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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

Carnaval em carne. Viva. A luta entre a purpurina e o sangue

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Fevereiro de 2024. O mundo submergia em purpurina. O bloco Pagu lotava o centro de São Paulo com mais de 140 corpos de mulheres diversos, na luta contra o patriarcado que ainda determina a forma, a cor e o tamanho do corpo ideal, transmutadas nas imortais Gal, Rita, Elis e Elza: a catarse do feminino na rua. O chamado para estar atenta e forte.

                            No bairro de Pinheiros, os carros sumiram para Pierrots, Colombinas, bailarinas, “palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados”, tomarem as ruas de assalto nas dezenas de bloquinhos do prazer, clamando que a “vida tá pouca”, sim, “eu quero é muito mais”.

                            O Ó do Borogodó, bar e patrimônio cultural da cidade, ameaçado pela sanha do setor imobiliário, abriu alas no idílico festival de marcha rancho que todo ano organiza. Anaí Rosa, na composição de Jean Garfunkel, lembrou que “o carnaval é instante, quem gosta de futuro é cartomante” e Fernando Szegeri arrancou a máscara para lembrar que a cidade… “a cidade pede ajuda pra poder envelhecer”.

                            O carnaval é mesmo um chamado para o corpo e o tempo, onde a vida verdadeiramente se dá com seus prazeres e agruras. Ao chamar os corpos, todes, para as ruas e para a festa, não porque a dor não existe, mas exatamente porque ela existe, o carnaval enfrenta e zomba da morte.

                            O historiador Luis Antonio Simas é o que melhor explica a festa da carne: “Num mundo cada vez mais individualista o carnaval assusta porque afronta a decadência da vida em grupo, reaviva laços contrários à diluição comunitária, fortalece pertencimentos e sociabilidades, e cria redes de proteção social nas frestas dos desencantos. A festa é coisa de desocupados? Fale isso para os trabalhadores e trabalhadoras da folia!!! O carnaval é, também, para muita gente tratada como sobra -vivente, alternativa de sobrevivência material, afetiva e espiritual. O Brasil não inventou o carnaval, é certo, mas o povo do Brasil vivenciou de tal forma o carnaval, nas pluralidades de suas manifestações, que foi o inverso: o carnaval inventou um país possível e original às margens do projeto de horror que historicamente nos constituiu.  É perturbador para certo brasil excludente, sisudo, inimigo das diversidades, trancafiado, lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa e rueira, tensa e intensa, como lâmina e flor”.

Em lâmina e flor, a festa da carne tomou conta da rede social e de todo o país. Veveta macetou o apocalipse em Salvador, Antônio Nobrega e sua família brincante ocuparam o sambódromo, e a Salgueiro, no Rio de Janeiro, levou o gigante David Kopenawa para as ruas para falar sobre guerras que se fazem sem flechas, sem tiros, e com palavras: “Eu aprendi português, a língua do opressor, pra te provar que o meu penar também é sua dor. Pra falar de amor enquanto a mata chora.”

                            Falar de amor enquanto se morre não é pouca coisa. Na maioria das vezes, é justamente porque não se fala de amor que se morre. Mas nem tudo foi purpurina. Durante o carnaval de 2024, uma cidade não foi corpo, nem tempo. Não fez festa e não falou de amor. A carne sangrava sem parar e a cidade perto do mar morria, sem poder envelhecer.

                            Em São Vicente, litoral sul do Estado de São Paulo, a purpurina foi proibida. Desde setembro de 2023, quando o Governo do Estado de São Paulo anunciou a Operação Escudo em todo litoral sul, em resposta à morte de um Policial Militar, dezenas de corpos saíram às ruas… para velórios.

                            Dentre esses corpos mortos, em número não divulgado oficialmente, estão, também, alguns corpos de policiais militares.

Como os corpos que sangram nem sempre seguem o tempo dos relógios, mas, sobretudo, o das palavras, escapamos do tempo rumo a 2018, na tentativa de revisitar palavras silenciadas que possam fazer eco na festa interditada.

                            Naquele ano, eu, como Promotora de Justiça de Direitos Humanos, ao lado da Promotora de Justiça Criminal da cidade de Campinas, ouvi dezenas de Policiais Militares que eram encaminhados pela Promotora de Justiça da Infância e Juventude da mesma cidade, após a escuta de 75 jovens envolvidos com infrações penais e que traziam, ao Ministério Público, narrativas de violência policial sofrida durante suas abordagens. 

                           “Ele segurou meu braço e disse que tiraria minha tatuagem com a faca. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Jogou minha cabeça contra a parede até eu desmaiar. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eu não tinha arma e ele atirou. NADA MAIS. Junte-se ao processo. Eletrochoque. Coronhadas. Matagal. Junte-se.  Chamou minha namorada, minha irmã … minha mãe, senhora, ele chamou minha mãe de arrombada”. NADA… MAIS.

