Com informações do Brasil de Fato.
A relativização da presunção de inocência e seus impactos na democracia e no encarceramento em massa foram temas de um ato político realizado por juristas e promotores, na noite da última sexta-feira (3), na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). A atividade foi organizada pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), em parceria com a Associação Juízes para a Democracia (AJD) e com o Coletivo Transforma MP (Ministério Público).
Em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou o entendimento de que a prisão após uma condenação em segunda instância não seria ilegal. O argumento de que de que a nova jurisprudência combateria os crimes de “colarinho branco” e os políticos condenados na Operação Lava Jato foi rebatido pelos convidados que compuseram a mesa da atividade.
“Nós temos que pensar o seguinte: quem vai pagar a grande conta não são as pessoas que acusadas de corrupção. A nossa grande discussão está nas práticas, claro, contra os menos favorecidos da população, porque essa quebra da presunção traz consigo outros males, ressaltou Roberto Tardelli, promotor de Justiça aposentado do MPSP e representante do Transforma MP.
Laura Brenda, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) e presidenta da AJD, relembrou que a Constituição Federal de 1988 foi explícita ao registrar que ninguém deveria ser privado de liberdade sem a sentença condenatória transitada em julgado, ou seja, sem que todos os recursos estejam esgotados.
“Esses motivos alegados, que levaram a essa mudança de entendimento da jurisdição são falsos e estão gerando essa tragédia. Precisamos impedir essa tragédia de prosseguir, precisamos reanimar a democracia nesse país”, alertou.
A juíza reforçou ainda que a relativização da presunção de inocência é mais uma prova de que o Brasil vive um Estado de Exceção. “Temos dados de que, com a decisão final do trânsito em julgado, quase 50% das decisões são alteradas, ou seja, pessoas que estavam com sentenças condenatórias, ao final, são absolvidas”, afirmou. Brenda usou como base informações da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Por sua vez, Tânia Oliveira, da direção executiva da ABJD, apontou que a relativização da presunção de inocência é apenas um dos muitos direitos constitucionais que estão sendo destruídos no país. “O cidadão entra no processo do sistema penal brasileiro culpado. Cabe a ele provar sua inocência. É uma inversão. A presunção de inocência relativizada pelas decisões da nossa Corte Suprema, nos faz assumir essa bandeira de que defender esse princípio é defender minimamente as garantias do processo penal constitucional.”
“A garantia da presunção de inocência é uma conquista histórica, não só da nossa Constituição, é uma conquista das sociedades democráticas do mundo”, defendeu Oliveira, que também fez parte da mesa do ato público.
Encarceramento e punitivismo
Roberto Tardelli trabalhou durante 30 anos como promotor do Ministério Público e criticou a atuação do órgão. Para ele, o MP não está cumprindo com sua missão constitucional e está contaminado pelo conservadorismo.
“Quando o MP assume para si o protagonismo das investigações, quando se descobre como aquele que pode conduzir alguém à prisão, esse MP se quebra por completo. Eu afirmei, há muitos anos, que essa ‘capacidade de investigação’ seria a grande metástase do Ministério Público. Nós jamais soubemos investigar. Somos uma equipe de burocratas bem pagos pelo governo para montar um arcabouço democrático de persecução penal. Não somos delegados. Não precisa de mais delegados de polícia”, destacou.
“Quem não é de extrema-direita está absolutamente sem inserção social no MP. Hoje, o Ministério Público é uma extensão da viatura da Polícia Militar”, denunciou Tardelli, que considera a antecipação do cumprimento de pena uma tragédia. “Nós temos hoje no MP um exército de burocratas que se presta, tão somente, a condenar pobres”.
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, o número de pessoas encarceradas no Brasil chegou a mais de 726 mil em junho de 2016. Mais de 50% deste total é composto por jovens de 18 a 29 anos e 64% são negros.
Na análise de Roberto Tardelli, os pilares centrais da democracia foram quebrados. “Quando falamos da quebra do princípio da presunção de inocência, não é a quebra apenas de um princípio constitucional. É muito mais do que isso. É a quebra da coluna vertebral de todo o nosso sistema. Quebrou-se a Constituição Federal e as coisas passaram a acontecer completamente fora do controle”, afirmou.
Por exemplo, a incontrastabilidade de depoimentos dos policiais militares. É impressionante. No Brasil, Policial Militar é tudo. testemunha, condutor, agente, condenador, executor…
Dados da Defensoria Pública do Estado de São Paulo apontam que, desde a decisão do STF, apenas o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-SP) expediu 13.887 mandados de prisão com base na nova jurisprudência.
Campanha
A ABJD é uma das entidades organizadoras de uma campanha em defesa da presunção de inocência, que tem como uma das principais iniciativas um abaixo-assinado, lançado no dia 16 de julho. O resultado da coleta de assinaturas será entregue ao STF em setembro.
Tânia Oliveira enfatizou a importância da campanha. “Essa luta é uma luta de todos nós. Temos que ter a capacidade de levar essa discussão para toda a sociedade. É preciso que o cidadão seja efetivamente considerado inocente até que se prove sua culpa. Com essa campanha, pretendemos mostrar como pode ser perniciosa essa inversão de valores”, disse, se referindo à prisão de segunda instância sem o trânsito em julgado.
Em parceira com a ABJD, o Brasil de Fato lançou, neste mês de agosto, um tabloide especial sobre a presunção de inocência, com uma entrevista exclusiva com o juiz Marcelo Semer e um artigo da jurista Kenarik Boujikian.
Foto: Lu Sudré/Brasil de Fato.