento como sujeitos com capacidade para contribuir com a construção e reaproximação das realidades e de possibilidades. Enfim, se luta por direitos, por direitos humanos. Tenta-se articular tramas de libertação exigidas politicamente e com a intenção de serem sancionadas institucionalmente.

[20] Lembre-se do RE n. 197.917 do STF julgado em 2002 e, posteriormente, da Emenda Constitucional n. 58/2009.

Nota em defesa do vereador Renato Freitas

Marina Azambuja

O Coletivo Transforma MP está apoiando a nota em defesa do vereador curitibano Renato Freitas (PT). O jovem parlamentar negro está sofrendo perseguição e pode ter o seu mandato cassado hoje, 19, pela votação da Câmara de Vereadores de Curitiba. 

Em fevereiro deste ano, Renato ocupou a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada no centro da capital paranaense, o local foi construído pelos negros durante o perído colonial. De acordo com informações divulgadas pelo vereador, o objetivo da manifestação na Igreja era protestar contra a violência vivida pela população negra no Brasil. A partir deste dia Renato está sendo acusado de quebra de decoro parlamentar, e está sendo acuado por colegas vereadores e pelo próprio prefeito. 

O mandato do vereador é pautado pela defesa dos direitos humanos, incluindo os negros, população de rua e dos mais humildes. Se a cassação for aprovada, Renato pode perder os seus direitos políticos, se tornar inelegível, além de prejudicar a continuidade do mandato social e em defesa dos grupos minorizados, que estarão ameaçados na cidade de Curitiba. 

Fachin recebe carta de movimentos sociais em defesa do sistema eleitoral 

A Coalizão pela Defesa do Sistema Eleitoral entregou documento contra ataques de Bolsonaro à Justiça Eleitoral e seus servidores. 

Por Marina Azambuja 

Ontem, 17, diversos movimentos sociais foram até Brasília para entregar ao presidente do TSE, Min. Edson Fachin, uma carta em defesa do sistema eleitoral brasileiro e contra as insistentes declarações falsas e inverídicas do presidente da República Jair Bolsonaro em relação às urnas eletrônicas. A iniciativa de produzir o documento foi da Coalizão pela Defesa do Sistema Eleitoral, que é composta por mais de 200 entidades, incluindo o Coletivo Transforma MP, que estão comprometidas a defenderem a Justiça Eleitoral, pois entendem que ela é fundamental para o funcionamento da Democracia no país.  

Desde 2019, Bolsonaro ataca o sistema eleitoral brasileiro atribuindo-lhe a pecha de fraudulento, mas nunca apresentou provas de suas afirmações e mesmo assim, segue divulgando informações caluniosas contra a Justiça eleitoral e seus servidores. 

Para as entidades que compõem a carta, os ataques de Bolsonaro causam instabilidade política e democrática em um ano de eleições, por isso o documento propõe que a Justiça Eleitoral, por meio do presidente do Superior Tribunal Eleitoral (TSE), Edson Fachin, requisite esclarecimentos ao governo Federal sobre as falácias pronunciadas e, se necessário, que instaure uma comissão de investigação para apurar se há interferência do Planalto na regularidade do processo eleitoral. 

Outro pedido importante registrado na carta é para que o TSE forme uma grande missão internacional de observadores eleitorais, com experiência em análise de processos eleitorais em outros países, para que acompanhem o pleito de outubro deste ano. 

O Coletivo Transforma MP foi representado pelo procurador de Justiça do MPMG, Edson Baeta, que esteve presente na solenidade que repercutiu nos principais veículos do país.

Justiça Eleitoral 

A Justiça Eleitoral utiliza mecanismos tecnológicos que garantem o sigilo e a segurança das urnas eletrônicas que proporcionam o voto limpo e preciso aos brasileiros, além dos procedimentos de auditoria e verificação dos resultados que podem ser certificados pelo Ministério Público, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo próprio eleitor.

Portanto, proteger as urnas eletrônicas é defender a democracia que foi conquistada com muita luta, mas que continua ameaçada.

Ficou curiosa ou curioso? Qualquer cidadão pode ter acesso ao acervo de votos fornecidos pelo TSE, basta solicitar um formulário com as informações desejadas.

Transforma MP se junta a movimentos sociais para entregar carta ao ministro Fachin

Por Marina Azambuja

O Coletivo Transforma MP juntamente com mais de 200 entidades, entregará uma carta  do movimento “Coalizão para a Defesa do Sistema Eleitoral” para o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Edson Fachin, nesta segunda, 16. 

A finalidade do documento é repudiar as falas e atitudes do presidente da República, Jair Bolsonaro, contra o sistema eleitoral brasileiro, que é um dos mais seguros e sofisticados do mundo. Outro fato destacado pelas entidades é o ataque de Bolsonaro aos servidores da Justiça Eleitoral, cujo trabalho é indispensável para o funcionamento da democracia de eleições transparentes.  

O Transforma MP será representado pelo procurador de Justiça MPMG, Edson Baeta em Brasília.  

Pela/com democracia, somos todos ‘cidadãos inteiramente loucos…’ ‘… com carradas de razão

Por Maria Betânia Silva no GGN

Este título é, em boa parte, um verso da música “Estação Derradeira”, de Chico Buarque e originalmente foi escrito sem as reticências aqui postas. Com as reticências, ele assume um uso intertextual porque orienta o raciocínio que se desenvolve neste artigo/manifesto.

Na canção mencionada, Chico rende homenagens à Escola de Samba da Mangueira e com o talento que lhe é usual, numa poética breve e profunda, faz uma pungente narrativa sobre o Rio de Janeiro, cidade que, no Carnaval, atrai os olhares do mundo todo, sintetizando, em certa medida, o país. E não poderia ser diferente. O Rio foi durante o Império – período que inaugura o autoritarismo nacional nessas terras – a capital do Brasil e só deixou de ter esse status quando da fundação de Brasília, em 21 de abril de 1960. A despeito desse ‘passado capital’, no Rio de Janeiro, o Brasil se fez sempre presente na passarela do ritmo como um país alegre da cabeça aos pés e desde então ninguém no solo desse “gigante pela própria natureza” pode ignorar ou menosprezar os desfiles das Escolas de Samba do Rio.

Refrescando um pouco a memória sobre os acontecimentos dos últimos anos nessa ‘terra- batucada’ quem se lembra do desfile da Mangueira, em 2019? O samba da ‘Verde-Rosa’ ecoou após a consumação da tragédia eleitoral de 2018 que se abateu sobre nós como se fosse um resultado errático do golpe de 2016. Porém, errático ou não, o resultado foi acolhido como expressão de uma disputa democrática, que a essa altura já dava sinais claros de estar bastante longe de qualquer normalidade, seja em virtude das ‘Temerosas transações’ que levaram à deposição da Presidenta Dilma dois anos antes; seja em virtude da vida pregressa do candidato eleito, marcada por atitudes autoritárias e sabotagens.

O samba enredo da Mangueira, em 2019, veio com ares de faxina: “tirou a poeira dos porões” da História do Brasil e mostrou “o avesso do mesmo lugar”.  A Mangueira, frondosa e frutífera como é, dava o seu recado, passava a limpo a História do Brasil, atestava quão longo, doloroso e desafiador era, foi e é o percurso para trazer à tona a verdade, estrategicamente, ocultada pelos governos não democráticos que se sucederam no país. Governos, aliás, especialistas em manusear as chibatas contra o corpo do povo negro, em tempos remotos e que, na contemporaneidade, se mostram hábeis para ameaçar com os fuzis a liberdade e a vida desse mesmo povo.