                            Ao se debruçar academicamente sobre o trabalho dessas Promotoras de Justiça, a pesquisadora Marina de Oliveira Ribeiro, da UNICAMP, em artigo elaborado para o ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito, nos chamou de “agências dissidentes”, por, segundo ela, nos distanciarmos, com escutas e ações, de um Sistema Judicial marcado pela invisibilização da violência de Estado e permeado por pré-julgamentos morais que tendem a silenciar determinadas vozes.

                            Mas a seletividade moral não se dava apenas em relação a quem falava – meninos pretos e pobres, estigmatizados pelo ato infracional em que estavam envolvidos-, mas também, e sobretudo, pelo que era falado, incluindo, aí, vozes de Policiais Militares. Em dois anos de escutas foi possível perceber que uma violência insidiosa e cruel, de silenciamento e dor, afligia vorazmente os policiais militares escutados, que em desabafos que transbordavam seus corpos fardados, ao se sentirem de alguma forma seguros, sentiam necessidade de falar, ainda que apenas depois que o termo de declarações se encerrava e que a câmera de filmagem do ato processual já estava desligada.

I.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu não consigo me acostumar. Sabe… eu quis ser Policial pra salvar vidas…

                            Silêncio.

                            – Minha mãe…

                            Silêncio.

                            – Eu tive uma mãe muito amorosa… eu não consigo me acostumar… e tudo isso é muito maior que eu… eu não posso contra isso, Dra…

                            II.

– Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – Dra… eu fazia o apoio dos colegas quando a vi saindo algemada… olhei para os braços dela. Ela tinha os braços queimados, respingados de óleo quente, como os da minha avó. Braço de mulher cozinheira e trabalhadora. A droga saiu da nossa viatura. Ela nos xingava demais. Era uma leoa defendendo o filho e gritando que não tínhamos mandado judicial para entrar na casa dela.

                            Silêncio.

                         – Não sei o que a senhora fará com isso porque jamais direi isso formalmente.

                            Silêncio.

– Mas ela era como minha avó…

                            III.

                            – Nada mais. Junte-se aos autos.

                            – A senhora sabe, Dra, o que é sair de casa todo dia, pela manhã, com medo de nunca mais ver o filho e a esposa? Todo dia? Sabe o que é chegar em uma periferia, onde vive sua família, e ser recebido com pedrada?

                            A experiência em palavras que nunca estiveram nos autos, mas foram ouvidas, volta, em memória associativa diante da notícia da interdição do carnaval. Não há qualquer dúvida que, sim, há uma guerra de vida e morte, há tempos, e que não começou com a operação escudo. Mas esta guerra, definitivamente, não é entre bandidos e policiais. Tampouco entre sociedade de bem e facínoras assassinos. Ou, ainda, entre “Promofofos que estão querendo transformar o Ministério Público em ONG” – como se ouve nos bastidores de uma instituição em fuga da autocrítica – e os Promotores de Justiça que frequentam velórios de policiais militares, mas jamais lidaram com a dor da escuta destes mesmos homens depois do NADA MAIS, quando, asfixiados em suas fardas, desesperançados e mortos ainda em vida, eles, de alguma forma, pedem ajuda para não matar e não morrer.

                           A guerra é de palavras. A guerra é por escuta em um mundo farto de semideuses sisudos e cheios de certezas.

Escuta das ruas, das marchinhas de carnaval, dos hinos das escolas de samba, dos meninos negros da periferia e, também, dos policiais. Não é mais possível que Promotoras de Justiça, em escuta genuína, sejam considerados “agências dissidentes” em um sistema judicial marcado por clichês e chavões moralistas.

                             Da carne festa-purpurina à carne sangue, Darcy Ribeiro também traduziu nossa carne.

                            “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”

                   É urgente a consciência da carne de que somos feitos e de que apenas a palavra falada e escutada é capaz de nos salvar de nossa potência destrutiva para nos levar à festa de carnaval, onde explode nossa potência amorosa e bela.

                   No lugar da purpurina há sangue nas ruas das cidades do litoral sul de São Paulo.

É sangue de pretos, pobres e policiais. É sangue.

                   “Pra te provar que o meu penar também é a sua dor”, ecoa o hino da escola.

                   Quem, afinal, está torcendo pela purpurina?              

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

Referências:

  1. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. Darcy Ribeiro. Editora Companhia das Letras
  2. Rancho da Goiabada – João Bosco e Chico Buarque
  3. Bloco do Prazer – Moraes Moreira
  4. https://www.enadir2023.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6Ijc0NzIiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiYjY0MTFkNmM3YWFiNWI2NjQ3NDk1ZjI0MWY0ZmRlYWIiO30%3D Artigo de Marina Ribeiro, UNICAMP.
  5. Hino da Salgueiro de 2024. Hutukara.

Ainda há juízes em Costa Rica

Por Lorena Porto no Empório do Direito

Até a reforma trabalhista de 2017, prevalecia na Justiça do Trabalho o entendimento de que as empresas não poderiam terceirizar as suas atividades principais (Súmula 331 do TST). O Supremo Tribunal Federal (STF), ao contrário, decidiu pela possibilidade de terceirização de todas as atividades empresariais[1], desde que não houvesse fraude à relação de emprego[2].

