Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.
Em sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes afirmou que é uma injustiça atribuir culpa aos trabalhadores e aposentados pelo déficit da previdência, apontando desvios históricos de fundos do sistema para outros fins como uma das razões e o fim de isenções fiscais que não mais se justificam como uma possível solução.
O ministro talvez não esteja percebendo que outra armadilha contra o sistema previdenciário, de proporções colossais está sendo preparada pela própria corte que integra e contando com seus votos e suas decisões monocráticas.
Mas o que nos importa aqui neste texto é que a tese subjacente à extensão da interpretação do Tema 725, que daria sustentação para esse tipo de decisão, é a de que, uma vez firmado um contrato civil entre empresa e trabalhador, não cabe à Justiça do Trabalho identificar a existência de um vínculo de emprego, bem ao contrário do que impõe nossa lei (art. 9º, CLT), que segue o que ocorre no mundo inteiro, como preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (Recomendação 198) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Algumas decisões do STF, inclusive recentes, encaminharam as ações que demandavam o reconhecimento do vínculo de emprego para a Justiça Comum, que verificaria somente a existência de algum vício na celebração do contrato.
Uma vez cristalizada essa tese, os empregadores não precisarão ter nenhum temor em firmar contratos civis com trabalhadores, sejam eles de que espécie for (MEI, PJ, parcerias, cotas societárias ínfimas etc.), mantendo os poderes empregatícios em todas as suas dimensões. Uma vez firmado o contrato, e aceito pelo trabalhador sem nenhuma coação ou ameaça (para o STF, a ameaça implícita inerente de não conseguir a vaga de emprego e não poder alimentar a família se não aceitar a proposta não conta como ameaça), o empregador estará blindado de qualquer responsabilização.
É claro que, como nenhum empresário é otário ou rasga dinheiro, e talvez premido pela concorrência, passará a contratar trabalhadores pelas diversas formas mais baratas e com menos constrangimentos legais, como sindicatos e fiscalização, pois não terá nada a perder, nem mesmo o seu poder empregatício. Se o risco é zero, o que levaria o empregador a manter os trabalhadores formalmente como empregados? Com isso, os trabalhadores deixarão de contribuir como empregados e sim de acordo com o seu contrato formal. Mais do que isso: os empregadores, na maior parte dos casos, deixarão de contribuir como patrões.
No caso da contratação por Microempreendedor individual (MEI), por exemplo, com exceção de alguns serviços como hidráulica, eletricidade, pintura, alvenaria, carpintaria, manutenção e reparo de veículos, não há contribuição previdenciária patronal, e o trabalhador recolhe somente 5% do salário mínimo, o que nem de longe garante qualquer equilíbrio atuarial.
Essa contribuição, aliás, é um engodo: mais da metade dos MEIs estão inadimplentes. São 7,5 milhões de trabalhadores no país. Não é de se espantar que quando ultrapassarem a idade produtiva serão absorvidos pela assistência social, ou seja, toda a sociedade pagará. A previdência do MEI mais para um duplo faz de conta: o trabalhador faz de conta que paga e o Estado faz de conta que no futuro vai garantir a previdência para esses trabalhadores.
Já o trabalhador contratado como pessoa jurídica (como a contratação como sócios com cotas ínfimas) deve recolher em cima do pró-labore e não há contribuição por parte do empregador.
Será uma tragédia para o sistema, como vem alertando a Receita Federal, que também aponta rombos na arrecadação de imposto de renda com essa série de decisões. Em relação à previdência, uma conta simples pode ser feita para se ter uma noção da catástrofe: considerando que o salário médio médio mensal de trabalhadores no Brasil é de R$ 2.979, se dez por cento dos trabalhadores com carteira assinada no Brasil (que hoje totalizam 37,995 milhões de empregados) forem migrados para outras formas contratuais, somente com a sonegação da contribuição patronal o rombo será de R$ 2.263.742.000 a cada mês.
Em um ano o rombo será de mais de R$ 29 bilhões, contando o décimo terceiro salário. Porém, se está tudo liberado, em pouco tempo haverá muito mais do que 10% de migração. Imaginando um cenário (ainda conservador, considerando o potencial destrutivo das decisões da Suprema Corte) em que metade dos trabalhadores brasileiros fossem contratados da forma menos onerosa, o rombo seria de mais de 11 bilhões por mês, o que totaliza mais de R$ 145 bilhões por ano, ou 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB).
Isso é só a parte contributiva do empregador, que deveria ser acrescida da perda com a contribuição do empregado, que varia de 7,5% até 14%. As contas, nesse caso, são mais difíceis de se fazer, mas a sonegação poderia facilmente chegar, no segundo cenário, a R$ 5 bilhões por mês ou R$ 65 bilhões por ano. O total, juntando a contribuição patronal e do trabalhador, alcançaria então a quase 2% do PIB de rombo por ano.
Não há como sustentar nenhum sistema com um rombo dessa envergadura. Os ministros da Suprema Corte, a começar pelo ministro Moraes, que externou preocupação com a questão do déficit da previdência, devem se posicionar nos autos com responsabilidade sobre a questão.
Já é momento de perceberem que o extremismo de suas posições será um desastre sem paradigma, não só no Brasil, como no mundo. Os ministros do STF estão montando, a todo vapor, uma bomba atômica social e fiscal. Essa bomba deve ser urgentemente desmontada, antes que seja tarde demais.
Rodrigo Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.
Em março, o Projeto de Lei Complementar 12/2024 (PLP 12/2024) foi enviado para o Congresso Nacional com o objetivo de regular o trabalho dos motoristas que atuam por meio de plataformas digitais. À época, apontamos os seus principais problemas: a equivocada caracterização das plataformas digitais como intermediárias, a insuficiência na definição do trabalho autônomo e vedação do reconhecimento da relação de emprego mesmo quando presentes elementos de controle do trabalho.
Após meses de intensos debates em diversos espaços, incluindo audiências públicas e seminários realizados pela Câmara dos Deputados, um substitutivo ao PLP 12/2024 foi divulgado recentemente. Não apenas os antigos problemas permaneceram, como novos foram criados.
O principal se refere ao descanso. A Constituição prevê que se trata de um direito do trabalhador. Porém, o substitutivo subverte a lógica que justifica reconhecer o repouso para o trabalhador e o coloca como um dever. Sim, para o motorista que trabalha por meio de plataformas digitais, o descanso será um dever.
Concebido como mecanismo de proteção ao trabalhador, o descanso é um dos instrumentos que limita a quantidade de horas que uma pessoa pode prestar serviços para outra. Dessa forma, busca-se fazer com que o beneficiário das atividades realizadas pelo trabalhador assegure um período mínimo para recomposição das energias entre o fim de uma jornada e o começo da outra.
Caracterizar o descanso como dever joga água no moinho da transferência das responsabilidades apenas para os trabalhadores em uma relação fortemente desigual. Colocar nas costas dos motoristas a obrigação de controlar o seu próprio descanso em um contexto no qual não decidem o preço do seu trabalho e são punidos por não aceitarem uma quantidade mínima de corridas ou por cancelarem viagens apenas reforça a discrepância de poderes entre trabalhadores e plataformas.
O art. 4º do substitutivo diz que dentro de um período de 24 horas, o motorista tem a obrigação de repousar por pelo menos 11 horas, devendo ficar desconectado de todas as plataformas. É oferecida a possibilidade de fracionamento desse intervalo de 11 horas, desde que garantido o mínimo de 6 horas ininterruptas de descanso.
Em relação aos períodos de descanso, percebemos que, diante da necessidade de encontrar referências, busca-se o socorro na lei trabalhista. Não é à toa que o art. 4º traz os limites já previstos nos arts. 66 e 235-C da CLT. Contudo, uma exígua responsabilidade é atribuída às plataformas digitais na observância desses parâmetros.
O art. 5º estabelece as punições para o descumprimento do dever de descansar. O motorista pode ser suspenso de todas as plataformas que tiver cadastro e ficar impedido de ingressar em novas plataformas por 30 dias. Em caso de repetição desse descumprimento, a punição é aplicada em dobro. Essas penalidades serão impostas após a lavratura de auto de infração por órgão de fiscalização do Poder Executivo.
Aqui, manifesta-se um dos lados perversos de caracterizar o descanso como dever: o não cumprimento, por parte do motorista, impede-o de trabalhar e sujeita-o a receber multa. Em outras palavras, o trabalhador é colocado em uma condição de algoz de si mesmo no âmbito de uma relação assimétrica na qual sua autonomia é extremamente reduzida.