Marielle Franco, por exemplo, mulher negra, vereadora altiva, engajada e defensora dos Direitos Humanos, foi martirizada junto com o seu motorista Anderson Gomes, após ter o carro que a transportada perseguido e perfurado por balas. Um “fuzil’ engatilhado contra ela apagou o brilho do sorriso largo que embelezava o seu rosto e a vida de quem lhe conhecia, de perto. Anderson teve o mesmo destino. Milicianos habitantes do condomínio em ascensão, no Rio de Janeiro, apontados como executores do crime, silenciaram quanto à autoria da encomenda que lhes foi feita. Houve prisão de um deles, mas estranhamente nenhuma palavra, ainda, foi dita por eles para finalizar oficialmente a investigação.

Neste ano de 2022, a vitória no Sambódromo foi da Escola Grande Rio, entoando um samba que, novamente, enalteceu a cultura negra; a cultura que durante o desgoverno atual foi explicitamente escolhida como alvo de chacota, reatualizando o uso da chibata, por outros meios. A cultura negra, porém, malgrado o peso em arrobas das palavras e da opressão que lhe é imposta pelo representante, pelos agentes e apoiadores desse desgoverno, resiste, com toda força.

Contudo, a opressão e o desrespeito às diferenças culturais se disseminam e alcançam também a cultura indígena, que é raiz nesse chão onde pisamos, bem antes das ramificações ditas civilizatórias. A cultura indígena é aquela que nos dá orgulho, é como se fosse na lógica capitalista que nos rege, um “selo de autenticidade”.  A rigor, é a cultura que contesta essa lógica do capital e envaidece muitos de nós que almejamos um mundo mais despojado e menos consumista. Os indígenas nos impressionam como a lua luminosa que emerge por trás das copas das árvores da floresta; a cultura indígena nos desafia a repensar as cidades e os valores que  apreciamos; é a cultura através da qual vamos sendo ensinados a viver a liberdade no coletivo, sem culpas e sem folha de parreira para (en)cobrir a “vergonha”.

O fato é que os desfiles das Escolas de Samba vêm dando ênfase à real História do Brasil e vêm descosturando o “lábaro estrelado”. Com isso, as letras dos sambas e as evoluções na avenida permitem entender que há uma sintonia entre o espírito de porco daquele que enlameia o Planalto Central, com os tempos sombrios durante os quais as diferenças de toda ordem eram reprimidas, rejeitadas e as pessoas defensoras dessas diferenças, eliminadas. A despeito da interrupção imposta pela pandemia, silenciando por dois anos as rodas de samba e o espetáculo aguerrido e colorido dos sambistas, no desfile da Grande Rio, o Brasil pôde testemunhar, mais uma vez, que os sambistas brasileiros não dormem em “berço esplêndido” e usam o corpo e a voz para avançar as suas alas de protesto e de reivindicações.

Ao som do samba há uma população negra organizada, envolvida na ocupação de espaços que vão muito além do Sambódromo e muito além do Rio de Janeiro.

Foi arrepiante o desfile da Mangueira em 2019 e justíssima a vitória! Comovente a festa da Grande Rio em 2022, trazendo Exu, a divindade que é a força da mediação e tem a cor vermelha como sua identidade, cor de sangue. Sangue que não precisa jorrar dos corpos negros perfurados, sangue que deve ser deixado nas veias para circular e fazer pulsar o coração tal como ocorre em qualquer outro corpo de um ser vivente. Estancar a sangria dos corpos negros, maioria da população brasileira, diga-se de passagem, depende de muitas ações. Todas elas podem ser executadas através dos meios democráticos já constituídos como bandeira de luta e organização da nossa vida cívica, como é o caso das cotas raciais e das campanhas de enfretamento ao racismo que estrutura a sociedade brasileira. A democracia é uma saída segura das encruzilhadas históricas. Exu não detona uma encruzilhada. Ele se nutre do que lá lhe ofertam e faz a mediação necessária. Não por acaso a cor vermelha é também expressão de um partido político que, aliás, inclui o movimento negro.

A Mangueira, em 2019 e a Grande Rio, em 2022, promoveram em anos diferentes uma alegria equiparável àquela da época de ouro da seleção canarinha, a qual, em plena ditadura militar, nos fez cultivar o sonho de um Brasil vitorioso e, nos fez vivê-lo, no instante do gol. Apesar dos porões e dos corpos torturados que esses porões abrigavam, o Brasil de 1970, em campo, conquistou o título de tricampeão. Onze homens, dentro eles um negro destacável, mostraram ao mundo que podiam ser tricampeões. O efeito disso foi trazer algum encanto a um país amedrontado, ensanguentado e sequestrado. Em seguida, a canarinha foi em busca do tetra. Já era outra atmosfera política e, de novo, o futebol arte prevaleceu e fez a nossa festa. Passado um tempo, foi buscar o penta, que seria uma consagração mundial! Contudo, por uma sucessão de descuidos, falta de engajamento e uma penca de talentos individuais com elevadas doses de vaidade, a realidade bateu à porta do estádio e perdemos uma Penta comemoração. Tudo se perdeu no 7×1: quem sabe uma infeliz inversão na ordem dos algarismos que prenunciava a perversão do 17, alguns anos mais tarde, com a quebra da trave democrática e a “consagração” de uma desgraça que não pode se repetir.

Mangueira e Grande Rio, na verdade, simbolicamente, lançaram ao ar o nosso grito de guerra e o fizeram sem usar armas; usaram a arte com vigor, com beleza, com esplendor, com engajamento. Derramaram e misturaram as cores verde, rosa, vermelha, amarela, azul, branco e violeta para pintar um horizonte de vida.

E assim seguimos, envolvidos pela sucessão de imagens que nos traz a euforia democrática de todos os matizes. 

Pensemos em termos de imagens, por exemplo, sobre o que a gente prefere: Escola Sem Partido ou Escola de Samba? Escola de samba, muito provavelmente; Goiabeira ou Mangueira? Mangueira; receber um dengo ou um tiro? Receber um dengo; desfile militar ou desfile de Escolas de Samba? Desfile de Escolas de Samba onde a gente dança sem ser pisoteado; Hino Nacional ou Samba? O samba, óbvio! Ou, no máximo, o Hino acompanhado, pelo menos, de um jingle!;  o verde-amarelo ou o verde-rosa? Verde-rosa, de preferência;  admite-se o verde-amarelo desde que o verde-oliva, deixe de predominar!

Pausa nas alegorias carnavalescas!

É chegada a hora de fazer apelo à vida Apolínea, na perspectiva filosófica inspirada em Nietzsche, sem abrir mão da nossa tendência Dionisíaca. Uma tarefa difícil, sem dúvida, que atravessa o Brasil desde sempre. Isto porque, de um lado, espelhado no Deus Apolo, há a imperiosa necessidade de conquistar a serenidade e o equilíbrio das formas; de outro, com Dionísio é inevitável a luta e a embriaguez da criação. Nada mais simbólico do que o “encruza” acendendo a esperança, como dito no samba da Grande Rio.

Vamos, então, público de todo o Brasil sair da arquibancada, sair das telas para cruzar a encruzilhada. Vamos pegar na mão do Dionísio e fazê-lo encontrar Apolo.  Vamos recarregar as energias para o encontro com a normalidade democrática; vamos além do desfile carnavalesco, desfilar nas Avenidas desse país em busca de um horizonte luminoso. Apressemo-nos, antes que a marcha dos fuzis engatilhados nos suplante. Vamos usando da nossa qualidade de eleitores prestigiar a democracia, ter respeito por ela, sacralizar as urnas e protegê-las das ameaças de sabotadores. Vamos honrar o título, todos os títulos de alegria que conquistamos com muito trabalho. Precisamos resgatar a democracia cujo trono vem sendo desmontado pelo fascínio nutrido por alguns em relação ao fascismo desejado por poucos.

