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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

O STF E O FIM DO TRABALHO ESCRAVO (E DOS ACIDENTES DE TRABALHO) NO BRASIL

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

O julgamento do Supremo Tribunal Federal dos trabalhadores para plataformas digitais trará consequências econômicas profundas que não estão sendo debatidas

Por Rodrigo Carelli**

O Supremo Tribunal Federal está prestes a tomar uma decisão que deve fazer desabar as estatísticas do trabalho em condições análogas a de escravo no Brasil. Viva!

Está marcado para o início de fevereiro, pelo seu plenário, o julgamento da existência (ou não) de vínculo empregatício em caso de trabalhador por plataforma digital (seja lá o que isso queira ou possa dizer). Aparentemente a intenção é a de emitir uma decisão vinculante para que a Justiça do Trabalho não possa mais declarar o vínculo nesses casos. Provavelmente a Suprema Corte não irá parar por aí, determinando também a incompetência da Justiça do Trabalho para conhecimento acerca da existência da condição de empregado quando um contrato civil formal estiver em vigor. Não duvido também de que na decisão haja alguma ameaça a algum juiz que ouse tentar verificar a existência do vínculo para além do contrato formal, como ocorre em qualquer outro país do mundo.

Mas o que isso teria a ver com o fim do trabalho escravo e a redução dos números estatísticos do fenômeno? Ora, podendo contratar um trabalhador como prestador de serviços sem o risco da Justiça do Trabalho reconhecê-lo (e responsabilizá-lo), os empregadores irão em massa adotar esse tipo de contratação. Só dar um nome civil ao contrato (seja ele qual for), falar para o trabalhador assinar um papel, e pronto!, imunidade garantida pela mais alta corte do país. Com isso, os escravocratas terão a oportunidade de contratar seus trabalhadores por meio de contratos civis, conseguindo fugir da constatação da condição de escravizado.

Essa possiblidade não é meramente hipotética. Outro dia eu estava em sessão no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, e me deparei com situação idêntica ao que deve se alastrar no Brasil. Era um caso de trabalhadores encontrados em situação análoga a de escravos em um grande festival de música. Eles dormiam no local de trabalho, em papelões lançados ao chão, e recebiam comida imprópria para o consumo humano. Em sua sustentação oral, o advogado da empresa renovou seus argumentos de defesa: não eram empregados, mas sim prestadores de serviço civis, com contrato assinado e tudo. Eram empreendedores, que, no uso de sua autonomia da vontade, colocavam no mercado sua força de trabalho para comercializar bebidas geladinhas junto aos contentes frequentadores do festival. Clamava pela incompetência da justiça especializada, trazendo em seu auxílio a jurisprudência do STF. Neste caso específico, ainda podendo fazê-lo, a turma do tribunal afastou a preliminar e entrou no mérito da causa, verificando que de fato eram todos empregados e estavam realmente em condição desumana.

Se existisse uma decisão vinculante, os magistrados não teriam outra escolha senão dar razão à empresa, pedir desculpas, pois não se tratava de trabalho escravo contemporâneo, mas sim de empreendedores que gozavam sua liberdade econômica, patrões que ordenavam a si mesmos carregar pesadas mochilas com as bebidas e tinham livremente escolhido dormir no chão e comer alimentação vencida.

Qual empregador, podendo firmar um contrato com menos ônus, tributários ou trabalhistas, vai preferir contratar como empregado seus trabalhadores? Qual empregador, mesmo socialmente responsável e consciente, vai arriscar contratar empregados se seus concorrentes vão ter vantagem concorrencial com menos custos decorrente de contratações sem direitos e ainda eliminar riscos frente ao Poder Judiciário?

É claro que vai haver uma debandada geral do que ideologicamente chamam de regime da CLT (em verdade é o regime constitucional de direitos fundamentais no trabalho previsto no art. 7º e seguintes da Constituição da República).  É a Economia, estúpido!, como diria certo presidente estadunidense. Com isso, não somente veremos a queda no número de trabalhadores em situação análoga à de escravo, mas também teremos um desabamento na quantidade de acidentes de trabalho, olha que maravilha! Alguém sabe o número de trabalhadores contratados por plataformas digitais que se acidentaram ou morreram realizando seu novíssimo empreendimento de entregar comida ou transportar pessoas? Ninguém sabe. Esses dados não existem, as empresas tratam esses trabalhadores (olha eu aqui de novo chamando empresários livres de operários) como clientes, parceiros civis, e acreditam não ter obrigações de registro dessas ocorrências. Esses acidentes, com morte, afastamentos ou sequelas, não são contabilizados como de trabalho, permanecendo incógnitos em nossos hospitais públicos e cemitérios, como também nos seguros e estatísticas de acidente de trânsito.

Haverá a percepção estatística de que temos um país com menos trabalhadores escravizados e com raros acidentes de trabalho. Porém, lá na realidade (que parece importar pouco hoje em dia), estando os empresários (os verdadeiros) livres (olha a verdadeira liberdade aí, gente!) de cumprir com as normas de proteção, inclusive ambientais de segurança e saúde no trabalho, o trabalho escravo só vai aumentar e os acidentes vão acontecer de maneira muito mais frequente, como ocorre silenciosamente com motoristas e entregadores.

Outras estatísticas serão afetadas também: a de empregos formais, resultando inevitavelmente em uma queda na arrecadação previdenciária. A renda do trabalhador também sofrerá declínio gigantesco, pois não será necessário observar-se nem salário-mínimo, quanto mais pisos salariais negociados por sindicato. E, convenhamos, sindicatos para quê no novo desenho do mercado de trabalho? É a Economia, estúpido!, poderia ser novamente trazido aqui. E a renda do trabalhador e a queda de arrecadação afetam toda a Economia.

As consequências econômicas da decisão que será tomada pelo Supremo Tribunal Federal são colossais e estão sendo muito pouco debatidas. Entretanto, como responsabilizar uma Suprema Corte, que não é submetida ao escrutínio popular do voto, sobre um colapso econômico? De qualquer forma, ela haverá de ser chamada pela população, pelos sindicatos, pela mídia e pelos demais poderes a dar conta de sua decisão ideológica, sem respaldo no texto constitucional, que ao pretender mudar de forma radical todo o arranjo principal da sociedade nos levará a uma grave e real crise em pouco tempo. (Mas alguns ainda dirão que pelo menos haverá liberdade…)

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

**Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

Coletivo Transforma MP e entidades repudiam pesquisa do CFM com viés ideológico contra vacina de Covid-19 em crianças

O Coletivo Transforma MP se juntou à entidades brasileiras de saúde, entre elas a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), para apoiar a nota em defesa da saúde e da ciência.

Em nota, as instituições repudiam a atitude do Conselho Federal de Medicina (CFM) ao promover pesquisa de opinião com médicos sobre a eficácia das vacinas contra Covid-19 aplicadas em crianças entre seis meses e cinco anos. 

“A pesquisa parece não ter outro propósito senão o de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina para Covid- 19, fundada em puro negacionismo médico-científico e teorias da conspiração.” 

O documento também destaca que as vacinas desenvolvidas durante a pandemia de Coronavírus foram implementadas no pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) ao calendário vacinal da criança, baseado em decisão da Câmara Técnica Assessora em Imunizações (CTAI) do Ministério da Saúde. 

As entidades evidenciaram que o método de imunização foi estudado e aprovado por profissionais comprometidos e sérios que testaram todas as etapas necessárias de maneira transparente, portanto não cabe ao CFM desestimular a vacinação infantil contra Covid-19, contrariando a ciência e a ética médica. 

Coletivo Transforma MP parabeniza Vera Lúcia por nomeação no TSE

Foto: redes sociais

O Coletivo Transforma MP parabeniza a nova ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo, que foi nomeada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no último sábado (23). O nome de Vera Lúcia foi escolhido por Lula após o Supremo Tribunal Federal (STF) recomendar uma lista tríplice com indicações para o cargo. 

Vera Lúcia deve ocupar o cargo da ministra Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, que finalizará o seu mandato em breve. 

A futura ministra é a segunda mulher negra a compor a Corte, atrás de Edilene Lobo, que foi nomeada pelo presidente em junho deste ano. 