Ao mesmo tempo que debatemos o PLP 12/2024, o restante do mundo também discute a regulação do trabalho via plataformas digitais. Em abril, o Parlamento Europeu aprovou uma diretiva sobre o tema. O texto prevê regras para combater a classificação fraudulenta dos trabalhadores como autônomos: foi estabelecida uma presunção legal de que a relação entre uma plataforma e um trabalhador é uma relação de trabalho quando se identifiquem elementos de controle e direção da atividade. Caso a plataforma queira refutar essa presunção, cabe a ela demonstrar que a relação é de outra natureza.
Ou seja, enquanto debatemos como proibir de forma absoluta a possibilidade de reconhecer uma relação de emprego e transformamos direitos em deveres, a Europa discute como oferecer proteção social aos trabalhadores a partir da análise do que ocorre no mundo dos fatos. Se o Brasil quiser sair da contramão da regulação do trabalho via plataformas digitais, é necessária uma alteração de rota urgente.
RENAN BERNARDI KALIL é Procurador do Trabalho, doutor em Direito pela USP e professor da graduação em Direito no Insper.
O Coletivo Transforma MP se juntou a diversas entidades e a sociedade civil para apoiar a Carta de Cuiabá pela Reparação Integral dos Danos à Biodiversidade e ao Clima.
Acreditamos que a proteção do meio ambiente é fundamental para o desenvolvimento do nosso país, principalmente para a preservação da fauna e flora que enriquecem a diversidade brasileira. Também acreditamos que é de extrema importância adotar medidas de reparação aos danos ambientais causados para que a população não sofra mais com desastres e catástrofes.
Entra ano, sai ano e a questão ambiental continua tão fundamental quanto menosprezada. Agora é a vez do Rio Grande do Sul amargar os efeitos das mudanças climáticas, mas amanhã, tão certo quanto o nascer do sol, outros eventos tão drásticos virão no mesmo ou em outro lugar.
A Grande Mídia rapidamente se mobilizou para dizer que “não é hora de apontar culpados”. Também não devemos “politizar a catástrofe” e nem fazer com que a tragédia gaúcha abra margem para o tal do “populismo fiscal”. Sinceramente, não podemos esperar muita coisa de uma imprensa que até dá algum destaque para a questão ambiental, mas esconde seus diagnósticos mais relevantes porque na hora do intervalo passará uma propaganda dizendo que “o agro é pop”. As raízes do problema não são reveladas porque seus responsáveis financiam os grandes conglomerados midiáticos; e então a questão aparece como um problema sem sujeito.
Nesse breve escrito, vamos pincelar o oposto do que a Grande Mídia sugeriu: vamos politizar a catástrofe, buscar os culpados e defender ativismo fiscal como estratégia não apenas para a reconstrução do Estado do Rio Grande do Sul, mas para a colocação em prática de uma economia modulada ao redor da questão ambiental.
Para começarmos a entender o problema, te faço uma pergunta: quais são as cidades brasileiras que mais emitem gases do efeito estufa? Possivelmente você encabeçará sua lista com a cidade de São Paulo, e esse é um ótimo chute. Eu mesmo respondi isso quando um amigo ambientalista me fez a mesma indagação. Para minha surpresa, não é. Em 2019, oito das dez cidades que mais registram emissões estavam na região amazônica. A líder foi Altamira (PA), seguida de São Félix do Xingu (PA), Porto Velho (RO), Lábrea (AM) e, aí sim, São Paulo (SP)[1]. Depois vêm as cidades de Pacajá e Novo Progresso, ambas no Pará, e depois o Rio de Janeiro (RJ), seguido de Colniza (MT) e da simpática Apuí (AM) fechando o TOP 10 do ranking dos maiores contribuintes para a destruição planetária. Tirando São Paulo e Rio de Janeiro, a população das outras 8 cidades somadas não ultrapassa 1 milhão de habitantes. Entre 2000 e 2019, a agropecuária foi responsável por 67% das emissões e a “mudança de uso de terra e florestas” (um nome bonitinho para “queimadas” e “desmatamento”), que está diretamente ligada a ela, mais 18%[2]. Eu duvido que você verá um estudo que aponte essas conclusões na Globo News ou em outro veículo integrante do oligopólio midiático brasileiro. Afinal, durante o intervalo passará a propaganda que já conhecemos: “O agro é pop”. Informação é a mercadoria principal das empresas de comunicação e a publicidade é sua remuneração.
Como a questão ambiental é, por excelência, difusa, é claro que os culpados vão muito além do Agro. Como o planeta não tem fronteiras, o aquecimento global como um todo acaba sendo o evento climático responsável pelas catástrofes ambientais, que, diga-se, não afetam apenas o Rio Grande do Sul. Neste mesmo período, Afeganistão, Emirados Árabes Unidos, Indonésia, Quênia, Burundi, Somália e Tanzânia sofrem com chuvas torrenciais semelhantes[3]. Mas fato é que o Brasil vem aumentando suas emissões de gases do efeito estufa e, no nosso cercado, o Agro não pode deixar de ser apontado como um dos culpados ao lado da Grande Mídia que o protege.
Para ir além do Agro, devemos falar sobre o paradigma econômico-político-cultural vigente, o neoliberalismo. Fica mais fácil identificar os culpados pela sua posição na estrutura econômica e pelas ideias que defendem no campo superestrutural. O neoliberalismo incorpora um princípio geral de desregulamentação das relações de produção ao mesmo tempo em que busca a regulamentação da intervenção estatal, notadamente, da sua política fiscal.
O neoliberalismo busca desregulamentar as relações de produção em sentido amplo, e isso vale tanto para as relações de trabalho quanto para os entraves de qualquer natureza à reprodução da acumulação capitalista. Vale tanto para o mercado de capitais – que passou por uma brutal desregulamentação nos idos das décadas de 1980 e 1990 – quanto para as relações de trabalho. É assim que entendemos a contrarreforma trabalhista e as novas formas de trabalho precarizado (uberização). É também assim que entendemos a encarniçada luta pela remoção de regulamentações ambientais. Lembram do Ministro (agora deputado!) que queria “passar a boiada”? Lembram do que aquela expressão significava? Basicamente, reduzir ao máximo possível a regulamentação ambiental e desmontar aparatos de fiscalização.
Lembram também da questão do Marco Temporal? Há poucos instrumentos tão eficazes na proteção do meio ambiente natural quanto a demarcação de terras indígenas. Mas essa forma de regulamentação significa um entrave na expansão da fronteira agrícola, e por isso a Bancada Ruralista trabalhou diuturnamente pela aprovação do Marco Temporal.
Em 2019, o Rio Grande do Sul aprovou um Código Florestal Estadual, mas essa legislação sofreu nada menos do que 480 vetos ou alterações do atual governador. Uma das mais icônicas alterações chegou a permitir o “autolicenciamento” ambiental em alguns casos. Na época, a Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente protestou contra os vetos e alterações do governador: “É um projeto desestruturante, destruidor e prostituinte, porque prostitui a questão ambiental numa liberalização infundada que destrói 10 anos de trabalho”[4]. O objetivo dos vetos era claro: remover regulamentações destinadas à proteção ambiental em prol da atividade econômica.
É claro que a explicação para a tragédia gaúcha é muito mais ampla. Ela reside muito mais num “estado geral de coisas” do que no desmonte de um código ambiental específico. O governador gaúcho está nos holofotes, mas desconfio que nenhum governador esteja fazendo o dever de casa em relação à questão ambiental. De todo modo, a “passagem da boiada” representada pelas centenas de vetos ao Código Ambiental do RS é um exemplo ilustrado do que queremos dizer: o ímpeto da acumulação capitalista, sob o paradigma neoliberal, trabalha com um princípio geral de desregulamentação que busca remover barreiras regulatórias que representem entraves ao seu “livre” desenvolvimento imediato. Todos aqueles que, na macropolítica econômica, encampam o paradigma neoliberal, podem ser apontados como culpados pela tragédia. E é por isso que os oligopólios de mídia não querem que a questão seja politizada. Essa é mais uma das questões que revelam a crise da democracia liberal tradicional: ela não conta com instrumentos para tratar de questões estruturais de longo prazo, para os quais são necessárias atuações planificadas em nível muito mais amplo do que os “Três Poderes” são capazes.
A verdade é que há uma contradição muito clara entre as conclusões da Ciência e as dinâmicas internas ao modo de produção capitalista. A Ciência diz que precisamos descarbonizar nossa economia, mas isso representa um custo de produção para os campeões de emissão de gases do efeito estufa. Precisamos reduzir o desmatamento, mas essa é a forma menos custosa para expandir a fronteira agrícola. Externalizar as internalidades negativas é a forma mais barata para gerenciar os recursos da produção capitalista. E como baratear o custo da produção é o mantra geral do capitalismo, a preocupação com a questão ambiental não passa do discurso para a prática. Em outras palavras, como o modo de produção capitalista é a estrutura fundamental da nossa sociedade, a natureza em sentido amplo passa a entrar no cálculo econômico da forma como melhor aprouver aos interesses da acumulação do capital. A Ciência tem desempenhado bem seu papel e nos alertado sobre os impactos cada vez mais drásticos das mudanças climáticas; mas suas recomendações esbarram em uma força material colossal: a estrutura econômica orquestrada pelo capital e as classes sociais que dela se beneficiam.
Então precisamos falar de economia política. A caridade é muito legal, mas não resolverá nada. É preciso falar de políticas públicas, e para falar de políticas públicas é preciso falar de orçamento. Precisamos urgentemente de um Green New Deal e, mais do que isso, precisamos de um novo paradigma econômico que retome o ativismo fiscal de outrora, dessa vez modulado pela urgente questão ambiental.
Precisamos, em primeiro lugar, parar de acreditar que o orçamento público é como o orçamento de uma família. O Brasil é um país dotado de soberania monetária que precisa emitir moeda antes de poder arrecadá-la da economia privada. Pelo menos via de regra, eu e você precisamos arrecadar dinheiro antes que possamos gastá-lo, e se nossas receitas não forem suficientes para cobrir nossos gastos, teremos problemas sérios. Algo radicalmente distinto se passa com o Estado brasileiro.
É preciso fazer duas diferenciações fundamentais: 1) países dotados de soberania monetária e países despidos dessa soberania, por um lado; 2) dívida externa e dívida interna, por outro. Desde o surgimento dos Estados modernos o conceito de soberania política se entrelaça com um conceito menos conhecido, mas muito importante: a soberania monetária. Em breve resumo, trata-se do poder de emitir sua própria moeda e de exigi-la em seus guichês de pagamento, forma pela qual se força a unidade monetária dentro do território nacional. O poder de emitir moeda é um traço fundamental do conceito de soberania política, e, portanto, da própria soberania política. Países dotados de soberania monetária sempre podem pagar sua dívida pública denominada em moeda nacional pela simples razão de que podem emitir moeda em último caso. Se essa emissão for descontrolada, isso pode, é claro, provocar problemas inflacionários, mas ainda assim não há o menor risco de inadimplemento da dívida pública. Para países soberanamente monetários, o tal do “risco fiscal” é uma falácia, um terrorismo instrumentalizado para fazer com que o Estado gaste menos. A história não demonstra nenhum mísero exemplo de algum país soberanamente monetário que tenha deixado de pagar alguma dívida denominada em sua própria moeda. E é aí que entra a segunda diferenciação, entre dívida interna e dívida externa. A dívida externa é realmente um problema porque o Brasil não emite dólares. Dívidas externas são preocupantes e existem alguns exemplos históricos de países que declararam moratória por dívidas denominadas em moeda estrangeira (como a Argentina e o México). O risco de insolvência existe somente para países que renunciaram à sua soberania monetária (como o Equador e a Zona do Euro) e para aqueles que possuem dívidas externas relevantes. Mas o Brasil continua emitindo seus Reais e não tem nenhum problema com dívida externa (ao contrário, possuímos a 7ª maior reserva de divisas externas do mundo e somos credores internacionais). Colocar o conceito de “soberania monetária” no centro da discussão econômica nos dá outra perspectiva do problema.
Talvez você esteja desconfiado(a). O que esse cara está falando? Então vou usar um argumento de autoridade. Joseph Stiglitz, vencedor do Nobel de Economia, afirmou em entrevista recente: “Qualquer pessoa que entenda a nossa dívida pública sabe que todos os títulos do Tesouro americano são denominados em dólares. O que isso significa? Que é possível imprimir mais dinheiro. Nunca deixaremos de honrar nossos compromissos”[5]. Poderia citar outros economistas de grande renome que apontam para a mesma conclusão (como Paul Krugman, outro Nobel, ou André Lara Resende, um dos pais do Plano Real), mas acho que a ideia já está clara; o que falta é aceitarmos que a realidade é assim.
Além dessa analogia fajuta – porém pegajosa! – entre o orçamento estatal e o orçamento de uma família (ou de uma firma), também precisamos nos livrar da ideia de que são os tributos que financiam os gastos estatais. Ora, se a União detém o monopólio nacional de autorizar a emissão de moeda e se os tributos são pagos em reais, então não há como concluir de modo diferente: é a emissão de moedas pelo Estado que precede a tributação, e não o contrário! Se você tiver alguma dúvida sobre isso, abra sua carteira, pegue uma nota de qualquer valor e repare no canto superior esquerdo. Lá estará escrito “Banco Central do Brasil”. É esse dinheiro, que precisou ser antes emitido pelo Estado, que você poderá utilizar para pagar seus tributos. Como consequência, em termos econômicos, ao contrário do que se passa comigo ou contigo, o Estado não tem menor necessidade de arrecadar antes de gastar. A correlação entre gastos e despesas fiscais é importante para fins de controle do sistema de preços, mas a cronologia correta é que o Estado gasta primeiro e arrecada depois (A ordem é G(T), e não T(G), sendo T os Tributos e G os gastos do governo).
Com isso, a própria noção de “responsabilidade fiscal” está de cabeça para baixo porque parte da premissa de que são os tributos que financiam os gastos públicos e que, por essa razão, o Estado precisa arrecadar mais do que gasta ou então buscar um “orçamento equilibrado”, do mesmo jeito que uma família ou uma firma.
Vamos refletir um segundo sobre o que significa o tal do “resultado primário”, ou os mais famosos “superávits\déficits fiscais”. Parece intuitivo que se abstrairmos o setor externo da economia, podemos trabalhar com dois setores nacionais: o público e o privado. Esses dois setores se entrecruzam de tal forma que todo déficit público corresponde a um superávit do setor privado e vice-versa. Se o Estado realiza superávit fiscal, então isso significa que o setor público retirou mais dinheiro da economia privada do que nela despejou. Se realiza déficit, então significa que o setor privado está superavitário. Os déficits geralmente são vistos com desconfiança porque tendemos a analisar as coisas pelas lentes da péssima analogia entre orçamento público e orçamento privado. Mas a verdade é que essa busca insana por superávits fiscais ou “resultados primários equilibrados” acaba drenando recursos do setor privado da mesma forma que os tão mal falados déficits públicos despejam recursos na economia. O que deveria acontecer, na realidade, é que o orçamento fiscal deveria oscilar com a flexibilidade necessária para acompanhar o ciclo econômico, atuando de forma expansionista (anticíclica) em momentos de baixa do ciclo e de forma mais contida em momentos de crescimento. Déficits\superávits não são bons ou ruins em si mesmos porque eles devem ser vistos como instrumentos para a concretização dos objetivos e direitos fundamentais previstos na Constituição. Como o Brasil é um país soberanamente monetário sem dívida externa relevante, é o orçamento que deveria se adequar ao programa constitucional, e não o contrário.
Os déficits públicos podem se transformar em dívida pública, mas já vimos que isso não é propriamente um problema. Afinal, além de não carregar risco de insolvência, os títulos da dívida pública são ativos do setor privado. Esse tipo de pensamento acaba demonizando a política fiscal expansionista, exatamente aquela heroína que poderia nos conduzir a uma economia ambientalmente sustentável.
Ora, e a inflação? Sim, a inflação pode ser um problema. Absolutamente ninguém está defendendo que o Estado despeje dinheiro de um helicóptero para resolver todos os problemas do mundo. Só que a inflação é um fenômeno extremamente complexo e multifatorial cujas causas vão muito além do aumento da quantidade de moeda em circulação. Não existe nenhuma relação necessária e unívoca entre emissão de moeda e inflação. Além disso, há uma quantidade vasta de mecanismos antiinflacionários que vão muito além do controle da base monetária. A farmacologia inflacionária é muito mais complexa do que o simples controle da quantidade de moeda em circulação.
A política fiscal do Estado é um grande poder que deveria servir ao bem comum e à concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição. O Estado brasileiro, contudo, se encontra acorrentado por “camisas de força jurídicas” que, na prática, estão mais preocupadas com o tal do “resultado fiscal” do que com as promessas constitucionais. Estamos falando notadamente da Lei de “Responsabilidade” Fiscal, da Regra de Ouro e do recém-criado “Regime Fiscal Sustentável”, um nome bonitinho para um novo teto de gastos[6]. As regras fiscais brasileiras amarram o orçamento de tal forma que grandes projetos econômicos de longo prazo modulados pela questão ambiental jamais poderão ser postos em prática. Podemos utilizar créditos extraordinários para remediar a tragédia gaúcha, mas não podemos fazer muito mais do que isso porque nossas regras fiscais neutralizam o potencial da política fiscal.
Vamos a alguns exemplos internacionais. A China tem problemas históricos com as cheias de seus rios (em especial, o Rio Amarelo e o Rio Yan-Tsé). Para lidar com essa questão, a China desenvolveu uma fantástica infraestrutura urbanística chamada “cidades-esponja”: as cidades são projetadas para contar com grandes estruturas naturais alagáveis que fazem com que a chuva seja contida por um tempo e, depois, rapidamente absorvida pelo lençol freático sem destruir os imóveis e a infraestrutura urbana. Posteriormente, a chuva acumulada pode ser utilizada nos tempos de seca. Há todo um sistema de parques, praças e áreas verdes que foram projetados especialmente para isso. A China pôde construir cidades-esponja sem grandes dificuldades porque possui uma economia planificada que permite manejar seu orçamento público para atender os objetivos traçados em seus planos quinquenais sem que existam regras fiscais restritivas que limitem o gasto público. Em termos de política fiscal, a China faz o exato oposto do receituário neoliberal.
Mas também podemos trazer exemplos de economias capitalistas. O Japão conta com uma enorme infraestrutura chamada “Canal Subterrâneo de Escoamento da Área Metropolitana”, um sistema de 6,3 quilômetros de túneis e enormes câmaras cilíndricas projetado para evitar inundações na capital japonesa[7]. Nada disso seria possível sem a utilização do poder da política fiscal a serviço da concretização de políticas de adaptação ambiental.
A política fiscal é um grande poder que tem sido demonizado todo santo dia pelos ideólogos do neoliberalismo, que contam com uma poderosíssima caixa de ressonância: a Grande Mídia. O paradigma neoliberal precisa ser quebrado para ontem, e no seu lugar é preciso trabalhar pela construção de um novo consenso econômico apoiado no ativismo fiscal do Estado direcionado para a solução de problemas socioambientais. Algumas medidas paliativas podem ser tomadas apenas com incentivos políticos, mas se quisermos de verdade aplicar as recomendações da Ciência, o Estado precisa entrar na jogada. Afinal, só o Estado pode criar recursos sem necessidade de antes arrecadá-los e, mais do que isso, só o Estado pode direcioná-los para uma economia realmente preocupada com a questão ambiental. Não basta reconstruir o Rio Grande do Sul, é preciso criar sistemas de infraestrutura que impeçam que os eventos climáticos que virão em número e intensidade cada vez maiores produzam os estragos que observamos. É preciso também fortalecer a musculatura dos órgãos de fiscalização ambiental, aumentar as áreas de preservação e reordenar a matriz econômica rumo a um projeto de reindustrialização. Nada disso será possível sem a derrubada do paradigma econômico neoliberal austericida.
Torço e escrevo para que as águas da tragédia gaúcha leve embora o lamaçal chamado “paradigma neoliberal” e represente um ponto de virada sobre a forma adequada de compreender a relação entre o orçamento público e a questão ambiental. Todavia, o mais provável é que o neoliberalismo se aproveite da tragédia para reproduzir sua mecânica de funcionamento. O prefeito de Porto Alegre contratou uma consultoria privada para “gerir a crise”, num ato de reconhecimento de sua própria incapacidade de desempenhar a função para a qual foi eleito. Segundo reportagem da GGN, a empresa de consultoria contratada já “geriu o desastre” em Nova Orleans depois do furacão Katrina. Naquela oportunidade, suas ações incluíram a demissão em massa (7 mil funcionários da educação foram imediatamente dispensados depois do furacão), privatização de serviços públicos e marginalização de comunidades negras e pobres[8]. Pois é, o neoliberalismo não cansa de nos surpreender em sua capacidade de capitalização de tragédias.
O neoliberalismo trabalha forte para despolitizar a economia. Precisamos fazer o movimento inverso. Precisamos colocar a economia política no centro das discussões. A política fiscal é um enorme poder à disposição do Estado; e como tal, precisa urgentemente ser utilizada para resolver problemas socioambientais e concretizar promessas constitucionais até então presentes apenas no papel e nos sonhos. Do contrário, tão certo quanto o raiar do dia seguinte, novas tragédias virão e todos sabemos quem são os que mais sofrem.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP
Gustavo Livio é Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia. Mestrando com pesquisa em Direito e Economia pela UFRJ. Integrante do movimento Transforma MP.
REFERÊNCIAS.
[1] Disponível em: https://energiaeambiente.org.br/oito-dos-dez-municipios-que-mais-emitem-gases-de-efeito-estufa-estao-na-amazonia-20220617. Acesso em 15.05.2024.
[6] Sobre as críticas ao Novo Teto de Gastos, já escrevi em outra oportunidade: https://www.conjur.com.br/2023-abr-26/gustavo-livio-nao-precisamos-teto-gastos2/.
O fenômeno da manipulação de fatos e produção de mentiras se instaurou como a nossa mais importante catástrofe do século XXI.
I – Breve notas sobre a interseccionalidade entre fatos e pensamento
Desde 2016, quando se deu o golpe midiático-empresarial e parlamentar contra a Presidenta Dilma, o Brasil tem vivenciado situações que estremecem cada vez mais as suas instituições, a estabilidade social e elos familiares e de amizade.
Sobre as instituições, nenhuma análise parece caber nos cânones das teorias políticas e jurídicas; quanto à estabilidade social, que em parte dependem das instituições, as esperanças se esvaem, diz-se que mergulhamos num poço sem fundo e, no que tange aos elos familiares, as máscaras, todas, caíram. Tem-se a impressão de que tudo está sofrendo um esgarçamento, um processo de decadência e uma renúncia à decência. Posturas político-partidárias de alguns membros dos poderes do Estado estão profundamente marcadas por ideologias opostas, de sorte que firmar consensos se tornou quase impossível e viver no dissenso algo insuportável. Cresce o sentimento de que os embates são tão necessários quanto imprevisíveis em relação aos efeitos que possam ter, sendo certo que é preciso agir!
Como em qualquer país, o trato da coisa exclusivamente pública, muito se expressa nas relações entre o Executivo e o Legislativo, mas no Brasil isso tem também atraído o Judiciário para a arena política com muito mais freqüência e comprometimento em relação à sua imparcialidade, que não deve ser confundida com neutralidade ideológica.
Inegavelmente, se nota, que há um esforço claudicante do atual governo, na pessoa do Presidente Lula, em recuperar os princípios da República e recompor a partir daí o país. Mas no meio do caminho há Arthur Lira e muitos outros parecidos com ele país afora e em setores estratégicos do projeto de recomposição institucional.
É significativo o número de estudos feitos nessa seara assim como a manifestação pública de pessoas ciosas com o futuro do país, muitas delas fazendo a defesa da institucionalidade, apontando as causas dos problemas, desafiando os discursos carregados de ódio e as atitudes estúpidas que minam a credibilidade do poder do Estado e dificultam, assim, o encontro do Brasil consigo mesmo para o fim de propagar aquilo que efetivamente pode beneficiar a população. Vive-se sob a égide de um insistente e necessário movimento que prestigia o desenho da vida pública brasileira e dos princípios constitucionais que a regem, sob a exigência das ações que deem a devida concretude ao discurso político construtivo. Lamentavelmente, tudo isso tem se mostrado, ainda, insuficiente.
Um dos fatores dessa insuficiência reside, a meu ver, na existência e manejo das redes sociais, as quais ampliaram exponencialmente o trânsito de opiniões entre todos os segmentos sociais, como se todas as pessoas que os compõem estivessem em pé de igualdade, compartilhando dos mesmos valores éticos. As plataformas de comunicação virtual abrem os espaços para diluição de um paradigma ético e nos dão a sensação de que cada um de nós pode sempre ser ouvido e, ao ser ouvido, de fato, escutado a ponto de influenciar a opinião do outro, orientando-o na construção de algo positivo. Ledo engano.
O acesso às redes sociais, permite para alguns de nós, às vezes, uma manifestação catártica aliada às nossas próprias verdades; para outros, uma manifestação apenas performática e, finalmente, para alguns outros, uma manifestação supostamente informativa calcada numa suposta neutralidade do conteúdo daquilo que é considerado informação. No cruzamento entre esses tipos de comunicação/manifestação nas redes sociais, dá-se um imbróglio e a perda de orientação que nos faz evocar o mito de uma Torre de Babel. Todos falam, mas a comunicação é ruidosa pelas diferentes línguas que são faladas, a compreensão entre os falantes, por seu turno, quase impossível. O céu não se torna um espaço de conquista e a terra persiste como inferno.
É proposital aqui fazer o paralelo com o mito bíblico porque não se pode rejeitar a reflexão intrigante de como tantos desses mitos se prestam a ser metáforas do tempo atual.
É intrigante porque esses mitos estão latentes na formação do nosso modo de pensar e nos levam a um recuo longíquo no tempo, que é por demais indesejável. É intrigante porque desprestigia os mais variados documentos produzidos pelo ser humano a partir de uma racionalidade firmada nas experiências da vida cotidiana e emancipadas dos dogmas religiosos. É intrigante porque ao longo da História do cotidiano da vida real, construímos aprendizados que nos permitiram e, ainda, nos permitem escolher caminhos promissores.
Porém, de repente, esse edifício de aprendizados parece ceder, dando lugar a mitos que habitam um mundo imaginário, sendo todos eles muito cruéis para o nosso modo de vida e de pouca valia para projetar o nosso futuro.
Tudo isso, porém, faz parte da linguagem, que é a matéria-prima do processo comunicacional e não há como fugir disso. Assim, no contexto de emergência e consagração das redes sociais, fomentadoras de uma comunicação virtual a linguagem simbólica evocativa dos mitos parece encontrar a sua morada em pleno século XXI. E isso, por conseguinte, nos leva a enfrentar a busca de critérios para distinguir a verdade da mentira.
Nessa perspectiva, convém notar que seja em virtude de uma comunicação catártica, ou de uma performance ou, ainda, de uma atitude informativa supostamente neutra, muito facilmente a gente se vê enclausurado na ideia de que se pode estar, em qualquer circunstância, veiculando uma mentira ou, uma verdade. A comunicação catártica pode ser verdadeira para quem a faz e apenas performática para quem a observa; a comunicação informativa pode ser superficial a ponto de não encarar a verdade ou perceber a mentira que a enreda.
Desse modo, põe-se em dúvida a possibilidade de existência da verdade como pressuposto tanto da boa convivência quanto de um sincero processo comunicacional entre as pessoas e, enquanto a dúvida se forma, poupam-se questionamentos sobre o que é ou que pode ser mentira. Para a desgraça do país, a mentira sai ganhando e destroçando presente e futuro.
O mais impactante de tudo é que a pretexto de se adotar uma comunicação meramente informativa e não opinativa, a manipulação dos fatos gera diferentes graus de mentiras e os fatos vão sendo deixados num plano secundário. Esse fenômeno não é novo mas se intensificou com a criação das redes sociais.
No Brasil, especialmente, com os seus mais de 200 milhões de habitantes e parte significativa deles com acesso às redes sociais, o fenômeno da manipulação de fatos e produção de mentiras se instaurou como a nossa mais importante catástrofe do século XXI. Embora construída virtualmente, a catástrofe da mentira se desdobra de forma palpável em muitas outras catástrofes, ameaçando a nossa sobrevivência física.
A mídia corporativa brasileira associada às oligarquias do país, por exemplo, ambas regidas pela ganância equivalente àquela dos colonizadores – dos quais, aliás, descendem genética ou ideologicamente – sempre funcionou segundo esse padrão, qual seja: o de pôr os fatos em segundo plano para criar a partir deles a “informação” conveniente aos poderosos, algo que, hoje, conceitualmente, se chama de “narrativas”.
A ocorrência desse tipo de comunicação manipuladora, no Brasil, vem atravessando gerações, modelando o pensamento das pessoas e progressivamente alienando-as da realidade. Desse modo, ora entra em concorrência com os espaços de formação de cidadania, como as escolas, ora se sobrepõe a elas, o que era apenas um processo contínuo de produção de mentiras parece ter se convertido num produto pronto e acabado, consumido avidamente.
Por conseguinte, as contradições inerentes a qualquer sociedade, no Brasil, vêm-se aprofundando e, mais especificamente, isso se dá no trato dos assuntos de competência daqueles que representam a parcela mais organizada e institucionalizada da vida política do país. A verdade ou a mentira escorrem entre as brechas do discurso político e na relação entre ele e as ações de governo. Quanto maior a contradição entre esses elementos mais se detona a institucionalidade, banhada no caldo de ignorância que afeta parte da população tomada de ressentimentos ou, quando não, paralisada pelos apelos religiosos de viés fundamentalista freqüentes.
II- As várias faces da tragédia
A tragédia que ora se abate sobre o Rio Grande do Sul é dolorosa por ser realmente uma tragédia e, também, por servir como mais um exemplo de manipulação dos fatos de modo a proteger certas figuras públicas e desprezar o papel de algumas outras. Uma das formas de exercer essa manipulação consiste em atribuir à natureza impiedosa, a chuva intensa e aos rios os efeitos danosos sofridos pela população. É como se chuvas torrenciais, numa topografia alagadiça peculiar e rios caudalosos, isolada ou conjuntamente, protagonizassem uma espécie de dilúvio bíblico. De novo, a evocação bíblica, a narrativa em primeiro plano e os fatos em plano secundário; é como se tudo resultasse da ira divina (embora um Deus irado seja, no mínimo, muito pecador!) para fazer expiar as nossas culpas.
Quanto mais se fala da chuva e dos rios maiores as chances de poupar a responsabilidade dos humanos, mais especificamente, das autoridades em cujas mãos se entregou a administração do território riograndense.
No caso das inundações que tomam quase todo o estado do Rio Grande do Sul, a noção de responsabilidade dos governos estaduais e municipais, nas pessoas dos representantes eleitos para o executivo e para parte do legislativo que os apoia, parece não ter a devida relevância quando se assiste a alguns noticiários e se vê certos perfis nas redes sociais. Também, não parece vir ao caso nessa rede comunicacional: a) o debate sobre a escolha de um modelo econômico ambientalmente devastador orientado pela lógica segundo a qual compartilham-se prejuízos com o Estado para acalentar com lucros o setor privado; b) um modelo urbanístico designado de civilizatório calcado na especulação imobiliária que ignorou deliberadamente as condições originais dos terrenos hoje betumizados. O asfalto agiu como uma espécie de cosmético para edificar negócios e habitações em áreas alagadiças, escondendo as rugas naturalmente formadas sobre a terra para também encobrir as águas que nela se acumulavam.
É bom registrar que este não é um modelo exclusivamente adotado no Rio Grande do Sul. Trata-se de modelo que se espraia Brasil afora: vide o caso de Maceió que vive o afundamento de um dos seus bairros em troca dos negócios que favorecem a Braskem; vide o caso do Recife (nome originado dos arrecifes presente nas suas praias), uma cidade serpenteada por rios e canais que transbordam a cada maré alta ou depois de uma chuva intensa, enquanto exibe uma arquitetura urbana semelhante a uma tábua de pirulitos à beira mar.
Deve-se enfatizar que sobre a responsabilidade do governador e de prefeitos, em especial, no caso de Porto Alegre, nos espaços midiáticos tradicionais, pelo menos, pesa o silêncio (com raras exceções) e sobram flashes no rosto do governante dandy. A corrente de solidariedade que a tragédia despertou no Brasil inteiro é algo bonito de se ver. É comovente! Mas é, no mínimo, revoltante saber que governador ignorou alertas científicos sobre as fortes chuvas, mexeu em quase 500 artigos do Código Ambiental do Estado, desmantelou políticas ambientais, não investiu um centavo nas rubricas de órgãos voltados à defesa civil, procedeu de forma a exigir do governo federal uma ação como se tivesse havido um pedido prévio e uma retumbante negativa de ajuda (algo, aliás, desprovido de justificação normativa plausível sob a ótica da distribuição de competências entre os entes federados) e, por fim, agradeceu a Elon Musk ( dono de uma plataforma digital) sem nada mencionar sobre as ações do governo federal voltadas a mitigar o sofrimento das vítimas das enchentes e, a recuperar a infraestrutura estadual bem como a economia do estado. Como isso não bastasse, o governador divulgou um vídeo com endereço para doações cuja arrecadação cai na conta privada de uma associação ligada ao setor imobiliário. Resta saber quem se beneficiará o valor arrecadado: às vítimas iludidas com modelo imobiliário especulativo ou aos que investiram no negócio de risco?
Enfim, o que se vê, neste caso, não é uma conjunção dos astros. O que se vê são os efeitos da ideologia neoliberal que habita a cabeça dos governantes estilosos que já não conseguem disfarçar a adoção de uma tecnologia genocida, regida pelo negacionismo, a qual, no âmbito administrativo e no plano jurídico, se configura como negligência em um grau tão elevado que faz fronteira com o dolo eventual, segundo a melhor doutrina penal.
Num breve comparativo, a atitude do governo estadual do Rio Grande do Sul segue a cartilha usada durante da pandemia da Covid-19 em 2020-2022 pelo governo federal da época. E a lição que se reproduz é aquela em virtude da qual tudo está encharcado e não é apenas o território do Rio Grande do Sul…tudo está encharcado e não apenas de água. Tudo está encharcado também de sangue tanto no plano físico quanto teórico. As margens do rio não são plácidas, as margens de tolerância do povo também não, sobretudo quando o fluído que escorre nas veias é o sangue humano. Tudo está transbordando e sem diques.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
O uso da palavra tragédia – que fique bem claro – nada tem a ver com a força da natureza como algo imprevisível ou improvável. Onde não há ser humano não existe tragédia. A existência do humano é pressuposto da tragédia na vida e na literatura que se inspira na vida como representação num registro narrativo.
O verde ilumina edifícios e monumentos no Abril Verde. Alerta para os acidentes e doenças do trabalho
Entre as cores de abril — como na canção de Vinícius —, o verde ilumina edifícios e monumentos no Abril Verde. Alerta para os acidentes e doenças do trabalho. O laço verde na lapela identifica a causa do Dia Mundial em Memória das Vítimas de Acidentes de Trabalho, celebrado hoje, 28 de abril.
O Tribunal Superior do Trabalho realizou oficinas com o tema Um mergulho na informalidade, desenvolvendo oportuna campanha com o mote Democracia é inclusão — os impactos na saúde e segurança do trabalho, dando visibilidade a trabalhadores vulneráveis, em que grassa a subnotificação, como trabalhadores rurais, cuidadores, catadores de materiais recicláveis ambulantes.
O Ministério Público do Trabalho, por sua vez, está realizando extensa programação com o slogan Adoecimento também é acidente do trabalho. Conhecer para prevenir. O chamado ressalta que as doenças também são acidentes que afetam o mundo do trabalho. Há duas classificações básicas para as doenças do trabalho: agudas e crônicas. Nas agudas, instantâneas, os agravos têm maior probabilidade de ganhar registros em dados oficiais.
Essa constatação é comprovada no Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (smartlabbr.org/sst), que registra os agravos mais frequentes nos registros oficiais. São eles: em primeiro lugar, corte, laceração, ferida contusa e punctura; em segundo, fratura; em terceiro, contusão e esmagamento (superfície cutânea); em quarto, distensão e torção; e, em quinto, lesão imediata. No geral, entre 2012 e 2022, entre trabalhadores com carteira assinada, o Smartlab registrou 7,6 milhões de acidentes — uma notificação a cada 51 segundos — e 28.523 óbitos, o equivalente a um óbito a cada 3h47.
No caso das doenças crônicas, que se manifestam ao longo do tempo, podem ser fatais e atingir, inclusive, as gerações futuras, a subnotificação é reconhecida oficialmente como uma grave distorção dos bancos de dados. É o caso das contaminações por agentes químicos, que podem produzir desregulação do sistema endócrino, afetando glândulas e órgãos que regulam e controlam várias funções do organismo, além de alterações genéticas, e que são invisibilizadas pelas limitações do sistema de saúde, pela desinformação, pelas deficiências da fiscalização e pela baixa efetividade das estruturas de punição a infratores. Especificamente em relação às intoxicações por agrotóxicos, a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde admitem que a notificação é de apenas uma em cada 50 ocorrências — ou seja, somente 2% das intoxicações são registradas.
Uma questão relevante, na perspectiva da prevenção e da precaução, em sintonia com a preocupação do mundo civilizado com a moderna pauta ambiental, diz respeito aos acidentes ambientais trabalhistas ampliados. Na complexa sociedade contemporânea, proliferam os exemplos de acidentes ambientais ampliados, com danos agudos ou crônicos. O conceito de acidente ambiental de trabalho com o adjetivo ampliado deriva da epidemiologia, que analisa os fenômenos que extrapolam os limites do empreendimento causador.
O tema é lembrado na nova Norma Regulamentadora nº 1 (NR1, de 9/3/2020) ao tratar do Programa de Gerenciamento de Riscos Ocupacionais (PGR), orientando que sejam considerados, na gradação da severidade das lesões ou agravos à saúde, a magnitude da consequência e o número de trabalhadores possivelmente afetados. O tema também consta da Convenção n°174 da OIT, como acidente ampliado (acidente maior), que envolve substâncias perigosas e implica grave perigo, imediato ou retardado, para os trabalhadores, a população ou o meio ambiente.
No meio ambiente do trabalho, urbano ou rural, são vários os exemplos de eventos com esse potencial, como nos casos das pulverizações de agrotóxicos e das chuvas de veneno, em que proliferam estudos indicando casos de aborto e malformações de bebês; contaminações por vazamentos ou explosões na indústria química; adoecimentos e lesões no setor frigorífico, em que operários chegam a realizar 90 movimentos por minuto, em ambiente frio, e sujeitos à incidência simultânea de múltiplos fatores de risco, além do vazamento de amônia; e desastres pelo rompimento de barragens.
São situações que demonstram a relevância de que a dor não seja invisibilizada e que prevaleça a diretiva do desenvolvimento sustentável da ONU, cuja concretização demanda posicionamento firme das instituições e das instâncias legitimadas a preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, reconhecido pela Constituição como essencial à sadia qualidade de vida para as gerações presentes e futuras.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.
A insólita cena de uma mulher conduzindo em cadeira de rodas um cadáver, para que ele, supostamente vivo, tomasse empréstimo bancário, gerou intensa comoção, indignação, revolta. – Que absurdo! – Essa mulher é um monstro, merece cadeia! Esses, e outros brados impublicáveis, foram repetidos em todo canto.
Nas imagens, a mulher, depois identificada como sobrinha daquele idoso, instrui o recém-falecido a assinar o contrato, dizendo como ele deveria segurar a caneta e lançar no papel a assinatura, ao que as funcionárias da agência bancária, percebendo o corpo inerte do falecido, diziam que o idoso não estava bem! Talvez ele, falecido, naquela cena bizarra, sem dor, sem emoção, inerte, estivesse bem…, porque, quando vivo, tio Paulo, nome do idoso levado naquelas circunstâncias à agência bancária, estava em estado de absoluta indignidade[1], algo que tantas vezes vi ao longo de minha carreira como promotor de justiça do Ministério Público do estado de Goiás.
Antes que tio Paulo recebesse as homenagens póstumas, tanto ele quanto a sobrinha já estavam em todas as redes sociais; e mais um espetáculo de horror se iniciava, para deleite geral! A sobrinha foi investigada, processada, julgada e condenada em tempo recorde. A justiça, muito célere, cuidou de decretar-lhe a prisão preventiva[2], mesmo porque, se presa não fosse, certamente seria linchada pela turba ensandecida.
Sob perspectiva penal, a conduta da sobrinha poderia se ajustar à hipótese de tentativa de estelionato, tendo por eventual vítima o banco, já que o crime de vilipêndio a cadáver estaria absorvido pelo crime patrimonial e pessoa morta não pode ser sujeito passivo de crime furto ou de estelionato. Pode-se falar, inclusive – e é o mais adequado –, em crime impossível, dada a absoluta ineficácia do meio (artigo 17 do Código Penal). Logo, improvável a presença dos pressupostos para a decretação de prisão preventiva (vide artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal), e certamente a sobrinha criminosa fará jus a acordo de não persecução penal (art. 28-A, do Código de Processo Penal), isso se não demonstrada a inimputabilidade.
Mas, ainda houvesse em tio Paulo o mínimo sopro de vida, apenas para segurar a caneta e assinar motu proprio o documento que lhe foi apresentado, certamente o empréstimo lhe seria concedido, mesmo que aparentemente tio Paulo não estivesse bem; mesmo que tio Paulo externasse nos olhos quase sem vida um pedido mudo de socorro; mesmo que tio Paulo falecesse poucos instantes depois, ao deixar a agência bancária! Por fim, as funcionárias do banco se sentiriam realizadas, porque, afinal, há meta de produção a bater.
Voltando ao escândalo, ele não se deu porque estava evidente uma situação de violência contra pessoa idosa, embora essa violência estivesse sendo exibida em público durante todo o trajeto até a chegada do recém-falecido à mesa da funcionária da agência bancária. Não foi suficiente à avidez pelo bizarro (pois o bizarro está em cadáver tomar empréstimo) o trânsito tranquilo da sobrinha levando o tio falecido – ou quase – em cadeira de rodas por estacionamentos, corredores de shopping etc., ainda que naquela cadeira estivesse um ser humano completamente vulnerável.
A opacidade dos olhos do cadáver não permitiu que a sociedade se visse nele projetada, e daí o espanto, a repulsa, a ojeriza, e o sentimento atroz de vingança. Ergueram-se então os verdugos, disseminados em rede social, para exclamar a plenos pulmões a crueldade que se comete contra pessoas idosas. Mas, afinal, naquela cadeira de rodas estava uma pessoa idosa? Não. Havia um cadáver, e o cadáver trazia nos “olhos que eram de ver” um espelho quebrado, incapaz de refletir a imagem de uma sociedade que faz da velhice um estorvo; e da pessoa idosa, um fardo.
Platão, na obra A República, retrata um diálogo entre Céfalo e Sócrates. Céfalo, já bastante idoso, concita a Sócrates a visitá-lo sempre, pois a idade não permite a Céfalo ir à cidade. Nesse diálogo, Sócrates diz que para ele é “um prazer conversar com pessoas de idade e bastante avançada. Efetivamente, parece-me que devemos informar-nos junto deles, como de pessoas que foram à nossa frente num caminho que talvez tenhamos de percorrer, sobre as suas características, se é áspero e difícil, ou fácil e transitável. Teria até gosto em te perguntar qual o teu parecer sobre este assunto – uma vez que chegaste já a esse período da vida a que poetas chamam estar “no liminar da velhice” – se é uma parte difícil da vida, ou que declarações tens a fazer”.
Permitir que os olhos da pessoa idosa, como um espelho, nos transmitam a dor, o sofrimento e a angústia do desamparo na quadra final da vida, também nos leva a observar nosso próprio reflexo, de uma sociedade que enxerga no humano apenas mercadoria e que, portanto, só tem valor se for útil ao mercado.
Rubem Alves, com a poesia que lhe é peculiar, nos chamou a atenção para essa forma mesquinha de encarar a velhice: “Chegou o momento da inutilidade, e é isso que você não suporta, pois lhe ensinaram (e você acreditou) que os homens e as mulheres são como as ferramentas, que só valem enquanto forem úteis. Um serrote velho, uma enxada gasta, uma alicate torto, um fósforo riscado, uma lâmpada queimada, não prestam para nada” (Se eu pudesse viver minha vida novamente…).
Vemos e nos vemos, ao mesmo tempo! Ao nos vermos, nos constrangemos, nos calamos, nos envergonhamos, pois sabemos que aquele é nosso destino, e muda-lo exige enfrentamento. Nos acovardamos para, mais tarde, colhermos o amargo do porvir. Tio Paulo, se vivo estivesse, depois de assinado o contrato, voltaria à masmorra em que sobrevivia, mesmo que pouco depois falecesse, e nenhum escândalo haveria, pois para isso o espelho que trazemos nos olhos deve estar quebrado, e só a morte, por enquanto, é capaz disso!
O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Mário Henrique Cardoso Caixeta – Membro do Coletivo Transforma MP desde 2022. Membro do Coletivo Repensando a Guerra às Drogas. Especialista em Direito Processual Civil: O Novo CPC em Perspectiva e as Tutelas Coletivas como Instrumentos de Defesa da Cidadania – Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (2018). Especialista em Criminologia e Política Criminal pela Anhaguera-Uniderp (2015). Mestre em História pela PUC – Goiás na linha de pesquisa Cultura e Poder (2009). Promotor de justiça no Ministério Público do Estado de Goiás desde agosto de 2000. Bacharel em Direito pela UFU – 2000
Quando Bertold Brecht escreveu “Ascensão e queda da cidade de Mahagonny” e Kurt Weill colaborou na composição da ópera, o modelo de sociedade capitalista estava estremecido pela grande crise que derreteu a economia global.[1] A Alemanha estava economicamente falida e mergulhada no caos político. Com a pobreza batendo à porta e as consequências da perda da Primeira Guerra Mundial ainda presentes, o povo alemão abraçou um projeto populista alternativo ao fraco governo democrático. A crise política (os dois partidos de esquerda, SPD e KPD, não formaram alianças) abriu caminho livre aos tentáculos persecutórios do regime de terror do nacional-socialismo, com a “solução final” num horizonte já desenhável. A estreia da ópera em Leipzig no dia 4 de março de 1930 já demonstrava o clima político da época de crise do capitalismo: protestos dos camisas-marrons nazistas do lado de fora e tumulto do lado de dentro do teatro impediu o maestro, no terceiro ato, de ouvir os próprios músicos.[2]
A peça musical narra a história de três malandros (Fatty, Moses e Begbick) que, em fuga e retidos no deserto próximo a uma zona de mineração, decidem então fundar, da noite para o dia, uma cidade-arapuca (Netzestadt): Mahagonny. Os fundadores prometem uma vida de prazeres, sem proibições. A cidade, uma espécie moderna de Sodoma e Gomorra, apresenta-se como um espaço de utopia do prazer e ociosidade, embora, na realidade, representasse mais bem uma armadilha destinada a capturar o dinheiro dos mineiros. A cidade-ouro (Goldstadt), povoada por prostitutas e burgueses insatisfeitos, cresce rapidamente devido a sua boa reputação: tu tens permissão (du darfst) de tudo, de agir como quiser, claro, desde que tenhas dinheiro para consumir. Afinal, com concordam Begbick, Fatty e Moses, dinheiro dá tesão (Geld macht sinnlich). Logo chegam as primeiras prostitutas (Jenny e seis companheiras) em busca de homens que paguem. Fatty e Moses estacam uma bandeira, anunciam a “cidade do ouro” de Mahagonny e que prometem prazer, paz e harmonia, aos trabalhadores de outras grandes cidades. A notícia espalha-se entre os descontentes de todos os continentes. Muitos partem em viagem. A promessa do paraíso de consumo capitalista, retratado na felicidade em troca de dinheiro e mercadorias, animou um grupo de lenhadores enriquecidos por duros anos de trabalho (Jim, Jack, Bill e Joe). Jim Mahoney exige a autorrealização radical de todos. Tu tens permissão (du darfst). Mas logo depois, Jim fica infeliz pelos sinais crescentes de proibição, do álcool barato e da vida aborrecida. Jim faz as malas e decide a deixar a cidade. Indagado porque iria partir, Jim diz ter visto um cartaz escrito “aqui é proibido” (Weil ich eine Tafel sehen musste, darauf stand: „Hier ist verboten“). E indaga a Begbick: “Veja só, tu fizeste cartazes e ali escreveste: isto é proibido; isto não pode. Mas daí não surgiu a felicidade.” (Siehst du, du hast Tafeln gemacht und darauf geschrieben: das ist verboten und dieses darfst du nicht und es entstand kein Glückseligkeit). Portanto, nada é proibido, tudo é permitido: es nichts verboten, du darfst es! Os seus amigos resistem e tentam dissuadi-lo: Mahagonny tem tudo. Mas Jim acha que falta algo (Aber etwas fehlt). Quando o dinheiro dos lenhadores mostra-se insuficiente e os negócios entram em crise, os próprios fundadores também planejam partir. Tudo muda, entretanto, quando um furacão destrutivo aproxima-se da cidade, pois a iminência da catástrofe, que surpreendentemente não acontece, reforça a ideia de Jim de que é preferível quebrar os cartazes e as leis proibicionistas impostas por Begbick. Assim como faria o furacão. Ora, se a morte é sempre iminente, então todas as proibições são inúteis. Assim, “tu tens permissão” (du darfst) retorna como o maior mandamento da cidade. É permitido fazer tudo (Alles darf man dürfen).
Apesar de Jim Mahoney ser inicialmente aclamado pelos demais, a situação dele muda. Para cada dia de prazer em Mahagonny são necessários pelo menos 5 dólares. Jim gasta uma segunda rodada e apercebe-se de que não tem mais dinheiro. Moses exige o pagamento da conta e prende Jim. Ele então é algemado e submetido a julgamento por dívidas. Também outro cidadão, Tobby Higgins, é julgado por assassinato. Este, porém, convence a viúva Begbick e suborna o tribunal. É absolvido. Enquanto isso, sem ajuda dos amigos para pagarem suas dívidas, Jim é imputado por vários delitos. Finalmente, após confessar que não tinha dinheiro e não ceder aos olhares de corrupção de Begbick, Jim Mahoney é condenado a pena de morte por não pagar três garrafas de uísque e executado. O povo aplaude a barbárie. Nas suas últimas palavras, Jim ressalta que a felicidade que comprou não era felicidade e a liberdade à custa de dinheiro não era liberdade (Die Freude, die ich kaufte, war keine Freude und di Freiheit für Geld war keine Freiheit). Mahagonny mergulha no caos. A cidade está em chamas e uns contra os outros. Cortejos de manifestantes levam inscrições repletas de pautas contraditórias.
A história de Mahagonny retrata a desumanidade do terror monetário e consumista da sociedade capitalista. Conforme Adorno, nós vivemos em Mahagonny, onde tudo é permitido, menos uma coisa: não ter dinheiro.[3] Aí está o fundamento da ordem capitalista: todos são tratados como mercadorias que podem ser compradas e vendidas. A anarquia na produção de mercadorias é projetada na anarquia do consumo: não mais “penso, logo existo”, menos ainda “trabalho, logo existo”, mas sim “consumo, logo existo.”[4] Nesse contexto de totalitarismo financeiro, base da ideologia neoliberal, não é de se admirar que os grandes monopólios e as grandes corporações transnacionais tomem o posto historicamente reservado à política, como uma forma de neocolonialismo que suplanta o poder soberano dos estados nacionais.[5]
No que se refere à política penal de Mahagonny, os dois julgamentos mostram o funcionamento do sistema punitivo com espetacularização dos julgamentos, corrupção dos julgadores, desigualdade de tratamento dos acusados e desproporcionalidade entre pena e gravidade da ofensa. Em suma: um direito penal de luta contra os pobres que não é muito diferente da realidade atual.
Assim, punir os pobres não é algo exclusivo de Mahagonny. Os exemplos são muitos. Recentemente, em todos os poderes essa lógica perversa de punição se fortalece.
Em primeiro lugar, punir os pobres está embutido na execução eterna da pena de multa aos pobres. O condicionamento da extinção da punibilidade ao cumprimento da pena de multa acarreta danos à dignidade do preso e à finalidade reintegrativa da pena de prisão. As consequências da decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.032/DF, de Rel. do Ministro Flávio Dino, são contraditórias com as conclusões da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Afinal, marginaliza ainda mais os egressos do sistema carcerário e despreza o objetivo de ressocialização. A conclusão da 3ª Seção do STJ, que se contenta com a autodeclaração de pobreza para extinção da punibilidade, é a única que não ofende o fim de ressocialização de pessoas presas. Isso porque sem essa extinção da pena os presos pobres não conseguem a reabilitação (art. 93 do CP), que facilita a busca por emprego formal, já que confirma a negativa de anotações penais. Ao contrário, a ausência de extinção por falta de pagamento pode forçar o preso ao trabalho precário informal e, em algumas situações, ao retorno às condições delitivas prévias. Portanto, é uma interpretação contraproducente, que se traduz num sobrepunição da pobreza. O contingente da população prisional em laborterapia e escolarizado é ínfimo e, portanto, sem os direitos do art. 25 da LEP, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa sem ingressar no círculo vicioso de desespero.[6] Não por outra razão é que o CNJ editou a Resolução no 425/2021, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e estabeleceu: “Art. 29. Deverá ser observada a vulnerabilidade decorrente da situação de rua no momento de aplicação da pena, evitando-se a aplicação da pena secundária de multa. Parágrafo único. No curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa.” Enfim, a interpretação fria da realidade do sistema carcerário reforça a punição dos pobres e viola o artigo art. 3º, I e III, da CF e a Regra 107 das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela). Se essas normas são inaplicadas, então tudo é permitido na execução penal, menos não ter dinheiro.
Em segundo lugar, punir os pobres está na manutenção da criminalização de posse de drogas para consumo pessoal. Os pobres são os que mais sofrerem com a atual política de drogas e seguiram estocados em masmorras com a eventual aprovação da absurda PEC 45/2023. Mas nas democracias ocidentais, por sorte, o poder legislativo não pode tudo. Ainda que por meio de emenda constitucional, os direitos de liberdade, de autonomia pessoal, de disposição da própria saúde individual e da dignidade humana não podem ser suprimidos ou esvaziados por um legislador conservador de plantão. A manutenção da criminalização não poderá sequer impedir que o poder executivo delimite, por ato administrativo da própria da autoridade sanitária, quais são as substâncias consideradas ilícitas. Tampouco impedirá que sejam definidas as quantidades mínimas de posse de qualquer tipo de drogas, a fim de evitar um limbo na diferenciação entre traficantes e usuários. Na ausência de clareza, inclusive pelo território que habitam, os pobres são definidos pela autoridade policial como traficantes, enquanto os ricos são imunizados como meros consumidores, independentemente da quantidade. Parece claro aqui que há um corte racial e social que gere o funcionamento do aparato punitivo. Outra vez: tudo é permitido no direito penal de drogas, menos não ter dinheiro.
Em terceiro lugar, punir os pobres está na lógica da flexibilidade de buscas pessoais e domiciliares. O STJ, outra vez, avançou muito nesse tema de direitos individuais, fixando critérios objetivos, em benefício direto aos mais vulneráveis, que são os únicos abordados discricionariamente na rua e que possuem seus lares invadidos pela polícia. À polícia, como o poder punitivo de Mahagonny, tudo é permitido; aos pobres, ao contrário, nada é permitido, nem caminhar na rua sem ser humilhado nem ter o descanso do lar livre de suspeitas, principalmente quando não se tem dinheiro.
Em quarto lugar, punir os pobres é o pano de fundo da restrição de saídas temporárias na execução da pena privativa de liberdade. Revogar as saídas temporárias viola os direitos das pessoas presas, de manter ativo contato social, na perspectiva da função ressocializadora da pena. O veto parcial do projeto de lei 2.2253/2022 é insuficiente: reativar o inconstitucional exame criminológico está à direita do processo civilizatório e constitui, na prática, um outro muro de concreto na progressão de regime. Por certo, gerará descontrole dos presídios, violência e aumento da população carcerária, apesar da frontal contradição com a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Como se vê, os pobres encarcerados não possuem sequer os direitos civilizatórios mais elementares de esperança progressiva da liberdade.
Enfim, a genialidade de Brecht desvelou a mecânica crua do capitalismo, em que o dinheiro ainda governa a vida humana na sua totalidade e na qual tudo se reduz ao valor de troca de mercadoria, em todos os âmbitos. Mas não é só isso. A política penal de Mahagonny segue vigente na realidade de carne e osso dos pobres enjaulados do mundo. Nessa lógica, não basta a execução aplaudida na cadeira elétrica de Jim Mahoney. Para essa gente perversa, é preciso mais: querem gozar do sofrimento daqueles que não se adaptam ao poço de dinheiro de Mahagonny contemporânea. A sociedade punitiva da atual era do confinamento converte a prisão em aspirador social e máquina de moer.[7] A prisão, portanto, hoje é “zona de estocagem”, em que as funções reabilitadoras do encarceramento cedem à dimensão primitiva do castigo e da mera neutralização.[8] Nesse contexto, de trabalho desclassificado, a regulação social da pobreza não se dá mais com objetivo de inclusão social, mas sim por meio de mecanismos de controle por repressão penal.[9] O sofrimento e a humilhação voltam a ocupar centralidade na atual onda punitiva do capitalismo. O individualismo, o mundo de puro consumo utópico e o horror aplaudido de Mahagonny ainda tem muito que nos ensinar no horizonte político, social, moral e ético.
Jacson Zilio é Promotor de Justiça do MPPR e integrante do Coletivo Transforma MP.
[1] BRECHT, Bertolt, WEILL, Kurt. Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny. Wien/Leipzig: Universal-Edition A.G., 1929. BRECHT, Bertolt, WEILL, Kurt. Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny. Erste Auflage. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2013.
[2] STUART, Jeffries. Grande hotel abismo: a escola de Frankfurt e seus personagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p.137.
[3] ADORNO, Theodor W. “Mahagonny”. Trad. Jamie Owen Daniel. In: Discourse: Journal for Theoretical Studies in Media and Culture. Vol. 12. Article 5, Wayne State University Press, 2013, p. 5.
[5] ZAFFARONI, Eugênio Raùl. Colonização punitiva e totalitarismo financeiro. A criminologia do ser-aqui. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2021.
[6] REsp 1785383 SP; e 1785861 SP, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021.
[7] ARANTES, Paulo Eduardo. Zona de espera. Uma digressão sobre o tempo morto da onda punitiva contemporânea. In. O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 141.
[8] ARANTES, Paulo Eduardo. Zona de espera, op. cit., p.
[9] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
Coletivo recebe especialista em migrações para debater ascensão do ódio e xenofobia
O Coletivo Transforma MP receberá a Dra. Thais França para discutir a ascensão do ódio e xenofobia em todo o mundo.
A discussão será mediada pelo Promotor de Justiça do Ministério Público do Ceará e integrante do Coletivo Transforma MP, Élder Ximenes Filho, e terá como debatedoras as procuradoras e integrantes do Coletivo, Maria Betânia Silva (MPPE) e Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes (MPT).
Thais França é Investigadora integrada do CIE-Iscte do ISCTE. Sua prática académica é feminista, anti racista e descolonial. Possui doutoramento pela Universidade de Coimbra, onde escreveu sua tese sobre imigração de mulheres brasileiras para Portugal. Trabalha sobretudo com temas ligados à migração, género, raça/racismos, desigualdades sociais e estudos descoloniais. É membro da coordenação da rede IMISCOE (International Migration Research Network) e da Rede ENIS (European Network on International Student Mobility: Connecting Research and Practice). Concluiu em 2024 o projeto “Mapping Out: Portugal on the European anti-immigrant movements map” em parceira com o PRIO da Noruega financiado pelo esquema EEA Grants Portugal. Atualmente coordena o projeto “Inclusion+ Tackling the challenges of Erasmus+ mobility inclusion and diversity at higher education level”.