Todavia, ao julgarem reclamações constitucionais, Ministros do STF, em decisões individuais ou majoritárias da respectiva turma, vêm adotando entendimento oposto àquele firmado pelo Pleno da Suprema Corte com efeito vinculante. Ou seja, vêm admitindo que basta a contratação formal de um trabalhador com uma roupagem diversa (por exemplo, como sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego[3][4]. Isso subverte o princípio da primazia da realidade, segundo o qual, na análise de uma relação de trabalho, deve-se dar maior importância aos fatos do que à forma: a essência se sobrepõe à aparência. Esse princípio basilar rege o Direito do Trabalho no Brasil e nos demais países do mundo.

Nessas decisões -, além de se violar um princípio de “vigência universal”, nas palavras da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[5] -, os Ministros do STF não trazem a necessária fundamentação, pois não externam os motivos pelos quais os acórdãos da Justiça do Trabalho cassados teriam descumprido o entendimento vinculante (Tema 725).

Há, ainda, decisão de Ministro do STF que afasta a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação em que se alega fraude à relação de emprego[6], o que viola norma constitucional expressa[7].

Essas decisões do STF, além de contrariarem a Constituição da República, afrontam tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Nesse cenário, o que se pode fazer? Parafraseando Drummond, “E agora, José?”

Um possível caminho é o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em regra no prazo de seis meses (art. 46 da Convenção Americana).

Pode-se alegar a violação a garantias judiciais e proteção judicial (arts. 8º e 25 da Convenção Americana), em virtude da análise equivocada dos fatos e da ausência de devida motivação. Ademais, na Opinião Consultiva n. OC-27/21, de 05 de maio de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), ao realizar a interpretação autêntica de dispositivos da Convenção Americana, do Protocolo de San Salvador, da Convenção de Belém do Pará, da Carta da OEA e da Declaração Americana, afirmou o princípio da primazia da realidade, cujo descumprimento poderia constar na denúncia[8]:

Parágrafo 209: “Especificamente, os Estados devem adotar medidas que visem: a) o reconhecimento dos trabalhadores e das trabalhadoras na legislação como empregados e empregadas, se na realidade o são, pois assim devem ter acesso aos direitos trabalhistas que lhes correspondem de acordo com a legislação nacional”. (grifos nossos)

Voto concorrente do Juiz L. Patricio Pazmiño Freire: “Devemos lembrar a máxima do direito do trabalho de que a realidade fática prevalece sobre o nomen iuris e que as relações trabalhistas – onde quer que ocorram – devem ser protegidas por esse direito, sempre à luz do princípio in dubio pro operario” (grifos nossos)

Na mesma Opinião Consultiva, a Corte IDH destaca que o acesso à justiça requer uma jurisdição especializada com competência exclusiva em matéria trabalhista (parágrafo 116). O esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho, promovido pela referida decisão do STF, também pode ser objeto de denúncia.

A necessidade de observância dos tratados internacionais e da jurisprudência da Corte Interamericana foi reafirmada em recentes Recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[9] e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[10].

Além dos Estados-membros da OEA, qualquer pessoa, grupo, sindicato ou ONG pode apresentar denúncia à Comissão Interamericana, que a investiga e busca solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo. Cabe aos tribunais constitucionais ou aos tribunais supremos (como o STF no Brasil) a última palavra no âmbito interno quanto à constitucionalidade, mas cabe à Corte Interamericana, sediada em San José (Costa Rica), a última palavra quanto ao controle de convencionalidade da Convenção Americana.

Se no século XVIII, o Moleiro de Sans-Souci pôde afirmar que “Ainda há juízes em Berlim”, para se proteger da injustiça de um monarca absolutista, no século XXI podemos dizer que “Ainda há juízes em Costa Rica”, para reparar decisões do STF que violam as normas internacionais e a jurisprudência interamericana.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Lorena Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

Notas e referências

[1] Tema 725: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (Leading Case: RE 958.252).

[2] Consta na ementa do acórdão do RE 958.252 a necessidade da “INEXISTÊNCIA DE CARÁTER FRAUDULENTO”, o que foi reafirmado no julgamento da ADI n. 5.625: “Estando presentes elementos que sinalizam vínculo empregatício, este deverá ser reconhecido pelo Poder Público, com todas as consequências legais decorrentes, previstas especialmente na Consolidação da Leis do Trabalho.”. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4952236 e em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5094239. Acesso em 29 jan. 2024.

[3] Citam-se, ilustrativamente, as decisões proferidas nas Reclamações n. 53.899/MG, 56.285/SP, 47.843/BA e 53.771/ES. Recentemente, o Procurador-Geral da República (PGR) emitiu parecer no mesmo sentido, contrariamente ao entendimento adotado pelo PGR anterior: https://www.folhape.com.br/economia/pgr-muda-posicao-e-defende-que-nao-ha-vinculo-entre-entregador-e/313465/. Acesso em 29 jan. 2024.