Enfim, vamos do nosso jeito fazer o que mais queremos: sambar politicamente num espaço coletivo. Isso não significa sambar sobre a Política! Sambamos com a Política, usando nossa voz, marcando o compasso nas mãos, no pé e no corpo, com muito gingado. Sabemos manter o ritmo e talvez  isso seja o nosso maior talento. O ritmo do samba atravessa o país e ele não sufoca os outros tantos ritmos que cultivamos: o forró, o carimbó, o frevo, o funk e por aí vai…

Eis aí a nossa originalidade política!

A nossa democracia é musical e isso se projeta na Política do país. Os ritmos dialogam entre si e as canções embalam nossos passos. Foi isso que forjamos com maestria no seio da nossa vida em comum por muitos anos, em especial, sob a ditadura. É nossa cultura artística que revela a nossa exuberância e nos faz resistentes e vencedores! Precisamos disso, precisamos usar isso para o melhor que desejamos. A cultura musical, a arte é o nosso bem e nisso temos tudo de bom. “Quem não gosta de samba bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé”. E há muita gente vilipendiando a nossa cultura, fazendo dela um arsenal de morte, quando ela é e sempre foi a nossa vida.

Nossa ideia de democracia não se sustenta no voto sem graça, nem nas armas que causam a morte; ela se sustenta num voto de vida e de afirmação de bem-estar de convivência, inclusão das diferenças para realizar a igualdade. A apoteose da nossa vida cívica não se faz por meio de uma eleição carregada de falsidades, sabotagens, fantasias rasgadas, projetos descoloridos e alegorias aterrorizantes, entre botas e fuzis.  A nossa apoteose cívica se faz através de uma eleição à qual nos entregamos de peito aberto, com um coração vibrante que resgata a nossa alegria, que nos embala em afeto, que nos faz explodir em sorrisos, e permeado de abraços para cuidarmos uns dos outros. Precisamos ter um ‘coração na cabeça’, deixar essa cabeça tomar-se pela embriaguez de palavras doces para, assim, travar definitivamente os fuzis da crueldade, da vileza, da raiva e do ódio.

A História do Brasil é como o Rio de Janeiro: uma baía cheia de reentrâncias, de tudo tem um pouco mas talvez num ponto elevado qualquer de nossa existência, de braços abertos, possamos a ver o todo e acolher quem se acha mais desamparado e exaltar quem se dispõe a fazer algo de útil para todos. Não precisamos mais viver um calvário. Ele já nos foi imposto há quatro anos, embora tenha sido preparado há mais tempo. Precisamos, agora, fazer o desfile dos gigantes humanistas e inibir e responsabilizar os humanos bestiais que trituraram a nossa carne e nos roubaram bons momentos na passarela da vida.

No Rio de Janeiro, estado do Brasil que garantiu a eleição do Inominável, como parlamentar, por quase trinta anos, o tal que hoje ocupa a Presidência do país… o estado que elegeu Witzel como governador… um estado cuja capital já elegeu Crivella como prefeito e um Inominável III como o vereador mais votado, é o lugar onde também se ergue uma Mangueira e uma Grande Rio e cujas vitórias nos inspiram. Uma Mangueira como árvore-escola imensa (tal como são os baobás para os africanos) sob a sombra da qual ouvimos a narrativa de fatos históricos tantas vezes negados; uma Mangueira, de fé no povo, que desvelou, no tempo presente, o passado amargo fazendo a catarse que precisava ser feita para saborear o futuro como algo doce. Depois, já este ano, o povo negro, na Grande Rio, pediu a Exu uma orientação para passar na encruzilhada. Eis o que em nós exulta.

No samba de Chico que inspirou este texto, há um verso que diz: “Rio de Janeiro…cada ribanceira é uma nação…”  O Rio de Janeiro e o Brasil, mais uma vez, se assemelham na “civilização/encruzilhada” de nações. Sobra em ambos a poesia que está no samba e fora dele e não existe mais espaço, depois de passados esses quatro anos, para se ter a dúvida: “…e agora José?”

No contexto atual, um verbo a ser dicionarizado circula de boca em boca: lular. Este verbo significa um saber próprio em lidar com as contradições e com as adversidades. Um verbo que funde senso de equilíbrio e ação embriagadora, potente. Um verbo que, surgido no linguajar do Nordeste, se conjuga também em São Paulo como sinônimo da força de trabalho em movimento de transformação e capacidade organizativa, e assim, vai sendo ouvido e apreendido país afora.

Algumas pessoas o utilizam como substantivo, sinônimo de gente cujo passado cheio de percalços não apontava para uma trajetória de sucesso e que acabou prevalecendo como uma trajetória de conquistas. Portanto, é um substantivo que traduz a vida daqueles passíveis de morrer de fome ou de ódio mas que sobreviveram a isso. Um passado não muito diferente do samba que trata tanto da resistência quanto da tragédia. Um passado que convertido em música traz a arte do viver. Nenhum samba evita que a tragédia aconteça mas impede que ela se torne algo definitivo porque exorciza a dor. Verbo ou substantivo essa palavra à espera de um dicionário diz de alguém que efetivamente não tem medo de ser feliz e contagia a todos.

Ser feliz ou, pelo menos, interessante na passarela da vida não é algo simples. É um processo lento e rugoso que demanda qualidades, tais como: força de vontade, um coração sensível , acolhedor e leve. Ser feliz demanda, sobretudo, paciência, muita paciência para acompanhar o tempo das grandes causas.

Portanto, se algum brasileiro, neste momento, ainda, está impaciente com o destino do país porque não vê na disputa eleitoral o candidato dos seus sonhos e, além disso, do quadrado de seu gabinete lotado de livros, olha pra estante e olha pra rua querendo aplicar a revolução como fórmula instantânea, motivada pelo ódio, sem planejamento e sem projeto definido de como conquistar o poder para o povo talvez, para esse brasileiro, tenha chegado a hora de deitar no divã e levar a terapia muito a sério, única forma de inibir a pulsão destrutiva que se nutre de ressentimentos por não ter, ele próprio, no passado, com a pureza da sua ideologia, contribuído para reduzir a dívida social. Serenize-se , agora,  diante das condições objetivas que a realidade lhe oferta, caro brasileiro, vá viver uma subjetividade de coração pleno e leve. Pense que no futuro será possível conjugar o verbo lular no pretérito-mais- que- perfeito.

Se algum leitor deste texto estiver aprisionado no estado de insatisfação pare e pense para refletir um pouco mais, só mais um pouco. Olhe em volta como se mirasse a realidade com uma câmera fotográfica, que abre por alguns segundos, a objetiva e forma um ângulo para a entrada de um feixe de luz; depois disso, pisca e captura a imagem. Ao fazer isso você poderá ver o espetáculo do carnaval tão atraente e efusivo, mas poderá também ver pessoas em farrapos; quase como ossos deambulantes; ou, ainda, ossos servidos como refeição, algo inédito ao longo das duas décadas anteriores a essa que vivemos. Você pode ver pessoas entristecidas, pessoas em fuga, pessoas silenciadas, pessoas amedrontadas, pessoas apáticas, imobilizadas sob cobertores rasgados deitadas ao relento no chão da praça.