Em setembro o Coletivo Transforma MP emitiu uma nota apoiando a indicação de mulheres negras e progressistas para o STF, e Vera Lúcia foi uma das pessoas sugeridas, pois tem acompanhado seu trabalho e acredita na capacidade transformadora que possui. 

Entendemos que para uma democracia efetiva é necessário que haja representatividade de todos os grupos populacionais, cabendo ao Judiciário, como um dos Poderes da República, a atuação contramajoritária, contribuindo para a redução das desigualdades presentes na sociedade brasileira, como preconiza nossa Constituição.

Parabéns, Vera Lúcia. 

Boas festas?

Por Plínio Gentil no GGN

Em Gaza e seus arredores milhões de pessoas vivem a incerteza do dia seguinte. São habitantes da região – os palestinos -, descendentes dos que há dois mil anos ali foram se estabelecendo. Têm casas, filhos, trabalho e, mesmo em tempo de paz, submetem-se a um verdadeiro apartheid étnico, que lhes impõe incontáveis restrições. Se nunca foram propriamente senhores desse território, que se estende para muito além dali e há tempos é sujeito a domínio estrangeiro, nele viviam em absoluta maioria até 1948. Nesse ano uma resolução da ONU formalizou o que já vinha sendo posto em prática: a ocupação da área por colonos identificados com a tradição judaica, vindos principalmente do leste europeu. Terras eram compradas com financiamento de judeus bilionários e distribuídas aos interessados em ir para a “terra prometida”. A ocupação começava primeiro pela povoação, depois pela implantação de instituições exclusivas, depois por meio de ação militar e paramilitar, como a explosão do Hotel King David, em Jerusalém, que deixou mais de noventa mortos, dirigida por um futuro primeiro-ministro do futuro Estado de Israel.
Para legitimar a ocupação, planejada desde o fim do século XIX, desenvolveu-se uma doutrina política, o sionismo, inicialmente laica, mas que viu na aliança com o judaísmo e suas instâncias religiosas o elemento ideal para um amálgama capaz de unir toda uma etnia. Os judeus, desde o ano 70 DC, se integraram a vários estados e nações mundo afora e sua reunião num único território não era uma demanda expressiva, menos ainda consensual, entre eles. O holocausto nazista contra os judeus, graças ao justo repúdio que causou em todo o mundo, forneceu ao sionismo, sem querer, o ingrediente que faltava para a criação do estado judaico, o que obteve aprovação até mesmo da União Soviética.
Então o sionismo ganhou ares de doutrina libertária e o mundo parece não ter percebido que, aos poucos, ela se materializava num movimento em busca da colonização de um território habitado por outros povos e a implantação de um estado teocrático, já que estabelecido em bases religiosas, destinado a uma etnia específica.
Isto não poderia, é claro, ser obtido pacificamente, mas aí entra o interesse geopolítico das grandes economias ocidentais, pois a região visada era um importante entreposto entre o Ocidente e o Oriente e, mais relevante que isso, numa área próxima a enormes reservas de petróleo. Era preciso manter ali um regime amigo e politicamente alinhado aos interesses das petroleiras ocidentais, daí o apoio político, econômico e militar desde sempre dado ao estado de Israel.
Só que, no ponto a que as coisas chegaram, Israel começa a ser um amigo incômodo. A matança da população palestina, cujos dados hoje apontam para cerca de vinte mil vítimas, a metade crianças e mulheres – civis portanto –, vem provocando protestos significativos em todo o mundo. Essa oposição à violência israelense, embora minimizada pela mídia empresarial, parte muitas vezes da própria comunidade judaica, que faz questão de se dizer não representada pela ação militar contra a Palestina. Enfim, o governo israelense vai ficando isolado e seu principal aliado, do outro lado do Atlântico, por conta desse apoio já não tem certeza de reeleger seu presidente.
O sionismo, que por dezesseis anos foi considerado racismo pela ONU, nada tem a ver com judaísmo, ou semitismo, termo usado para generalizar o conjunto de cultura, história e religião dos judeus. Mas a equiparação enganosa dos dois conceitos é conveniente ao sionismo e a triste ironia do destino é que ninguém como ele está fazendo tanto pelo anti-semitismo, o que é uma consequência previsível da onda mundial de condenação à violência militar israelense e da crescente perda de apoio político de Israel.
É hora de governos, movimentos, partidos, intelectuais, artistas, a academia, associações, sindicatos, coletivos e todas as pessoas de boa vontade, humanistas e amantes da paz, de quaisquer matizes ideológicos, dizerem um basta – não apenas retórico – ao que se converteu num genocídio, transmitido em tempo real e que, por isso mesmo, não pode ser ignorado por ninguém. É cínico falar em boas festas enquanto as coisas continuarem assim.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Plínio Gentil é Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.

O STF coloca o Brasil na contramão do mundo civilizado em trabalho por aplicativos

Aqui temos um ponto (entre vários) que o STF não entendeu:  as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma.

Por Rodrigo Carelli no GGN

Duas notícias em sentido opostos vieram à tona quase simultaneamente. De um lado, o Supremo Tribunal Federal – STF, pela sua primeira turma, entendeu inexistente vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas que se utilizam de plataformas digitais para realização de seu negócio, encaminhando a questão para o plenário para julgar a questão de forma definitiva e ainda determinando que seja oficiado o Conselho Nacional de Justiça para que juízes do trabalho que julgam de forma diferente sejam punidos. De outro, o Conselho e o Parlamento Europeus chegaram a um acordo inicial para a melhoria das condições dos trabalhadores em plataformas por meio de uma diretiva, que criará critério para determinar a existência da relação de emprego. Não poderia haver um contraste maior: uma corte suprema retirando todos os direitos dos trabalhadores, inclusive fundamentais relativos ao trabalho e legisladores reconhecendo a existência de direitos trabalhistas e da relação de emprego.

O Conselho Europeu foi bem claro na comunicação que fez ao público: “atualmente, a maioria dos 28 milhões de trabalhadores em plataforma na União Europeia, incluindo motoristas, trabalhadores domésticos e entregadores de comida, são formalmente autônomos. Não obstante, um número deles tem que obedecer às mesmas regras e restrições de um empregado. Isso indica que existe de fato uma relação de emprego e deveriam desfrutar dos direitos trabalhistas concedidos aos trabalhadores assalariados ao abrigo do direito nacional e da União Europeia” (grifos no original, nossa tradução). Como afirma o comunicado, a diretiva “dá resposta a esses casos de classificação incorreta e facilita a reclassificação desses trabalhadores como empregados”.

Para isso, a futura diretiva utilizou a técnica de feixe de indícios, especificando alguns já utilizados para reconhecimento de relação de emprego no direito do trabalho europeu, prevendo que será considerado empregado se houver pelo menos dois de cinco indicadores na relação com a empresa: 1) limites máximos de montante que um trabalhador pode receber; 2) supervisão da execução do trabalho, inclusive por meios eletrônicos; 3) controle da distribuição ou atribuição de tarefas; 4) controle das condições de trabalho e restrições à escolha do horário de trabalho; e 5) restrições à liberdade para organizarem o seu trabalho e regras relativas à sua aparência ou conduta. Podem ainda os Estados-Membros acrescentar outros indicadores. Nos casos em que haja pelo menos dois indícios, há uma presunção da existência do vínculo empregatício, cabendo às empresas o ônus de comprovar em juízo que não existe relação de emprego. A diretiva também avança em relação à utilização dos algoritmos, mas isso é algo tão avançado para o nível da discussão no Brasil, que é bastante rasa, que deixaremos de lado esse importante ponto para analisarmos com mais calma os indicadores trazidos pela nova diretiva.

Percebe-se que o primeiro indicador da existência da relação é ligado à própria noção de trabalho autônomo: a precificação do trabalho deve ser realizada pelo trabalhador, e não pela empresa. A possibilidade de indicar o preço do seu trabalho é central para a caracterização do trabalho por conta própria, pois não há independência se o quanto você ganha é determinado por outra pessoa. Se uma empresa coloca um teto remuneratório para o seu trabalho, este não é de forma alguma autônomo.

O segundo indicador é a verificação da existência da subordinação, inclusive aquela realizada por meio de algoritmos, o que inclusive já tem previsão expressa na Consolidação das Leis do Trabalho (art. 6º, parágrafo único).