[4] A Reclamação n. 64.018/MG, oriunda de ação trabalhista ajuizada por motorista em face da plataforma digital Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda., foi incluída na pauta de julgamento do Pleno do STF de 08.02.2024: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6800311. Acesso em 29 jan. 2024.

[5] OIT. La relación de trabajo – Conferencia Internacional del Trabajo. 95ª Reunião. Genebra: OIT, 2006. p. 24. No Brasil, extrai-se esse princípio da CLT, notadamente do art. 9º (“Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”) e do art. 442, caput (“Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”).

[6] Pode-se citar a decisão proferida na Reclamação 59795: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6643597. Acesso em 29 jan. 2024. 

[7] “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (…)” (grifos nossos).

[8] CORTE IDH. Opinión Consultiva OC-27/21 de 5 de mayo de 2021 solicitada por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Derechos a la Libertad Sindical, Negociación Colectiva y Huelga, y su relación con otros Derechos, con perspectiva de Género. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_27_esp1.pdf

. Acesso em 29 jan. 2024.

[9] CNJ. Recomendação n. 123, de 7 de janeiro de 2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf. Acesso em 29 jan. 2024.

[10] CNMP. Recomendação n. 96, de 28 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Recomendacoes/Recomendao-n-96—2023.pdf

O STF E O FIM DO TRABALHO ESCRAVO (E DOS ACIDENTES DE TRABALHO) NO BRASIL

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

O julgamento do Supremo Tribunal Federal dos trabalhadores para plataformas digitais trará consequências econômicas profundas que não estão sendo debatidas

Por Rodrigo Carelli**

O Supremo Tribunal Federal está prestes a tomar uma decisão que deve fazer desabar as estatísticas do trabalho em condições análogas a de escravo no Brasil. Viva!

Está marcado para o início de fevereiro, pelo seu plenário, o julgamento da existência (ou não) de vínculo empregatício em caso de trabalhador por plataforma digital (seja lá o que isso queira ou possa dizer). Aparentemente a intenção é a de emitir uma decisão vinculante para que a Justiça do Trabalho não possa mais declarar o vínculo nesses casos. Provavelmente a Suprema Corte não irá parar por aí, determinando também a incompetência da Justiça do Trabalho para conhecimento acerca da existência da condição de empregado quando um contrato civil formal estiver em vigor. Não duvido também de que na decisão haja alguma ameaça a algum juiz que ouse tentar verificar a existência do vínculo para além do contrato formal, como ocorre em qualquer outro país do mundo.

Mas o que isso teria a ver com o fim do trabalho escravo e a redução dos números estatísticos do fenômeno? Ora, podendo contratar um trabalhador como prestador de serviços sem o risco da Justiça do Trabalho reconhecê-lo (e responsabilizá-lo), os empregadores irão em massa adotar esse tipo de contratação. Só dar um nome civil ao contrato (seja ele qual for), falar para o trabalhador assinar um papel, e pronto!, imunidade garantida pela mais alta corte do país. Com isso, os escravocratas terão a oportunidade de contratar seus trabalhadores por meio de contratos civis, conseguindo fugir da constatação da condição de escravizado.

Essa possiblidade não é meramente hipotética. Outro dia eu estava em sessão no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, e me deparei com situação idêntica ao que deve se alastrar no Brasil. Era um caso de trabalhadores encontrados em situação análoga a de escravos em um grande festival de música. Eles dormiam no local de trabalho, em papelões lançados ao chão, e recebiam comida imprópria para o consumo humano. Em sua sustentação oral, o advogado da empresa renovou seus argumentos de defesa: não eram empregados, mas sim prestadores de serviço civis, com contrato assinado e tudo. Eram empreendedores, que, no uso de sua autonomia da vontade, colocavam no mercado sua força de trabalho para comercializar bebidas geladinhas junto aos contentes frequentadores do festival. Clamava pela incompetência da justiça especializada, trazendo em seu auxílio a jurisprudência do STF. Neste caso específico, ainda podendo fazê-lo, a turma do tribunal afastou a preliminar e entrou no mérito da causa, verificando que de fato eram todos empregados e estavam realmente em condição desumana.

Se existisse uma decisão vinculante, os magistrados não teriam outra escolha senão dar razão à empresa, pedir desculpas, pois não se tratava de trabalho escravo contemporâneo, mas sim de empreendedores que gozavam sua liberdade econômica, patrões que ordenavam a si mesmos carregar pesadas mochilas com as bebidas e tinham livremente escolhido dormir no chão e comer alimentação vencida.

Qual empregador, podendo firmar um contrato com menos ônus, tributários ou trabalhistas, vai preferir contratar como empregado seus trabalhadores? Qual empregador, mesmo socialmente responsável e consciente, vai arriscar contratar empregados se seus concorrentes vão ter vantagem concorrencial com menos custos decorrente de contratações sem direitos e ainda eliminar riscos frente ao Poder Judiciário?