Repare bem na deterioração da vida dos brasileiros ao longo desses quatro anos: repare nos proletários precarizados… são quatro anos que aprofundaram a supressão de direitos iniciada há seis; são quatro anos durante os quais a “arminha” foi elevada à condição de símbolo nacional; quatro anos de cultivo da indiferença, tanto que a morte de milhares de pessoas pela Covid-19 se resumiu a uma pergunta-resposta “…e daí? Eu não sou coveiro!”; são quatro anos de implosão dos alicerces do edifício civilizatório, portanto;  quatro anos manejando mal o orçamento do país (dinheiro público) para, enfim, tê-lo como uma porteira aberta para os animais de estimação e uma muralha para os que têm fome; quatro anos vividos para chegar ao ponto de tornar o carrinho de supermercado um equipamento quase sempre vazio mas que se empurra como quem leva um caixão de defunto: nenhum entusiasmo e o coração pesado; quatro anos incendiando o verde do país inteiro: tentando queimar a esperança;  quatro anos durante os quais a mentira se tornou um hino de glória à destruição. Isso tudo pode ser capturado com um piscar de olhos, mas não pode ser resolvido na mesma velocidade.

A lição que a História do Brasil nos dá desde 1822, pelo menos, é que a realidade que nos envolve muda muito lentamente; as feridas abertas antes de cada efeméride são profundas e as alegrias secam como perfume, porém, somente os fracos se afundam nos frascos dessas feridas. Nesse contexto, os fortes estendem a mão para ajudar mesmo quando lhes falte um dedo.

“Mais que nunca é preciso cantar”, resgatando o afeto para reequilibrar a cabeça. É preciso ver e viver de forma empática o cotidiano dos vulneráveis, deixando-se encantar com a folia das estrelas enquanto se toma distância da folie dos generais embolorados. É preciso se entregar à Política que nos embala a vida como um corpo se lança no gingado e na cadência das notas musicais. É preciso conjugar o verbo lular na escola da vida: dos 16 aos 76 anos ou mais para criar a possibilidade de fazer “passar na avenida o samba popular” e nos livrar da mais disruptiva página da nossa História. Esse verbo conjugado no futuro do indicativo permite escrever as demais páginas com algum alívio. O ritmo histórico de um país atavicamente golpista e deslumbrado por botinas e butins nos desafina, nos desidrata e nos faz definhar. Mas esse verbo que rege a vida de alguém apaixonado e apaixonante que não sucumbiu à fome e ao ódio nos faz amadurecer para dialogar. Apaixone-se, portanto!

Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça Aposentada – MPPE e  membra do Coletivo Transforma – MP.

                                                                    

Vivência democrática: uma breve retrospectiva sobre os primeiros passos do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia

Por Maria Betânia Silva no GGN

Esta semana, em Porto Alegre, será realizado o Forum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) em conjunto com o Forum das Resistências. Este último ocorre há quatro anos e marca uma posição democrática contra o golpe midiático-judicial-parlamentar perpetrado em 2016 para tirar a Presidenta Dilma Roussef do cargo; já o FSMJD é o primeiro Forum temático decorrente do Forum Social Mundial, que há duas décadas se realiza e teve a sua edição inaugural justamente na cidade de Porto Alegre.

Assim, para além do simbolismo de ter Porto Alegre como lugar de acolhimento de foruns importantes, o FSMJD, gira em torno de questões relativas à democracia, diferindo um pouco dos demais foruns acima citados porque torna central o debate sobre a democracia e aprofunda a necessidade de abordá-la de um ponto de vista tanto teórico quanto prático para fortalecê-la em todos os sentidos.

O FSMJD é mais do que um acrônimo. Ele significa uma escolha contundente da democracia como o melhor regime na construção de uma sociedade igualitária, senão menos desigual do que aquela que temos. Por conseguinte, representa a (re)tomada por um sentido de justiça que nos orgulhe, nos estabilize na defesa dos direitos e não nos faça sofrer. Essa escolha não é resultado de uma única vontade e trazendo  no seu DNA a própria  democracia porquanto está assentada numa base coletiva. 

O FSMJD agrega, hoje, quase duas centenas de entidades de diversos segmentos sociais cuja atuação direta ou indiretamente deixa entrever falhas no sistema de justiça no Brasil e em outros países. Essas falhas têm a ver com a inoperância desse sistema para fazer valer, quando acionado, os direitos fundamentais – devidamente reconhecidos na ordem jurídica nacional – de parcelas significativas da população.

Não é preciso muito esforço para perceber que um sistema de justiça atravessado por falhas na efetivação de direitos fundamentais compromete profundamente a conquista e consolidação da democracia, tornando-se, por isso, peça-chave no processo histórico para redução das desigualdades sociais.

Merece destaque o fato de que o FSMJD é ele próprio mais uma semente democrática, dentre tantas iniciativas da sociedade brasileira e daquela de outros países, para viver dias melhores diante do neoliberalismo que avança para devorar  todos, todas e todes. A semente que o Forum quer fazer germinar é algo muito especial e, de certo modo, inédito. Ele é definido como um “movimento de resistência, de denúncia, de criação e de luta para a transformação do sistema de justiça assim como de consolidação de instituições nele envolvidas e comprometidas com os valores da democracia, da dignidade e da justiça social” mas o seu planejamento desde o primeiro momento em que a ideia foi lançada pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos seguida da forma como os representantes das entidades integrantes do Forum procederam, ao longo dos últimos vinte meses, foi a mais pura vivência de democracia que se poderia ter.

Não estou exagerando quando digo isso. 

1. Ponto de Partida

Em 2020 alguns grupos de juristas manifestaram entre si preocupação com o sistema de justiça e a democracia, atentando para o desamparo de alguns segmentos sociais diante da pandemia; em seguida, o Prof. Boaventura de Sousa Santos foi instado a ouvir essas manifestações e com a perspicácia e sensibilidade que lhe são habituais, lançou a ideia de um Forum para promover de forma mais sistemática a discussão dos problemas que emergiam. A  partir daí se iniciam os trabalhos para preparação de um evento presencial designado FSMJD. 

Com exceção da temática, não estavam definidos nem lugar, nem data para realização desse evento, muito menos as atividades que ele abrigaria. Era preciso metodologicamente criar um repertório de questões relacionadas a essa temática e, então, sistematizá-las. 

Logicamente o lawfare aparecia como uma questão ululante. Tinha-se muita clareza das manipulações operadas no seio do sistema de justiça com objetivos político-partidários 

corrosivos do próprio sistema e da democracia. Contudo, a partir do convite feito a diversas entidades que se aglutinariam em torno da ideia capitaneada inicialmente pelo Transforma MP, em conjunto com a ABJD, AJD APD, Coletivo de Defensoras pela Democracia e Policiais Antifascistas,  logo se viu que o leque de questões correlatas à Justiça e à  Democracia devia ser ampliado, abrangendo reflexões sobre o capitalismo, desigualdades sociais, a centralidade do mundo do trabalho, povos originários, grupos vulnerabilizados, preservação ambiental, racismo estrutural, cultura e o epistemicídio relativo aos saberes indígenas e da população negra e, ainda, os impactos da tecnologia da informação. Todos esses temas constituíam debates frequentes no interior do sistema de justiça e, não raro, eram e ainda são abordados de forma inadequada ou até ignorados como definidores de um Estado  verdadeiramente Democrático.

2. Traçando caminhos

A chegada de mais entidades representativas de segmentos sociais diversos, tornou o FSMJD uma Ágora virtual,  com a interação e diálogo entre cidadãos e cidadãs empáticos/as e preocupados/as com o destino das pessoas dentro e fora das cidades. Para vocalizar as demandas das entidades, fez- se um seminário com os seus representantes, cada um deles apontou a pauta prioritária de sua entidade, esclarecendo os objetivos e as dificuldades enfrentadas para atingir um patamar satisfatório de atendimento a essa pauta. Esse seminário, realizado virtualmente, registrou  falas expressivas de quem, no cotidiano da vida, vê e sente o sofrimento da população e encontra limitações na ação para aplacar com mais firmeza esse sofrimento. Uma vez transcritas essas falas, a espinha dorsal do FSMJD foi se desenhando e projetando aquilo que poderia ser o seu formato presencial com os mais variados assuntos, todos convergindo no sentido de buscar a transformação do sistema de justiça e afirmar a democracia.