Os terceiro e quarto indicadores também preveem formas de controle que são considerados compatíveis com uma situação de relação de emprego, por meio de atos que demonstram a participação do trabalhador em atividade econômica alheia.

O quinto indicador é relativo a uma das facetas do poder empregatício, que é o poder organizativo da atividade econômica. Se há o poder de organizar a atividade econômica, inclusive em relação à aparência ou condutas dos trabalhadores, esses não são, de forma nenhuma, autônomos.

Alguém que conhece a práticas das empresas que se utilizam de plataforma digital para realização do próprio negócio, seja ele o transporte de pessoas ou de mercadorias, poderia afirmar que todos os indicadores são encontrados de maneira límpida. Entretanto, há sim empresas que por meio de suas plataformas digitais na qual não serão encontrados todos esses indicadores, como plataformas digitais que não se imiscuem na gestão do serviço prestado pelo trabalhador, nem no preço do trabalho, como por exemplo a GetNinjas.

Aqui temos um ponto (entre vários, é verdade) que o STF não consegue entender: as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. Não são iguais nem mesmo aquelas que atuam no mesmo ramo de negócio.

A decisão do STF citada no começo do artigo tem equívocos de várias dimensões ou camadas. Um pequeno trecho da sessão de julgamento, na fala do relator Ministro Alexandre de Moraes, pode demonstrar uma dessas dimensões de equívoco: “Aquele que dirige um veículo, aquele que faz parte da Cabify, da Uber, do Ifood, ele tem a liberdade de aceitar as corridas que ele quer”. No entanto, a afirmação genérica é falsa. As empresas não funcionam da mesma forma, não têm o mesmo algoritmo e não têm a mesma política. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. As empresas não atuam de forma igual nem mesmo aquelas no mesmo ramo de negócio. E ainda dentro da mesma empresa há modelos diferentes.

Tomemos o exemplo da iFood. A iFood tem duas formas de atuar: uma com os chamados de entregadores “nuvem”, que atuam diretamente na plataforma, controlados pelo algoritmo e GPS, com preços prefixados pela empresa, tarefas distribuídas pela plataforma, e prejuízo na classificação ao negar entregas; outra forma é o “OL”, de Operador Logístico, modelo no qual a iFood terceiriza a gestão dos trabalhadores para uma empresa, que os arregimenta, os “administra” em horários fixos em que não se pode negar chamados.

Já a Rappi atua com trabalhadores empregados na categoria “personal shopper”, que é o comprador nos supermercados, e por entregadores contratados via plataforma digital. Em tese, os entregadores podem negar chamados, no entanto, passam a não receber trabalhos, que são garantidos somente aos que se comprometerem a cumprir turnos fixos e que ativem o botão “autoaceitar”. Além disso, a empresa realiza exigência de produtividade em relação a aceitações, conclusão, avaliação do cliente, número de reservas de horários e trabalho em períodos de alta demanda que para que o trabalhador seja classificado na empresa, que tem várias categorias, que definem quem receberá mais e melhores trabalhos.

A Uber, por sua vez, entrou inclusive com ação judicial em face de desenvolvedora de aplicativo que orientava os motoristas a escolherem as melhores corridas, impedindo a sua utilização. Além disso, a não aceitação influencia na nota final dos trabalhadores.

Todas essas empresas precificam o trabalho, realizam supervisão eletrônica, fazem distribuição e atribuição de tarefas, controlam as condições de trabalho e restrigem a organização dos trabalhadores.

Assim, as decisões partem de uma premissa equivocada, muito distante da realidade. A distância quilométrica da realidade se dá por um motivo muito simples: não cabe ao Supremo Tribunal Federal analisar fatos. O STF, pela Constituição, somente pode fazer análise de constitucionalidade das decisões judiciais, não cabendo delimitar quadro fático. Não tem competência para isso, ainda mais na via estreitíssima da Reclamação Constitucional.

E nisso difere profundamente nossa corte suprema de algumas europeias que já julgaram a questão, como por exemplo a Corte de Cassação na França, a Suprema Corte do Reino Unido e o Tribunal Supremo na Espanha, que são instâncias revisionais e julgaram com base nos fatos de cada ação que chegou a eles. E difere mais ainda no procedimento: julgaram nos limites subjetivos e objetivos de cada lide que chegou, não pretendendo dar nenhum efeito vinculante a essas decisões.

A Suprema Corte brasileira está prestes a determinar a inexistência de vínculo empregatício em razão da pessoa (empresas que se autoproclamam plataformas digitais), de maneira abstrata, com base em pressupostos que se mostram longe da realidade, com decisão vinculante, e ainda pretende punir os juízes do trabalho que julguem conforme determina a Constituição analisando os fatos a partir da causa de pedir. Cada uma dessas particularidades jamais foi vista em todo o mundo, quem dirá todas elas conjuntamente, o que mostra o absurdo que estamos vivenciando. É uma jabuticaba transgênica gigante com agrotóxicos.

No mundo inteiro, e a diretiva europeia renova e reforça esse aspecto, a relação de emprego é verificada a partir de um quadro fático. A relação de emprego surge na realidade e o contrato é dela derivado, e não o contrário.

Assim, estamos em uma situação em que o Brasil, por sua Suprema Corte, pretende fechar a porta de acesso aos direitos fundamentais da Constituição, julgando com base em discursos retóricos das próprias empresas e pretendendo julgar a inexistência de uma relação de emprego de forma absoluta e, possivelmente impossibilitando o legislador de dizer o contrário, pois supostamente o STF está interpretando a Constituição. Enquanto isso, na Europa, as instituições estão, ao contrário, preocupadas com a fraude à relação de emprego realizada por essas mesmas empresas e deixando mais claro ainda os pressupostos para que seja reconhecida. O Supremo Tribunal Federal está levando o Brasil para a contramão do mundo civilizado. Isso talvez diga muito não somente sobre nossa corte suprema, mas também sobre o próprio Brasil.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

CNMP homenageia membros do MP, entre eles integrantes do Coletivo Transforma MP

11/12/2023 Entrega de certificados de boas práticas resolutivas do CNMP, no auditório do MPDFT. FOTO ED FERREIRA/MPDFT.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) homenageou nesta segunda-feira (11) os membros do Ministério Público brasileiro que colaboraram para construir uma entidade mais resolutiva. Entre os oito homenageados, três são membros do Coletivo Transforma MP, Lenna Nunes Daher, Ludmila Reis Brito Lopes e Marcelo Pedroso Goulart.  

É uma honra para o Coletivo Transforma MP ter integrantes Promotores e Procuradores de Justiça que desempenham um trabalho humano e resolutivo ao exercer suas funções buscando de fato concretizar a Constituição Federal e assim alcançar a transformação social visando uma sociedade mais livre, justa e solidária.

Investigação criminal supervisionada em caso de prerrogativa de foro

Artigo do Procurador de Justiça e integrante do Coletivo Transforma MP, Prof. Rômulo Moreira, no Conjur

No último dia 6 de setembro, o ministro Alexandre de Moraes confirmou a necessidade, sob pena de nulidade, de autorização judicial prévia para a investigação de agentes públicos com prorrogativa de foro. A decisão monocrática foi tomada em liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.447.

Ao deferir parcialmente a medida cautelar, o ministro também determinou o imediato envio dos inquéritos policiais e procedimentos de investigação, que tenham sido instaurados no Tribunal de Justiça do Pará pela polícia judiciária e pelo Ministério Público, para imediata distribuição e análise do desembargador-relator, a quem caberá analisar se há justa causa para a continuidade da investigação.

Na ação constitucional, alegou-se afronta à Constituição a respeito do foro por prerrogativa de função, uma vez que a jurisprudência da Suprema Corte afirma a necessidade de supervisão judicial desde a abertura do procedimento investigatório até o eventual oferecimento da denúncia.

Segundo o ministro Alexandre de Moraes, “a Constituição Federal estabeleceu, como regra, o julgamento dos processos judiciais em dupla instância, isto é, inicialmente por um juiz (primeira instância da justiça) e, posteriormente, por um colegiado (segunda instância). Por outro lado, o relator observou que, no contexto estadual, a Constituição Federal estabeleceu a competência privativa dos Tribunais de Justiça para julgar juízes estaduais (e do Distrito Federal) e membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade”.

