Carta de apoio à candidatura de juristas negras ao STF
O Coletivo Por Um Ministério Público Transformador – Transforma MP, em conformidade com o seu compromisso de atuar para a redução da desigual representação de gênero e de raça nos órgãos do sistema de justiça brasileiro e especialmente na sua Corte máxima, manifesta seu apoio às candidaturas das juristas negras e progressistas Adriana Alves dos Santos Cruz, Lívia Maria Santana e Sant´Anna Vaz, Soraia da Rosa Mendes e Vera Lúcia Araújo para compor a cadeira na Suprema Corte. Assim fazendo, somos coerentes com nossa Carta de Princípios e com nossas Propostas de Reforma do Sistema de Justiça – documentos amplamente divulgados.
A aposentadoria da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, em outubro deste ano abre um leque de possibilidades em relação à escolha da jurista que ocupará sua cadeira.
A democracia brasileira tem se notabilizado pelos esforços de ampliar os espaços de representação de parcelas de sua população historicamente vulnerabilizadas, como as mulheres e os negros. Na eminência de se completarem 35 anos da promulgação da Constituição, não se justifica que o órgão de cúpula do Judiciário permaneça como o retrato da exclusão e da preterição do maior grupo populacional do país, o feminino e o negro. Sequer se trata de abarcar minorias, mas sim de permitir que uma maioria submetida a séculos de opressão esteja presente no topo dos Poderes do Estado.
Sendo o STF é uma instituição fundamental para o funcionamento e garantia da Democracia brasileira, acreditamos ser importante que seus Ministros sejam comprometidos com os direitos sociais e as cláusulas pétreas estabelecidas pela Constituição Federal de 1988.
Entendemos que para uma democracia saudável a população em situação de vulnerabilidade e os grupos minorizados precisam de proteção, cabendo ao Judiciário, como um dos Poderes da República, a atuação contramajoritária, contribuindo efetivamente para combater as desigualdades presentes na sociedade brasileira.
Só é possível construir uma sociedade justa com respeito às diferenças, enfrentando-se o machismo, o racismo, a homofobia e o preconceito de classe dentro dos espaços de poder. A efetiva promoção e proteção dos Direitos Humanos – objetivo do Estado brasileiro e matéria em última análise sob o manto da Corte Constitucional – pressupõe que a própria composição do Supremo Tribunal Federal sinalize a igualdade de gênero e de raça.
Ademais, é necessário que tenhamos votos favoráveis aos Direitos Humanos – que foram duramente atacados e subtraídos durante os últimos anos, principalmente no que se refere a população pobre, negra e periférica.
Em 132 anos de Suprema Corte, apenas três ministros negros foram indicados: Pedro Augusto Carneiro Lessa, Hermenegildo R. de Barros e Joaquim Barbosa, sendo apenas este último efetivamente nomeado.
Trazer diversidade para composição da Suprema Corte é, pois, dar cumprimento efetivo não apenas a nossa Carta Magna, mas às normas do direito internacional, como a Convenção Interamericana Contra o Racismo, norma que foi internalizada com status de norma constitucional (Decreto nº 10.932/2022), que em seu art 9º explicitamente traz o compromisso dos Estados-Partes de garantir que seus sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades, a fim de atender às necessidades legítimas de todos os setores da população.
A inédita nomeação de uma mulher negra para a Suprema Corte fará justiça à luta contra a opressão e demonstrará, uma vez mais, o compromisso da Presidência da República e do Senado Federal com o pluralismo democrático e a valorização da riqueza cultural e social de nosso país.
É por isso que o Coletivo Transforma MP manifesta-se a favor da nomeação das mulheres negras indicadas nesta nota para assumir um cargo inédito na Corte Suprema.
Integrantes do Coletivo Transforma MP promovem mesas durante a semana universitária da UnB
As atividades reuniram personalidades jurídicas como José Geraldo de Sousa Júnior , Ela Wiecko, Eneá de Stutz, e muitas outras.
Por Marina Azambuja
O Coletivo Transforma MP promoveu, em parceria com outras entidades, duas atividades durante a semana universitária da Universidade de Brasília (UnB), que ocorreram nesta segunda-feira (25). Os integrantes Alessandra Queiroga (promotora MPDFT), Ela Wiecko Volkmer de Castilho (subprocuradora-geral da República aposentada) e Marlon Weichert (procurador da República e coordenador do Coletivo Transforma MP) participaram de mesas de debates sobre democracia brasileira, forças armadas e sistema de Justiça, resultados de projetos coletivos entre o Coletivo Transforma MP, o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD), o Direito Achado na Rua, diversas entidades jurídicas progressistas e movimentos sociais.
Os debates reuniram mais de 300 pessoas em auditórios da UnB, sendo mais de 60 pessoas pela manhã e cerca de 250 interessados, à tarde, para discutir questões essenciais do estado brasileiro.
A primeira mesa foi uma atividade autogestionada do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) promovida pelo Coletivo Transforma MP e o Instituto Tricontinental, em parceria com outras entidades, que ocorreu pela manhã e teve como tema “O papel das forças armadas na democracia brasileira”. A mesa foi coordenada por Marlon Weichert e contou com os debatedores Alessandra Queiroga, Vera Lúcia Santana Araújo, Eneá de Stutz, Rodrigo Lentz, Maria Pia dos Santos Lima Guerra Dalledone, José Genuíno Neto e Antônio Sérgio Escrivão Filho.
A discussão foi pautada pelo papel desenvolvido pelas Forças Armadas no país atualmente e como tem impactado a democracia com os resquícios presentes desde o golpe militar que ocorreu em 1964. Outro fato importante destacado pelos participantes é que para reverter esse cenário é necessário reformar as instituições, inclusive o sistema de justiça, para que o povo, trabalhadores e a população vulnerável sejam protegidos. Também ficou destacado que as Forças Armadas são importantes para a soberania, mas precisam se adequar a um projeto nacional e civil de defesa nacional, sendo urgente que as universidades e centros de estudo forme cidadãos, a sociedade civil, aptos a discutirem a Defesa Nacional, sob um aspecto mais amplo e abrangente do que vem sendo tradicionalmente feito.
