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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

SE ATÉ A IA SABE…

Élder Ximenes Filho no GGN

Aparentemente vivemos em uma era paradoxal: a vida social e produtiva migra para o mundo virtual e a maioria da população, trabalhadores e trabalhadoras, no mundo físico enfrentam a precarização e a erosão de direitos históricos. Desviando os olhos da tela (ao menos das telas sanitizadas e filtradas) não é difícil concluir que a internet piorou a vida da maioria das pessoas no mundo. No mínimo, que não cumpriu as promessas de livre trânsito do conhecimento, de diálogo e construção livre dos saberes, de organização da ação política dos oprimidos. Mas o “Aparentemente” não está ali em cima por acaso: basta olhar mais de longe (porque de perto todo mundo se distrai com a dancinha ou o gatinho fofo ou o milagre da vez).

Quando lembramos de que a internet não é um espaço mas um serviço prestado por certas empresas, a coisa ganha outra perspectiva – pelo menos conforme a perspectiva marxiana. As big techs (Alphabet / Google, Amazon, Apple, Meta / Facebook, Microsoft e X / Twitter) não são diferentes das big oil (Saudi Aramco, Exxon Mobil, Chevron, Reliance Industries, Shell e TotalEnergies) ou das big pharma (Johnson & Johnson, Pfizer, Roche, AbbVie, Novartis, MSD, Bristol Myers Squibb  e GlaxoSmithKline). Ao redor de uma mesa os donos podem perfeitamente reunir-se cara-a-cara e frequentemente fazem-no. Usemos o termo “donos”, pois os famosos CEOs estão por aí porque fazem parte das famílias proprietárias ou foram por elas contratados. Reunidos ou não, fazem o que grandes capitalistas sempre fizeram: atuam para manter o poder político de sua classe, para jamais perder o poder econômico. Têm perfeita clareza de que o mundo move-se (até para trás) conforme a dinâmica da luta de classes. Para isto, valem-se da criação e / ou manipulação da informação – imprensa, TVs, rádios, cinema e, agora principalmente, as redes sociais para que este mesmo mundo se veja conforme os interesses dominantes. Ora, a informação sempre foi um produto de um tipo de indústria e, para dar nomes aos bois, eis as maiores empresas de comunicação, afora as específicas da internet acima – as big news: Walt Disney Company, Comcast Corporation, Charter Communications, Inc., News Corp., Viacom Inc., Time Warner, Sony Entertainment, Bertelsmann AG, Vivendi S.A, Cox Enterprises Inc., Dish Network Corporation e Thomson Reuters Corporation.

Mas para que nomear estas empresas? Simples: nomes têm poder! Nada de misticismo. É que sabendo o nome, sabe-se também o alvo! Presentificar e concretizar as pessoas (jurídicas e físicas por trás) é essencial para entender que não há nada inatingível nem invencível… pois tudo é humano… de impérios lendários a líderes geniais – nem um único permanece na história – bastando ver um pouco mais de longe. O mais poderoso dos bilionários, o Henry Ford (que possuía 3% do PIB estadunidense) foi obrigado a dividir e vender empresas, pois o Estado viu o risco que seu domínio econômico representava (e assim nasceu a legislação antitruste). Nenhuma pessoa e nenhuma obra é inatingível ou eterna. A ideia de que “é mais fácil acabar o mundo do que mudar o mundo” é semelhante à propaganda do III Reich (que prometia durar mais do que os 1.000 anos da Roma Antiga). Propaganda! Informação preparada e disseminada conforme um interesse: vender um produto é sempre vender uma ideia e toda ideia tem um lado e um interesse.

Existem exemplos recentes e concretos a desmentir a infalibilidade das “bigs”, seus CEOs e economistas adestrados…. Exemplos estes que demonstram o quão falsa é a narrativa de que a tecnologia dissolveu a capacidade de organização coletiva – que se faz com, contra ou apesar dos produtos informacionais e propagandas em geral.

Desde greves de entregadores por aplicativos (os mais precarizados do mundo) até campanhas de categorias organizadas em sindicatos tradicionais – coordenadas por redes digitais. A mesma disputa, em outro terreno. Como destacado na entrevista da revista Jacobin com o historiador indiano comunista Vijay Prashad, a esquerda não pode abrir mão de “oferecer utopias concretas” — e a reorganização da classe trabalhadora no espaço digital é uma delas. Se o grande capital (que já era transnacional faz tempo) globalizou-se via internet, a solidariedade de classe também o faz.

A virtualização não substitui a luta presencial — pode servir para potencializá-la. “É preciso reconectar a utopia com o cotidiano”. Greves digitais devem culminar em protestos nas sedes das empresas; abaixo-assinados online precisam virar audiências públicas – perante o Ministério Público e os Parlammentos. Confira: https://jacobin.com.br/2024/07/nao-oferecer-uma-utopia-e-uma-limitacao-imediata-da-esquerda/,  Vale a leitura, creia!

Se antigamente eram panfletos distribuídos nas portas de fábrica, agora, mesmo na virtualidade, os trabalhadores podem (e devem) se organizar de forma eficaz, combinando ferramentas digitais com ações presenciais. Aliás, os panfletos e jornais em papel não perderam suas funções: vejam como igrejas – que também funcionam como empresa – mantém seus “jornaizinhos” gratuitamente distribuídos aos fiéis. Entregar-se a algum tipo de derrotismo tecnológico e ficar apenas em diagnósticos infindos dos problemas que a internet criou é cair na armadilha ideológica de quem busca manter o mundo como está.

A inspiração vem de alguns exemplos concretos, não por acaso pouco divulgados e muito distorcidos – por isto é bom cada qual aprofundar a pesquisa. Simples amostra:

  • – Greves dos Metalúrgicos e Greve Geral na Coréia do Sul: em 2022, dezenas de milhares de braços cruzados, com vitória final e aumento de remuneração; a partir de dezembro de 2024, a Confederação Coreana de Sindicatos KCTU organizou paralisação geral até a renúncia do presidente, em meio à tentativa de golpe de estado (conseguindo derrubar a Lei Marcial no parlamento).
  • – Greves na Amazon: iniciado na Europa, em 2023 o movimento “Faça a Amazon Pagar” paralisou atividades em localidades da Inglaterra, Espanha, Itália e Alemanha. Em dezembro de 2024, com foco nos depósitos em Nova Iorque, Atlanta, Ilinois e Califórnia, milhares de trabalhadoras/es paralisaram as entregas, sob a liderança do Amazon Labor Union e do Teamsters (indicato dos motoristas)
  • – Greves nas indústrias chinesas: mais de 400 movimentos só em 2023, focados em indústrias menores no interior do país.
  • – Greve dos Roteiristas de Hollywood: entre 2 de maio e 27 de setembro de 2023 os roteiristas da indústria de entretenimento dos Estados Unidos enfrentaram sua maior batalha contra toda a indústria exatamente impedindo o avanço do uso da Inteligência Artificial que lhes ameaçava os empregos. Sua vitória, aliás, foi acachapante.
  • – Greve dos trabalhadores dos supermercados Walmart no Chile: após seis dias de paralisação total, obtiveram vitória com a prorrogação do acordo coletivo anterior por mais 18 meses, freando a automatização desejada pelos patrões.
  • – Breques dos APPs: Em 2020, entregadores do iFood, Rappi, Lalamove e 99 no Brasil paralisaram atividades, obtendo o aumento da taxa de entrega e do valor por quilômetro rodado. Em abril de 2025, via grupos no WhatsApp e Telegram, reiteraram o movimento em quase sessenta cidades. O Senado brasileiro começou a discutir suas reivindicações e a categoria promete manter a pressão. Repetimos: os mais precarizados trabalhadores conseguem organizar-se usando a mesma tecnologia que os aprisiona.
  • – Organização de Redes de apoio mútuo: isto foi feito nos Breques dos APPs no Brasil (sendo a ampliação do costume destes trabalhadores precarizados ajudarem-se uns aos outros em casos de acidentes ou doenças – já que não têm direitos trabalhistas / previdenciários). No caso dos roteiristas, a organização do fundo de greve e as vaquinhas virtuais para angariar apoio foram exemplares e coletaram milhões.
  • – Formação política digital: manuais online, cursos e lives sobre direitos trabalhistas e organização política popular (basta você googlar) alcançam milhares sem precisar de salas de aula. Os partidos políticos e sindicatos ainda estão ai – não esqueçamos.
  • – Sindicatos remotos: Profissionais de TI, muitos em home office, têm se sindicalizado através de plataformas como a Tech Workers Coalition (https://techworkerscoalition.org/), que organiza debates e ações coletivas online, criando uma nova forma de mobilização exatamente com os profissionais que são o “coração” das big techs.