Segundo ele, “as hipóteses de foro por prerrogativa de função são excepcionais ressalvas aos princípios constitucionais do juiz natural e da igualdade e, nessa condição, devem ser interpretadas de maneira estrita, sob pena de se transformar a exceção em regra”, ressaltando “que, conforme a jurisprudência do STF, as investigações contra autoridades com prerrogativa de foro no Supremo submetem-se ao prévio controle judicial, o que inclui a autorização judicial para o início das investigações.”

Essa decisão do ministro foi confirmada, por unanimidade, pelo plenário da Suprema Corte, na sessão virtual finalizada no último dia 20 de novembro, quando foi confirmada a necessidade de autorização judicial prévia para a investigação de agentes públicos com prerrogativa de foro.

Em seu voto no mérito da ação, o relator reiterou “que, de acordo com a jurisprudência do STF, as investigações contra autoridades com prerrogativa de foro na Corte se submetem ao prévio controle judicial, o que inclui a autorização judicial para as investigações. Esse mesmo entendimento tem sido aplicado pelo Supremo na solução de controvérsias relacionadas aos tribunais de segundo grau.

Pois bem.

Esta decisão da Suprema Corte segue decisões anteriores no sentido de que quando o investigado tem prerrogativa de foro, a respectiva apuração criminal deverá ser “supervisionada” pelo respectivo órgão jurisdicional competente.

Com efeito, a 2ª Turma concedeu Habeas Corpus de ofício para extinguir, por ausência de justa causa, a Ação Penal nº 933, ajuizada contra um deputado federal, acusado de praticar um crime eleitoral. Em questão de ordem, os ministros entenderem que houve nulidade na investigação com relação ao réu, uma vez que o procedimento foi supervisionado por Juízo incompetente. De acordo com os autos, o parlamentar foi indiciado em inquérito supervisionado por Juiz de primeiro grau quando cumpria mandato de prefeito. Recebida a denúncia em primeira instância, os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal após a diplomação do réu como deputado federal.

Segundo ficou definido nesta decisão, a competência para supervisionar investigação de crime eleitoral imputado a prefeito é do Tribunal Regional Eleitoral, segundo destacou o relator da ação, ministro Dias Toffolli, citando o Enunciado 702 da súmula do Supremo Tribunal Federal. No caso, segundo o ministro, houve indícios de que o então prefeito teria praticado crime eleitoral por ter supostamente oferecido emprego a eleitores em troca de votos, valendo-se do cargo que ocupava. “Nesse contexto, não poderia o inquérito ter sido supervisionado por juízo eleitoral de primeiro grau e muito menos poderia a autoridade policial direcionar as diligências apuratórias para investigar o prefeito e tê-lo indiciado”, disse o relator. Dessa forma, segundo ele, “a usurpação da competência do Tribunal Regional Eleitoral para supervisionar as investigações constitui vício que contamina de nulidade aquela investigação realizada em relação a este detentor de prerrogativa de foro”. Seguindo o entendimento do relator, os ministros da Segunda Turma votaram pela concessão de habeas corpus de ofício para extinguir a ação penal originária por ausência de justa causa, nos termos do artigo 395, III do Código de Processo Penal, diante da nulidade do procedimento investigatório.

Da mesma maneira, no julgamento do Inquérito nº 2.116, em que o Ministério Público Federal pedia a apuração de possível envolvimento de um senador em suposto esquema de desvio de verbas federais em obras municipais, o plenário decidiu que o inquérito deveria prosseguir sob a fiscalização da Suprema Corte.

Também no julgamento do Inquérito nº 3.305, no qual um deputado federal era acusado de fazer parte de quadrilha destinada ao desvio de recursos públicos. Neste caso, a denúncia foi rejeitada em razão de o inquérito ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados. O então relator do inquérito, ministro Marco Aurélio, ressaltou que o entendimento do Supremo Tribunal Federal era de que a competência do Tribunal para processar autoridades com prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Uma vez identificada a participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à corte. “É inadmissível que uma vez surgindo o envolvimento de detentor de prerrogativa de foro, se prossiga nas investigações”, afirmou. Seu voto foi acompanhado por unanimidade.

Com o mesmo entendimento, a 1ª Turma determinou o arquivamento do Inquérito nº 3.552, no qual um deputado federal era acusado de contratação de uma funcionária fantasma em seu gabinete na Câmara dos Deputados. Os ministros acolheram a questão de ordem apresentada pela defesa no sentido de que o Inquérito nº 3.552 era um desmembramento do Inquérito nº 3.305, arquivado pela Primeira Turma, em julgamento anterior, por ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados, usurpando a competência do Supremo. O então relator do inquérito, ministro Marco Aurélio, observou que o entendimento do Supremo é de que a competência para processar autoridades com prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Dessa forma, assim que for identificada a participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à corte. 

Também neste mesmo sentido, o ministro Gilmar Mendes determinou o arquivamento do Inquérito 2.963, contra um senador, sua esposa e quatro filhos por suposta prática dos crimes de falsidade ideológica, desvio de contribuições previdenciárias e crimes contra a ordem tributária. O inquérito foi instaurado pela polícia federal, por requisição do Ministério Público Federal. A decisão, conforme o ministro, ocorreu sem prejuízo de que novo procedimento de investigação venha a ser instaurado para apurar os fatos citados na notícia-crime. Porém, ele entendeu que o inquérito deveria ser trancado por não ter sido requerido pelo procurador-geral da República. O relator observou que a requisição para a instauração do inquérito pela polícia federal foi realizada por procurador da República, sem qualquer delegação do procurador-geral da República.

Naquela oportunidade, o relator afirmou: “Como cediço, o inquérito para investigar fatos em tese praticados por membro do Congresso Nacional, na qualidade de coautor ou autor, não só é supervisionado pelo STF, como tem tramitação eminentemente judicial e não obedece ao processamento dos ordinários inquéritos policiais”, salientando que, nesses casos, a abertura da investigação apenas se dá no Supremo Tribunal Federal, por requisição do procurador-geral da República ou de subprocurador-geral da República que atue na corte mediante delegação.

Em outro julgamento, o plenário decidiu, na Petição nº 3.825, que “a abertura de inquérito originário no STF depende de requisição do procurador-geral da República e de supervisão desta Corte”. Para o relator, “há vício de origem na instauração do presente procedimento, ao menos no que diz respeito ao membro do Congresso Nacional investigado”. Isso porque, no caso, o delegado de Polícia Federal apenas comunicou ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria-Geral da República a instauração do inquérito, ao mesmo tempo em que determinou a prática de diversos atos de investigação. “Agindo dessa forma, a Polícia Federal, de acordo com requisição de procurador da República oficiante em 1ª instância, chamou para si atribuição que é do procurador-geral da República, exercida perante o Supremo Tribunal Federal”, afirmou o relator.

Outrossim, o ministro Teori Zavascki determinou o arquivamento da Petição nº 5.220, lembrando que cabia ao procurador-geral da República oferecer inquérito, com exclusividade, para apuração de fatos delituosos envolvendo detentores de prerrogativa de foro na Suprema Corte. “A atuação do titular da ação penal, nas investigações perante o Supremo Tribunal Federal, ganha contornos especiais, tanto que é irrecusável a promoção de arquivamento de inquérito apresentada pelo procurador-geral da República, em especial quando ausentes elementos à formação da sua opinio delicti”, ressaltou o ministro. No caso, conforme o relator, o próprio chefe do Ministério Público assinalou que não há notícia de que o suposto autor do referido vazamento de informações seja detentor de prerrogativa de foro no âmbito do Supremo, “o que, por si só, impede a instauração de inquérito perante esta Corte”.

Mesmo quando se trata de governador, a investigação criminal será levada a cabo pelo Superior Tribunal de Justiça, não havendo necessidade, para tanto, de autorização da Assembleia Legislativa, que somente será de rigor para admissibilidade da acusação. Neste sentido, o ministro Luiz Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, autorizou a abertura de investigações envolvendo dois governadores. O ministro apontou que, em situações envolvendo governadores, a corte tem reconhecido a possibilidade de que processos e julgamentos dependem de autorização do Poder Legislativo. “Todavia, é bem de ver que, nesta fase inicial de investigação, ainda não é o caso de requerer autorização prévia das assembleias legislativas”, escreveu (Sindicância nº 456 — Processo nº. 2015/0006612-0).