A segunda atividade ocorreu à tarde e contou com a coordenação de Alessandra Queiroga e Cleide Lemos (ABJD) e dos debatedores Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Realezza, GOG, José Geraldo de Souza Júnior, Ney Strozake, Max Maciel, Deise Benedito, Salete Valesan, Fábio Felix, Marivaldo Pereira, André Carneiro, Antonio Escrivão entre outros juristas e representantes de entidades sociais.
Foram 25 pessoas que transmitiram olhares diversos sobre o sistema de justiça brasileiro, sob a perspectiva de movimentos sociais e de representantes das populações marginalizadas e em situação de vulnerabilidade, que não se sentem atendidos pelas instituições. Ficou evidenciado que a questão do sistema de justiça vai além do poder judiciário, necessitando de uma profunda mudança, centrada nas pessoas que mais necessitam.
A principal ideia apresentada nas duas mesas é que a discussão sobre o Sistema de Justiça e a Defesa Nacional precisa ser feita agora, através de seminários e conferências, apoiadas pelo poder público mas mobilizadas pela sociedade civil.
PICA-PAU OU PERNALONGA ou “O seu humor é contra quem ?”
Por Élder Ximenes Filho no GGN
Diz-se que, se produzir arte engajada é difícil, fazer humor “a favor de” é quase impossível! Não sejamos tão radicais
Situemos o debate (ou a zona de combates):
O humorista Léo Lins é condenado a indenizar pessoa transexual por uso indevido de sua imagem em uma piada (https://www.conjur.com.br/2021-out-08/humorista-condenado-piada-ofensiva-mulher-transexual#:~:text=Ao%20manter%20a%20indeniza%C3%A7%C3%A3o%20em,ou%20sexualidade%2C%20e%20g%C3%AAnero%22.).
O humorista Rafinha Bastos é condenado a indenizar a cantora Wanessa Camargo e família por piada sobre sua gravidez (https://www.jusbrasil.com.br/noticias/humorista-condenado-a-indenizar-cantora-e-familia-por-danos-morais/2993257)
O humorista Fábio Porchat é “cancelado” ao defender que liberdade de expressão inclui piadas de mau-gosto e preconceituosas, desde que não configurem crime (https://www.metropoles.com/entretenimento/fabio-porchat-diz-que-humoristas-tem-direito-de-ofender)
O filósofo Slavoj Zizek manifesta-se contra versão do “politicamente correto” no humor, em artigos sobre o massacre da revista Charlie Hebdo (https://blogdaboitempo.com.br/2015/02/16/eu-sou-estupido-e-maldoso-zizek-esclarece-sua-posicao-sobre-o-je-suis-charlie/)
O humorista estadunidense George Carlin, abertamente de esquerda, condena humor em cima de minorias, mas vê a censura como um mal maior (https://youtu.be/F8yV8xUorQ8)
O artigo acadêmico “Só Porque Você se Ofendeu Não Significa que Esteja Certo: uma perspectiva de linguagem, comédia e ética” bem avança na discussão, mas não a resolve tão bem quanto se propõe: (https://cupola.gettysburg.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=1071&context=student_scholarship)
Existem listas googláveis de filmes de comédia (que você viu se tiver mais de 50 anos) mas que jamais seriam feitos hoje em dia, haja vista conteúdos ofensivos e abertamente de mau-gosto para a atualidade. Incluem-se obras clássicas do grupo Monty Pyton e do diretor Mel Brooks. De brasileiras temos o “Histórias que Nossas Babás Não Contavam”, de Oswaldo de Oliveira (1979), parte dos filmes dos Trapalhões e dos quadros de Chico Anysio. Porção apreciável das alegadas 60 mil piadas reunidas por Ary Toledo (5.000 escritas durante a pandemia) tinham cunho misógino e racista…
Há quem fale no declínio da própria comédia como gênero, mas não temos espaço para tão altas elucubrações. Ficamos em que até mesmo a bilionária Holywood tem mudado. E vejam que estamos falando da ponta-de-lança ideológica do “soft-power” que naturaliza a dominação do império no mundo inteiro. Não é pouca coisa!
Creio que isto já dá uma boa idéia da dimensão do problema em termos objetivos. Construamos a partir daqui, nos limites de nossa prosa – que talvez nem seja séria, apenas desengraçada.
Theodor Adorno falou sobre a (im)possibilidade de fazer poesia depois de Auschwitz. Muitos não vão além deste dictum, que serviu mais como provocação sobre as contribuições da cultura germânica do que como uma maldição sobre o futuro da arte. Aqui um vídeo elucidativo sobre a obra “Dialética Negativa”, para quem não tem tempo de ler mas curte audiolivros: https://youtu.be/cyCTMMH7qV8?si=yGyKwpZbXrzWQ6y-.
De todo modo, reforça-se a indagação de para onde estaria caminhando a arte ocidental? Ou melhor: o caminho, seja qual for, terá ainda risos?
Podemos partir da classificação aristotélica dos gêneros teatrais, começando pela tragédia, que conteria uma ação dramática de excelência, com narrativa completa (início, desenvolvimento e conclusão), linguagem elevada e culta, provocando temor e pidedade no público, com objetivo de purgar as emoções (catarse), educando o espírito para superar os desafios da vida e tornar-se bom, belo e virtuoso (kalokagathia).
Ufa – não é para menos que os deuses massacram todo mundo, a mãe mata os filhos e a gente bate palma… olha que nos festivais de Dioniso as competições eram de três em três peças – com torcida, apostas, lembrancinhas, celebridades e tudo!
A comédia (que em grego tem a ver com “canto” e “festa”) faz o contraste. Em linguagem simples e até grosseira cuidava de situações mais mundanas, continha ironias e críticas a comportamento do dia-a-dia, exagerava e ridicularizava pessoas em busca do riso. Sócrates aparece “abobalhado” no As Nuvens de Aristófanes e os medrosos borravam as calças… Eram encenadas nos dias seguintes aos das Tragédias, cinco de uma vez. Serviam de linimento para que os cidadãos se recuperassem da “pancada” anterior. Depois vinham as premiações e muita festa.