É claro que vai haver uma debandada geral do que ideologicamente chamam de regime da CLT (em verdade é o regime constitucional de direitos fundamentais no trabalho previsto no art. 7º e seguintes da Constituição da República).  É a Economia, estúpido!, como diria certo presidente estadunidense. Com isso, não somente veremos a queda no número de trabalhadores em situação análoga à de escravo, mas também teremos um desabamento na quantidade de acidentes de trabalho, olha que maravilha! Alguém sabe o número de trabalhadores contratados por plataformas digitais que se acidentaram ou morreram realizando seu novíssimo empreendimento de entregar comida ou transportar pessoas? Ninguém sabe. Esses dados não existem, as empresas tratam esses trabalhadores (olha eu aqui de novo chamando empresários livres de operários) como clientes, parceiros civis, e acreditam não ter obrigações de registro dessas ocorrências. Esses acidentes, com morte, afastamentos ou sequelas, não são contabilizados como de trabalho, permanecendo incógnitos em nossos hospitais públicos e cemitérios, como também nos seguros e estatísticas de acidente de trânsito.

Haverá a percepção estatística de que temos um país com menos trabalhadores escravizados e com raros acidentes de trabalho. Porém, lá na realidade (que parece importar pouco hoje em dia), estando os empresários (os verdadeiros) livres (olha a verdadeira liberdade aí, gente!) de cumprir com as normas de proteção, inclusive ambientais de segurança e saúde no trabalho, o trabalho escravo só vai aumentar e os acidentes vão acontecer de maneira muito mais frequente, como ocorre silenciosamente com motoristas e entregadores.

Outras estatísticas serão afetadas também: a de empregos formais, resultando inevitavelmente em uma queda na arrecadação previdenciária. A renda do trabalhador também sofrerá declínio gigantesco, pois não será necessário observar-se nem salário-mínimo, quanto mais pisos salariais negociados por sindicato. E, convenhamos, sindicatos para quê no novo desenho do mercado de trabalho? É a Economia, estúpido!, poderia ser novamente trazido aqui. E a renda do trabalhador e a queda de arrecadação afetam toda a Economia.

As consequências econômicas da decisão que será tomada pelo Supremo Tribunal Federal são colossais e estão sendo muito pouco debatidas. Entretanto, como responsabilizar uma Suprema Corte, que não é submetida ao escrutínio popular do voto, sobre um colapso econômico? De qualquer forma, ela haverá de ser chamada pela população, pelos sindicatos, pela mídia e pelos demais poderes a dar conta de sua decisão ideológica, sem respaldo no texto constitucional, que ao pretender mudar de forma radical todo o arranjo principal da sociedade nos levará a uma grave e real crise em pouco tempo. (Mas alguns ainda dirão que pelo menos haverá liberdade…)

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

**Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

Coletivo Transforma MP e entidades repudiam pesquisa do CFM com viés ideológico contra vacina de Covid-19 em crianças

O Coletivo Transforma MP se juntou à entidades brasileiras de saúde, entre elas a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), para apoiar a nota em defesa da saúde e da ciência.

Em nota, as instituições repudiam a atitude do Conselho Federal de Medicina (CFM) ao promover pesquisa de opinião com médicos sobre a eficácia das vacinas contra Covid-19 aplicadas em crianças entre seis meses e cinco anos. 

“A pesquisa parece não ter outro propósito senão o de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina para Covid- 19, fundada em puro negacionismo médico-científico e teorias da conspiração.” 

O documento também destaca que as vacinas desenvolvidas durante a pandemia de Coronavírus foram implementadas no pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) ao calendário vacinal da criança, baseado em decisão da Câmara Técnica Assessora em Imunizações (CTAI) do Ministério da Saúde. 

As entidades evidenciaram que o método de imunização foi estudado e aprovado por profissionais comprometidos e sérios que testaram todas as etapas necessárias de maneira transparente, portanto não cabe ao CFM desestimular a vacinação infantil contra Covid-19, contrariando a ciência e a ética médica. 

Coletivo Transforma MP parabeniza Vera Lúcia por nomeação no TSE

Foto: redes sociais

O Coletivo Transforma MP parabeniza a nova ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo, que foi nomeada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no último sábado (23). O nome de Vera Lúcia foi escolhido por Lula após o Supremo Tribunal Federal (STF) recomendar uma lista tríplice com indicações para o cargo. 

Vera Lúcia deve ocupar o cargo da ministra Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, que finalizará o seu mandato em breve. 

A futura ministra é a segunda mulher negra a compor a Corte, atrás de Edilene Lobo, que foi nomeada pelo presidente em junho deste ano. 

Em setembro o Coletivo Transforma MP emitiu uma nota apoiando a indicação de mulheres negras e progressistas para o STF, e Vera Lúcia foi uma das pessoas sugeridas, pois tem acompanhado seu trabalho e acredita na capacidade transformadora que possui. 