Sobre a investigação criminal supervisionada judicialmente, assim afirmou o ministro Gilmar Mendes:

Se a Constituição estabelece que os agentes políticos respondem, por crime comum, perante o Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do Supremo Tribunal Federal. A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal.  A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República. No exercício de competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e Regimento Interno, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. Questão de ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. Conforme o Supremo Tribunal Federal: A outorga de competência originária para processar e julgar determinadas Autoridades (detentoras de foro por prerrogativa de função) não se limita ao processo criminal em si mesmo, mas, à base da teoria dos poderes implícitos, estende-se à fase apuratória pré-processual, de tal modo que cabe igualmente à Corte — e não ao órgão jurisdicional de 1ª instância — o correlativo controle jurisdicional dos atos investigatórios (Supremo Tribunal Federal: Reclamação 2349/TO, — Reclamação nº 1150/PR). A inobservância da prerrogativa de foro conferida a Deputado Estadual, ainda que na fase pré-processual, torna ilícitos os atos investigatórios praticados após sua diplomação (Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus 94.705/RJ, relator Ministro Ricardo Lewandowski). A partir da diplomação, o Deputado Estadual passa a ter foro privativo no Tribunal de Justiça, inclusive para o controle dos procedimentos investigatórios, desde o seu nascedouro até o eventual oferecimento da denúncia” (Inquérito nº 2.411/MT, Informativo 483).

Não obstante tais decisões, sempre nos pareceu um tanto quanto estranho que um órgão jurisdicional “supervisione” uma investigação criminal e depois processe e julgue o mesmo caso penal (sendo o relator também o mesmo, o que é mais grave).

Com efeito, sob o ponto de vista do sistema acusatório, e em respeito às suas regras e aos seus princípios, tal “investigação supervisionada” soa, no mínimo, inadequada e estranha aos postulados constitucionais. Por enquanto, porém, é o que temos nesta verdadeira “torre de babel” que é a investigação preliminar no processo penal brasileiro.

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.

O Trilho e o Veneno

Arquivo / EBC

Por Leomar Daroncho e Lincoln Cordeiro no Correio Braziliense

A propósito do Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos – 3 de dezembro -, a NetFlix lançou a minissérie “Heróis dos Trilhos” (The Railway Men: The Untold Story of Bhopal 1984), anunciada pelo streaming como “Drama. Histórico. Suspense”. A produção indiana é inspirada em história real: a maior tragédia da indústria química, em Bhopal, Índia, em 1984.

Sem pretender dar spoiler, registre-se que milhares de trabalhadores morreram quando uma unidade da Union Carbide India Limited (UCIL) liberou o gás isocianato de metila (MIC). A série mostra o trágico fim de milhares de moradores, passageiros e funcionários da ferrovia, próxima à fábrica de agrotóxicos.

Nesta hecatombe, estima-se em cerca de 15 mil o número de mortes imediatas e calcula-se que cerca de 500 mil pessoas sofreram danos pela exposição ao gás altamente tóxico. Passados 39 anos, ainda há um exército de sequelados: 25 mil casos de cegueira e 50 mil incapacitados, com doenças crônicas, além de uma geração de crianças debilitadas. Dados chocantes, como o caso dos médicos heroicos que morrem envenenados fazendo boca a boca nas vítimas, são relatados na pesquisa que resultou no romance histórico de Javier Moro: “Meia-noite Em Bhopal”.

Há especial destaque para as estratégias empresariais para lidar com a exposição, que também estão presentes na saga brasileira dos agrotóxicos: negar dados científicos, disseminando dúvidas e ameaças contra pesquisas que apontam danos ao meio ambiente e à saúde das populações expostas ao veneno. Em Bhopal, q ocultação de informações técnicas, sob o pretexto do sigilo industrial, prejudicou o tratamento das vítimas.  

Outra estratégia recorrente é culpar as vítimas, acusadas de não usar equipamentos de suposta proteção e não seguir recomendações de segurança, algumas delas impraticáveis. No limite, levantam a suspeita de sabotagem. A culpa seria de terceiros.

No Brasil, Paulínia, em São Paulo, já provou do veneno dos agrotóxicos, diante do desastre, com danos localizados, na fábrica de agrotóxicos da Shell/Basf. Investigações do Ministério Público do Trabalho constataram a contaminação dos solos, da água e do ar por substâncias com potencial teratogênico (danos na gestação), genotóxico (danos genéticos) e carcinogênico (câncer). A Ação judicial, no caso, resultou um acordo, em 2013, pelo qual as empresas, sem assumir a culpa, destinaram R$ 200 milhões a pesquisas e ao tratamento de vítimas de intoxicação. Parte do valor beneficiou a construção de centros de pesquisa e tratamento do câncer, inclusive o conceituado Hospital do Câncer de Barretos. Também se assegurou a indenização e o tratamento vitalício a mais de mil vítimas.

Paulínia não encerra a tragédia brasileira com os agrotóxicos. Disputamos o posto de maior mercado consumidor de agrotóxicos, desde 2009, com frequentes medidas governamentais e legislativas liberando e flexibilizando o uso de produtos tóxicos banidos nos países de origem. O gigantesco volume de veneno é espalhado pelas regiões agrícolas criando um rastro de enfermidades agudas (instantâneas) e crônicas (como o câncer), que é silenciado pela deficiência na estrutura de saúde e pelas dificuldades de notificação.

Em “La Argentina Fumigada”, a jornalista argentina Fernanda Sández relata a saga da ciência diante da indústria química que investe na “opacidade”, no “silêncio”, na reação às “perguntas incômodas” e no “negacionismo científico”, um quadro agravado pela complacência das autoridades.

Assim como os trabalhadores e moradores de Bophal não tinham conhecimento dos riscos da indústria que os incapacitou ou matou, brasileiros das fronteiras agrícolas não estão informados dos riscos dos agrotóxicos, presentes no ar, na água potável e nos alimentos com resíduos de substâncias, muitas proibidas noutros países.

Nas fronteiras agrícolas a exposição vem sendo associada a casos de câncer, malformações, desregulação endócrina, depressão, suicídios e puberdade precoce de crianças, como no caso da Chapada do Apodi, no Ceará, pelo intenso uso do veneno.

Como convém à disputa pela audiência, a apocalíptica trama indiana destaca os heróis ferroviários. O saldo fatal de intoxicados seria muito pior sem o heroísmo que salvou vidas. No Brasil, em que se insiste na flexibilização e no estímulo ao uso de mais veneno, não há heróis, mas serão muitas as vítimas enquanto permanecer o silêncio perturbador da sociedade.

Leomar Daroncho e Lincoln Cordeiro são Procuradores do Trabalho

Austeridade fiscal versus Direitos Humanos: explicações básicas de economia para juristas

Por Gustavo Livio no GGN

Juristas preocupados com a efetividade dos direitos fundamentais precisam começar a prestar mais atenção a temas econômicos. É preciso entender que a desenfreada busca por superávits fiscais contínuos tem impacto direto e negativo sobre as políticas públicas que se destinam a concretizar os preceitos constitucionais. Enxugar o orçamento público é, no fim das contas, retirar dinheiro do SUS, do INSS, da educação pública, da cultura, do meio ambiente etc. E aqui cabe uma observação inaugural: pouco importa o que você acha a respeito do tamanho que o Estado deve ter. Defenda o Estado mínimo à vontade, mas saiba que o faz em contrariedade à Constituição, que elencou vasto rol de direitos fundamentais para os quais o orçamento deve se adequar. Há nítida contradição entre restrições jurídico-fiscais e as diretrizes constitucionais de concretização de direitos sociais. É a política fiscal que deve(ria) se adequar à Constituição, não o contrário. Em outras palavras, quem fala de direitos humanos sem se importar com desenvolvimento econômico e com orçamento fiscal está fadado a cumprir o papel de Sísifo.

                Como escrevo essencialmente para juristas, tentarei ser o mais didático possível para mostrar que temas econômicos não são bichos de sete cabeças. Há duas políticas econômicas centrais: a política fiscal e a política monetária. Foquemos na primeira.