A fim de otimizar o planejamento do evento presencial e distribuir as tarefas entre representantes das entidades foram criados seis grupos operacionais (os chamados GO’s): Metodologia, Comunicação, Recursos, Infraestrutura, Cultura e Mobilização, todos eles compostos por pessoas indicadas pelas entidades que já integravam o Forum, a essa altura. Esses grupos regidos entre si e, internamente, pelo princípio da horizontalidade, definiam a pauta e o dia de suas reuniões e produziam, então, as suas deliberações. Eventualmente, quando o assunto deliberado engendrava algum impasse ou tinha repercussão no atuar de outro grupo operacional essa situação era reportada ao Comitê Facilitador cujo nome já esclarece o seu papel: facilitar a resolução de eventuais impasses. As questões mais abrangentes, envolvendo todos os grupos e a sua relação com o Comitê Facilitador, formado igualmente por representantes escolhidos pelas entidades, eram, por seu turno, encaminhadas à Assembleia Geral formada por tantos representantes das entidades do FSMJD quantos quisessem dela participar. 

Assegurar o princípio da horizontalidade na configuração dos trabalhos preparatórios do FSMJD em todos os grupos foi  o grande desafio que todo mundo enfrentou com esforço para respeitar. Isto porque a horizontalidade do processo decisório é a subversão de condicionamentos históricos que fomenta estruturas hierarquizadas e excludentes. Fazer valer esse princípio implicou conceber o FSMJD sob a forma de uma mandala ou de uma rosa. Foi preciso recorrer a uma representação gráfica para bem introjetar a dinâmica que se estava instaurando. Numa analogia, os GO’s seriam como pétalas de uma rosa que se interseccionam sem que nenhuma 

delas possa ser arrancada para não afetar a beleza da rosa e reduzi-la ao estigma. Sob a troca de ideias sopradas como brisa na atuação de cada um dos GO’s extraiu-se o perfume a ser sentido nesse de mês de abril, em Porto Alegre. Um florescimento. Uma primavera!

Os vinte meses decorridos desde o lançamento da ideia de constituir um FSMJD foram de muito trabalho, muitas reuniões sempre virtuais, a maioria delas à noite, subtraindo parte do repouso dos participantes.  Esse trabalho também exigia a elaboração de textos e formulários submetidos à apreciação coletiva para serem objeto de reflexão de várias cabeças, modificados e/ou corrigidos em conjunto para trazer os ares frescos de uma vivência democrática. Dificuldades foram muitas, sobretudo financeiras: o FSMJD não tem recursos e depende da contribuição das próprias entidades que o compõem; foram muitos embates; tensões ocorreram; frustrações idem; decepções por certo; insatisfações quem não as teve, quem não as tem? Críticas? Muitas e, são sempre infinitas. Mas uma coisa é certa! Foram muitos os aprendizados ao longo desse processo, tanto 

em termos das relações intersubjetivas quanto  dos temas e perspectivas de abordagem. Tudo foi se  complexificando, se refinando e se firmando com mais e mais empenho e dedicação dos membros integrantes. Tudo isso ficou “embutido no preço” pago por cada um e que consistia em realizar aquilo que há vinte meses se traduzia na vontade individual de compor um sonho coletivo, fazer parte da construção de algo positivo em meio a escombros anunciados de um futuro que não se deseja para o Brasil e nem para o mundo. Cada um membro/a/representante das entidades contribuiu como pôde, usando das habilidades que tem, trocando mensagens no WhatsApp, conciliando seus afazeres de trabalho com as reuniões do GO’s e das  Assembleias Gerais, sacrificando em muitas ocasiões a convivência com familiares, projetos acadêmicos,  sempre se voluntariando para assumir mais uma tarefa aqui, outra acolá e prestando contas ao grupo do que fez, do que não pôde fazer e, muitas vezes, solicitando uma ajuda. 

Assim, seja lá que dificuldades ainda possam aparecer no caminho, todas as pessoas que contribuíram para que o FSMJD venha a se realizar nos próximos dias, deixam correr em suas veias a utopia e, de olhos abertos, alimentam um sonho que ainda não acabou; o sonho continua a lhes embalar e a vontade de torná-lo uma realidade palpável persiste a cada passo dado. Como no verso da canção “Coração Civil” interpretada por Milton Nascimento, cada  participante disse pra si e diz pro mundo que está “doido para ver o seu sonho teimoso um dia se realizar”.

3. Entrando no sonho

O FSMJD entre 26 e 30 terá mais de 100 atividades entre os dias de 26 e 30  consubstanciadas em palestras, lançamentos de livros, apresentações culturais, exibição de filmes, etc. São cinco mesas explorando os cinco eixos temáticos, propostas por pessoas integrantes do Comitê Facilitador, contando com a participação de convidados gabaritados para tratar de: Capitalismo e Desigualdades, Sistema de Justiça/democracia e Forças Sociais; Direitos e Grupos Vulnerabilizados; Comunicação e Tecnologias e Cultura e, para além disso, atividades autogestionadas concebidas e coordenadas por expressivas entidades que integram o Forum trazendo temas relacionados a esses eixos, tudo com vistas a extrair propostas que possam incidir concretamente na realidade e modificá-la para melhor.

Eis o que o FSMJD agora deflagra aos olhos de todos, todas e todes: um movimento de que um outro mundo é possível porque a experiência desses vinte meses induz a isso.

Consulte o site https://fsmjd.org para mais detalhes: ver a descrição dos eixos, consultar o caderno de atividades, saber quem são os convidados, saber sobre eventual transmissão ao vivo ou gravada de alguma atividade, etc.

*Maria Betânia Silva é procuradora de Justiça Aposentada, membra do Comitê Facilitador do FSMJD e do Coletivo Transforma MP

Eiffel: 133 anos do “Poste da Vergonha”

Por Leomar Daroncho no GGN

Paris inspira, especialmente em abril. O diálogo final do filme Casablanca, de 1942, “Nós sempre teremos paris”, é uma das referências mais lembradas. Monumentos parisienses povoam o imaginário dos viajantes, reais ou virtuais, até porque como observou Fernando Pessoa, “Para viajar basta existir”.

Por ocasião do aniversário da Torre Eiffel, no dia 31 de março, o streming da Amazon Prime lançou um belo filme: Eiffel (França, 2020). Anunciada como drama, biografia e comédia, a produção francesa celebra os 133 anos do ícone parisiense.

O enredo de 20 milhões de euros, apimentado pela retomada de um antigo romance, é apresentado como “livremente inspirado em fatos reais”, apresentando uma bela caracterização da Paris do final do século XIX, em meio a conflitos econômicos, sociais e culturais. Na saga, o engenheiro Eiffel, que participara da obra da Estátua da Liberdade, é desafiado a produzir uma obra de destaque para a Exposição Mundial de Paris de 1889, que celebrava o centenário da Revolução Francesa.

O projeto da torre atraiu a ferrenha oposição da imprensa e de ícones culturais. Foi taxado de “monstro”, “ridícula torre” que mais parecia uma “chaminé de fábrica”, atribuído à “força criativa mercantil de um engenheiro mecânico” que pretendia tornar a cidade “irrevogavelmente feia”. O Vaticano teria protestado da humilhação diante da Catedral de Notre-Dame.