Dois mil e quinhentos anos passaram. Claro que neste tempo todo as coisas misturam-se, repetem-se e recriam-se. Mas aqueles “gatilhos” em nossas mentes (independentes da língua ou da cultura) continuam funcionando e despertando reações. Seriam até clichês: a injustiça dos poderosos; o orgulho ao final castigado; o prêmio da perseverança; o choro das mães e…. a casca de banana, o susto do balde d’água. As comédias de situação ou físicas ou “pastelão” são eternas em sua simplicidade – Carlitos, Monsieur Hulot e Trapalhões. Nossos primos gorilas, bonobos e chimpanzés riem uns dos outros e fazem provocações e galhofas… nós continuamos, como bons primatas… Nosso cérebro tem algum tipo de conexões, um certo arranjo que nos torna animais que riem. As relações sociais sofisticadas, economicamente, juridicamente e eticamente complexas – estas é que nos fazem perguntar: devíamos?
Queiramos ou não, continuam funcionando os chistes, que seriam a unidade mínima da comédia. A palavra vem do alemão “witz” (gracejo ou pilhéria). Daí “wit” em inglês, como a capacidade de dialogar com humor, velocidade e inteligência. Freud (https://www.psicanaliseclinica.com/chistes/) considerava o chiste uma das válvulas de escape do inconsciente, comunicando o que não se ousa, através de vias tortas e inferências (eu não digo, mas você adivinha). Do salto entre o não-dito e o captado surge a graça e o riso.
Percebe-se que a comédia que utiliza o texto e não o gestual exige mais da compreensão verbal – daí ser quase impossível traduzir a obra dos irmãos Marx e sua metralhadora de trocadilhos. Mas existe algo que acompanha a evolução da comédia desde o imemorial das pinturas rupestres. Ora, não me digam que não havia humor em algumas das pinturas com orelhas de coelhos, falos gigantes, orgias e danças cambalhoantes nas rochas de Lascaux/França, Baja/México ou na piauiense Serra da Capivara!
Sempre houve um sentimento de medo e deslumbre ante a natureza, a morte, os sonhos – origens das mitologias e religiões. Em paralelo, o fenômeno irresistível do riso e do humor – mesmo quando não tínhamos palavras, teorias ou classificações para isto. É importante frisar que o humor é original e essencialmente anárquico e surpreendente. Resiste ao enquadramento mais do que quaisquer outras formas de expressão. Produz riso ao expor o ridículo de tudo aquilo que se pretende muito sério e importante (e isto pode incluir as boas causas e os heróis). Isto está na base da arte da palhaçaria, desde a Comedia dell’Arte. O humor é naturalmente contestador e “contra tudo o que está aí”. Acrescento que também é contra o que está “acolá” e, especialmente, “aqui”.
Possui, sempre, grande potencial de ofender!
Diz-se que, se produzir arte engajada é difícil, fazer humor “a favor de” é quase impossível! Não sejamos tão radicais: produzir algo de qualidade é sempre difícil em todos os lugares e épocas, mas aí estão as obras de Maiakóvsky (tão longe) e dos gigantes Agildo Ribeiro e Jaguar (tão pertinho).
De tudo pode-se tirar uma certeza: a “forma” do chiste e sua graça irresistível podem manifestar-se sobre quaisquer temas… até os terríveis! Não ressalto nem a polêmica do A Vida é Bela de Roberto Benigni (humor num campo de concentração demonstrando a superioridade da força vital sobre a barbárie). Falo de situações bem mais corriqueiras e chãs. Repare bem: via de regra, numa piada ou num videoziinho engraçado, sempre há alguém dando-se mal de algum jeito: uma queda, um susto, um ridículo, uma decepção… Extrapolando, quero pontuar a existência de piadas que não deveriam existir, sobre sofrimentos e atos monstruosos – como pedofilia e racismo – mas que existem e enquadram-se como “humor”. Torturadores faziam graça e riam entre si. Crianças podem rir quando vêem alguém machucar-se. Nós começamos a sorrir quando algém começa em ton jocoso: “Sabe o fulano, pois então…”. Este humor inato pressupõe, normalmente, uma compartilhada presciência de que algo ocorre/ocorreu de forma engraçada – mesmo que o fato em si não o seja. O fenômeno do riso pode veicular crueldade, mas vem dos mesmos arquétipos e e das mesmas conformações mentais de cada um de nós. Aqueles risos, por abjetos que fossem, integram o terrível amálgama da natureza humana. Acreditar na excepcionalidade do mal (e não em sua banal repetibilidade) é um erro que devemos evitar, com bem ensinou Hannah Arendt.
Hoje em dia, palavras sobram e como! Com o advento das redes sociais, nunca se escreveu tanto na história da humanidade. Com o Youtube e o TikTok, nunca se filmou tanto. Da mesma forma, jamais se falou ou mostrou-se tanta bobagem! Mesmo que a qualidade surja da quantidade depurada, isto leva algum tempo e esforço. Seguindo o fluxo, obras humorísticas multiplicam-se ao infinito. Todos sabem que os conteúdos mais chamativos, ofensivos, lacradores e polêmicos recebem mais visualizações e podem dar mais dinheiro. Comediantes-influenciadores brotam e desaparecem como os filósofos-influenciadores, os investidores-influenciadores, personais-influenciadores… todos surfando na onda dos “coaches” (e a maioria morre na praia, sedenta de monetização).
Como em quaisquer atividades humanas, tende-se à especialização. Comediantes fazem o velho show de piadas (o gourmetizado “stand-up”) e, naturalmente, formam seus públicos. Há poucos generalistas reais e a fluência das bilheterias (e “likes”) vai depurando o que atrai certo público e o que afasta outro.
Um bom exemplo é o de Bruna Louise (primeira mulher brasileira a ter um show solo na Netflix). Ela faz humor de costumes, sempre abordando sexualidade com um viés feminista e traz situações da própria vida (ficcionalizadas, claro). Atualizando a tradição do palhaço, ela brinca consigo mesma, compartilhando situações hilariamente vexatórias. Expõe ao ridículo os “hétero-top” no privado e o patriarcado no público. Atrai fãs correspondentes. Produzem e consomem, assim, um humor que pode ser “ofensivo” (como qualquer outro) – mas escolhe atuar contra quem é privilegiado na sociedade ou, pelo menos, contra quem não está sob algum risco existencial.