                A política fiscal trata basicamente do orçamento público, seu tamanho e suas escolhas alocativas. A política fiscal possui dois lados: o lado da arrecadação e o lado das despesas. Pelo lado da arrecadação (receitas), o que acontece quando o Estado cobra tributos? Ele retira riqueza do setor privado. Do outro lado (o das despesas), o que acontece quando o Estado gasta? Ele despeja recursos na economia. Com isso, percebemos uma primeira característica da política fiscal: ela é essencialmente redistributiva, o que significa dizer que o Estado desloca a riqueza de um lugar para outro. E pode deslocar tanto de cima para baixo (tributação progressiva + políticas de distribuição de renda para os mais pobres) quanto de cima para baixo (tributação regressiva + taxas básicas de juros estratosféricas).

                Mas será que o Estado precisa arrecadar antes de gastar? A resposta, embora contraintuitiva, é não. Estados que emitem sua própria moeda (ou seja, possuem soberania monetária) não precisam de receitas tributárias ou de venda de títulos para financiar seus gastos exatamente porque a emissão da moeda precede cronologicamente a receita tributária e o recolhimento de recursos via títulos da dívida pública. Soberania monetáriasignifica a capacidade do Estado de aumentar a base monetária sempre que desejar.

                O que são políticas de austeridade fiscal? Antes de entendê-las, precisamos fazer um mergulho nas divergências do pensamento econômico. De forma muito resumida, duas correntes historicamente se digladiam sobre o papel do Estado na economia. A primeira delas é a corrente composta de um conjunto de teorias de matriz neoclássica, que hoje é tida como a ortodoxia econômica. Em geral, os ortodoxos contraindicam políticas fiscais expansionistas. Para eles, o ativismo fiscal do Estado produz um efeito de deslocamento do investimento privado (conhecido como crowding out). Existiria relação de concorrência – e não de complementariedade – entre investimento público e investimento privado, de modo que a ampliação dos gastos públicos geraria retração da atividade privada. Jonh Cochrane, famoso defensor dessa corrente, argumenta que “cada dólar de aumento da despesa do Estado tem de corresponder a menos um dólar de investimento privado. Os empregos criados pelo investimento em incentivos são compensados pelos empregos perdidos devido ao declínio do investimento privado”. Como o investimento público, por definição (!), é menos “eficiente” (!) do que o privado, o expansionismo estatal pode até gerar crescimento do PIB no curto prazo pelo aumento imediato da demanda agregada, mas a médio e longo prazos geram apenas inflação e desequilíbrio na medida em que o aumento da demanda não é acompanhado pelo aumento da oferta. Por trás desse pensamento está a crença de que o mercado é dotado de mecanismos estabilizadores que induzem equilíbrio automático e alocação ótima dos recursos escassos, e se o Estado entra na equação tudo o que ele pode fazer é perturbar esse equilíbrio. Os ortodoxos acreditam que o crescimento econômico é resultado essencialmente do aumento de produtividade (a demanda é um componente secundário). Se o Estado quiser ajudar, deve cortar tributos e reduzir sua atuação ao máximo. A estratégia keynesiana (que veremos na sequência) não pode funcionar porque todo dinheiro que o Estado injeta na economia deve ser, antes, arrecadado via tributos ou empréstimos, de modo que o Estado não pode criar nova demanda, mas apenas transferir riqueza de um grupo para outro.

                Seguindo essa ordem de ideias, as políticas de austeridade, embora já fossem defendidas com outras roupagens desde sempre, ganharam força após a crise de 2008. O pano de fundo foi o aumento da dívida pública dos países europeus e dos EUA, principalmente em razão dos pacotes fiscais de socorro aos bancos tidos como “grandes demais para falir” somado ao pífio crescimento econômico registrado no período pós-crise (afinal, a dívida pública se mede como uma porcentagem em proporção ao PIB. A dívida pública brasileira hoje, por exemplo, gira na casa de 72% do PIB. Como consequência, se não há crescimento do PIB, a dívida tende a aumentar) (1). A tese da austeridade fiscal sustenta basicamente que o corte de gastos do Estado proporciona crescimento econômico na medida em que eleva a confiança (atenção para a confiança!) dos agentes privados. Isso acontece por dois mecanismos: redução da taxa de juros e\ou tributos mais baixos. Gastos menores do governo abrem espaço para a redução da carga tributária e das taxas de juros, o que inspira a confiança nos agentes econômicos, que, por sua vez, conseguem antecipar esses resultados que ocorrerão no futuro e então voltam a investir\consumir no presente. Como o Estado iniciou um processo de redução, os investidores privados podem confiar que não contarão com o obstáculo do Estado e então passam a investir mais e assim se reinicia a crescimento econômico. Portanto, em momentos de crise, o Estado deve cortar gastos.

                Do outro lado, as teorias heterodoxas (bastante inspiradas no pensamento de Keynes) argumentam que o motor do crescimento econômico é a demanda agregada. Esse é o centro de tudo: o setor privado só volta a investir e a contratar mais funcionários se houver demanda efetiva. As análises ortodoxas são muito psicologizantes (“confiança”, “credibilidade”) e se baseiam mais em humores do que na materialidade econômica. Além disso, as correntes heterodoxas sustentam que o investimento público não compete necessariamente com o investimento privado. Muito ao contrário, ele costuma funcionar como estimulante do setor privado. Gastos do governo e investimentos públicos são componentes autônomos que estimulam tanto no curto quanto no longo prazo a trajetória de crescimento do PIB. Isso ocorre, em grande parte, porque existe um efeito multiplicador fiscal que indica que cada R$ 1,00 injetado na economia eleva o produto agregado em mais do que o valor original. O bolsa-família, por exemplo, tem um multiplicador médio aproximado de 1,78, o que significa que cada real investido nesse programa aumenta em média 1,78 do produto agregado (PIB).

                O nível de emprego depende do nível agregado de investimentos; os investimentos, por sua vez, dependem do nível de demanda agregada (ninguém vai investir se não tiver perspectiva de que o produto será vendido) e da taxa de juros. A demanda agregada responde a uma equação muito simples: Y = C + I + G + (E – I). Demanda agregada (Y) é igual ao somatório do consumo das famílias (C) + investimentos (I) + gastos do governo (G) + saldo do balanço de pagamentos (simplificando, exportações – importações). Só que o consumo (C) e os investimentos (I) são variáveis autorreferidas (dependentes), o que significa que uma oscila em função da outra. Em momentos de estagnação ou de depressão, famílias e empresas estão endividadas e preferem poupar a consumir; mesmo que o crédito esteja barato, não há estímulos de demanda para iniciar novos ciclos de investimento. A balança de pagamentos (saldo de tudo que entra menos tudo que sai do país) até pode, teoricamente, salvar a economia pelo estímulo externo (um boom de commodities), mas num país continental como o Brasil tem efeitos apenas regionais. Restam os gastos públicos, única variável exógena dependente apenas da vontade política do governo. Quando a economia está em recessão\estagnação, o nível de investimentos privados e do consumo das famílias tende a estagnar, de modo que a expansão dos gastos públicos induz o setor privado a voltar a investir e contratar mais funcionários, o que aumenta a renda agregada e a economia então volta a crescer. Durante momentos de estagnação\depressão, a atuação anticíclica do Estado é fundamental para retomar o dínamo da atividade econômica porque as outras variáveis (C e I) não possuem estímulos de demanda. Pense na construção de uma estrada: durante uma crise, o governo anuncia uma licitação, a empresa vencedora tem garantida a demanda (a demanda vem na frente do investimento) e por isso contrata mais funcionários, compra matérias-primas, aluga máquinas e os estímulos econômicos vão se diversificando por uma teia extremamente capilarizada que aumenta o nível geral de emprego e renda.