Os operários ingleses que destruíam as máquinas a vapor no começo da revolução industrial cometeram um engano crucial: as máquinas não eram culpadas; o sistema do Capital é o inimigo; as máquinas são apenas outros bens produzidos pela classe trabalhadora. As máquinas pertencem à classe trabalhadora. A internet é apenas outra indústria, outro “maquinário” também a conquistar.

Só perde quem não luta (ou quem se assusta) e a história está muito longe de acabar!

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  1. Artigo com porções escritas em “parceria” com o DeepSeek – que, como qualquer outra IA, obedece às ordens, mas requer vigilância!

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP

Adolescência: de quem é a culpa?

Artigo do Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP, Leomar Daroncho, no Correio Braziliense

Provavelmente o leitor já assistiu à série inglesa “Adolescência”, com interpretações magnéticas, em 4 episódios de muitos questionamentos e poucas respostas. Uma das produções mais vistas, em que um garoto de 13 anos, Jamie Miller, é acusado pelo assassinato de uma colega.

Há uma infinidade de análises possíveis sobre a série: busca de aprovação, isolamento, bullying, frustração e misoginia nas redes sociais. Stephen Graham, criador da série e intérprete do pai do adolescente, declarou que pretendia inspirar os pais a aproximar-se dos seus filhos: “Não estamos apontando o dedo para nenhum indivíduo ou coisa em particular… talvez todos nós sejamos responsáveis de alguma forma”.

O abalo de uma família normal, na produção, tanto arrebata quanto perturba pela falta de habilidade de falar e compreender: dos pais, da escola, dos professores e dos investigadores. Há uma barreira construída por linguagens e expressões incompreendidas. Emojis e siglas separam adolescentes de adultos, sugerindo a culpa pela falha na educação dos filhos.

Para os propósitos deste espaço, importa o registro de que a nossa Constituição, no Capítulo VII, estabelece a família como base da sociedade, com especial proteção do Estado, compreendendo também a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Em seguida, a Carta assinala que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, uma série de direitos. Há referência expressa ao direito à convivência familiar, apresentado textualmente como um dever da família, da sociedade e do Estado. Assim, devem colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Sobre os pais pesa o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.

Na crua vida real, pais que trabalham por mais de 10 horas diárias, 6 dias por semana, formal ou informalmente, recebendo ou não horas extras e enfrentando longos trajetos no deslocamento, podem ser cobrados, e sentir-se culpados, pela dificuldade de acompanhar, ouvir e orientar seus filhos? Alguns ainda seguem sendo acionados e demandados em seu “tempo livre”, quando formalmente estariam desconectados do trabalho” – conexão permanente e prontidão sem fim em trabalho não pago.

A jornada máxima estabelecida na Constituição deveria ser de até 8 horas diárias e até 44 horas semanais. Em leitura enviesada e cruel, a prática e a jurisprudência acomodaram a ordinária, recorrente, sistemática e rotineira prestação de serviço extraordinário, de forma habitual. As “horas extras” chegam a ser desejadas por trabalhadores de baixa remuneração, na luta pela sobrevivência, o que viabiliza o trabalho exaustivo por seis dias, com um dia de descanso.

A situação pode ser ainda mais perversa nas categorias que acumulam empregos no regime 12 X 36, suprimindo os períodos de descanso, e na ilusória liberdade dos trabalhadores de plataformas que, trabalhando sob demandas e metas, são artificialmente excluídos da proteção dos limites da jornada de trabalho.

O limite à jornada de trabalho é uma conquista que remonta ao início do século 20, sob a influência da Encíclica Rerum Novarum — sobre a condição dos operários —, do papa Leão XIII, que demonstrava preocupação com o número de horas de trabalho e a necessidade de tempo para repouso e aperfeiçoamento familiar, moral e religioso.

A tecnologia, apontada como vilã em determinadas leituras da série, vem nos seduzindo com a promessa de garantir mais tempo livre. Dispositivos eletrônicos, computadores, smartphones e milhares de aplicativos proporcionariam tempo a ser usufruído com a família, a convivência social, o lazer, a espiritualidade, a cultura e atividades lúdicas.

A Inglaterra, país em que se passa a série, registrou a média de 41 horas semanais para o trabalho em tempo integral, em 2019, sendo que muitas empresas britânicas estão desenvolvendo um exitoso programa de redução da semana de trabalho para apenas quatro dias por semana, sem redução de salários.

Mais do que apontar culpados, é importante encaminhar soluções. Humanizar o trabalho e a sociedade, assegurando tempo para o exercício de direitos e obrigações, como a convivência familiar. É muito oportuna a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 8/25), espécie de grito do desespero contra a opressão, acabando com a escala de trabalho 6×1, atualizando com limites civilizados a duração do trabalho.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

Confirmado: vamos morrer

Minha mãe partiu de mãos dadas comigo, ao som das músicas preferidas de meu pai, no dia de seu aniversário.

“Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim”

Gilberto Gil

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN.

As águas de março fecharam o verão e os seus lindos olhos azuis.

Minha mãe partiu de mãos dadas comigo, ao som das músicas preferidas de meu pai, no dia de seu aniversário. O médico que me confirmou que a vida, até da minha mãe, acabava, me disse que foi como se um poço lotado de borboletas tivesse se aberto para levar minha mãe ao desconhecido.

Imaginar, naquele momento, que morrer poderia ser uma coisa tão delicada e bonita, como o arrebatamento por borboletas livres e coloridas me fez esquecer, por alguns segundos, a sensação de que estava sozinha, ali, naquele hospital e, aparentemente, não só ali.

Perder a mãe é perder a casa. É perder o corpo que já foi seu.  

Entendi rápido que, não importa a idade, a mãe parte levando coisa demais. Leva o chão, o teto e as paredes, leva o pai que tinha morrido (mas ela não deixou morrer), a vila de paralelepípedos, a memória que nunca foi sua do que você foi, de quem você podia ter sido e não foi, e de quem você foi para além do que podia ser.

Mas esse não é o espaço de falar de mais uma filha que perde uma mãe, experiência tão desestruturante e devastadora quanto natural da vida.

É para falar do direito constitucional de morrer, já que morrer faz parte da vida. Para falar do direito de morrer vivendo, como cantou nosso Orixá Gilberto Gil, que não tem medo da morte porque “a morte já é depois, mas de morrer, sim”.

Graças ao inesquecível geriatra Dr João Paulo Nogueira Ribeiro e aos privilégios que possuo, minha mãe pôde ter assistência humanizada e de qualidade em sua casa, com a atenção e disponibilidade de escuta que seria esperada de todo e qualquer profissional de saúde.

Mas em algum momento precisei entrar em uma porta de emergência de um hospital da rede privada com minha mãe. As últimas horas de minha mãe, desde que entrei no hospital em que buscava cuidado e acolhida foram de desalento e luta.

A rede privada de saúde, que se vende como especializada na pessoa idosa, não privou minha mãe, de 91 anos, de horas de espera sentada em uma cadeira, cada vez mais fragilizada, em intermináveis exames absolutamente desnecessários, procedimentos invasivos dolorosos, burocracias e protocolos de atendimento sem qualquer sentido para o caso dela e que apenas reforçavam o óbvio: minha mãe não tinha tempo para esperar 8 horas para receber os primeiros cuidados acomodada no leito em que morreria.

Precisamos falar de saúde humanizada, sobretudo à pessoa idosa.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que a população com 65 anos ou mais, que representava 10,2 % dos brasileiros em 2022, deve chegar a 18,6% até 2040.

Não é, pois, sobre minha mãe.

É sobre muita gente e é gente negra, gente branca, pobre, rica, mulher, homem. É todo mundo que envelhece. Que vive o tempo de sua delicadeza, da escassez das horas, em que cada segundo vale uma década porque dentro dele está a intensidade da experiência solitária, única e visceral da própria finitude.

O Sistema Único de Saúde precisa de investimentos para seguir fortalecendo programas como a Estratégia de Saúde da Família, que fortalece a atenção primária com equipes multidisciplinares para acompanhamento contínuo das pessoas idosas; os Centros de Referência em Saúde do Idoso (CRSI), que oferece atendimento especializado em geriatria e reabilitação; e o Programa Melhor em Casa, que prevê assistência domiciliar a pacientes com doenças crônicas e dificuldades de locomoção, além de outros.

Já o sistema de saúde privado precisa parar de espantar as borboletas que aparecem para levar as mães embora.

Precisamos falar de morte enquanto parte da vida, de cuidados paliativos e humanizados, de como morrer para além do não morrer, autonomia decisória de quem vai morrer, menos profissionais sobrecarregados e despreparados, mais gente que sabe olhar e escutar.

Olhar e escutar a pessoa idosa, para além de sua decrepitude, não é tarefa simples. Há que se ter tempo de escuta. O tempo que falta a quem se ouve. Há que se ter coragem para encarar amorosamente o espelho tão concreto de nossa finitude e o todo sem sentido do desperdício de tempo em que não vivemos o amor que está posto como amor, ou que passamos tentando acreditar em corpos invencíveis e instagramáveis. Afinal, morremos.

O etarismo é, no fundo, a negação da morte.

 E quando o “todo tempo do mundo” se dilui no miúdo dos minutos da última espera, um fragmento pode mudar todo o caleidoscópio.  

Nesse caleidoscópio, em algum momento, um pedaço de mim entrou em uma sala de uma supervisora de alguma coisa do hospital. Eu era ali só uma filha em frangalhos, despejando por todos os corredores e portas que eu batia a palavra dignidade que estaria em uma tal Constituição Federal. Eu jurava que estava. A supervisora de muita coisa me ouviu e resgatou a minha palavra dignidade dos escaninhos da burocracia e do descaso. Fez dela o que deveria ter sido feito horas antes pelos incontáveis médicos que tentei que enxergassem o que não é preciso 6 anos de estudo em medicina para concluir.

Nesse caleidoscópio está também a imagem de minha mãe, em delírio, em algum momento rindo, antes de ir para o milésimo exame desnecessário e invasivo, porque eu disse que ela era linda e rica, já que ela estava pensando em comprar um apartamento, mas tinha que ser de três quartos.

Também tem um pedacinho com o olhar de indignação e empatia do manobrista do estacionamento terceirizado do hospital, provavelmente farto de ver velhinhos sem tempo a perder perdendo tempo na fila para esperar a morte. Tem também o filho do idoso que me deu uma água. A enfermeira exausta. A arrogância indescritível dos doutores de jalecos brancos. Os lindos olhos azuis de minha mãe sobre mim.  

E tem o último fragmento.

Entrei no quarto de UTI. Minha mãe estava finalmente sendo cuidada em um quarto acolhedor. Me garantiram que ela escutaria se eu falasse. Não fui checar em nenhuma inteligência artificial se tinha alguma base científica essa escuta, até porque, escutar vai além dos ouvidos e a IA não entenderia isso.

Segurei sua mão, acariciei seus cabelos e disse que era dia 10 de março, aniversário do meu pai, com quem minha mãe viveu 60 anos. Apesar de ter partido há 9 anos, meu pai vivia nas samambaias do quintal que ela regava, na poltrona vermelha da sala que ele sentava, e na hora laranja do dia quando, faça chuva ou sol, se servia capuccino no sobrado da vila de paralelepípedos.

10 de março. Ela escutou. Suspirou diferente.

A humanidade criou a música provavelmente para provar que a escuta não é só do ouvido. Coloquei uma das que meu pai mais gostava. “Todo mundo ama um dia, todo mundo chora, um dia a gente chega, no outro vai embora…”

Coloquei a segunda preferida dele. Roberto Carlos falava para mim, essa ateia que acredita em milagres e na Constituição Federal, de uma Nossa Senhora que cuidaria da minha vida, meu destino, meu caminho, de mim … quando o enfermeiro entrou.

As borboletas chegaram.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

            CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL

Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP

Ainda é tempo de julgar os crimes da ditadura

Por Eugênia Augusta Gonzaga e Marlon Alberto Weichert no Conjur

O Supremo Tribunal Federal tomou a decisão de rediscutir a responsabilização dos crimes cometidos pela ditadura militar. Não parece ser mera coincidência com o êxito do maravilhoso filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles Filho. Mas saber se foi a película ou outro fato não importa tanto, pois o relevante é superar a constante recusa do Poder Judiciário em lidar com o legado do regime autoritário que governou o país de 1964 a 1985.

Desde 2008, o Ministério Público Federal (MPF) — a partir de iniciativa dos subscritores deste artigo — procura fazer avançar no Brasil o processo de justiça de transição. Baseada nos pilares da promoção da justiça para graves violações aos direitos humanos, revelação da verdade, reparação das vítimas, recuperação e divulgação da memória e reforma dos órgãos e entidades que promoveram ou foram cúmplices do golpe de Estado e da repressão política, a justiça de transição busca que uma sociedade supere um legado de graves violações aos direitos humanos. O objetivo é reforçar o Estado Democrático de Direito e garantir a não-recorrência dessas graves violações.

Naquele ano, demos início, quase solitariamente, a investigações e a demandas por justiça criminal e cível em face dos autores de crimes graves cometidos durante o regime militar, que consideramos serem crimes contra a humanidade. Foi somente em 2010 que a matéria foi institucionalmente priorizada no MPF, quando a Câmara de Coordenação e Revisão da Matéria Criminal do MPF, sob a gestão de Raquel Dodge, colocou a responsabilização dos principais criminosos do período ditatorial como uma de suas prioridades. Essa decisão foi fruto da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), que declarou a invalidade da Lei de Anistia e a inaplicabilidade de regras de prescrição para os crimes que configuram graves lesões a direitos humanos.

No mesmo ano, semanas antes da decisão da Corte IDH, o plenário do STF havia julgado a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB após a repercussão das investigações por nós conduzidas desde 2008. A Corte Suprema, em capítulo destoante de sua bela história de defesa dos direitos fundamentais após a Constituição de 1988, decidiu por maioria que a Lei de Anistia de 1979 era válida e, portanto, que não se podia demandar a punição dos agentes da repressão. A ADPF 153, contudo, não teve seu julgamento definitivo, pois a OAB interpôs recurso, ainda não apreciado.

Em 2011, o Partido Socialismo e Liberdade propôs nova ADPF (320), pedindo ao STF que revisse seu entendimento para adequá-lo ao entendimento da Corte IDH. A ADPF 320 recebeu substancioso parecer do então procurador-geral da República Rodrigo Janot, em que se reafirma o que defendíamos desde 2008: primeiro, que a ditadura cometeu crimes contra a humanidade no Brasil e esses crimes são imprescritíveis e não se sujeitam a anistias; segundo, que os casos de desaparecimentos forçados – crimes que envolvem os atos de sequestrar a vítima, torturá-la, matá-la, ocultar o seu corpo, negar seu paradeiro e falsificar documentos para dar suporte a essa negativa, tal como ocorreu com Rubens Paiva e pelo menos outras 200 pessoas – são crimes permanentes, ou seja, enquanto não forem encontrados os restos mortais das vítimas ou confirmado definitivamente seu paradeiro, eles estão em andamento.

Assim, os crimes permanentes não foram alcançados pela Lei de Anistia (isso se admitirmos, para fins de mero exercício mental, que ela foi válida), pois a lei foi expressa em definir que beneficiava crimes consumados até 15 de agosto de 1979. Igualmente, não estão prescritos, pois sequer se pode afirmar quando houve o assassinato ou o fim do sequestro. A ADPF 320 ainda não foi julgada pelo STF. Ela tramita junto com o recurso da ADPF 153, ambas sob relatoria do ministro Dias Toffoli.

Em 2018, a Corte IDH julgou outro caso da ditadura brasileira. Tratava-se da falta de promoção de justiça para a tortura e homicídio de Vladimir Herzog. A corte internacional reafirmou sua decisão de 2010 no sentido da invalidade da lei de anistia e de regras de prescrição, e reconheceu que a ditadura brasileira cometeu crimes contra a humanidade, um dos quatro crimes internacionais reconhecidos pelo Tribunal Penal Internacional. Esses crimes, mesmo quando consumados instantaneamente, não admitem impunidade, em razão de sua gravidade intrínseca. Eles devem ser investigados, processados, julgados e sancionados sem se sujeitarem a regras de anistia ou prescrição.

O Brasil, nos termos da Constituição de 1988 e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, reconheceu a jurisdição da Corte IDH em 1998. A partir desse reconhecimento, todos os órgãos do Estado brasileiro – inclusive do Poder Judiciário e do Ministério Público – são obrigados a respeitar e aplicar as decisões da Corte IDH. O MPF compreendeu que era sua obrigação cumprir as sentenças da Corte IDH nos casos Gomes Lund e Herzog e, apesar da decisão do STF na ADPF 153, seguiu investigando e processando os crimes da ditadura. Assim, iniciou até hoje 56 ações penais contra 79 agentes da repressão. A grande maioria dos casos não teve acolhida pelos juízes, por conta da decisão do STF na ADPF 153. Porém, alguns juízes e tribunais entenderam como o MPF e, adotando a força das decisões da Corte IDH, aceitaram as ações. Essas, afinal, acabaram também trancadas pelo STF ou pelo Superior Tribunal de Justiça, sempre sob pretexto da ADPF 153, da anistia e da prescrição.

É nesse contexto que o STF, por iniciativa do ministro Flávio Dino e do ministro Alexandre de Moraes, anunciou a decisão de julgar quatro dos recursos que estavam pendentes em ações penais iniciadas pelo MPF no Pará, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os recursos serão apreciados sob o regime da repercussão geral, que tem força vinculante para outros casos semelhantes. O ministro Edson Fachin, também nos últimos dias, decidiu pautar outros dois processos para julgamento. Provavelmente irá submetê-los ao mesmo regime de repercussão geral.

Pária do continente
Até agora, a repercussão geral foi definida pelo ministro Flávio Dino para apreciar a tese do crime permanente em desaparecimentos forçados. Já o ministro Alexandre de Moraes ampliou a temática, para rediscutir a validade da Lei de Anistia nos casos de quaisquer crimes cometidos com graves lesões a direitos humanos. O ministro Moraes destaca, com propriedade, que as Cortes Constitucionais de outros países, como Argentina, Chile e Uruguai, reviram decisões anteriores que garantiam impunidade a perpetradores de graves violações aos direitos humanos.

Na verdade, o Brasil é, atualmente, o único país do continente que não segue a jurisprudência da Corte IDH nessa matéria. Na América Central e na América do Sul, praticamente todos os países estiveram envolvidos, nos anos 70 e 80, com guerras civis e ditaduras. Como no Brasil e seus vizinhos, leis com autoanistias foram aprovadas e a impunidade prosperou. Mas, após o entendimento fixado pela Corte IDH desde seu primeiro julgamento em 1988, os tribunais e governos desses países declararam a invalidade das leis de impunidade. Não é exagero afirmar que o STF tem agora a oportunidade de retirar o Brasil do posto de pária do continente e de refúgio de torturadores e assassinos políticos.

Mas é preciso destacar que as teses de repercussão geral até agora aprovadas deixaram de referir, expressamente, o debate sobre a definição dos crimes da ditadura como crimes contra a humanidade e sobre a imprescritibilidade. Embora essas questões estejam implicitamente contidas na discussão já suscitada por Dino e Moraes, seria muito importante que elas fossem expressamente incluídas na tese de repercussão geral, para superar-se definitivamente argumentos a favor da impunidade.

Por mais importante e exitoso que seja o movimento do STF, ele não será capaz de reverter a impunidade decorrente do transcurso do tempo. A demora em se enfrentar esse legado fez com que parcela substancial das vítimas de torturas e familiares de mortos e desaparecidos tenham falecido. Igualmente, boa parte dos investigados e acusados também já morreu sem responder adequadamente por seus atos.

Ainda assim, é oportuno e necessário avançar na afirmação da responsabilidade criminal. Ela cumpre função no mínimo pedagógica e preventiva. Aliás, não temos dúvida em afirmar que se o STF tivesse dado desfecho distinto à ADPF 153, ele próprio não teria sido vítima de ataques conduzidos por militares contra a instituição e seus ministros na tentativa de golpe de 2022/2023. A Corte Suprema, ao admitir que autores de crimes contra a humanidade permanecessem ilesos de responder judicialmente, incentivou a conduta que terminou por atingi-lo.

Mas, em solidariedade à família Paiva e a todas as outras vítimas desses horrendos crimes, que vão muito além dos de consumação permanente, ainda estamos aqui na expectativa de que o STF possa rever essa história e dar mais uma contribuição na defesa do Estado Democrático de Direito.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Eugênia Augusta Gonzaga
é procuradora regional da República, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, pioneira nas ações judiciais de responsabilização de agentes da ditadura e presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Marlon Alberto Weichert
é procurador regional da República, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, pioneiro nas ações judiciais de responsabilização de agentes da ditadura e coordenador do Grupo de Trabalho Memória, Verdade e Defesa da Democracia da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

Procurador da República punido pelo CNMP por atuação contra resquícios da ditadura militar busca anular sanção no STF

Emanuel de Melo Ferreira tentou conter o processo de erosão constitucional que levou ao golpe de Estado e teve sua atuação funcional rechaçada pela Corregedoria

O procurador da República Emanuel de Melo Ferreira, lotado no 1º. Ofício da Procuradoria da República no Município de Mossoró/RN, sabia que a democracia brasileira estava em risco diante das diversas manifestações oficiais em ataque às instituições, tanto judiciais como acadêmicas. Buscando conter o avanço desse processo de erosão constitucional, foi o primeiro membro do Ministério Público a propor ação de responsabilização contra o então Ministro da Educação, Abraham Weintrab, tendo em vista os danos morais coletivos por ele efetivados contra professores e alunos das Universidades Públicas. Essa atuação efetivada logo no início de 2019 despertou a ira de diversos grupos, os quais promoveram sistemáticos crimes contra a honra e mesmo ameaças contra o procurador em redes sociais. A tentativa de intimidação, no entanto, não surtiu efeito, tendo o procurador continuado a atuação em prol da Constituição de 1988 e especialmente contra os legados da ditadura militar.  

Atuação contra homenagem ao ex-Presidente Costa e Silva, autor do Ato Institucional n. 5 – No âmbito da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), o procurador buscou suspender a nomeação da então Reitora Ludmilla de Oliveira efetivada pelo ex-Presidente Jair Bolsonaro, pois aquela autoridade promoveu homenagem ao ex-Presidente Costa e Silva, com a fixação de quadro na própria reitoria da instituição, o qual fora amplamente divulgado nas redes sociais. Tal postura violava normas da própria Universidade e recomendações da Comissão Nacional da Verdade e da Procuradoria Federal dos direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal (MPF), tendo em vista a apologia a um agente responsável por grave violações de direitos humanos na ditadura militar. Em 2024, o próprio STF reconheceu que recursos públicos não devem ser utilizados para promoção de atos em comemoração do regime militar (RE 1429329). 

Atuação contra ameaça de uso indevido da ABIN, ecoando as práticas do antigo SNI – A ex-Reitora da instituição, posteriormente, sugeriu que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) monitorasse a aluna Ana Flávia, estudante que já criticara a nomeação de Ludmilla de Oliveira, terceira colocada na lista formada pela comunidade acadêmica. Sentindo-se ameaçada, Ana Flávia representou ao MPF e, após regular distribuição, o feito foi encaminhado ao procurador Emanuel de Melo Ferreiar, que ajuizou ação penal tendo em vista a prática do delito de ameaça. A conduta da Reitora foi efetivada após o próprio STF ter reconhecido os abusos praticados pela ABIN (ADPF 722), quando a Corte sustentou que a elaboração de dossiês contra opositores do governo ecoava práticas do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura militar.

Atuação em prol da educação em direitos humanos no sistema de justiça com base em precedentes internacionais como Gomes Lund – Em 2020, a Segunda Turma do STF reconheceu que a condutas do então juiz federal Sérgio Moro atentaram contra a própria democracia, quando este, agindo de ofício, determinou o levantamento do sigilo da colaboração premiada de Antônio Palocci nas proximidades da eleição de 2018, buscando influenciar indevidamente nesta. Em 2021, a Corte, reafirmando tal precedente, reconheceu a suspeição do referido Juiz, fazendo com que o procurador Emanuel de Melo Ferreira ajuizasse ação civil pública contra a União buscando evitar que os abusos praticados na operação Lava Jato se repetissem no futuro. Assim, pleiteou o aprimoramento da educação no âmbito das escolas de formação da magistratura e do Ministério Público, amparando-se em votos do Ministro Gilmar Mendes e em precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos que admitem, como medidas de reparação, a promoção de educação em direitos humanos a fim de superar um passado autoritário.

Mesmo diante dessa importante atuação voltada para a proteção da democracia, o CNMP instaurou processo administrativo disciplinar (PAD) e impôs pena de censura ao procurador, sustentando que ele atuara de maneira “ideológica”. Na verdade, como destaca o procurador “trata-se de uma infundada acusação, mostrando profundo desconhecimento sobre a necessidade de membros do Ministério Público atuarem com base em algum tipo de teoria da democracia militante ou defensiva, adotada pelo próprio STF”. 

Abusos do CNMP – Hoje Emanuel de Melo Ferreira luta para anular essa punição no STF, sustentando com firmeza a correção de sua atuação funcional e elencando os abusos cometidos pelo CNMP, diante da ofensa:

  1. ao devido processo legal e ao direito à ampla defesa – no voto divergente apresentado pelo então Conselheiro Rinaldo Reis, este utilizou fatos prescritos e não contidos na portaria de abertura do PAD para condenar o procurador, divergindo do Relator, que o absolvia. A ofensa ao direito de defesa foi mantida na redação final do voto, eis que os fatos estranhos à imputação inicial não foram retirados da respectiva fundamentação. 
  1. à independência funcional – toda a atuação do procurador foi baseada na Constituição, em complexa pesquisa doutrinária e em precedentes do próprio STF. Assim, a atuação do CNMP corresponde, na verdade, a um desrespeito aos próprios precedentes da Corte, conduta ainda mais sensível tendo em vista os ataques que ela tem sofrido diante da proteção ao regime democrático efetivada; 
  1. à impessoalidade – a corregedoria do CNMP adotou padrão discriminatório contra o procurador, pois: a) utilizou linguagem ríspida contra ele, tachando como “ridícula” a atuação desempenhada; b) durante correição extraordinária efetivada em Mossoró, não investigou redes sociais de outros membros que faziam postagens comparando a atuação do Ministro Alexandre de Moraes com práticas da ditadura militar, enquanto postagens de Emanuel de Melo Ferreira com críticas ao autoritarismo foram utilizadas para abertura do PAD; c) tentou utilizar documento juntado aos autos do PAD de maneira informal e sem prévia manifestação da defesa para subsidiar a abertura do processo; d)  finalmente, chegou a determinar a abertura de outro PAD ante a suposta incompatibilidade de horários com a função de professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) por ele desempenhada. Ocorre que professores em situação idêntica a de Emanuel de Melo Ferreira na própria instituição não foram alvo de fiscalização disciplinar semelhante, tendo a corregedoria ignorado deliberadamente a existência de sentença judicial transitada em julgado reconhecendo o direito à cumulação dos cargos.

Pareceres dos Professores Lenio Streck e Pedro Serrano – os professores Lenio Streck e Pedro Serrano, dois dos maiores juristas do Brasil, ofertaram pareceres na ação que tramita perante o STF, os quais constatam as violações anteriormente descritas. 

Para o professor Lenio Streck, Emanuel de Melo Ferreira foi vítima de atuação abusiva, destacando que “a manutenção do decisum do CNMP não se afigura com um precedente adequado ao Estado Democrático de Direito, no qual o acórdão faz uso de uma criação judicial claramente ativista, fundada no direito sancionador do autor, condenando-o pelo “conjunto da obra”, como se existisse um crime de hermenêutica ou, ainda, de convicção ideológica”.

O professor Pedro Serrano, por sua vez, sustentou que Emanuel de Melo Ferreira “atuou de forma plenamente regular nos respectivos procedimentos preparatórios e que culminaram no ajuizamento das respectivas ações ou medidas judiciais. Ainda que se discorde das teses jurídicas e medidas processuais defendidas pelo Consulente, não se pode admitir, por uma obviedade, é qualquer inferência no sentido que a sua atuação funcional tenha maculado qualquer dever funcional.”

Expectativa de julgamento pela Segunda Turma do STF – a ação originária n. 2748 impugnando os ilícitos cometidos pelo CNMP tramita desde 2023 no STF, tendo o Ministro André Mendonça, relator do caso, negado o pedido liminar em prol da suspensão da sanção indevidamente imposta, amparando-se nas equivocadas razões do CNMP. Apesar de tudo, Emanuel de Melo Ferreira segue confiante na possibilidade de vitória, sustentando a regularidade e a importância da atuação funcional: “Toda atuação que desenvolvi desde 2019 teve como finalidade conter um processo erosivo da democracia brasileira, o qual poderia desencadear uma tentativa de golpe de Estado, a qual, como se sabe, efetivamente ocorreu. As ações por mim ajuizadas tomaram como base precedentes do próprio STF ou votos dos respectivos Ministros, muitos deles membros da própria Segunda Turma da Corte, não sendo fruto de “militância ideológica”, como falsamente se alega. Assim, os agentes que exercem poder disciplinar precisam compreender que punições indevidas como esta colaboram com práticas autoritárias incompatíveis com a Constituição de 1988, criando sérios obstáculos em torno do dever que todo membro do Ministério Público tem em auxiliar o STF na defesa da democracia.” 

Apoio do Transforma MP – Diante de todo o exposto, o Transforma MP confia na Justiça da decisão a ser oportunamente proferida pelo STF, com a anulação do PAD em desfavor de Emanuel de Melo Ferreira, fomentando-se uma colaboração efetivada para proteção da democracia nos diversos âmbitos e instâncias do sistema de justiça. 

GREVE DIGITAL

Por Lorena Vasconcelos Porto* no GGN

Em 2023, a greve geral contra a reforma da previdência na França foi amplamente noticiada pela mídia nacional. Não é a primeira vez que os franceses usam esse instrumento para protestar contra políticas econômicas e sociais do Governo, sendo comum a paralisação do transporte público, até para evitar que as demais pessoas cheguem ao trabalho. Esse movimento, no entanto, poderia ser esvaziado pelo home office, que se expandiu consideravelmente com a pandemia do novo coronavírus. Surgiu, então, a ideia de bloquear as plataformas e redes digitais indispensáveis ao trabalho e, no dia 09 de fevereiro de 2023, a confederação sindical CGT reivindicou o corte de eletricidade que alimenta três servidores (data centers) em Seine-Saint-Denis, próximo a Paris.

Na França, o direito de greve é assegurado pela Constituição e pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 28), as quais não o definem. Para a jurisprudência da Corte de Cassação, a greve é a cessação coletiva total do trabalho, o que acaba por privar categorias de obreiros desse direito fundamental. Em razão da mecanização e robotização, a cessação do trabalho humano pode não implicar a interrupção da produção empresarial. Um exemplo são as linhas automatizadas do metrô de Paris que circulam sem condutor. Para que ocorra a paralisação do metrô, não basta que os condutores cessem o seu trabalho; é necessária a parada dos veículos a partir do centro de controle que os opera à distância.

Para cumprir as normas constitucionais e internacionais que garantem o direito de greve, é imprescindível ampliar o seu conceito. Emmanuel Dockès, inspirando-se na Corte Europeia de Direitos Humanos, propõe que a cessação do trabalho, na greve, não é a interrupção de toda atividade, mas sim da subordinação; é a cessação coletiva da obediência em apoio às reivindicações dos trabalhadores.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, conferiu grande amplitude ao direito de greve, prevendo que cabe “aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. A greve é reconhecida como um direito em diversos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA (art. 45.c), o Protocolo de San Salvador (art. 8.1.b) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC (art. 8.d).

Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, há três categorias de greves: as trabalhistas, que buscam melhorar as condições laborais ou de vida dos trabalhadores; as sindicais, que veiculam as reivindicações coletivas dos sindicatos; e as que contestam políticas públicas. A mesma Corte adverte que a legalidade é um elemento central para o exercício do direito de greve, de modo que as condições e requisitos para considerá-la lícita não devem ser complexos a ponto de inviabilizá-la.

Todavia, a greve é conceituada legalmente no Brasil como “a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador” (artigo 2º da Lei n. 7.783/89).

O conceito de greve, no entanto, deve ser ampliado para abranger as ações realizadas pelos sindicatos ou pelos trabalhadores para a tutela de seus interesses, inclusive com comportamentos ativos. Nesse contexto, destaca-se a greve digital, que abarca a ação coletiva de trabalhadores que ocupam ou obstruem espaços virtuais utilizados pelo empregador para as suas atividades, práticas comerciais e comunicações, podendo diminuir ou impedir temporariamente a produção empresarial e, inclusive, a prestação laborativa daqueles que não aderiram ao protesto (piquete digital). Essa greve é especialmente eficaz contra empresas que utilizam tecnologias informáticas para a gestão, produção, distribuição, venda e relações com trabalhadores, fornecedores, clientes etc. Um exemplo seriam múltiplas conexões ao site do empregador, para torná-lo mais lento ou impedir o seu acesso durante o período da mobilização, ou o “entupimento” da caixa de e-mails da empresa.

Tais ações podem ter objetivos trabalhistas, sindicais ou de contestação de políticas públicas, na linha da amplitude do direito de greve assegurada pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A necessidade de observância desses tratados e da jurisprudência da Corte Interamericana, bem como do controle de convencionalidade das normas internas -, entre as quais, a Lei de Greve -, foi reafirmada na Recomendação n. 123/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e na Recomendação n. 96/2023, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

A greve foi e tem sido a grande arma dos trabalhadores e dos sindicatos para criar direitos e torná-los mais eficazes, e não apenas para fins trabalhistas, mas para a promoção das classes oprimidas em geral. Por isso, as leis estão sempre tentando capturá-la, e ela sempre buscando fugir. É, portanto, necessária a adoção de um conceito dinâmico, e não anacrônico, o que abrangeria a greve digital.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

… E Agora? O que faremos com esses maravilhosos prêmios?

Por Maria Betânia Silva 

Há  um dito popular segundo o qual “o melhor da festa são  os preparativos” . 

Espero que os dois prêmios  sejam apenas os preparativos da festa a favor de um mundo equilibrado, mais equânime no reconhecimento de direitos, na distribuição da riqueza e menos opressor.

Na sede do país cuja indústria cultural usando os estúdios de Hollywood como um braço firme do imperialismo, uma brisa começa a soprar para o resto do mundo. O recado de ontem à  noite foi bastante simbólico e como tal tem um importante significado: o de que a festa da emancipação e da afirmação  de direitos por um mundo melhor está  sendo preparada! 

Acho que é  assim que devemos ler os eventos, fiquemos atentos.

Os prêmios concedidos não são  o fim da linha, eles  podem ser o começo  de uma outra História. Cabe a cada um de nós  tirar proveito disso para realizar uma grande festa, numa mudança a favor dos que foram e são cotidianamente desumanizados e objetificados.

Amedronta- me a ideia de que a celebração  fique refém  da festa glamourosa sem que ela se estenda nos espaços  culturais e, nos espaços habituais de existência  das pessoas como inauguração  de uma outra forma de vida.

Amedronta- me que o glamour da festa se encerre no brilho da estatueta.

WMS, por exemplo, para falar da premiação  do filme brasileiro, com a elegância  que lhe é  peculiar, e sendo demonizado por muitos por ser milionário, tem o mérito  de buscar os meios para dizer algo de muito positivo e de mandar recados valiosos. Nesse caso, a fortuna dele é  mais um instrumento de transformação  do que de manutenção  de privilégios.  É  preciso ter olhos para ver e sensibilidade para pensar diferente.

Embora eu não  o conheça, creio que ele não  esteja sendo falso em suas produções cinematográficas. Ao contrário! 

Talvez fazer filmes seja o escape que ele encontrou para ser diferente. Ele expõe usa a fortuna para expor a sua veia artística e, assim,   se aproximar daquilo que talvez ele quisesse apenas ser: um cineasta: um cara que conta histórias sensíveis  e pretende com isso sensibilizar as pessoas.

Ele foi correto e comedido ao exaltar Eunice Paiva, oferecendo- lhe in memorian, o prêmio, ao dizer  iria para uma mulher que resistiu e não desistiu no enfrentamento a um regime autoritário.  

Evitou usar a palavra patriarcado, evitou usar a palavra militares, o setor mais autoritário dentre os autoritários e assim agindo  não  enjaulou a resistência  ao período  do filme. A liberou para outros tempos.

A narrativa do filme vai para além  desse período, quando foca nos destroços de uma família feliz e abastada, quase sem enfatizar a ditadura.  Se não  estiver enganada, talvez essa palavra nem seja pronunciada nos diálogos do filme. Tudo chega como uma sombra ou como um voo de helicópteros militares diante do olhar de estranhamento de Eunice enquanto nada no mar. O cerco se aperta, revoltando a filha mais velha da família  numa blitz policial, as conversas entre Rubens Paiva e amigos contrários ao regime tem um tom quase cifrado, são  breves e despistam. Tudo no filme se avoluma, se agiganta e desaba sobre as cabeças. Somente Eunice cria a couraça  de levar os destroços  do seu mundo para colar os caquinhos numa luta sem precedentes e quase na escuridão. 

Com essas narrativas, a do filme e da fala ao receber o prêmio,  WMS traz a mensagem subliminar de que se o regime autoritário chega nos privilegiados e nos historicamente excluídos, ele fez e faz pó. 

Entre privilegiados afetados pelo arbítrio, os eventualmente oprimidos e os historicamente excluídos só  tem uma via de escape: não  desistir dos sonhos de um mundo melhor, o sonho de ultrapassar os momentos de chumbo e conquistar a paz desejada. 

Em outras palavras sem dizer muito WMS assim como Fernanda Torres nos disse muito, senão  tudo: todos nós temos que ter e nutrir a nossa consciência para dizer que  ‘Ainda Estamos Aqui’ com um único objetivo: sair desse lugar de festa onde a alegria pulsa forte e, usar essa energia para transformar o salão de festa na avenida da cidadania, esparramando nela os direitos que nos vestem como gente ativa, altiva e emancipada. 

Nessa avenida deixamos de ser plateia para assumir a condição de protagonistas do nosso próprio  enredo.

Ainda estamos aqui pra isso! E, precisamos impedir que gente autoritária não se aproprie dos preparativos da nossa festa para, mais adiante, se passarem por convidados.

SEM ANISTIA, portanto! O INOMINÁVEL  E TODOS OS SEUS COMPANHEIROS E FAMILÍCIA DEVEM IR PRA CADEIA! EIS O OBJETIVO!

Pode até faltar espaço para aprisionar todos eles, mas o que não  pode faltar é  a nossa vontade de mudar o padrão da História brasileira que o filme nos revelou.

Eu me sinto em êxtase com os preparativos da festa democrática, acreditando que ela não  é  utopia. Ela é uma possibilidade real. E você?

Maria Betânia Silva- Procuradora de Justiça aposentada do MPPE e integrante do Coletivo Transforma MP. 

Que sabe dar um jeito, meu amigo?

Antes, muito antes, do sonho de carnaval ser uma estatueta do Oscar, minha mãe, leitora quase exclusiva de livros espíritas, apareceu com aquele livro azul: leia, você vai gostar.

Só muitos meses depois daquele dia eu saberia que Walter Salles havia feito um filme sobre o tal livro azul que minha mãe comprou e leu, e que nove entre dez postagens que meu algoritmo de rede social me mostraria, em 2025, seriam sobre um Brasil inteligente e sensível se redescobrindo através dos olhos do mundo, com a história daquele livro.

Quando o letreiro do filme “ainda estou aqui” começou e a voz de Erasmo Carlos, que não está mais aqui, entoou que descansar não adianta, eu me sentia exausta, imersa em uma plateia também cansada, que não sabia mais onde colocar tanto silêncio acumulado.

Reverberava em mim em um tamanho sem medida o olhar desviado de Eunice no tanque de guerra destoando do dia solar na praia carioca, na sorveteria, no corpo do cachorro morto, no sorriso do marido que nunca mais voltaria, na casa vazia, nos filhos que crescem com seus próprios destinos e dores, na família que se agiganta para além de nós, mesmo que nunca mais se dance na sala, e no tempo que leva tudo, até nós de nós mesmos.

O letreiro passava e eu não sabia que olhar me atravessava: era Fernanda Torres? Fernanda Montenegro? Da filha? Da mãe? De Eunice Paiva? Ou era o de minha própria mãe, uma mulher que cumpriu o script das mulheres da geração de Eunice e de Montenegro e que foi, “apenas”, a mãe de família cumpridora de suas tarefas? A mãe que, um dia, me estendia o livro azul e, no outro, me perguntava onde estava sua própria mãe?

Minha mãe não foi uma visionária do sucesso de um filme que ela nunca quis ver. Minha mãe não gosta de cinema e, muito menos, de sair de casa. Minha mãe também está longe do perfil politizado que está depositando nesse filme a grande chance de desforra contra a força bruta, a ignorância, a crise ética e estética que mergulhamos ciclicamente com governos que discursam e praticam a política da morte. Essa sou eu, nos meus devaneios diários de arte – redenção.

Minha mãe é somente mais uma senhora de classe média, de 91 anos, viúva, que trava sua luta pessoal para ainda estar aqui, o que inclui respirar, comer, ir ao banheiro todos os dias e não esquecer de sua história.

Não perder a dimensão de suas próprias perdas tem sido o desafio de um país e de minha mãe.

Meu amigo Eduardo Ferreira Valério, Procurador de Justiça do MPSP, que deveria estar escrevendo esse artigo no meu lugar, sabe bem disso.

Durante décadas dedicou-se no Ministério Público do Estado de São Paulo a narrar a história das perdas e dores dos mais lascados desse país, na esperança de que elas não se repetissem.

Em uma das ações civis públicas que marcam sua trajetória, Valerio postula pela transformação de um antigo espaço de tortura da ditadura civil-militar (DOI-CODI SP) em um espaço de memória e cultura (museu), com a aplicação dos princípios da Justiça de Transição.

A Justiça de Transição, como se sabe, enquanto conjunto de princípios destinados a garantir a reconstrução democrática de um país após experiências autoritárias ou ditatoriais, se fundamenta em três conceitos: justiça, memória e verdade.

Não há Justiça de Transição sem a) atribuição de responsabilidades; b) garantia efetiva do direito à memória e à verdade; c) reparação em favor das vítimas; d) e fortalecimento das instituições com valores democráticos de modo a se garantir a não repetição das situações de violência.

Na ação, Valerio diz que matar e infligir dores inimagináveis e covardes entrou para o cotidiano de agentes públicos que cumpriam o “dever de vencer um inimigo”. Falar do Estado brasileiro em seu regime ditatorial entre 1964 e 1985 é falar de tortura, a mesma tortura que ainda resiste no aparato do Estado, sobretudo contra a população periférica e negra que meu amigo Valerio, também bravamente, já narrou em outra ação judicial, fazendo 38 pedidos para melhoria da política de segurança pública no Estado de São Paulo, inclusive aos próprios policiais, também vítimas da engrenagem da necropolítica.

Ao que parece, meu amigo Valerio quer e sabe dar um jeito, apostando que o direito, sob as bençãos da Constituição Federal, é capaz de transformar dor em cultura e amor pela humanidade.

Volto para o letreiro do cinema, que ainda passa enquanto Erasmo canta. Penso nas instituições cada vez menos democráticas e mais clientelistas e patrimonialistas, servindo aos poderosos de sempre. Elas parecem surdas. Seguem bastante eficientes no apagamento sem escrúpulos de Valérios e de Promotoras Passarinhas, submetidos à exaustão de falar sozinhos sobre o tal do jeito que a gente até poderia dar, não fossem as paredes de arrogância e narcisismo sem qualquer disponibilidade de escuta.

Penso na política da morte que o Brasil suportou recentemente, elegendo um Presidente da República que homenageou um torturador de mulheres e crianças e da dificuldade de que isso fosse, apenas, o gigantesco absurdo que é.

Estou na sala do cinema. Ninguém se mexe ou respira no cinema abarrotado. O letreiro vai acabando, Erasmo segue cantando… mas precisa chegar na parte que ele diz como é que a gente dá o jeito que a gente tem que dar quando ninguém nos escuta. Essa parte não chega nunca. O letreiro vai acabando. E descansar também não adianta.

Estranho falar em uma Justiça que seja de transição quando imaginamos a Justiça como o lugar de chegada. Mas é que a história é mar agitado, e não processo linear, e também não se chega a lugar algum sem que a gente se lembre de onde a gente parte, ainda que para fazer isso seja necessário nos partir um pouco, ou muito.

Eu parto de uma vila de paralelepípedos, com uma pracinha ao fundo, onde eu aprendi a andar devagar, por prazer, quando criança, e depressa, por medo, quando menina adolescente. Em algum momento, enquanto crescia atravessando a pracinha do final da minha rua, entendi que a única travessia que me seria possível, na vida, era a de tentar ser uma decifradora de silêncios, sobretudo daqueles que vem do cálice da força bruta.

O letreiro está no fim e penso que minha mãe tem os olhos azuis iguais o azul do livro que ela me deu.

Ninguém, absolutamente ninguém, se mexe no cinema. Parece insuportável… eu queria muito dançar na sala de casa também, em uma história de amor sem esquecimento e apagamento. Queria ver as amigas passarinhas brilhando e meus amigos dando o jeito que eles bem sabem dar para a gente construir um mundo sem mortes, descartes e violência, onde todas as pessoas lembrassem e pudessem contar suas histórias, de onde partem e o que as parte em pedaços quando são caladas e esquecidas.

Queria chorar, mas nem isso cabia. Eunice não chorou.

Daqui a pouco a luz da sala de cinema vai acender…e o tal jeito… alguém grita.

É uma voz de mulher trazendo o grito que nos redime e nos devolve o ar.

SEM ANISTIA!

A plateia do cinema vem abaixo ecoando a vergonha que é a defesa de uma Lei de 1979, que perdoa tortura, assassinatos e desaparecimentos políticos ferindo princípios constitucionais basilares e os tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Interamericana, o Pacto de São José da Costa Rica e o Tratado de Roma.

Sem anistia é o jeito que temos que dar se não quisermos viver assombrados pelo retorno do recalcado e os fantasmas golpistas que, recentemente, colocaram, graças à magistral peça acusatória do Procurador Geral da República, Paulo Gonet, 34 pessoas no banco dos réus perante o Supremo Tribunal Federal, dentre os quais, 23 militares e o ex-Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, o senhor adorador de torturador. Todos acusados de formação de organização criminosa armada, tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, deterioração de patrimônio tombado e golpe de Estado que se consolidaria em 08 de janeiro de 2023, com a invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Está chegando o carnaval. Chico Buarque e João Bosco lembraram recentemente, na quadra da Mangueira que, em 1969, Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira cantaram “Heróis da liberdade”, pela Império Serrano, meses após a decretação do AI 5. O samba falava da brisa que a juventude afaga e de uma chama que o ódio não apaga.  A censura não suportou a parte em que se falava de “revolução em sua legítima razão”, e revolução foi substituída por “evolução”. Os canalhas sempre foram apavorados com a força transformadora da beleza e da vida.

Domingo teremos Oscar e faremos nosso samba no tapete vermelho dos gringos e nas ruas do Brasil, em forma de desforra pública e internacional.

Afirmaremos a política do amor e da reparação contra a covardia e a força bruta. Será um domingo para as mulheres de todas as gerações passarinharem e festejarem que, apesar de tudo, de tudo mesmo, ainda estamos aqui.

Minha mãe, a Lourdes, também está, está lá na vila de paralelepípedos dela, que termina em uma praça bem verde e florida onde gentes coloridas brincam sob um céu azul, esse azul que é da cor do amor.

CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL é Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

REFERÊNCIAS:

  1. Ação judicial SAJ 1034665-31.2021.8.26.0053 que tramita na 14ª Vara da Fazenda Pública Estadual – Estado de São Paulo, assinada por Eduardo Ferreira Valério, Anna Trotta Yaryd e Lucas Martins Bergamini.
  2. Ainda Estou Aqui – Marcelo Rubens Paiva. Editora Alfaguara. RJ. 1ª edição.
  3. Samba Enredo 1969, Império Serrano. Heróis da Liberdade.  

Quebra de silêncios da memória das mulheres nos espaços públicos e políticos

Por Teixeira de Meiroz Grilo no GGN

A que se presta o resgate histórico das mulheres em espaços de poder? Por que dar espaço à narrativa desta trajetória, hoje, aparentemente, tão bem consolidada? Essas foram algumas das questões que me pus ao longo do processo de coordenação editorial da Breve História das Mulheres do Ministério Público do Paraná.  Permaneço, ainda, num processo de investigação: não porque não tenha encontrado suficientes respostas, mas porque elas parecem multiplicar-se à medida que as investigo, e conforme entro em contato com outras experiências de resgate histórico.

A história das mulheres. Independentemente do recorte que se faça, ao fim e ao cabo, escrever a história sob uma perspectiva feminina é mais do que um meio de robustecer os registros históricos. Significa, por vezes, contraditá-los, confrontar a narrativa estabelecida e combater os simplismos. E, pensando a história como também meio de luta, sob uma perspectiva contemporânea, dar protagonismo às vozes que, por séculos, foram relegadas ao lugar de “vocal de apoio”. Assim, tomar nas mãos esta tarefa se presta a múltiplos fins: entre eles, fortalecer o papel da história – que passa a ser enriquecida com a coleta de dados antes esquecidos –,  mas também, fortalecer as mulheres – de sorte que o conhecimento e a ciência de sua luta por direitos (em permanente ameaça) continuem a impulsioná-las a novas conquistas.

Ao falar sobre a invisibilidade das mulheres, Michelle Perrot esclarece que a história, muitas vezes, optou por apagá-las porque se dirigia a narrar fatos da vida pública – ao passo que as mulheres pertenciam à vida privada. Esclarece que “em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a garantia de uma cidade tranquila. Sua aparição em grupo causa medo. Entre os gregos, é stasis, a desordem” (PERROT, 2007). A ideia de pertencimento das mulheres à vida pública, assim, era vista com temor, com ressaibo.  Embora a ideia de falta de participação das mulheres na sociedade possa parecer distante, inúmeros são os obstáculos enfrentados no processo de acesso a este ambiente público, no acesso ao poder, ainda nos dias de hoje.

Conquanto se trate de um ideal sempre ameaçado – em vista dos recentes acontecimentos políticos no Brasil e no mundo – permaneço uma entusiasta do Estado Democrático de Direito. Penso que a participação das mulheres, a partir da ocupação dos espaços de poder de maneira legítima, é um dos meios mais eficazes para a transformação social. Nesse contexto, é preciso ter em vista que a invisibilização das mulheres é reflexo de estruturas sociais e históricas que excluíram mulheres dos espaços de decisão. Assim, proceder a um resgate histórico – dentro de qualquer instituição – é mais que um meio de reconhecimento de contribuição das mulheres para a construção de tais instituições. É, também, uma forma de, a partir da memória, permanecer abrindo caminhos para a equidade plena que desejamos.   

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Valéria Teixeira de Meiroz Grilo Procuradora de Justiça aposentada do MPPR. Membra do MP Transforma. Membra do Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público.

O papel mobilizador da Costa do Descobrimento: Brasil Colônia de novo?

Por Antônio de Padova Marchi Júnior no GGN

A Costa do Descobrimento, por todo o seu simbolismo, diversidade étnica e riqueza natural, talvez seja o marco mais adequado para mobilizar e reclamar a necessária atenção para o destino do Brasil nessa quadra tão complexa da nossa história.

Possui 111.930 hectares onde se concentram 23 áreas de proteção ambiental, distribuídas entre 12 municípios do sul da Bahia e quatro do norte do Espírito Santo.

Enquanto reserva da Mata Atlântica, recebeu o título de Patrimônio Mundial concedido pela Unesco em razão do seu elevado valor para as ciências e para a preservação do ecossistema de interesse universal.

São tantas paisagens, praias paradisíacas, patrimônio arquitetônico, vilas históricas entrelaçadas com importantes reservas indígenas, que fica difícil não se apaixonar pela simplicidade e pelo charme local.

Além dos cenários naturais, a região é dotada de aeroporto, boa estrutura rodoviária, considerável rede hoteleira, rica gastronomia e muita agitação, tornando-se a preferida, verão a verão, de milhares de turistas que a elegem como o local perfeito para fugir do stress e repor as energias.

Contudo, nessa estação de 2025, em que se completa o primeiro quarto de século após os 500 anos do descobrimento, impossível não se refletir sobre o processo histórico que desaguou na CR/88 e o rumo que o país tomará ante os riscos para a democracia impostos pelos desafios de hoje.

A exploração predatória do meio ambiente, largamente empregada em diversas atividades econômicas desde os tempos do Brasil Colônia, passou a ser efetivamente enfrentada somente a partir dos anos 70 por meio da paulatina mobilização de pequenos grupos ecológicos, das advertências advindas da ciência e do crescente envolvimento da classe artística, trabalhadora e estudantil.

O movimento foi ganhando corpo a cada agravamento das condições ambientais decorrente do desenvolvimento econômico acelerado, da intensificação do processo de urbanização, da construção das grandes usinas hidrelétricas, da crescente exploração mineral e outros fatores de risco.

A formação dessa “consciência ambiental”, ainda que tardia (especialmente para a Mata Atlântica), contribuiu para incluir a temática no círculo político, favoreceu a criação de órgãos governamentais para o controle e a regulamentação das atividades nocivas ao meio ambiente e, mais adiante, motivou o debate na Assembleia Constituinte que levou à formação de uma frente ambientalista suprapartidária e obteve como resultado a inserção de um capítulo especial sobre o meio ambiente na CR/88.

Para a proteção do meio ambiente, o legislador constituinte permitiu a adoção de competências concorrentes, a instituição da responsabilidade objetiva, a criação da ação civil pública e outros princípios que determinaram significativo avanço legislativo nas esferas administrativa, cível e penal.

O operoso trabalho desenvolvido a partir de então por organizações governamentais, não-governamentais e instituições do sistema de justiça, a par de ter alcançado importantes objetivos em favor da preservação do meio-ambiente, da defesa do patrimônio histórico-urbanístico e de proteção da população indígena, ainda não conseguiu consolidar a ideia da imprescindibilidade de tais propósitos.

O avanço da extrema-direita, a frágil regulamentação das big techs, o uso e o abuso de mentiras como poderosa tática política empregada nas redes sociais, a revisão da história, a desconstrução do conceito de democracia e os discursos de ódio contra as minorias, tendo os indígenas como um dos grupos mais afetados, colocam em risco o longo caminho trilhado pela sociedade brasileira em favor da vivência harmônica entre suas etnias e da preservação do meio ambiente.

Em artigo intitulado “Não basta defender a democracia”, publicado em sua coluna na Folha de São Paulo, o Professor Oscar Vilhena Vieira adverte para o esboroamento do conceito de democracia:

“Enquanto para o campo liberal a democracia é uma forma de governo em que o exercício do poder pela maioria só será legítimo quando balizado pela constituição e em conformidade com os direitos humanos, inclusive direitos de minorias, para populistas muitos desses direitos e balizas constitucionais são descritos como obstáculos espúrios à plena realização da vontade do povo, devendo, portanto, ser abandonados”.

A débil educação, o ressentimento e a cobiça, somados a outros sentimentos menores, engrossam o caldo de violência e ódio que animam desmatadores, grileiros, garimpeiros e aventureiros de toda ordem a enxergarem como inimigos os povos indígenas e os protetores do meio ambiente.

O pior é que boa parcela da população – talvez a sua ampla maioria – aceita ou se cala frente a tais agressões.  

A tragédia que assola a TI Yanomami, exponencialmente mais drástica no governo Jair Bolsonaro (2018-2022), é um exemplo claro de quão vulneráveis ainda se encontram os indígenas brasileiros. 

A Bahia é o estado brasileiro com a segunda maior população indígena recenseada, conforme apurado pelo IBGE no Censo de 2022, ocasião em que 191.950 pessoas se autodeclararam indígenas. O número corresponde a aproximadamente 12,9% de toda a população indígena do país que, no último balanço, era de mais de 1,4 milhão de pessoas.

A maior parte vive no sul do Estado, na região da Costa do Descobrimento, onde estão localizadas as aldeias dos povos Pataxó, Truká, Tuxá, Atikun, Xucuru-Kariri, Pankararé, Tumbalalá, Kantaruré, Kaimbé, Tupinambá, Payayá, Kiriri, Pankaru e Pataxó Hã Hã Hãe.

Apesar das demarcações e regularizações, casos de exploração e violência ainda fazem parte do cotidiano dos indígenas que vivem nesses territórios, com o registro de diversos homicídios ocorridos nos últimos anos.

O processo de demarcação de um território indígena (TI) é composto por cinco etapas: estudo do território, delimitação, declaração, homologação e regularização.

A declaração e a homologação são competências atribuídas ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Presidente da República, mas a regularização somente é concluída com o registro cartorário da área em nome da União com usufruto indígena.

Os municípios de Santa Cruz de Cabrália, Porto Seguro, Prado e Pau Brasil, localizados no sul da Bahia, possuem TI’s regularizadas. Pelo menos outros 11 territórios já foram reconhecidos pelo Ministério dos Povos Indígenas e três já se encontram em processo de regularização.

Enquanto se aguarda o julgamento final do Tema 1.031 com a confirmação do STF pela rejeição da tese do marco temporal, não se pode perder de vista que a regularização das terras é apenas um passo para a proteção e o efetivo respeito ao povo indígena, à sua autonomia e à sua pluralidade étnica.

É inaceitável que, passados 525 anos do descobrimento, ainda hoje seja preciso combater o preconceito e a discriminação contra os indígenas ao invés de se explorar o conhecimento tradicional, a diversidade cultural e os rituais de cada etnia, tão fundamentais para a preservação do meio ambiente e da cultura brasileira.

Revisitar a Costa do Descobrimento é revisitar a história do Brasil, processo indispensável para a necessária reflexão sobre que país desejamos ser.

Optar por um Estado populista, que busca contornar os princípios constitucionais de garantia, driblar os mecanismos de proteção das minorias e limitar os inadiáveis cuidados com o meio ambiente em favor de uma “liberdade” (nada mais irritante do que a ardilosa cooptação do vocábulo pela extrema-direita para se alcançar exatamente o oposto) para, ao fim e ao cabo, favorecer os interesses da elite financeira que dita as regras da economia mundial equivale a recrudescer e a aceitar a permanência da exploração das riquezas nacionais.       

O Brasil não pode voltar a ser colônia.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Antônio de Padova Marchi Júnior é Procurador de Justiça MPMG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do Curso de Direito do IBMEC. Membro do coletivo “Transforma MP”.