Relatos da construção apresentam números impressionantes: 10 mil toneladas de aço; 50 engenheiros; e 450 operários divididos entre a fábrica de estruturas e o canteiro de obras da torre de 300 metros de altura que conta com 1.665 degraus.

O filme aborda, de forma didática, as dificuldades e as soluções inovadoras para questões complexas de engenharia, como andaimes guindastes a vapor, numa região em que a presença d’água é um desafio. Interessante, também, a forma de protesto dos operários, em greve por melhores salários e por condições mais seguras de trabalho.

Numa das passagens, o então jovem engenheiro, exímio nadador, resgata um operário que despencara no rio Garona na obra da ponte em Bordeaux. Em seguida, protesta exigindo mais madeira para melhorar a segurança dos andaimes.

Enquanto isso, no Brasil, dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, iniciativa conjunta do MPT e da OIT, apontam números vergonhosos: 1 notificação de acidente a cada 50 segundos, com 1 morto no trabalho a cada 3h51. São mais de 6 milhões de notificações de acidentes de trabalho desde 2012, com mais de 23 mil mortos, considerando apenas trabalhadores com carteira assinada. Em 2021, foram mais de 571 mil acidentes, com 2.487 mortes no trabalho.

A proliferação das formas precárias de contratação, em especial depois da Reforma Trabalhista de 2017 – dado do TST e do DIEESE indicam que 80% dos acidentes de trabalho nos setores de maior risco atingem terceirizados – e a fragilização das normas de segurança, inclusive dos setores problemáticos como os frigoríficos indicam o agravamento do quadro.

A Reforma de 2017, embalada pelo falacioso argumento de que a “modernização” e a “flexibilização” das regras de proteção gerariam empregos, trouxe um dispositivo que sintetiza o estranhamento com o conjunto do ordenamento. A CLT incorporou a afirmação de que as regras sobre duração do trabalho e intervalos não deveriam ser consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho. O parágrafo, desconectado da realidade, da ciência e da epidemiologia, é incompatível com a Constituição e com a definição de saúde da OMS e da Lei Orgânica da Saúde.

Bem antes de Eiffel, a preocupação com a segurança dos trabalhadores foi estudada pelo italiano Bernardino Ramazzini que, em 1700, publicou livro abordando os riscos do meio ambiente do trabalho para a saúde e a vida dos operários. O alerta segue sendo atual. Um francês dos nossos dias, Christophe Dejours – especialista em medicina do trabalho – indica que o trabalho é regido por relações essencialmente desiguais que “pode tornar-se um verdadeiro laboratório de experimentação e aprendizado da injustiça e da iniquidade”, para os seus beneficiários e/ou vítimas.

O dia 28 de abril é dedicado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT à Memória das Vítimas de Trabalho e de Doenças Ocupacionais (no Brasil, a data é considerada o dia nacional do tema pela Lei nº 11.121/2005). Há alguns anos articula-se a campanha “Abril Verde”, visando à conscientização massiva a respeito da necessidade de termos ambientes de trabalho mais protegidos. O Ministério Público do Trabalho participa ativamente deste movimento, junto com parceiros e atores sociais para propagar a mensagem quanto à importância da prevenção dos acidentes de trabalho.

O tempo deu razão ao cuidadoso engenheiro Eiffel, responsável pela obra que em 2 nos de construção não teria registrado nenhuma morte. A defesa do projeto junto às autoridades e aos financiadores concretizou a obra que “deveria ser útil, democrática e duradoura”, resultando na torre que já recebeu mais de 300 milhões de visitantes e está entre os monumentos mais visitados do mundo.

*Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP

De contêineres a fluxos, salvem o SUS, os palhaços e os laços

Por Cristiane Hillal no GGN

Alguém pode mesmo supor que o Estado faltante para aquelas pessoas é o Estado policial, e não o que dá chão, teto, nome, riso?

(RADICAIS E INTRANSIGENTES, reuni-vos para cuidar, cantar e dançar!!)

 O fluxo passava por mim. Era de sangue, suor, cachaça e lágrima. De noite, na frente de um contêiner gigante, ao lado da cracolândia, no centro da cidade de São Paulo, eu ainda ouvia os ecos da paralisia diante dos gritos dos doutores da verdade.

Tentava entender por onde fluía o ódio que se acumula em contêineres maiores do que aquele em que eu via na minha frente e por onde eles extravasam. É fatal. Em algum momento, ódios, frustrações, egos feridos extravasam os reservatórios das aparências e nunca estamos preparados para isso, talvez porque uma parte de nós, de todos e qualquer um de nós, também seja ódio. Ainda que seja de um ódio ao ódio.

Em fluxos, me via tentando entender as armadilhas verbais, o que falta, o que excede, as convocações para a voz seguidas dos silêncios ensurdecedores, as justificativas infames, o fluxo das lágrimas de um contêiner maior que eu. Fluía de mim o que era meu, o que era dos outros, do Outro, de nós, de todos. Naquele dia, foi contra mim que fluiu a covardia, a vaidade, o ódio ao estranho e ao novo, ao que nos desconcerta diante do espelho. Mas em todos os dias o ódio flui para alguém. E, para alguns, flui todos os dias.  

No fluxo alucinado dos meus pensamentos, eu mal respondi ao motorista do uber quando me perguntou se eu tinha, mesmo, certeza de que era aquele o meu destino: um contêiner onde se lia “teatro”, no coração caótico de São Paulo.

Ele, que vivia do fluxo do trânsito, não conseguia entender que eu era inteira fluxo a ser contido dentro daquele contêiner naquela noite. Sem esperar explicação, ele fluiu.

Me vi, de repente, sentada diante de um palhaço.

Palhaço mesmo. Com sapato engraçado, roupa larga, maquiagem, nariz de palhaço. Meio abobalhado, meio constrangedor, meio triste, meio assustador…meio…  sei lá… um palhaço, ou o que Cristiane Paoli Quito, formadora, há décadas, de palhaços, definiu como: a “fragilidade partilhada”. (1)

E ele cantava, dançava, gesticulava, fluía pelo espaço entre corpos negros e trans. Corpos maltrapilhos, desconformes, desajustados e excluídos. Todos fluíam porque, afinal, viviam no fluxo. Crianças passavam de lá pra cá, entre encenações de violência policial, enquanto comiam pipoca e riam do palhaço. No caos de vidas que fluíam dentro daquele contêiner junto com a minha, eu não sabia quem interpretava e quem “só” existia. Quem era, afinal, o mais palhaço, o menos lúcido e o mais doutor por ali.  

Desde 2012, o médico psiquiatra Flavio Falcone, baseado nos princípios da política nacional de saúde mental, cuida de dependentes químicos que moram no fluxo da cracolândia.

O médico não demorou para perceber que se trocasse o jaleco branco pelo nariz de palhaço criaria o laço que é condição para todo cuidado que se preste.

“O Palhaço faz as pessoas rirem do erro. É o que você faz de errado, é o seu defeito e não sua qualidade que é colocada ali, na frente de todo mundo. E é assim que me conecto com aqueles que estão em uma situação de esquecimento completo, que são marginais,” explica o Doutor Palhaço em uma de suas entrevistas (2), no rastro de Federico Fellini que dizia que o clown era o símbolo de inadequação do homem frente à vida. Através dele exorcizamos a nossa impotência, as nossas contradições e principalmente, a luta desproporcional contra os fantasmas de nosso egoísmo, de nossa vaidade e de nossa ilusão”. (3).