                Com isso percebemos uma cena curiosa: se a dívida pública se mede em proporção ao PIB e se o gasto público é um elemento central para o crescimento econômico (principalmente em períodos de crise ou de estagnação), então chegamos à conclusão de que os déficits públicos podem perfeitamente reduzir a dívida pública se a taxa de crescimento econômico alcançado for superior à taxa de crescimento dos gastos. Além disso, com o crescimento do PIB tende também a crescer a receita tributária, elevando a arrecadação. Como já vimos que tributos não financiam gastos do Governo e que não é necessário que a arrecadação de impostos preceda a realização de gastos, então mudamos nossa percepção sobre a dívida pública: ela é um instrumento extremamente útil na concretização de objetivos politicamente eleitos pelo Estado (no nosso caso, estamos falando da concretização dos direitos fundamentais e dos objetivos previstos no artigo 3º da Constituição).

                Tudo isso significa que a política fiscal deve ter flexibilidade para atuar ao redor do ciclo econômico de modo a induzir o desenvolvimento nacional (o que é sinônimo de concretizar paulatinamente os direitos fundamentais sociais). De modo geral, em momentos de crise, o Estado deve atuar deficitariamente para dinamizar a economia e estimular o crescimento. E ele faz isso criando demanda na frente. A teoria heterodoxa argumenta que os déficits públicos geram receitas para o setor privado e os superávits, ao contrário, enxugam dinheiro do setor privado. Poderia comprovar essa afirmação com mais algumas equações, mas creio que a afirmação é lógica o bastante para não correr o risco de perder a atenção do leitor.

                A divergência jurídica diz respeito ao seguinte: a teoria ortodoxa recomenda normas fiscais rígidas que não abram espaço para o Estado aumentar atuar deficitariamente de forma contínua. A teoria heterodoxa, ao contrário, recomenda flexibilidade, pois os ciclos econômicos variam entre momentos de expansão e de retração, e então o Estado deve estar livre oscilar seu orçamento ao redor dos ciclos como indutor do desenvolvimento econômico. Déficits públicos são saudáveis porque injetam dinheiro na economia quando ela se encontra anêmica.

                Mas e a dívida pública? Esse é o ponto central da discussão. Os pregadores do evangelho da austeridade conseguiram disseminar com muito sucesso uma analogia bastante funesta entre a dívida pública e a dívida familiar. O Estado é como uma família, dizem, e não pode se endividar para além das suas receitas. Bem, vamos com calma. Em primeiro lugar, é preciso tomar nota do terrorismo ideológico que utiliza a dívida pública como “fator espantalho” para argumentar a favor da indispensabilidade das políticas de austeridade (que, a propósito, são muito lucrativas para a elite porque geralmente vêm acompanhadas de processos de privatização e venda de ativos). A anunciação do apocalipse da dívida pública é extremamente funcional para os interesses das elites burguesas porque elas não têm nenhum interesse em participar da redistribuição da política fiscal. Elas não gostam dessa ideia de “redistribuir”.

                Vamos tratar de desmistificar o problema da dívida pública. Em primeiro lugar, não há nenhuma comparação legítima entre a dívida pública e a dívida familiar porque o Estado tem algumas coisas que uma família não tem. A primeira delas é a soberania monetária. O Estado, como emissor da moeda nacional, pode injetar dinheiro na economia a partir do nada. Não é verdade que primeiro o Estado tem que arrecadar para depois gastar. Se você não acredita em mim, acredite em André Lara Resende: “Só o Estado é capaz de criar poder aquisitivo sem poupança prévia. No mundo contemporâneo, só ele e seus concessionários, os bancos com acesso ao banco central, podem criar poder aquisitivo não lastreado em algum ativo existente” (2). Se você não acredita nele, acredite em Paul Krugman, Nobel de economia: “O que o Fed faz, quando assim o quer, é comprar ativos – normalmente letras do Tesouro, também conhecidas como dívidas do governo no curto prazo. Porém, de uns tempos para cá, passou a adotar uma variedade muito mais ampla de alternativas. Também concede empréstimos diretos aos bancos, mas isso é efetivamente a mesma coisa. O aspecto crucial é onde o Fed consegue fundos para comprar os ativos. E a resposta é que os cria a partir do nada” (3). O Estado pode aumentar sua base monetária a qualquer momento. Com isso, o mito de que o Estado precisa primeiro arrecadar para depois gastar não se sustenta. A conclusão é que não existe o menor risco de que um Estado monetariamente soberano deixe de pagar suas dívidas denominadas em moeda nacional. Por isso é tão importante distinguir dívida interna de dívida externa. A dívida externa realmente oferece riscos de pagamento na medida em que o Estado não tem nenhuma ingerência sobre a moeda estrangeira; mas a dívida interna não corre risco de não ser paga. Logo, os exemplos de comparação com a Argentina, a Grécia ou a Itália só podem ser tentativas de tumultuar o debate. A Argentina tem um problema crônico de dívida externa desde a década de 1980. A Grécia e a Itália abdicaram de sua soberania monetária em favor do Euro. Não existe nenhum exemplo histórico de Estado nacional que tenha “declarado falência” de dívida denominada em moeda nacional soberana, mas há um punhado de exemplos de Estados que declararam insolvência de dívida externa. Se você não acredita em mim, acredite em André Lara Resende novamente: “Existe risco na dívida pública denominada em moeda estrangeira, mas não existe risco de crédito na dívida pública denominada em moeda nacional” (4). Por óbvio, isso não significa que o Estado possa sair por aí imprimindo papel-moeda (hoje, aumentando os números no computador) para resolver seus problemas. Os gastos públicos podem exercer efeito inflacionário em uma economia já aquecida, e por vezes o superávit fiscal é recomendável. O ponto é que a persistência irritante de obter superávits fiscais contínuos atrapalha o desenvolvimento nacional e impede a concretização das promessas constitucionais sem que exista uma justificativa razoável para que o Estado imponha a si próprio a camisa de força da austeridade.

                O Brasil possui 335 bilhões de dólares de reservas cambiais. Não temos rigorosamente nenhum problema com dívida externa. Nossa dívida interna é moderada e está na casa dos 73% do PIB. A título de comparação, a dívida dos EUA hoje é 130% do PIB, a do Japão é de 266%, a da Inglaterra de aproximadamente 100% do PIB. E podemos afirmar com tranquilidade que nenhum desses países vai “dar calote” em sua dívida interna. Portanto, no caso do Brasil, a dívida pública não passa de “fator espantalho” para disseminar medo e inclinar o debate público a favor das políticas de redução do Estado com base em analogias estúpidas com países que nada têm a ver com o nosso. Esse negócio de “rombo fiscal” não passa de terrorismo ideológico-midiático para desviar sua atenção do que realmente importa: que o orçamento deve se adequar às promessas constitucionais e não o contrário e que os déficits públicos não são, em si mesmos, problemáticos.

                De modo geral, as políticas de austeridade não funcionam em nenhum de seus lados. Não reduzem a dívida pública porque o gasto do Estado é um componente decisivo do PIB, e como a dívida pública se mede em proporção ao PIB, então a queda no ritmo de crescimento econômico eleva a proporção dívida\PIB. É claro que podemos achar exceções em que políticas de austeridade funcionaram para reduzir a dívida, mas como regra geral os cortes drásticos no gasto público têm o efeito inverso. Ao contrário da promessa, a austeridade fiscal não é expansionista (ou seja, não estimula o crescimento do PIB) porque não existe uma “fada da confiança” que vai despertar os “ânimos” dos agentes econômicos e fazer com que eles voltem a consumir e a investir. Ainda que o mercado possa ficar “animado” com as expectativas de redução dos gastos públicos, esse é um efeito indireto, futuro e efêmero que raramente compensa os efeitos diretos, líquidos e certos resultantes da redução da demanda agregada (redução do elemento “G” na equação) que acontece aqui e agora. O corte de gastos em momentos de crise apenas contribui para agravá-la. Se você não acredita em mim, acredite no insuspeito FMI e no estudo de Nicoletta Batini: “Retirar estímulos fiscais demasiado depressa nas economias em que a produção já está contraindo pode prolongar as suas recessões sem gerar a esperada poupança fiscal. Isso é particularmente verdade se a consolidação se centrar em torno de cortes na despesa pública” (5). Passados quase 15 anos da crise de 2008, as dívidas europeias continuam altíssimas e o crescimento econômico durante esse período foi pífio. A França está com uma dívida de 98% (em 2010 era 85%); A dívida espanhola bate 115% do PIB (era 68% em 2011) e a portuguesa 113% (era 100% em 2010). A dívida pública italiana está batendo 143% (em 2010 era 119%) mesmo após sucessivos pacotes de corte de gastos. Ao contrário, veja o que acontece com a China, que cresce estupendamente sob forte coordenação e impulso do Estado (e possui dívida pública em torno de 21% do PIB). Como a taxa de crescimento do PIB é superior à taxa do crescimento dos gastos públicos (e é assim porque o gasto público estimula o gasto privado), então ela pode atuar deficitariamente e ainda assim reduzir sua dívida. No caso do Brasil, podemos ver que a dívida pública, ao invés de decrescer, aumentou desde a inauguração das políticas de austeridade fiscal no ano de 2015 com o Ministro Joaquim Levy.

Fonte: Bacen

                No final das contas, a austeridade fiscal não é um “remédio amargo”, é um veneno. A ideia de um “remédio amargo” traz consigo a falsa crença em um sacrifício imediato para ganhos posteriores. A experiência histórica tem demonstrado que os ganhos posteriores não vêm, embora os sacrifícios sejam enormes, principalmente para os destinatários privilegiados das políticas públicas (pobres e negros).

                Como afirmei em outra oportunidade, é preciso fixar três premissas: “a) A política fiscal deve ser instrumento de concretização dos objetivos do artigo 3º, CF e dos direitos fundamentais. O “tamanho” do Estado deve ser robusto o suficiente para englobar esse programa. Não é a Constituição que deve caber no orçamento, é o orçamento que deve ser suficiente para efetivá-la; b) Políticas de austeridade, além de contraproducentes do ponto de vista econômico, restringem a efetivação do programa constitucional; c) O Estado precisa de ativismo fiscal para concretizar a Constituição. Isso significa atuação pujante do Estado como indutor do desenvolvimento e efetivador de políticas públicas. Normas fiscais rígidas baseadas em “metas fiscais” são problemáticas por natureza. O Estado deve ter flexibilidade para atuar ao redor do ciclo econômico, estimulando a economia em momentos de anemia e atuando em equilíbrio\superávit nos momentos de expansão” (6).

                Tal como o antigo teto de gastos (EC 95\16), o denominado “Regime Fiscal Sustentável”, recentemente aprovado como Lei Complementar 200\23, é uma norma fiscal que congela o gasto público em uma dada proporção das receitas. E esta talvez seja a maior vitória do neoliberalismo: dominar de tal forma o pensamento econômico que até governos progressistas passam a defender e propor políticas de austeridade fiscal. 

                O Novo Arcabouço Fiscal (NAF) possui uma série de mecanismos técnicos que não tenho como destrinchar aqui. Em essência, alça a “sustentabilidade da dívida pública” como o principal objetivo do orçamento do Estado brasileiro. O programa social da Constituição está, portanto, subordinado à falácia da “sustentabilidade da dívida pública”, que, na prática, significa uma algema autoimposta do Estado a si próprio como agente econômico promotor de desenvolvimento econômico.

                A LC 200\23 determina que a despesa pública primária só pode crescer na medida do IPCA + uma proporção da variação do aumento da despesa em relação ao ano anterior (70% se for cumprida a meta de resultado primário e 50% se não for cumprida), com um piso de 0.6% de aumento real e um teto de 2.5% de aumento real. Se o teto de gastos permitia apenas a correção pelo IPCA, o atual arcabouço fiscal permite a correção pelo IPCA e mais uma proporção da variação da evolução da despesa (art. 4º).

                Em termos práticos, se a meta de resultado primário (excluídos os juros da dívida) do ano anterior for cumprido, o crescimento real da despesa pode chegar a 70% da variação real da receita primária neste mesmo ano, limitado ao teto de 2.5% e ao piso de 0.6%. Se a receita crescer 10% de um ano para outro, por exemplo, as despesas só podem aumentar 7% em termos reais, mas como este valor é superior ao teto de 2.5%, então este será o limite de expansão real dos gastos públicos. O ponto é que, novamente, o orçamento público está limitado à expansão real em apenas 2.5% em relação ao ano anterior. Para se ter uma ideia, entre 2003 e 2010, o crescimento real médio dos gastos foi de 5.2%. Entre 2010 e 2016, foi de 3.5%. O gráfico abaixo, elaborado por David Deccache, demonstra a discrepância na série histórica entre os gastos primários realizados efetivamente (linha azul) e o crescimento das despesas adotando o cenário mais otimista (2.5% de crescimento a.a: linha cinza). Se o NAF estivesse vigente desde 2003, perderíamos muita coisa em termos de políticas públicas.

                Fonte: Elaboração de David Deccache.

                Quero finalizar com um segundo problema, uma contradição entre a LC 200\23 e uma norma constitucional fundamental: os pisos constitucionais da saúde (15%) e da educação (18%). Como os pisos constitucionais incidem sobre a receita resultante de impostos (art. 212, CF) e da receita corrente líquida (art. 198, §2º, I), o crescimento das receitas vem acompanhado de uma expansão proporcional destes gastos. Simplificando, se as receitas crescerem em 10%, os gastos com saúde e educação também devem crescer 10% (afinal, eles incidem diretamente sobre as receitas). Só que o NAF estabeleceu um teto de 2.5%, o que gerará conflito evidente entre as despesas. Se a arrecadação subir 10%, saúde e educação também terão de crescer 10%, mas o teto geral de crescimento é de 2.5%, o que gerará evidente problema de composição com as demais receitas, que terão de decrescer muito para acomodar o crescimento da saúde e da educação. Não é à toa que o atual governo estuda uma forma de revogar os pisos constitucionais da saúde e da educação, e por isso merecem toda a crítica.  

                Para finalizar: até 2016 convivíamos perfeitamente sem que existisse uma “norma fiscal” que amarrasse a possibilidade de o Estado atuar deficitariamente como indutor do desenvolvimento econômico. Essa é uma invenção recente que contraria a flexibilidade recomendável na condução da política fiscal. A economia é cíclica e se movimenta o tempo inteiro. A política fiscal do Estado deve ter a mesma liberdade para oscilar ao redor dos ciclos econômicos. O antídoto para a dívida pública não é o corte de gastos, é o crescimento econômico, para o qual a atuação do Estado é fundamental. O Brasil precisa urgentemente de uma regra fiscal que, em primeiro lugar, desamarre o Estado para se movimentar em um perímetro liberdade relativamente grande. Por óbvio, não significa que o Estado possa se endividar livremente sem qualquer limite, mas os limites não podem deixar de ser limites para se tornar algemas.

                É por isso que não se pode falar em efetividade dos direitos fundamentais (em especial os  sociais) sem que discutamos a nova racionalidade hegemônica na economia: a austeridade fiscal. O abandono da proposta desenvolvimentista relega os direitos humanos à sua face meramente individualista, sendo certo que sem direitos sociais, sem a erradicação da pobreza e da miséria a luta pelos direitos humanos não passará disso: uma eterna luta sem grandes resultados estruturais. É preciso deslocar o foco das políticas econômicas: as metas fiscais e de inflação, embora possam desempenhar importante papel, devem dar lugar a uma economia para o bem comum que privilegie coisas mais importantes, como o desenvolvimento econômico ambientalmente sustentável, a eliminação da pobreza e o pleno emprego, pois é aí que começamos a, de fato, concretizar direitos humanos.

REFERÊNCIAS:

1 – BLYTH, MARK. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2020

2- RESENDE, ANDRÉ LARA. Camisa de força ideológica: a crise da macroeconomia. 1ª Ed. Portfolio-Penguin: São Paulo, 2022. Pp. 37-38.

3 – KRUGMAN, PAUL. Um basta à depressão econômica! Propostas para a recuperação plena e real da economia mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. P. 141.

4 – Idem, p. 68.

5 – BATTINI, NICOLETA; CALLEGARI, GIOVANNI; MELINA, GIOVANNI. Sucessful Austerity in The United States, Europe and Japan. Disponível em: https://www.imf.org/external/pubs/ft/wp/2012/wp12190.pdf. Acesso em: 11.04.2023.

6 – Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-26/gustavo-livio-nao-precisamos-teto-gastos2/. Acesso em: 22.11.2023

Gustavo Livio

Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia. Mestrando com pesquisa em Direito e Economia pela UFRJ. Integrante do movimento Transforma MP.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.