Exemplo contrário é o do sobredito Leo Lins (e outros). Não é difícil deduzir que seu público seria formado por homens brancos inseguros das próprias masculinidade e competência profissionais. Logo, adotam os “espantalhos” dos movimentos feminista, negro, dos povos originários, LGBTQIA+. Coerentemente, são contra cotas, contra imigração, contra nordestinos…. Enfim, produzem e consomem o humor que é também “ofensivo” em potencial (como qualquer outro) – mas escolhem como objetos discursivos os grupos minorizados ou pessoas sob risco existencial.
Mas existe algo ainda mais insidioso que às vezes passa despercebido: não seria tão problemático este humor se apenas se fixasse em contradições internas, exageros e eventuais momentos ridículos. A questão maior é que aponta para a naturalização sistêmica e cultural dos processos de exploração e submissão. Acaba, pior do que ensinando, comemorando que as coisas “são como são” e reforçando que ridículo é tentar mudar o status quo.
As palavras têm poder e o humor desnuda até os reis… mas também pode chutar quem já está caído. Daí a frase tão correta: o humor não tem limites, mas os humoristas devem ter.
onde entram os personagens de desenho do título?
Bem, se você assistiu os episódios clássicos de Pica-Pau (do inicial “Knock knock” de 1940 até a virada do “Barbeiro de Sevilha” de 1944) percebeu que se trata de um perfeito sociopata – embora muito engraçado. É aquela versão com pernas listradas e dentes bem aparentes. Ele sadisticamente abusa de outros personagens mais fracos, sem qualquer provocação, apenas pelo prazer de maltratar e humilhar. Ele só admite fazer as coisas “do seu jeito”, apesar do direito alheio.
Da mesma Warner Brothers, estreando em abril de 1938, o Pernalonga também destrói hilariamente seus adversários. Todavia, isto ocorre em resposta a uma provocação: ele está sendo caçado ou teve a toca destruída (certa vez pela especulação imobiliária). Daí, defende seus direitos e vinga-se!
Claro que todos são circunscritos pelo ambiente cultural da época. Claro que não é nenhum crime gargalhar com ambos. Mas fica a provocação: quando escuta uma piada, lá no fundo, você ri com o Pica-Pau ou com o Pernalonga?
Por Élder Ximenes Filho, Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP
O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
O acerto e o erro de Lula em relação ao trabalho por plataforma digital
As “plataformas digitais˜ utilizam seu aparato técnico e seu capital para empregar uma população racializada, descartável e marginalizada
Lula acertou em cheio. No discurso de abertura da assembleia geral da Organização das Nações Unidas em setembro de 2023, o presidente da República afirmou que as plataformas digitais não podem abolir os direitos trabalhistas duramente conquistados pela sociedade democrática.
A fala não poderia ser mais feliz. As empresas que se autodenominam plataformas digitais são, em verdade, a ponta de lança de um movimento mais amplo de destruição e desonra dos compromissos assumidos com os trabalhadores no século passado. As chamadas “plataformas digitais˜, que promovem o discurso de que representam a modernidade e o avanço tecnológico da sociedade, na realidade utilizam seu aparato técnico e seu imenso capital para empregar uma população racializada, descartável e marginalizada na realização de serviços arcaicos, mal remunerados e completamente desprotegidos.
Basta observar os serviços prestados pelas principais empresas chamadas de “plataformas digitais” para vermos que não nenhuma novidade ou modernidade: transporte de pessoas, entrega de mercadorias e serviços domésticos. Todos sabemos que esses serviços existentes há séculos são historicamente realizados pelo mesmo grupo populacional, antes escravizado e depois liberto e continuamente precarizado. São serviços subalternos por natureza, tendo sua precariedade agravada pela forma de contratação por peça ou tarefa, sem reconhecimento da condição jurídica de empregado, ou seja, sem a consideração dos trabalhadores como sujeitos de direitos fundamentais constantes em nossa Constituição.
Não há nenhuma especificidade no trabalho controlado por meio de plataforma digital. Para além da retórica empresarial, proposital ou inadvertidamente repetida pelas mídias e até em trabalhos acadêmicos, uma plataforma digital nada mais é do que uma infraestrutura eletrônica que, associada a outra física, permite a uma empresa realizar seu negócio. Não há um ramo empresarial ou econômico específico em relação às empresas que se chamam de plataformas digitais: as principais, como dissemos, atuam no ramo de transporte de pessoas, de mercadorias ou de prestação de serviços domésticos. Mais absurda ainda é a caracterização de “trabalhador por aplicativo”. Um aplicativo nada mais é do que a interface final de comunicação e controle entre a plataforma digital da empresa e seus clientes e trabalhadores.
No acelerado processo de digitalização da sociedade, toda empresa, em um futuro bem próximo, realizará seu negócio, seja ele qual for, total ou parcialmente por meio de plataforma digital. As infraestruturas digitais e físicas já coexistem em negócios tão distintos quanto bancos, supermercados, locadoras de automóveis, imobiliárias e lojas de varejo, sem que a natureza desses negócios seja modificada de maneira mágica pela mera utilização de instrumentos tecnológicos. Seres humanos continuam sendo seres humanos na digitalização, com as mesmas necessidades, desejos e vontades.
Alguns apontam que a novidade do trabalho em plataforma estaria no pagamento por tarefa, ou na possibilidade de recusa ou escolha de trabalho. Novidade nenhuma. Os trabalhadores avulsos podem escolher as tarefas a serem realizadas, e são pagos por peça, e ainda assim são detentores de todos os direitos trabalhistas. Da mesma forma, o precário trabalho intermitente, mal desenhado, é considerado pela como forma de emprego. A inexistência de um controle de jornada é própria do teletrabalho, como previsto expressamente na lei. E mesmo assim continuam sendo empregados e com todos os direitos. Além disso, as empresas de entrega que se utilizam de plataformas digitais, por exemplo, põem em ação instrumentos que, ao contrário da retórica, impõem horários e turnos aos trabalhadores e obrigação de aceitar automaticamente toda chamada ao trabalho, sob pena de redução na oferta de trabalho. Outras “plataformas” ajuízam ações judiciais em face de empresas para impedir que forneçam aos trabalhadores mecanismos digitais que lhes permitam a escolha de trabalhos mais bem remunerados.
Assim, a fala de Lula mostra extrema lucidez: como não há especificidade nenhuma no trabalho realizado por meio de plataforma digital, o modelo por elas realizado pode ser replicado a todo e qualquer negócio, destruindo os direitos dos trabalhadores que foram conquistados a duras penas no século XX. A fala de Lula deixa a entender também que esses direitos conquistados são parte de um compromisso que sustenta a democracia. Sem o cumprimento do pacto, a democracia se esfarela. O alastramento de vitórias eleitorais de extremistas “antissistema” não deve causar nenhuma surpresa, pois amplamente apoiada por uma população desiludida e descrente devido ao constante e crescente descumprimento das promessas democráticas.
Mas Lula também errou em cheio. Não em sua fala na ONU, mas na constituição de um grupo de trabalho para discutir o trabalho em plataforma digital, como se ele tivesse alguma especificidade. A comprovação da inexistência de uma especificidade que una os trabalhadores controlados por plataforma digital é que a discussão no grupo de trabalho afunilou para a discussão das condições de trabalho e de remuneração de motoristas de transporte pessoal e de entregadores, esquecendo-se dos demais negócios realizados por outras empresas. Tudo ficou ainda mais claro na criação de negociação de forma separada entre motoristas e empresas de transporte e entregadores e empresas de delivery. O grupo de trabalho se transformou, em realidade, em uma mesa redonda de mediação de negociação coletiva , como centenas de outras que acontecem diuturnamente por todo o país em todas as categorias de trabalhadores.
Lula errou porque, além de não haver nenhuma especificidade no trabalho controlado por infraestrutura digital, o processo de uberização do trabalho vai muito além do trabalho plataformizado, atingindo profissões como manicures, motoristas de carga, médicos, enfermeiros, advogados, trabalhadores em marketing e tecnologia da informação, engenheiros, trabalhadores em construção civil, professores e muitas outras. A pejotização está sendo amplamente utilizada, e em grande parte legitimada pelo legislativo e judiciário, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, fazendo com que a parte excluída do âmbito do direito do trabalho, ou seja, dos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição, seja cada vez maior em relação àquela protegida pelos direitos duramente conquistados e que são base de sustentação da nossa democracia. O trabalho intermitente foi inserido na legislação trabalhista, legitimando o modelo de contratação por demanda, e que, apesar de mal regulado, inexplicavelmente não está sendo utilizando nem discutido no trabalho por plataforma digital. Como discutir as duas coisas de forma separada?
Flerta-se com um erro ainda maior quando se anuncia que o governo quer, no âmbito do grupo de trabalho, buscar um acordo que praticamente cria uma terceira categoria de trabalhador no país, com alguns parcos direitos, esquecendo-se da lista de direitos fundamentais previstos no art. 7º de nossa Constituição, legitimando, ao final, as duas pretensões dessas empresas estrangeiras: quebrar o direito do trabalho, criando uma subcategoria de trabalhadores e impor um modelo que não considera todo o tempo à disposição como tempo de trabalho. A busca do trabalho decente, como pactuado com o governo estadunidense, passa no Brasil pelo cumprimento dos direitos fundamentais explicitados na Constituição. Trabalho em nível abaixo dos direitos fundamentais é trabalho indecente.
O trabalho controlado por plataforma digital deveria ser discutido de forma tão ampla quanto é o processo de digitalização da sociedade e não com estupefação frente à utilização de tecnologias para a realização de prestação de serviços comezinhos em nossa sociedade. Não poderia nunca estar sendo discutido como se fosse um fenômeno autônomo, desvinculado do processo de uberização geral e de esvaziamento subjetivo do direito do trabalho. O fenômeno deveria estar sendo discutido em um processo amplo de revisão da reforma trabalhista, do trabalho intermitente, da pejotização, em uma verdadeira modernização da nossa legislação, adequando-a ao projeto democrático inscrito em nossa Constituição.
Como Lula acertou em cheio em seu discurso na ONU, há tempo de rever o erro e acertar também em relação ao Grupo de Trabalho no Ministério do Trabalho, ampliando-o para abarcar uma revisão da legislação trabalhista para atingir os objetivos de nossa Constituição, que tem os direitos trabalhistas como direitos fundamentais. Deveria propor que os trabalhadores, seja qual rótulo lhe seja dado, são merecedores dos direitos fundamentais descritos na Constituição, conforme inclusive consta no caput do art. 7º: são direitos dos trabalhadores aqueles ali descritos, além de outros que visem à melhoria da sua condição social. Isso é essencial e condição para a permanência e o reforço da democracia no país. Como disse Lula na ONU, “estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade.” O crescimento da quantidade de trabalhadores desiludidos, desamparados, desenganados, desesperançados, ressentidos e abandonados só nos levará à quebra dos laços democráticos que nos unem, quem sabe de forma irreversível. A hora de reatar os laços é agora.
Rodrigo de Lacerda Carelli, Procurador do Trabalho na PRT/1, Professor da UFRJ e membro do Coletivo Transforma MP
O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP
As Fridas do século XXI nos convocam para a revolução. Quem vem?
Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN
A educadora e jornalista Mariana Rosa conta que sua filha “criou uma inflexão no tempo: reviu as medidas e as porções no cálculo minucioso do possível”.
Ao contar os cuidados diários que tem com sua filha para esperar que seu corpo sinalize o momento certo de respirar e de comer, Mariana nos fala de ética: a ética do cuidado, e subverte, com a filha, o tempo. “É preciso aleijar o tempo. Criar brechas, fissuras, para que o ar circule, para que a vida tome fôlego”, disse ela. Aumentando o intervalo das colheradas de comida dada à filha, dos abraços, das ousadias e insubordinações, Mariana e Alice lutam pelas pausas de mil compassos, pelos sambas sobre o infinito e pela revolução.
A revolução é contra o tempo. Mas não contra o tempo do Deus Cronos, esse senhor tão bonito da música de Caetano Veloso, nem contra o Deus Kairós, esse menino fulgás que faz música, letra e dança, na voz – qualquer voz -, da eterna musa Marina.
A revolução é contra o tempo do Deus Mercado.
Esse Deus que vende normalidade e padrões estéticos como único caminho para a felicidade, essa mercadoria exibida nas vitrines das redes sociais que apenas os outros puderam alcançar. Esses outros que são os brancos, hetero, cis, magros, jovens, sem deficiência, e, claro, ricos. É contra esse Deus que confunde deficiências com incapacidades e que tem, no mesmo checklist, as metas insaciáveis de sucesso e os remédios antidepressivos para dopar os “felizes do instagram”, que elas fazem a revolução.
E não estão sozinhas.
Venho aqui para denunciar essas perigosas mulheres revolucionárias como quem denuncia, anuncia e enuncia a disponibilidade para uma outra lógica de mundo que precisa ser imaginada, sonhada e desejada por nós.
Falo de Mariana, Laureane, Thais Becker e todas as mulheres com deficiência do coletivo feminista Helen Keller que desafiam padrões e o curso do tempo afirmando suas existências nesse mundo.
Mais do que anticapacitistas, essas mulheres são radicalmente feministas e cientes que a mesma narrativa política que justifica o patriarcado, a opressão racista e a heteronormativa, também massacra as pessoas com deficiência. No espectro de grupos que se identificam pela dor da exclusão, as mulheres com deficiência são as mais ousadas nas propostas de um novo mundo: Atenção senhores todos… empoeirados e engravatados, das cortes superiores de Justiça aos prédios espelhados da Faria Lima…: as mulheres com deficiência desejam!!!
Desejam audiodescrição antes de reuniões e palestras. Tradução em libras. Rampas em prédios modernos e históricos. Acessibilidade digital. Desejam dançar, escrever, falar. Que se espere, em escuta atenta, por suas falas, mesmo que arrastadas. Desejam não serem mais reduzidas a diagnósticos médicos e a corpos desviantes ou defeituosos que precisam ser curados e reparados. Desejam dizer que podem ser mães, se assim quiserem. E que também fazem amor e sexo, se assim também quiserem, e para além da limitada perspectiva genital. Algumas, com eliminação de barreiras, podem trabalhar e produzir riquezas, outras não. E essas, pasmem senhores, seguem sendo mulheres desejantes, vivas, singulares e inventoras de tempos, linguagens e relações.
A dissertação de mestrado da educadora Laureane Marília de Lima Costa traz importantes contribuições para a Educação Sexual Emancipatória como ferramenta de luta contra o capacitismo e a misoginia. Muitas mulheres com deficiência foram escutadas.
Laureane lhes escuta e eu escuto Laureane. Ela nos conta que as mulheres com deficiência estão fartas de relacionamentos afetivos marcados pela violência, naturalizada, por vezes, como uma consequência inevitável do estresse que o homem sente por viver com uma mulher com deficiência. Laureane explica que essas mulheres, reféns dos padrões de beleza, aprendem a odiar seus corpos e a sentirem vergonha de serem como são ao ponto de aceitarem todo e qualquer abuso sofrido como única possibilidade de vivência do amor. Muitas justificam o abuso como acidental e que, se não fosse seu problema físico, teriam se defendido sem se machucar tanto. Outras, que já experienciaram dolorosos processos de reabilitação, ponderam que o abuso até que não é tão ruim perto da ideia de não ter, por perto, o homem que ao mesmo tempo que bate, lhes tira da cama todos os dias.
Laureane me apresenta a mulher abusada por um médico ginecologista e, depois, desacreditada pela família. Afinal, pensa a família, por qual razão um soberbo senhor, desses tão sabidos e poderosos, iria desejar um corpo de mulher com deficiência?
Para além dos dolorosos relatos, Laureane traz de forma clara a perspectiva do modelo social de deficiência, tal qual previsto no artigo 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13146/2015).
“Até por volta dos séculos XVIII e XIX, o discurso místico e religioso dominava as explicações sobre a deficiência, concebendo-a ora como fruto do pecado, ora como bênção divina, quando então essa narrativa foi questionada pelo modelo médico da deficiência. Assim, a culpa e o azar cederam espaço para a genética, as doenças e os acidentes. O modelo médico ou individual da deficiência entende que o impedimento corporal (lesão) é a causa da desigualdade social e das desvantagens experienciadas pelas pessoas com deficiência, elaborando uma explicação individualista e essencialista sobre a deficiência. A perspectiva biomédica categoriza os corpos como normais ou anormais. Assim, o corpo com deficiência é definido a partir da comparação e contraste com o corpo sem deficiência, logo, a deficiência é definida como um desvio do padrão normal de ser humano, acarretando medicalização e tentativas de correção do corpo com impedimento, enquanto a estrutura social permanece indiscutível.
Do mesmo modo que o discurso místico e religioso foi questionado pelo modelo médico da deficiência, este foi contestado pelo Modelo Social da Deficiência. De acordo com o último, a explicação sobre a deficiência desloca-se do indivíduo para a organização social. Assim, a explicação de que o impedimento corporal causa a deficiência dá espaço à explicação de que a deficiência é fruto da relação entre um corpo com impedimento e uma sociedade com barreiras ambientais e culturais, incapaz de atender à diversidade física, sensorial e intelectual das pessoas.”
Nesta linha, a revolução proposta por nossa Frida brasileira berra nos ouvidos do patriarcado capacitista que a deficiência não está em seus corpos, mas é também uma opressão social, uma narrativa política para justificar um mundo em que uns são melhores que outros. A posição de inferioridade estética, social, política de alguém jamais será natural, biológica ou inevitável.
E ela segue, com o dedo na grande ferida:
“Assim como acontece com outros grupos oprimidos, às pessoas com deficiência são impostos estereótipos e distorções, restringindo a integridade de sua humanidade e reduzindo-as apenas a seus aspectos corporais que não se enquadram no padrão de normalidade. Um dos efeitos disso é a naturalização da situação de desigualdade, mantendo a organização social e do trabalho como está, a qual persegue a maximização dos lucros e, deste modo, define o valor das pessoas por sua capacidade produtiva, uma vez que as pessoas com deficiência são consideradas improdutivas, sua falta de produtividade deve ser administrada de modo a atrapalhar o mínimo possível a acumulação de lucro”
Em escritas, discursos, palestras, me sinto convocada nos desejos das Fridas do nosso tempo a sonhar radicalmente com o mundo sob outra lógica, em que a busca pelo lucro de poucos não ceife as múltiplas possibilidades de existência de tantos, e a ética do cuidado seja, definitivamente, uma política pública.
Por falar em sonhos, no corpo que movimenta o mundo, da bailarina Marina Abib, também me vejo, todos os dias, convocada a dançar. Ao ver os vídeos de Marina Abib dançando, antes da encefalite que limitou os seus movimentos, e agora, vejo que o essencial, de singular beleza, permanece, e até com mais intensidade. Hoje, é possível ver o movimento interno que se apagava, antes, pelas habilidades extraordinárias da bailarina consagrada mundialmente. É possível ver mais que um corpo talentoso dançando, mas é a própria vida, plena de desejo que seguiu, flutuante, desafiando o espaço e o tempo em encantamento próprio.
Não é mais possível não dançar com elas. Não escrever com elas. Não sonhar com elas. Não seguir… seguir… em movimento e busca … com elas.
Ana, de Clarice Lispector, no conto “Amor”, teve uma epifania quando viu o cego mascando chiclete. Não era piedade. Era uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. “Era a pior vontade de viver”.
É preciso atravessar as convenções internacionais, a constituição federal e os estatutos para enxergar, também, os corpos de mulheres com deficiência. Vejam só, soberbos senhores que ditam as normas deste mundo, eis a denúncia: as Fridas seguem vivas. Belíssimas, interessantes, desejantes, dançantes, falantes, amantes, movimentando o mundo e fazendo a revolução.
Quem vem?
Cristiane Corrêa de Souza Hillal
Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma Ministério Público.
Referências:
1) Costa, Laureane Marília de Lima. A perspectiva de mulheres com deficiência sobre gênero e sexualidade: contribuições para a educação sexual emancipatória
http://bdtd.ufj.edu.br:8080/handle/tede/40
2) Lispector, Clarice. Laços de Família. Conto: Amor. Rocco, 1998.
3) Músicas:
Para ver as meninas. Paulinho da Viola
Fulgás. Marina Lima.
Oração ao Tempo. Caetano Veloso
4) @
Transforma MP faz sustentação oral no CNJ em favor da equidade de gênero
O Coletivo Transforma MP, após ter sido habilitado como amicus curiae, foi representado pela Subprocuradora-Geral da República aposentada, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, em sustentação oral no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), durante sessão que ocorreu nesta terça-feira (19), em Brasília.
A sessão ordinária discutiu a proposta de alteração da Resolução nº 106/CNJ, de iniciativa da Conselheira Salise Sanchotene, que visa a dar concretude à Política de Participação Institucional Feminina. A medida configuraria ação afirmativa para a promoção de juízas aos Tribunais, respeitando o princípio da proporcionalidade e em busca da equidade de gênero, contemplando a previsão de novo critério para a formação da lista de promoção de magistrados e magistradas para instâncias de segundo grau. Segundo a proposição, até que cada Tribunal alcance a proporção entre 40% a 60% por gênero, deve haver a alternância entre mulheres e homens na promoção tanto por critério de antiguidade, quanto por merecimento.
Na sustentação, destacou-se que “é uma proposta concreta para a ampliação da representação feminina nos tribunais e encontra respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que enfatiza a necessidade de medidas afirmativas em favor das mulheres para vencer a discriminação indireta e estrutural que mantém as mulheres em situação de desigualdade material. Desigualdades respaldadas em normas aparentemente neutras, como as de promoção nas carreiras do judiciário e do Ministério Público. Assim, a proposta da conselheira Salise preserva a regra constitucional das promoções pelos critérios de merecimento e de antiguidade, tão só regulamentando sua execução adotando perspectiva de gênero.”
Abolição é liberdade, ditadura nunca mais!
O Coletivo Transforma MP juntamente com a Coalizão Cearense em Defesa da Democracia e outras entidades e movimentos sociais subscreveram uma nota em apoio ao governador do estado do Ceará, Elmano de Freitas, que colocou fim às homenagens ao ditador Castelo Branco.
Durante um evento em comemoração aos 44 anos da Lei da Anistia, o governador determinou que o mausoléu do marechal Castelo Branco fosse retirado do Palácio da Abolição, sede do governo cearense, para dar lugar a um monumento em homenagem aos líderes abolicionistas cearenses, como o Dragão do Mar, que lutaram por liberdade.
O cearense Humberto Castelo Branco foi o 1º presidente do regime militar brasileiro. Ele assumiu o governo por meio do decreto AI-1 em 1964. A partir desta data o golpe tomou musculatura e sufocou os direitos e liberdades do povo, além de matar incontáveis jovens, estudantes, professores e críticos da ditadura.
Em nota, as entidades afirmam que para uma justiça de transição é necessário que haja reparação histórica.
“A ressignificação de espaços de memória do período de horror é uma reivindicação histórica de movimentos por memória, verdade, justiça e reparação, com amparo expresso nas resoluções do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei n. 12.428/2011.”
A nota está aberta para subscrições individuais e o documento será entregue em breve nas mãos do governador do estado do Ceará, por meio da comissão de representantes das várias entidades.
Quem são os responsáveis pela polarização política?
Um dos antídotos sugeridos por Sunstein é assegurar que os cidadãos sejam expostos a ideias, argumentos e narrativas as mais diversas.
por Régis Richael Primo da Silva no GGN
Nos últimos anos, a ciência política tem se dedicado bastante a estudar as causas da polarização política. O fenômeno da polarização é mundial e parece crescer a cada dia, sendo hoje um dos maiores obstáculos ao fortalecimento da democracia e à paz.
O cidadão comum, que participa do debate público nos encontros do dia a dia e nas redes sociais, também está preocupado com a polarização política. Mas ele não precisa da ciência política para concluir que o grande responsável pela polarização é o “outro”, isto é, seu adversário político. A verdade é que o debate sobre as causas da polarização está, também ele, polarizado. De um modo geral, a esquerda culpa a direita, a direita culpa a esquerda, e os centristas culpam ambas – esquerda e direita.
Cass Sunstein, professor de Direito em Harvard, apresenta, porém, uma perspectiva diversa. Para ele, quando pessoas com ideias políticas semelhantes reúnem-se em grupos e conversam entre si, elas se tornam mais extremistas em suas posições políticas e mais intolerantes com quem pensa diferente.
A afirmação parece contraintuitiva, mas é o que algumas evidências mostram. Há algum tempo, Sunstein conduziu, com alguns colegas, um pequeno experimento na área da democracia. Eles reuniram 60 cidadãos americanos, os dividiram em grupos de 6 pessoas, e os membros de cada grupo foram convidados a deliberar sobre questões como uniões civis entre casais do mesmo sexo, ações afirmativas e aquecimento global. Como o experimento foi planejado, foi possível separar os grupos em “liberais” e “conservadores”. Sunstein e seus colegas primeiro pediram às pessoas que declarassem suas opiniões individual e anonimamente. Depois, as mesmas pessoas deveriam discutir essas questões com seu grupo e, em seguida, adotar um veredito público. Por fim, os participantes do experimento fariam suas declarações anônimas finais como indivíduos.
Concluído o experimento, os resultados foram perturbadores: segundo Sunstein, “em quase todos os grupos, seus membros acabaram adotando posições mais radicais depois de falarem uns com os outros”. Sunstein também notou que o experimento tornou os grupos liberal e conservador mais ideologicamente homogêneos, sufocando, assim, a diversidade interna. A conclusão de Sunstein é que a discussão interna nos grupos ajudou a ampliar a divisão entre liberais e conservadores.
A gravidade disso reside no fato de que, a cada minuto, esse pequeno experimento está sendo reproduzido nas mídias sociais e em muitos países. No Twitter, por exemplo, ao seguir pessoas que pensam como você, e ler o que elas têm a dizer, caro leitor, provavelmente você se tornará mais inflexível em sua posição. E isso sem sequer notar a mudança.
Um dos antídotos sugeridos por Sunstein contra a polarização é assegurar que os cidadãos sejam expostos a ideias, argumentos e narrativas as mais diversas. O problema está em como fazer isso, já que as plataformas de mídia social criam para seus usuários experiências personalizadas. Diariamente, somos submetidos a notícias, artigos, vídeos e postagens que adotam pontos de vista semelhantes aos nossos. Com isso, em vez de termos nossa visão de mundo desafiada, ela é cada vez mais reforçada. Logo, no mesmo passo em que nos sentimos mais confiantes em defender nossos pontos de vista, mais nos tornamos desconfiados e intolerantes com quem pensa diferente de nós. O pluralismo de ideias, um dos pilares da democracia, cede lugar ao fanatismo, e nossos interlocutores já não são vistos apenas como rivais no campo das ideias, mas como inimigos malvados a serem eliminados.
Um outro desafio à polarização é que não basta sermos expostos a opiniões diversas, dentro e fora dos nossos grupos ideológicos. Sem a disposição para ouvir, e a empatia para encarar o interlocutor rival como alguém de boa-fé, isso de nada adianta. Como esperar que haja diálogo genuíno, se estamos cada vez mais raivosos e certos das soluções que propomos para os problemas do mundo?
Uma terceira dificuldade é o narcisismo moral que tem se tornado hegemônico no século XXI. As pessoas já não são consideradas boas por aquilo que elas fazem: por serem gentis, pacificadores, ajudarem os necessitados, cultivarem o perdão, servirem ao próximo etc. Hoje, alguém é reconhecido como “bom” se professa determinada crença e manifesta essa crença em suas redes sociais. Alguém pode ser um péssimo pai, um profissional preguiçoso e um cidadão presunçoso e arrogante e, ainda assim, poderá ser reconhecido como “bom” se tiver as ideias “certas” (aprovadas por seu grupo) sobre as questões polêmicas do mundo moderno e as expressar publicamente: já não somos julgados por nossas virtudes e vícios, mas pelas opiniões que professamos. A polarização é também um efeito do narcisismo moral do mundo contemporâneo.
Não é fácil sair da situação em que nos encontramos. As redes sociais nos tornaram mais agressivos e hostis. São cada vez mais comuns, em debates pela internet, os ataques pessoais e os insultos. Julgamos tudo e todos, reagindo quase sempre instantaneamente a qualquer notícia ou postagem, sem pausa para checagem e reflexão. Substituímos a dúvida metódica pela certeza dogmática, e o silêncio prudente pelo ruído interminável da lacração e do cancelamento.
O filósofo italiano Norberto Bobbio tinha sua receita para o debate público: “avaliar todos os argumentos antes de se pronunciar, controlar todos os testemunhos antes de decidir, e não se pronunciar e nunca decidir à maneira de oráculo do qual dependa, de modo irrevogável, uma escolha peremptória e definitiva”. Mas Bobbio faleceu há quase 20 anos, e o diálogo verdadeiramente genuíno está fora de moda.
Amós Oz, escritor israelense, propôs como remédio para o fanatismo o senso de humor e a curiosidade. Humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, dizia Oz, e, dificilmente, alguém que ri de si mesmo se torna fanático. A curiosidade, para Oz, é a virtude que faz com que nos coloquemos no lugar do outro e nos abramos a novas perspectivas. Um curioso fanático simplesmente nunca existiu.
Infelizmente, a polarização está longe de acabar, pois sequer percebemos que somos nós mesmos que a alimentamos diariamente. Continuamos a acreditar que o inferno é sempre o outro. Tudo poderia, porém, ser muito diferente se começássemos reconhecendo que não precisamos ir além do nosso próprio coração para encontrar a fonte de toda a violência no mundo. Quem sabe essa pequena verdade nos fizesse despertar do sono da razão e pudesse ser o remédio eficaz de que a democracia e a paz tanto necessitam.
Régis Richael Primo da Silva é membro do Ministério Público Federal no Ceará e integrante do Coletivo Transforma MP.