O palhaço e todos aqueles corpos fluentes em palavras, gestos, música e dança, aos poucos, foram me arrebatando para a dimensão de humanidade mais temida de todos nós: a do imenso ridículo que é nos levarmos tão a sério. O profundo non sense da cracolândia e da dita “guerra às drogas”, ali escancaradas enquanto o palhaço cantava melancolicamente “cálice”, é a prova cabal de nossa profunda incompetência ética e estética.

Será que é mesmo possível, após tantas investidas fracassadas, que alguém ainda acredite que a “terra do crack”, que na verdade é mais terra da cachaça legalizada do que do crack, pode acabar por meio de operações policiais?

Alguém pode mesmo supor que o Estado faltante para aquelas pessoas é o Estado policial, e não o que dá chão, teto, nome, riso, toque, escuta, remédio, comida e agasalho?

De onde vem a estranha necessidade de eleger corpos inimigos para justificar e normalizar a violência e o aniquilamento? Quando vamos ter coragem de enfrentar a lógica binária do bom vencendo o mau na guerra, o estranho, o ridículo que não sou eu, que não mora em mim, mas sempre naquele outro que preciso exterminar porque não suporto ter como espelho?

Será que as pessoas estão excluídas socialmente por causa das drogas? Ou buscaram as drogas justamente porque eram excluídas socialmente?

Flavio Falcone estudou medicina e palhaçaria na Universidade de São Paulo e nas ruas. Aprendeu que há remédios que não se vendem em farmácias e que patologizar a vida e dar contornos moralistas a ela é a melhor forma de despolitização que existe. Quando deixamos de enxergar a engrenagem de poder que está gerindo e alimentando as dores psíquicas e culpamos os indivíduos por serem tão fracos, depressivos, tão pouco esforçados, tão ingratos, ignóbeis, sujos, maltrapilhos e feios… renunciamos à nossa capacidade de pensar e criar novas formas de vida coletiva que não dependam do adoecimento e do descarte de seres humanos.

O palhaço, que se faz na maquiagem, não suporta maquiar o mundo.

Em 2017, sob a justificativa de uma gestão eficiente, com cortes de gastos, o palhaço foi demitido do programa Recomeço do governo estadual de São Paulo. Ele não fazia nada, afinal …   

Não há lugar político, não há polis para um sujeito tão ridículo, de jaleco e nariz de palhaço, que dá palco e microfone para as vidas fluídas da cracolândia e as convida a cantar, atuar, dançar e falar, livres pelas ruas, em vez de manda-las para comunidades terapêuticas para as quais não há eficientes cortes de despesas.

   O Relatório Nacional de Inspeção em Comunidades Terapêuticas realizado em outubro de 2017, nas cinco regiões do Brasil, em uma iniciativa da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF) – em conjunto com o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) trouxe todo o extenso rol de atentados à dignidade da pessoa humana praticados em comunidades terapêuticas marcadas sob a lógica do retorno a um modelo asilar de afastamento da pessoa com transtorno mental do seio social e familiar. Castigos corporais, falta de liberdade de ir e vir, regime de trabalho forçado, sedações sem acompanhamento médico e toda sorte de maus tratos que se imaginavam superados, há décadas, retornam a esses ambientes que de comunitários ou terapêuticos só têm o nome (4).

Com viés religioso e moralista, as comunidades terapêuticas surgiram, em um primeiro momento, à margem do sistema público. Pregam a abstinência, são baseadas em modelos disciplinares rigorosos que massificam os indivíduos e não cultivam Plano Terapêutico Singular – na contramão do que ocorre nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial que seguem os princípios da luta antimanicomial.  A despeito disso, as comunidades terapêuticas ocupam, hoje, o centro da Política Nacional Antidrogas. Segundo dados do Ministério da Cidadania, a quantidade de vagas financiadas pelo governo federal nessas entidades cresceu de 2,9 mil, em 2018, para aproximadamente 11 mil, em 2019. Na toada dessa política nacional, segue a política estadual. Prender em prisões ou manicômios disfarçados: essa é a meta. O ridículo, de fato, prescinde de um palhaço. (5)

“Se lembra da jaqueira, a fruta no capim, do sonho que você contou pra mim?”, cantava o palhaço enquanto a bailarina negra se contorcia em malabares, o MC preparava seu microfone dourado e a criançada interpretava as almas com perfume de jardim dentro do contêiner.

“Sabe porque o palhaço está de preto e vermelho?”, me perguntou o defensor público sentado ao meu lado que eu acabava de conhecer. Diante do meu fluxo de espera, ele respondeu: “por causa de EXU, que abre os caminhos”.

E assim, pelos caminhos abertos por EXU, dentro de um contêiner teatro, cercada de corpos negros, trans, pobres, sonhadores e cantantes, no laço de um palhaço, em uma noite miserável qualquer, eu fui, radical e intransigentemente, fluxo.

Se lembra do futuro que a gente combinou?
Eu era tão criança e ainda sou
Querendo acreditar, que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciou

Mas não me deixe assim
Tão sozinha a me torturar
Que um dia ele vai embora
Maninha, pra nunca mais voltar.
(6)

MAIS SUN TZU, MENOS HEMINGWAY (ou porque temer o Scooby-Doo)

Por Élder Ximenes Filho no GGN

Um passou a vida praticando o comedimento planejado e a organização extrema como caminhos para vitórias militares e diplomáticas. Apenas combatia quando estritamente necessário e estudava sem parar. Decaptou duas concubinas do rei para forçar às demais a prestarem atenção aos exercícios militares (assim provou à Corte que até as mulheres poderiam lutar numa guerra, seguindo seus princípios).   Afirmava nada querer para si, apenas bem servir ao reino. Dizia amar a paz.

O outro buscou o risco e obteve a fama: como não pôde servir na 1ª Guerra, juntou-se à Cruz Vermelha (ferido e condecorado); correspondente jornalístico na Guerra Civil Espanhola e na 2ª Grande (adoecido e condecorado); simpatizante do socialismo; vigia voluntário contra submarinos alemães na costa de Cuba; toureiro amador; dois acidentes de avião em dois dias seguidos; esmurrou Orson Wells; quatro casamentos e inúmeras amantes; brigas em bares; alcoolismo; suicídio com a espingarda favorita.

Um mítico general chinês do séc. VI antes da era comum. Talvez alguém apenas tenha  compilado outros escritos de estratégia misturados com a filosofia taoista. Sua única “A Arte da Guerra” pode ser ouvido em duas ou oito horas, dependendo da versão do audiolivro.

Um laureado do Nobel e do Pulitzer, com vida amplamente documentada. Sete romances, seis coletâneas de contos, dois livros documentais e inúmeras reportagens. Seu “Por Quem Os Sinos Dobram” dura umas vinte horas nos fones.

O que têm em comum? Normalmente, nada. Mas além dos textos e da vida, há o contexto  e o mercado! Tudodevidamente enredado na internet, cada obra tanto desvirtua-se como  customiza-se (140 ou 280 toques, tanto faz!) – ao sabor dos teclados e algoritmos.Ambos reviram-se nas covas.

Sun Tzu virou clássico dos coaches em administração de empresas e, de apostila a cartoon, suas frases viraram mantras para quem faz apresentações de projetos e disputa cargos: “Se você conhece o inimigo e a si mesmo, não precisa temer cem batalhas”; “Governar muitos ou poucos é igual: organização é a questão”; “Nunca a guerra longa beneficia qualquer dos povos”; “Um exército preparado ganha primeiro e luta depois, um despreparado luta primeiro e tenta a vitória depois”; “Ordem ou caos dependem da organização, covardia ou coragem da vontade, força ou fraqueza da preparação”; “O bom guerreiro atrai o inimigo e não inicia o combate”; “Examinar o favorável torna o plano executável, analisar o desfavorável previne os imprevistos”; “Seja diplomático nas fronteiras, faça aliados”; “Trate bem os adversários do inimigo, pois serão aliados”; “O uso de espiões é essencial na guerra e os exércitos dependem disto”… Uma das bíblias dos meritocratas e individualistas.