Entendemos que para uma democracia efetiva é necessário que haja representatividade de todos os grupos populacionais, cabendo ao Judiciário, como um dos Poderes da República, a atuação contramajoritária, contribuindo para a redução das desigualdades presentes na sociedade brasileira, como preconiza nossa Constituição.

Parabéns, Vera Lúcia. 

Boas festas?

Por Plínio Gentil no GGN

Em Gaza e seus arredores milhões de pessoas vivem a incerteza do dia seguinte. São habitantes da região – os palestinos -, descendentes dos que há dois mil anos ali foram se estabelecendo. Têm casas, filhos, trabalho e, mesmo em tempo de paz, submetem-se a um verdadeiro apartheid étnico, que lhes impõe incontáveis restrições. Se nunca foram propriamente senhores desse território, que se estende para muito além dali e há tempos é sujeito a domínio estrangeiro, nele viviam em absoluta maioria até 1948. Nesse ano uma resolução da ONU formalizou o que já vinha sendo posto em prática: a ocupação da área por colonos identificados com a tradição judaica, vindos principalmente do leste europeu. Terras eram compradas com financiamento de judeus bilionários e distribuídas aos interessados em ir para a “terra prometida”. A ocupação começava primeiro pela povoação, depois pela implantação de instituições exclusivas, depois por meio de ação militar e paramilitar, como a explosão do Hotel King David, em Jerusalém, que deixou mais de noventa mortos, dirigida por um futuro primeiro-ministro do futuro Estado de Israel.
Para legitimar a ocupação, planejada desde o fim do século XIX, desenvolveu-se uma doutrina política, o sionismo, inicialmente laica, mas que viu na aliança com o judaísmo e suas instâncias religiosas o elemento ideal para um amálgama capaz de unir toda uma etnia. Os judeus, desde o ano 70 DC, se integraram a vários estados e nações mundo afora e sua reunião num único território não era uma demanda expressiva, menos ainda consensual, entre eles. O holocausto nazista contra os judeus, graças ao justo repúdio que causou em todo o mundo, forneceu ao sionismo, sem querer, o ingrediente que faltava para a criação do estado judaico, o que obteve aprovação até mesmo da União Soviética.
Então o sionismo ganhou ares de doutrina libertária e o mundo parece não ter percebido que, aos poucos, ela se materializava num movimento em busca da colonização de um território habitado por outros povos e a implantação de um estado teocrático, já que estabelecido em bases religiosas, destinado a uma etnia específica.
Isto não poderia, é claro, ser obtido pacificamente, mas aí entra o interesse geopolítico das grandes economias ocidentais, pois a região visada era um importante entreposto entre o Ocidente e o Oriente e, mais relevante que isso, numa área próxima a enormes reservas de petróleo. Era preciso manter ali um regime amigo e politicamente alinhado aos interesses das petroleiras ocidentais, daí o apoio político, econômico e militar desde sempre dado ao estado de Israel.
Só que, no ponto a que as coisas chegaram, Israel começa a ser um amigo incômodo. A matança da população palestina, cujos dados hoje apontam para cerca de vinte mil vítimas, a metade crianças e mulheres – civis portanto –, vem provocando protestos significativos em todo o mundo. Essa oposição à violência israelense, embora minimizada pela mídia empresarial, parte muitas vezes da própria comunidade judaica, que faz questão de se dizer não representada pela ação militar contra a Palestina. Enfim, o governo israelense vai ficando isolado e seu principal aliado, do outro lado do Atlântico, por conta desse apoio já não tem certeza de reeleger seu presidente.
O sionismo, que por dezesseis anos foi considerado racismo pela ONU, nada tem a ver com judaísmo, ou semitismo, termo usado para generalizar o conjunto de cultura, história e religião dos judeus. Mas a equiparação enganosa dos dois conceitos é conveniente ao sionismo e a triste ironia do destino é que ninguém como ele está fazendo tanto pelo anti-semitismo, o que é uma consequência previsível da onda mundial de condenação à violência militar israelense e da crescente perda de apoio político de Israel.
É hora de governos, movimentos, partidos, intelectuais, artistas, a academia, associações, sindicatos, coletivos e todas as pessoas de boa vontade, humanistas e amantes da paz, de quaisquer matizes ideológicos, dizerem um basta – não apenas retórico – ao que se converteu num genocídio, transmitido em tempo real e que, por isso mesmo, não pode ser ignorado por ninguém. É cínico falar em boas festas enquanto as coisas continuarem assim.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Plínio Gentil é Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.

O STF coloca o Brasil na contramão do mundo civilizado em trabalho por aplicativos

Aqui temos um ponto (entre vários) que o STF não entendeu:  as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma.

Por Rodrigo Carelli no GGN

Duas notícias em sentido opostos vieram à tona quase simultaneamente. De um lado, o Supremo Tribunal Federal – STF, pela sua primeira turma, entendeu inexistente vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas que se utilizam de plataformas digitais para realização de seu negócio, encaminhando a questão para o plenário para julgar a questão de forma definitiva e ainda determinando que seja oficiado o Conselho Nacional de Justiça para que juízes do trabalho que julgam de forma diferente sejam punidos. De outro, o Conselho e o Parlamento Europeus chegaram a um acordo inicial para a melhoria das condições dos trabalhadores em plataformas por meio de uma diretiva, que criará critério para determinar a existência da relação de emprego. Não poderia haver um contraste maior: uma corte suprema retirando todos os direitos dos trabalhadores, inclusive fundamentais relativos ao trabalho e legisladores reconhecendo a existência de direitos trabalhistas e da relação de emprego.

O Conselho Europeu foi bem claro na comunicação que fez ao público: “atualmente, a maioria dos 28 milhões de trabalhadores em plataforma na União Europeia, incluindo motoristas, trabalhadores domésticos e entregadores de comida, são formalmente autônomos. Não obstante, um número deles tem que obedecer às mesmas regras e restrições de um empregado. Isso indica que existe de fato uma relação de emprego e deveriam desfrutar dos direitos trabalhistas concedidos aos trabalhadores assalariados ao abrigo do direito nacional e da União Europeia” (grifos no original, nossa tradução). Como afirma o comunicado, a diretiva “dá resposta a esses casos de classificação incorreta e facilita a reclassificação desses trabalhadores como empregados”.

Para isso, a futura diretiva utilizou a técnica de feixe de indícios, especificando alguns já utilizados para reconhecimento de relação de emprego no direito do trabalho europeu, prevendo que será considerado empregado se houver pelo menos dois de cinco indicadores na relação com a empresa: 1) limites máximos de montante que um trabalhador pode receber; 2) supervisão da execução do trabalho, inclusive por meios eletrônicos; 3) controle da distribuição ou atribuição de tarefas; 4) controle das condições de trabalho e restrições à escolha do horário de trabalho; e 5) restrições à liberdade para organizarem o seu trabalho e regras relativas à sua aparência ou conduta. Podem ainda os Estados-Membros acrescentar outros indicadores. Nos casos em que haja pelo menos dois indícios, há uma presunção da existência do vínculo empregatício, cabendo às empresas o ônus de comprovar em juízo que não existe relação de emprego. A diretiva também avança em relação à utilização dos algoritmos, mas isso é algo tão avançado para o nível da discussão no Brasil, que é bastante rasa, que deixaremos de lado esse importante ponto para analisarmos com mais calma os indicadores trazidos pela nova diretiva.

Percebe-se que o primeiro indicador da existência da relação é ligado à própria noção de trabalho autônomo: a precificação do trabalho deve ser realizada pelo trabalhador, e não pela empresa. A possibilidade de indicar o preço do seu trabalho é central para a caracterização do trabalho por conta própria, pois não há independência se o quanto você ganha é determinado por outra pessoa. Se uma empresa coloca um teto remuneratório para o seu trabalho, este não é de forma alguma autônomo.

O segundo indicador é a verificação da existência da subordinação, inclusive aquela realizada por meio de algoritmos, o que inclusive já tem previsão expressa na Consolidação das Leis do Trabalho (art. 6º, parágrafo único).

Os terceiro e quarto indicadores também preveem formas de controle que são considerados compatíveis com uma situação de relação de emprego, por meio de atos que demonstram a participação do trabalhador em atividade econômica alheia.

O quinto indicador é relativo a uma das facetas do poder empregatício, que é o poder organizativo da atividade econômica. Se há o poder de organizar a atividade econômica, inclusive em relação à aparência ou condutas dos trabalhadores, esses não são, de forma nenhuma, autônomos.

Alguém que conhece a práticas das empresas que se utilizam de plataforma digital para realização do próprio negócio, seja ele o transporte de pessoas ou de mercadorias, poderia afirmar que todos os indicadores são encontrados de maneira límpida. Entretanto, há sim empresas que por meio de suas plataformas digitais na qual não serão encontrados todos esses indicadores, como plataformas digitais que não se imiscuem na gestão do serviço prestado pelo trabalhador, nem no preço do trabalho, como por exemplo a GetNinjas.

Aqui temos um ponto (entre vários, é verdade) que o STF não consegue entender: as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. Não são iguais nem mesmo aquelas que atuam no mesmo ramo de negócio.

A decisão do STF citada no começo do artigo tem equívocos de várias dimensões ou camadas. Um pequeno trecho da sessão de julgamento, na fala do relator Ministro Alexandre de Moraes, pode demonstrar uma dessas dimensões de equívoco: “Aquele que dirige um veículo, aquele que faz parte da Cabify, da Uber, do Ifood, ele tem a liberdade de aceitar as corridas que ele quer”. No entanto, a afirmação genérica é falsa. As empresas não funcionam da mesma forma, não têm o mesmo algoritmo e não têm a mesma política. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. As empresas não atuam de forma igual nem mesmo aquelas no mesmo ramo de negócio. E ainda dentro da mesma empresa há modelos diferentes.

Tomemos o exemplo da iFood. A iFood tem duas formas de atuar: uma com os chamados de entregadores “nuvem”, que atuam diretamente na plataforma, controlados pelo algoritmo e GPS, com preços prefixados pela empresa, tarefas distribuídas pela plataforma, e prejuízo na classificação ao negar entregas; outra forma é o “OL”, de Operador Logístico, modelo no qual a iFood terceiriza a gestão dos trabalhadores para uma empresa, que os arregimenta, os “administra” em horários fixos em que não se pode negar chamados.

Já a Rappi atua com trabalhadores empregados na categoria “personal shopper”, que é o comprador nos supermercados, e por entregadores contratados via plataforma digital. Em tese, os entregadores podem negar chamados, no entanto, passam a não receber trabalhos, que são garantidos somente aos que se comprometerem a cumprir turnos fixos e que ativem o botão “autoaceitar”. Além disso, a empresa realiza exigência de produtividade em relação a aceitações, conclusão, avaliação do cliente, número de reservas de horários e trabalho em períodos de alta demanda que para que o trabalhador seja classificado na empresa, que tem várias categorias, que definem quem receberá mais e melhores trabalhos.

A Uber, por sua vez, entrou inclusive com ação judicial em face de desenvolvedora de aplicativo que orientava os motoristas a escolherem as melhores corridas, impedindo a sua utilização. Além disso, a não aceitação influencia na nota final dos trabalhadores.

Todas essas empresas precificam o trabalho, realizam supervisão eletrônica, fazem distribuição e atribuição de tarefas, controlam as condições de trabalho e restrigem a organização dos trabalhadores.

Assim, as decisões partem de uma premissa equivocada, muito distante da realidade. A distância quilométrica da realidade se dá por um motivo muito simples: não cabe ao Supremo Tribunal Federal analisar fatos. O STF, pela Constituição, somente pode fazer análise de constitucionalidade das decisões judiciais, não cabendo delimitar quadro fático. Não tem competência para isso, ainda mais na via estreitíssima da Reclamação Constitucional.

E nisso difere profundamente nossa corte suprema de algumas europeias que já julgaram a questão, como por exemplo a Corte de Cassação na França, a Suprema Corte do Reino Unido e o Tribunal Supremo na Espanha, que são instâncias revisionais e julgaram com base nos fatos de cada ação que chegou a eles. E difere mais ainda no procedimento: julgaram nos limites subjetivos e objetivos de cada lide que chegou, não pretendendo dar nenhum efeito vinculante a essas decisões.

A Suprema Corte brasileira está prestes a determinar a inexistência de vínculo empregatício em razão da pessoa (empresas que se autoproclamam plataformas digitais), de maneira abstrata, com base em pressupostos que se mostram longe da realidade, com decisão vinculante, e ainda pretende punir os juízes do trabalho que julguem conforme determina a Constituição analisando os fatos a partir da causa de pedir. Cada uma dessas particularidades jamais foi vista em todo o mundo, quem dirá todas elas conjuntamente, o que mostra o absurdo que estamos vivenciando. É uma jabuticaba transgênica gigante com agrotóxicos.

No mundo inteiro, e a diretiva europeia renova e reforça esse aspecto, a relação de emprego é verificada a partir de um quadro fático. A relação de emprego surge na realidade e o contrato é dela derivado, e não o contrário.

Assim, estamos em uma situação em que o Brasil, por sua Suprema Corte, pretende fechar a porta de acesso aos direitos fundamentais da Constituição, julgando com base em discursos retóricos das próprias empresas e pretendendo julgar a inexistência de uma relação de emprego de forma absoluta e, possivelmente impossibilitando o legislador de dizer o contrário, pois supostamente o STF está interpretando a Constituição. Enquanto isso, na Europa, as instituições estão, ao contrário, preocupadas com a fraude à relação de emprego realizada por essas mesmas empresas e deixando mais claro ainda os pressupostos para que seja reconhecida. O Supremo Tribunal Federal está levando o Brasil para a contramão do mundo civilizado. Isso talvez diga muito não somente sobre nossa corte suprema, mas também sobre o próprio Brasil.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

CNMP homenageia membros do MP, entre eles integrantes do Coletivo Transforma MP

11/12/2023 Entrega de certificados de boas práticas resolutivas do CNMP, no auditório do MPDFT. FOTO ED FERREIRA/MPDFT.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) homenageou nesta segunda-feira (11) os membros do Ministério Público brasileiro que colaboraram para construir uma entidade mais resolutiva. Entre os oito homenageados, três são membros do Coletivo Transforma MP, Lenna Nunes Daher, Ludmila Reis Brito Lopes e Marcelo Pedroso Goulart.  

É uma honra para o Coletivo Transforma MP ter integrantes Promotores e Procuradores de Justiça que desempenham um trabalho humano e resolutivo ao exercer suas funções buscando de fato concretizar a Constituição Federal e assim alcançar a transformação social visando uma sociedade mais livre, justa e solidária.