Hemingway tem público mais seleto e, teoricamente, melhor leitor. Pululam as citações nos vlogs e webinários: “A maneira de tornar as pessoas dignas de confiança é confiar nelas”; “Quando as pessoas falarem, ouça completamente. Não fique pensando no que você vai dizer.”; “o homem não foi feito para a derrota… Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.”; “Coragem é graça sob pressão.”; “O mundo quebra a todos e depois muitos ficam fortes nos lugares quebrados.”; “Esqueça sua tragédia pessoal. Somos todos putos desde o início e você especialmente tem que se machucar pra caramba antes de poder escrever a sério. Mas quando você se machucar, use-o – não engane com isso. Seja tão fiel a isso quanto um cientista – mas não pense que nada tem importância porque acontece com você ou alguém que pertença a você.”; “Sempre faça sóbrio o que você disse que faria bêbado”; “Para escrever sobre a vida, primeiro você deve vivê-la.”…

Todavia, nos últimos anos, a mais famosa citação tem sido: – Quem está na trincheira ao teu lado? – E isto importa? – Mais do que a própria guerra”. É exatamente aqui que chegamos aos problemas, pois Hemingway fez literatura, não ciência política! Ele também fez jornalismo sério e ativamente enfrentou franquistas e nazifascistas.

PROBLEMA 1 (literário): isto não existe no original do romance “Adeus às Armas” e é discutível se caberia mesmo numa adaptação livre. Tudo bem, vamos pesquisar – pois é lindo, seja de quem for…

PROBLEMA 2 (político): as pessoas do campo da esquerda vivem introjetando o raciocínio assim lavrado “em fios de ouro na menina dos olhos”, como dizem nas “Mil e Uma Noites”. A citação virou um mantra tal como os dos coaches. Exigem-se certificados de coerência imutável desde os cueiros. É preciso passar por algum ideal “medidor de democratas” ou “comunistômetro” para aceitar aquele ou aquela no grupo ou na aliança partidária. Ora, se o caráter de quem se dispõe a lutar conosco é mais importante do que a luta em comum, é porque devemos valorar as pessoas agora mais do que os objetivos depois. É claro que este exagero tende a produzir duas coisas: um imediatismo míope e seguidos “rachas” sucessivos em possíveis alianças.

A isto chamo “Estratégia Scooby-Doo”: quando em perigo, vamos nos dividir. Assim o monstro consegue apanhar um a um. Nos filmes de terror os primeiros mutilados são personagens jovens descartáveis, muitas vezes negros (reparem!). Lembremos dos movimentos clandestinos contra a última ditadura civil-militar, que se tornaram violentos após o alastramento da repressão e das torturas. Foram brutalmente reprimidos de fora para dentro e também (mesmo compartilhando as mesmas trincheiras-aparelhos) acabavam desentendendo-se e dividindo-se em outros menores até a desaparição.

Ora, indago a quem lê: quando estiver se afogando e o Demônio jogar-lhe uma bóia, você  recusará? Notem bem que não recomendo, depois de salvar-se, que alguém vá abraçar-se com o Capeta. Falo do instinto de autopreservação, seguido do bom senso, alimentando a lógica e produzindo a história…. TUDO aconselha que, estando sob risco existencial, é necessário aceitar a ajuda. Por mais incômoda e triste que seja. Por mais nojenta até…. Manter-se vivo e na luta é mais importante do que sucumbir (real ou metaforicamente) e ainda por cima deixar o inimigo triunfar. Isto não significa fugir nem tornar-se outra pessoa, abandonando princípios. Houve alianças iniciais entre Bolcheviques e Mencheviques; entre Mao Zedong e Chiang Kai-shek…

É óbvio que num país de histórico golpista (de Deodoro a Lacerda a Castelo Branco a Temer) é até provável que haja traições entre pessoas de uma mesma “chapa”. Os Vices para o Brasil são os idos de março para César: é preciso tomar cuidado, senão.…

Mas o desastre mesmo ocorre exatamente onde realmente movimenta-se a história. Não nos palácios ou sedes partidárias – mas nas ruas, locais de trabalho, sindicatos, associações e igrejas… Em quaisquer coletivos onde pessoas conversem sobre como agir para evitar a barbárie neofascista e presevar o mínimo de garantias aos Direitos Humanos. Nestes lugares também impera a interminável problematização sobre o agora imediato somado às desconfianças divisionistas. Até mesmo eventuais projetos pessoais de quem almeje a fama são menos danosos do que a ausência de projetos coletivos. O que vemos são bolhas dentro de bolhas, cada qual tratando de seu microcosmo e de suas lutas isoladas – cada vez mais incomunicáveis e mais frágeis ante o inimigo maior.

Estamos enfrentando uma onda mundial que vai além do conservadorismo. Eis que a pessoa conservadora não admite perder privilégios, mas consegue refletir sobre a sociedade e trabalhar por algum projeto que não lhe pareça necessariamente destrutivo. O conservador consegue aceitar os ditames da ciência. O alarmante é a onda de regressismo totalitário, ético e teocrático. É a movimentação consertada em prol da volta do passado idealizado por mentes que almejam a destruição dos diferentes. Tudo com foco na manipulação técnica das emoções, a golpes de fake news e propagandas de ódio direcionadas por algoritmos para os alvos exatos jamais verem-se como o que são: pessoas irmanadas pela classe e pela condição humana de trabalhadores e trabalhadoras.

O modo de produção capitalista, como sempre, continua produzindo duas crises cíclicas. Continua produzindo acumulações de riquezas infinitas nas mãos de cada vez menos, enquanto espalha a miséria para o resto. Vejam as estatísticas. Vejam que na recessão da pandemia os bilionários enriqueceram. Neste mesmo mundo, o último relatório da ONU sobre Segurança Alimentar (meados de 2021) mostrou que mais pessoas caíram ao nível da pobreza estrema em 2020 do que nos cinco anos anteriores juntos. Neste ano foram 810 milhões de seres humanos passando fome!

Temos Prêmios Nobéis e magnatas defendendo a renda mínima universal como forma de garantir a vida das multidões de miseráveis e inimpregáveis – além de manter, talvez, esta parte inferior do mercado consumidor funcionando. Isto sequer seria “entregar os anéis”, pois não mais se vislumbra a ameaça contra “os dedos” dos poderosos proprietários. São migalhas apenas, embora com respeitável embalagem de solidariedade. Todavia, não nos enganemos: a caridade acabará no instante em que a contabilidade demonstrar que dá mais lucro cortar a renda universal e gastar com a manutenção de guetos e a guarda de fronteiras. A indústria bélica jamais descansa. É a real ameaça da distopia de uma sociedade globalizada do controle, primeiro mediante celulares e aplicativos e depois mediante identificações faciais compulsórias e drones armados (a imaginação é o limite).

Ao alcance dos dedos está a literatura mundial. Os livros que fazem a crítica radical da economia política e da formação social – cuidando do “macro”. Os manuais de estratégia (como Sun Tzu, Guevara ou Mariguella) – versando o “micro”. Por dentro de tudo e entre uma coisa e outra, a experiência concreta das relações sociais, nossos medos, afetos e sonhos – que são instrumentos para a busca da possível verdade e também a massa do futuro em construção (pois o movimento nunca cessa).

E então? Vamos aceitar que um cachorro de fantasia, falando uma citação suspeita, saiba mais do que um general chinês?

*Élder Ximenes Filho é mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP