Notícias : Artigos

Artigos

Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

ASSISTÊNCIA SOCIAL: por que o Ministério Público deve atuar no fortalecimento do SUAS?

Por Mônica Louise de Azevedo no Empório do Direito

A Constituição Federal de 1988 prevê a assistência social como política pública de proteção social não contributiva, preventiva, protetiva e proativa no enfrentamento das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social, integrante do Sistema de Seguridade Social, num tripé como a saúde e a previdência social. Isso significa que a proteção social incide não apenas nas situações de pobreza, nas fragilidades de famílias, grupos ou indivíduos em territórios determinados ou em momentos de grande comoção social, catástrofes e pandemias. O propósito dessa política pública é garantir a vida digna, prevenir a incidência de riscos, reduzir danos e o agravamento de vulnerabilidades que se avolumam na atual quadra da história da humanidade e de nosso país.

A assistência social deve estar  presente no cotidiano da população para assegurar a dignidade para todas as pessoas que necessitarem de auxílio e orientação, mediante oferta de programas e serviços às crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, vítimas de violência ou discriminação, pessoas em situação de rua ou excluídas do mundo do trabalho, entre outros, além de benefícios para aqueles que não tem condições de sobrevivência com autonomia.

Nesse amplo contexto, o desafio para o Ministério Público brasileiro, cujo papel fiscalizatório está expressamente previsto pelo artigo 31 da Lei da 8.342/93 (LOAS), é a compreensão dessa política pública de grande complexidade, com dimensões intersetoriais e multidisciplinares que precisam ser reconhecidas a partir das peculiaridades de cada realidade social. Para tanto, é necessário superar a atuação fragmentada, pontual e desarticulada da instituição nos diversos segmentos já identificados, bem como a superação da lógica assistencialista e clientelista que ainda prevalece na prática cotidiana dos serviços e programas na área social, ausência de planejamento, distorções do financiamento e desvio de recursos públicos de suas finalidades de proteção social.

É fundamental, portanto, a atuação do Ministério Público no fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, mediante o fomento e o monitoramento da política de assistência social em cada município, região e estado, dando concretude à sua missão constitucional de promover a Justiça e reduzir as desigualdades, contribuindo dessa forma na construção de uma sociedade gradativamente mais justa e solidária.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Mônica Louise de Azevedo é Procuradora de Justiça, Coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça na área da Assistência Social – MPPR e membra fundadora do Transforma MP

Perdemos Mais Esta Medalha

Por Élder Ximenes Filho no GGN

Concurso Público e políticas afirmativas. Cotas para pessoas Trans. É sobre isto.

Com muita honra, o Coletivo por Um Ministério Público Transformador, o TRANSFORMA MP apoiou perante o Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) a bandeira da inclusão1. Remetemos nossos argumentos jurídicos e reiteramos os fatos da vida que o Direito tenta regular. Na sessão do dia 09 de agosto saiu a decisão: o sistema de cotas (pessoas negras, indígenas ou com deficiência) foi ligeiramente aperfeiçoado, pois passou a ser aplicado nas demais fases do concurso e não apenas na primeira. Foi uma boa mudança, inclusive semelhante ao que o TRANSFORMA MP defende em suas Propostas de Reforma do Sistema de Justiça2 – mas poderia ser melhor… e não era difícil!

Dentro do próprio Ministério Público Federal, na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), surgiu a idéia de ampliação dessa política inclusiva. Um Grupo de Trabalho sobre Direitos LGBTQIA+ apresentou a proposta de inclusão de pessoas trans como cotistas – nisto sendo apoiado pelo TRANSFORMA MP, em memoriais e num pedido de sustentação oral. Como é normal, referimos os normativos legais e princípios da constituição e de tratados, além da jurisprudência firmada no Supremo: pela Ação Declaratória de Constitucionalidade 41/DF (política de cotas)3 e pelo Mandado de Injunção 4733 (combate à transfobia)4. Desde então, não há dúvidas quaisquer sobre também serem as pessoas Trans parte um grupo minorizado que reclama políticas afirmativas.

Infelizmente não foi autorizada a última sustentação oral – que agora transformamos neste artigo, para fins didáticos e em respeito a todos os movimentos pela inclusão. Queríamos acrescentar ali, como documento novo, a mais recente norma: a Resolução 222 do Conselho Superior da Defensoria Pública da União, de 1º de agosto último, que pioneiramente, neste momento que se fez histórico, assegurou 2% das vagas em seus concursos a pessoas Trans e Travestis. Parabéns fraternos à DPU, pelo corajoso exemplo de cidadania.

Mas os vários ramos do MP também já foram referências neste protagonismo. Vejam estes dois manuais presenteados às(aos) colegas e à sociedade como orientações jurídico-éticas e que estão à disposição nas páginas oficiais da internet – confiram e divulguem:

  • o 1º é o Módulo LGBTQIA+ do Curso de Acolhimento do Ministério Público do Trabalho5
  • o 2º é o Guia Ministério Público e os Direitos LGBTQIA+ do mesmo Ministério Público Federal, por meio da mesma PFDC, em parceria com o Ministério Público do Estado do Ceará6

Assim se completaria o arcabouço jurídico posto ao exame das(os) Excelentíssimas(os) Conselheiras(os) do MPF, que certamente possuem imenso conhecimento jurídico. E poderíamos até encerrar por aqui e apenas lamentar que não tenham decidido desta forma.  

Mas eis a função didática deste artigo: há jovens advogados lendo esta matéria, tanto quanto militantes dos Direitos Humanos e pessoas simplesmente curiosas sobre a temática ou sobre como o Sistema de Justiça funciona. Para quê serve, depois de tanta papelada, a(o) Advogada(o) ou Promotor(a) ir ali na frente falar por dez minutinhos? Será que ajuda mesmo?

Vai uma dica: a função da sustentação oral não é ensinar “ao padre o Pai-nosso”, mas clamar atenção para os elementos fáticos e pré-jurídicos que embasam a formação sistêmica e conflituosa do que chamamos Direito. Os fatos da vida, seus sustos e esperanças… E o principal pecado da sustentação é o tédio das repetições. Quem fala não pode dar sono em quem ouve! Que deus nos livre!

Mas qual deus melhor ajudaria? Seria Hipnos, o deus olímpico do sono, agora ajudando a falar do assunto mais excitante do momento: AS OLIMPÍADAS – realização do sonho da harmonia entre os povos.

Porém, sendo real obra humana, nas Olimpíadas temos pesadelos atuais e antigos:

UM PESADELO ATUAL:

– Na semana anterior a boxeadora argelina Imane Khelif, acusada injustamente de ser “um homem disfarçado” foi vítima de cancelamento nas redes sociais, com ameças de morte e discurso de ódio, inclusive por certo parlamentar brasileiro; não por acaso, além de ser negra e representante dum país perifério e muçulmano, cometeu o pecado mortal de destacar-se sobre os corpos ditos “normais”.

ALGUNS PESADELOS ANTIGOS:

– A partir dos anos 1940 (e até o final dos 1960), passaram a exigir prévio atestado médico de “feminilidade” ou exame ginecológico ou visual com as atletas nuas; depois estes vexames foram abolidos e adotou-se o exame de DNA e atualmente, a dosagem de testosterona – ao menos aqui se evoluiu, mas também não foi o bastante.

– Nos anos 1980 a espanhola Maria José Martinez-Patiño, que era uma mulher intersexo (com simples diferença cromossômica) teve títulos revogados, a vida pessoal devassada, exames médicos “vazados” à imprensa, perdeu patrocínios e, após quatro anos, demonstrou que sua condição não alterava a performance atlética – mas era tarde demais para retomar às grandes competições.

– em 2001 a nadadora indiana Pratima Gaonkar suicidou-se após o “cancelamento” social em seu país (nem precisou de redes sociais), depois de falhar no exame de feminilidade.

Ora, mas não é preciso evitar fraudes? Pois bem: NUNCA encontrou-se um travesti trapaceando numa Olimpíada e, por outro lado, NUNCA se questionou o corpo masculino como “destoante do normal” – nem mesmo as vantagens genéticas aberrantes da acromegalia de Michael Phelps ou de jogadores de basquete com mais de 2,20m.  de altura. Para os homens cis, isto é apenas uma vantagem natural.

O PESADELO ORIGINAL:

– As velocistas Helen Stefens (estadunidense) e Stanislawa Walasiewicz (polonesa e judia), nos jogos de 1936, sendo favoritas, foram achincalhadas na imprensa internacional como “homens disfarçados” ou seja, “travestis”. Acabaram submetidas ao vexatório exame genital – mas levaram o ouro e a prata! E quem assistia àquela Olimpíada? Adolf Hitler – o mesmo que se retirou para não ver o negro Jesse Owens receber quatro medalhas.

Ora, três anos depois, que grupos foram especialmente perseguidos na II Guerra além dos Comunistas e Judeus? Homossexuais, trans e deficientes. Pessoas minorizadas cujos corpos fora do “padrão ariano” foram reunidos nos fornos crematórios tanto quanto hoje se reúnem nos cárceres e nas favelas.

A “normalidade” é exigida dos corpos femininos, sejam cis ou trans; ou seja, de quem se identifica como mulher a vida inteira – e principalmente, o sucesso destes corpos é sempre questionado.

Se isto ocorreu e ainda ocorre sob os justos holofotes olímpicos e na França, com as mulheres que são 51% da população – imaginem as pessoas TRANS, menos de 2% da população neste Brasil que é “medalhista de sangue” em homicídios destes corpos.

E onde nosso país desce mais neste pódio medonho? Nas periferias, à noite, no exercício da prostituição a que são relegados estes corpos considerados “anormais”, por isso alijados das oportunidades de emprego e invisibilizados para além dos noticiários policiais.

Falando de trabalho, lembremos de que as competições são apenas a parte pública do trabalho dos atletas. Isto demonstra mais uma vez que todas as ações afirmativas, todas as pessoas minorizadas e todas as lutas por inclusão encontram-se no MUNDO DO TRABALHO – que permite mais do que sustento, mas a possibilidade de afirmação pessoal perante o mundo e de transformação do mundo por quem trabalha!

E não há trabalho mais dignificante do que garantir a dignidade do próximo: resumo de nossa missão no Ministério Público brasileiro. Que um dia possamos reunir aqui, em nossos quadros, todos os corpos e todas as lutas!

É em nome de TODOS os grupos minorizados, povos tradicionais e originários, mulheres, pessoas negras ou com deficiência – que o TRANSFORMA MP apóia a evolução das políticas afirmativas e especificamente continua clamando pelas cotas para pessoas TRANS nos concursos públicos em geral e do Ministério Público em especial.

Segue o jogo. Não joguem fora a medalha da inclusão!

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Élder Ximenes Filho é Membro do TRANSFORMA MP, Mestre em Direito Constitucional e Promotor de Justiça

Notas ——————————————–

1. Trata-se do Procedimento PGEA nº 1.00.001.000162/2023-87, que fez a atualização Resolução CSMPF nº 219, de 26.8.2022, regulamentando os concursos do MPF.

2. Confira aqui: https://transformamp.com/propostas-para-o-sistema-de-justica/

3. Também: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346140

4. Idem:https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512663&ori=1

5. https://midia-ext.mpt.mp.br/coordigualdade/projetos/empregabilidade/CartilhaLGBTIQ+-EAD.pdf

6. https://mpce.mp.br/wp-content/uploads/2023/06/Guia-LGBTQIA_3edicao-_FINAL_PDF-4X_.pdf

COMUNICADO À IMPRENSA E À SOCIEDADE -Procurador de Justiça é Vítima de possível episódio de Racismo Institucional no TJSP

TJ-SP

O Coletivo Transforma MP repudia a violência policial e institucional que o Procurador e associado do TRANSFORMA MP Dr. Eduardo Dias (MPSP) , sofreu no dia 30 de julho, por volta das 13h30min. Dias teria sido vítima de racismo dentro do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e está encontrando dificuldades dentro do Ministério Público paulista para conseguir apoio institucional. 

O episódio lamentável ocorreu quando o Procurador acessou a porta lateral de uso exclusivo de membros do Ministério Público e magistrados. Neste espaço, tradicionalmente há a dispensa  das autoridades da inspeção com detector de metais. 

Após identificar-se com suas credenciais oficiais, chegando ao elevador, o Procurador foi abordado por um policial militar à paisana, que o questionou de maneira rude, obrigando-o a passar pelo procedimento de detecção de metais. Ele era o único negro no local e foi o único abordado. 

O ocorrido foi registrado pelas câmeras de segurança do estabelecimento, mas o TJSP, apesar de provocado, ainda não disponibilizou as imagens das câmeras de segurança e também não emitiu esclarecimentos oficiais.

O Coletivo Transforma MP se solidariza com o colega Eduardo Dias e defende que as instituições respeitem todos os cidadãos, independentemente de cor, raça, sexo ou classe social. Que isto não ocorra nos palácios da justiça nem nas ruas das periferias. Que o Tribunal de Justiça de São Paulo acate com urgência o pedido de fornecimento das imagens e reconheça a atuação abusiva. Quanto ao MPSP, também provocado formalmente, esperamos que tome as providências necessárias não apenas em defesa de um de seus membros – mas principalmente para garantir o combate efetivo ao racismo institucional. 

Os Órgãos do Estado devem fiscalizar a atuação de todos os seus integrantes, conforme os princípios constitucionais, tanto praticando o constante letramento racial como reconhecendo publicamente as violações e assumindo-lhes o justo ônus. 

O TRANSFORMA MP acompanha os desdobramentos e conta com a atenção da imprensa, das entidades e dos militantes dos movimentos sociais comprometidos com a construção duma sociedade livre, justa e solidária.

Tubarões, cocaína e agrotóxicos

Arquivo EBC

Por Leomar Daroncho no GGN

“Parece que o homem branco não sente o ar que respira.” – Chefe Seattle

Publicação da revista Science of The Total Environment destaca estudo que detectou cocaína em 13 tubarões analisados na costa do Rio de Janeiro. Teria sido constatada maior concentração de cocaína no fígado e músculos de fêmeas.

Os resultados indicam concentração muito superior ao de estudos anteriores, com outras espécies marinhas. Os tubarões, carnívoros, provavelmente foram contaminados alimentando-se de crustáceos e peixes que ingeriram a droga no litoral carioca. A descoberta tem como explicação possível a alta quantidade de tóxicos consumida e descartada pelo esgoto.

Confirmando-se a hipótese, seria um dano marginal, ignorado pelos consumidores de entorpecentes, em que os animais marinhos funcionam como marcadores da qualidade ambiental. Os pesquisadores alertaram para a necessidade de estudos específicos sobre os efeitos do consumo de peixes contaminados em relação ao ser humano.

A pitoresca notícia instiga um manancial de gracejos, dando vazão à rica criatividade dos humoristas.

Para efeitos do meio ambiente, o achado remete à concepção de que não existe descarte na natureza. Não existe a separação dentro e fora. Somos parte do todo. Degradamos o ambiente e sofremos as consequências, ignorando antigas lições.

Em 1854, o Chefe Seattle cravou: “O que ocorrer com a terra, recairá sobre os filhos da terra. Há uma ligação em tudo”. Em 2015, o Papa Francisco assinalou a preocupação com a ação humana sobre o clima da Terra, afirmando que “tudo está conectado” (Carta Encíclica, Laudato Si’). Em 1962, Rachel Carson, cientista que elaborou a ideia holística de meio ambiente para o grande público, registrou os efeitos de pesticidas (DDT) sobre os seres vivos: “O Homem é parte da natureza e a sua guerra contra a natureza é, inevitavelmente, uma guerra contra si mesmo” (“Primavera Silenciosa”).

São conhecidos e estudados os danos ao meio ambiente e as doenças, agudas e crônicas, de trabalhadores, comunidades e consumidores, decorrentes da exposição aos agrotóxicos usados na produção de commodities agrícolas de exportação, que avança sobre as áreas de preservação e substitui a produção de alimentos. A contaminação da água, do solo e de outros marcadores ambientais (abelhas, bicho-da-seda e onças), não é acidental, uma vez que o Brasil segue facilitando o uso de produtos banidos de países civilizados, justamente em razão da comprovada ação tóxica.

O caso dos resíduos químicos em tubarões que vivem na costa propicia oportuna reflexão sobre as consequências da irresponsabilidade ambiental, justamente quando o Supremo Tribunal Federal, deve decidir sobre as isenções fiscais conferidas às substâncias tóxicas de uso agrícola – Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553/DF.

O complexo debate jurídico-constitucional dá-se a partir dos direitos fundamentais ao meio ambiente equilibrado, da saúde e do princípio constitucional da seletividade tributária, questionando a legitimidade da desoneração fiscal que facilita e induz ao uso de agrotóxicos.

A Procuradoria-Geral da República defendeu o fim da isenção de tributos, avaliando que os dispositivos que reduzem a base de cálculo do ICMS e concedem isenção de IPI não são compatíveis com a Constituição. Na mesma linha, manifestaram-se defensores da saúde, meio ambiente, consumidor e alimentação adequada.

A extrafiscalidade e o princípio da seletividade, no caso, impõem a atuação positiva do Estado brasileiro revendo os benefícios concedidos a produtos tóxicos. O Ministro Relato da ADI, Edson Fachin, posicionou-se nesse sentido, em entendimento que se harmoniza com o compromisso assumido pelos países com a agenda 2030 da ONU: “O compromisso assumido pelos países com a agenda envolve a adoção de medidas ousadas, abrangentes e essenciais para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsividade das instituições políticas ( (https://portal.stf.jus.br/hotsites/agenda-2030/).

.

O desestímulo às substâncias tóxicas, que não são essenciais à vida e produzem conhecidos agravos à saúde e ao meio ambiente, seria uma medida positiva de indução à pesquisa e aos investimentos para a transição gradual rumo a um modelo de desenvolvimento agrícola sustentável. Para o bem das gerações presentes e futuras, aguarda-se que prevaleça esse entendimento que vem orientando as decisões do STF em matéria ambiental.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

Sobre silenciamentos e omissões quanto aos ataques à democracia

Por Antônio de Padova Marchi Júnior no GGN

Num passado ainda recente, muito em função da corajosa resistência produzida por estudantes, sindicatos, intelectuais, artistas e religiosos, a sociedade brasileira conseguiu superar o arbítrio de forma esplêndida, grandiosa e absolutamente comprometida com a democracia e as liberdades individuais. Não por acaso se ouvia em bom tom o brado forte que simbolizou toda aquela luta heroica: “Ditadura Nunca Mais”.

A ventania democrática que varreu o país se refletiu na Constituição da República de 1988, cujos princípios pareciam garantir a cada cidadão as condições mínimas para desenvolver livremente as suas habilidades, conquistar o seu espaço e, assim, reduzir as desigualdades sociais e econômicas.

O fato, porém, é que tais princípios jamais foram efetivados plenamente. Não suportando a paulatina ascensão da classe operária e as seguidas vitórias do PT nas eleições presidenciais, a elite brasileira tratou de dominar o congresso apostando na lógica simples de lançar mais e mais candidatos com poderio financeiro e, portanto, com maiores chances de alcançar o mandato eletivo.   

Formada a maioria tanto na Câmara como no Senado, não foi difícil se aventurar no impeachment da Presidenta Dilma Roussef no curso do quarto mandato seguido dos trabalhadores, deixando a presidência a cargo do sempre oportunista PMDB.

O período coincidiu com o esplendor das redes sociais e das big techs, além da vertiginosa concentração de riqueza orquestrada pelo capitalismo globalizado. Estavam criadas as condições ideais para o avanço da extrema-direita ancorada no mais profundo fascismo.

Parece cada vez mais clara, especialmente após a descoberta de milhares de documentos produzidos pelo governo estadunidense acerca do Presidente Lula[1], a interferência americana no processo político brasileiro por meio da indefectível “Operação Lava-Jato”.

O quadro permitiu a surpreendente vitória de um até então menosprezado deputado do baixo clero para assumir a Presidência da República, num dos mandatos mais esdrúxulos da história política brasileira.

Não fossem as enormes trapalhadas, algumas delas de claro matiz criminoso, poderia ter conseguido a reeleição, mas, novamente, apesar do largo emprego da máquina pública, dos bancos estatais e, por incrível que pareça, das forças de segurança, como a Polícia Rodoviária Federal, perdeu as eleições por uma pequena margem.

Na oposição, a extrema-direita continua com a mesma virulência e está representada agora pelos governadores eleitos e pela expressiva parcela arregimentada no congresso, apesar da derrota no pleito presidencial.

Em outras palavras, inegavelmente se tornou uma força política ancorada no retrógado discurso que impulsionou as maiores atrocidades da história: Deus, pátria e família.

O presente artigo busca criticar o papel das instituições nessa realidade perigosa para a democracia ou para o que resta dela.

Estudos sociais requisitados pelo exército americano ao fim da 2.ª Guerra Mundial revelaram que a maioria dos alemães desconheciam a “solução final” enquanto prática aplicada nos campos de concentração nazistas.

Segundo os levantamentos oficiais daquela época, uma pequena parcela da população, representada por parentes e pessoas próximas dos oficiais, sabia e apoiava o holocausto. Outra pequena parcela sabia e não se conformava com o assombroso fato, mas pouco ou nada podia fazer. Por fim, a grande maioria dos cidadãos alemães propositalmente não se questionavam a respeito exatamente para não tomar posição a favor ou contra a eliminação dos judeus, numa espécie de “cegueira deliberada”.[2]

No início da década passada, contrariando os estudos acima, o Professor Robert Gallately, da Universidade da Flórida, reuniu provas concretas de que a sociedade alemã sabia sobre a Gestapo, sobre os campos de concentração e sobre as campanhas de perseguição aos judeus.[3]

Impressiona a entrevista que o referido autor concedeu para a Revista Veja em agosto de 2011 por ocasião do lançamento da obra no Brasil, pois em tudo se relaciona com os argumentos e com as estratégias empregadas aqui e agora pela extrema-direita:

“Eles sabiam muito. O regime tinha orgulho de sua nova polícia e a celebrava anualmente no “Dia da Polícia Alemã”. Um bispo católico chegou a se gabar à congregação sobre como um campo de concentração na região tinha dado à área um novo ‘sopro de vida’. Hitler apostou no apelo popular por meio de um regime baseado no lema ‘lei e ordem’. Não são poucos os que preferem a repressão em nome da lei e da ordem em toda parte do mundo. E nós sabemos que esses recursos podem ser perigosos para pessoas ingênuas e inocentes. Por isso, o terror trouxe muito mais apoio ao nazismo do que tirou. O regime se vangloriava de sua nova abordagem contra criminosos reincidentes, alcoólatras crônicos, criminosos sexuais, desempregados e mendigos. Hitler prometeu ‘limpar as ruas’, e a maioria das pessoas aprovou a medida. Algumas acreditavam de fato no Hitler e no nazismo. Outras queriam proteger seu país e lutar como nacionalistas e patriotas. E provavelmente a maioria lutou para manter distantes os russos e os comunistas, que eram amplamente temidos e odiados no país.[4]

Parcela do eleitorado brasileiro quer a barbárie posta pelo bolsonarismo. Frustrados de toda ordem, microempreendedores pouco ou nada instruídos, crentes fervorosos, integrantes das forças de segurança, caçadores (hein?) e atiradores são exemplos de grupos facilmente capturados pelo discurso nacionalista propagandeado por uma elite financeira que tudo faz para (i) manter os seus privilégios, (ii) fomentar a indizível concentração de riquezas e (iii) se distanciar o máximo possível em espaço e oportunidades dos milhões de concidadãos (ou seria subcidadãos?) que passam fome.

Esses grupos que engrossam o caldo populista do bolsonarismo funcionam como inocentes úteis, pessoas em busca de melhorias sociais obtidas num passe de mágica, sem as reformas estruturantes indispensáveis para tanto.

Apesar disso, não podem, de maneira alguma, ser censurados na mesma medida daqueles que os manipulam por meio de antigas fobias, posto que influenciados e controlados pelas variadas redes sociais, agora otimizadas pelos algoritmos e, principalmente, pela Inteligência Artificial.

Além de vícios e estados depressivos, os sites e os aplicativos das redes sociais assim turbinados favorecem o extremismo e a polarização da sociedade, especialmente através da desinformação. No campo político, estão projetadas para que o usuário clique e passe mais tempo engajado com conteúdo capaz de manipulá-lo e torná-lo mais previsível ou fiel.

O professor Stuart Russell, da Universidade de Berkeley, dedica-se há décadas ao estudo da Inteligência Artificial (IA) e se tornou um dos seus mais notórios críticos, ao menos do modelo ora empregado pelo mundo. Segundo ele, as redes sociais, ao manipular as pessoas e aumentar o seu engajamento, podem torná-las indiferentes às consequências dos seus atos.[5]

A grande crítica, portanto, devem ser reservadas para a classe política e para os integrantes das instituições voltadas para a salvaguarda da Constituição e da Democracia.

A desfaçatez alcançou nível inimaginável entre os políticos que se calaram por motivos eleitoreiros aos seguidos escândalos a que a sociedade brasileira tem sido submetida pelo bolsonarismo.

Para ficar apenas nos principais fatos certos e comprovados – se é que se pode assim falar diante da realidade paralela que anima as redes bolsonaristas -, ainda que não tenham se convertido em ação penal condenatória, a prática da “rachadinha” nos gabinetes da família, a adulação de milicianos por meio tanto da indicação a comendas e medalhas como pela nomeação das esposas e filhos para cargos em comissão, a indiferença como forma de governo no curso da pandemia, o discurso de ódio contra a esquerda e a ideia fixa de incentivar o porte de armas mesmo na contramão do espírito pacífico do povo brasileiro, por si sós, deveriam merecer severa crítica e oposição pela classe política, isolando os seus protagonistas.

Do mesmo modo, as investigações em curso para apurar o incrível caso das joias – prática assustadoramente rasteira de enriquecimento ilícito -, a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, o despropositado ataque às urnas e as anotações falsas na carteira de vacinação, entre outras estranhezas, em qualquer país sadio bastariam para decretar o fim da carreira pública do agente. Contudo, para os políticos aliados dispersos entre as bancadas do boi, da bala e da bíblia, nada disso impede a contínua aclamação do líder ruim.   

Uma pena que os registros históricos apontem para o silenciamento das ilicitudes para se alcançar a reconstrução do Estado, livrando os políticos adesistas de serem expurgados da vida pública apesar da covarde e interesseira inação frente ao mal.

Mais grave ainda é a tolerância dos agentes políticos, como os integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, com tamanhas práticas abusivas.

Ainda que tenha falhado em importantes decisões que permitiram a ascensão do fascismo no Brasil, como avalizar a licitude do processo de impeachment da Presidenta Dilma e, num primeiro momento, as atrocidades da Operação Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal acabou se redimindo após o golpe de sorte que levou o hacker a desnudar o conchavo sujo de Curitiba. Já com o bolsonarismo em pleno curso, conseguiu realizar com segurança e absoluta transparência as eleições que consagraram o Presidente Lula para desespero da horda fascista que almejava permanecer no poder.

Porém, conforme já alertado acima, o perigo permanece latente.

O povo brasileiro não esperava e nem merecia a apatia do Ministério Público – destacado pelo constituinte para a proteção intransigente da cidadania – diante de tantas controvérsias que marcaram o último mandato presidencial.

Foi triste perceber como a instituição contribuiu para construir a ideia de normalidade no curso de um período tão anormal. Pior ainda foi constatar que as suas lideranças estavam prontas para referendar eventual golpe de Estado caso o plano colocado em prática em 8 de janeiro fosse adiante.

Essa realidade demonstra que é preciso repensar a Instituição, torná-la mais independente, mais plural e mais assertiva no exercício do seu principal mister: a defesa perene do Estado Democrático de Direito.

A propaganda que incita o ódio contra as minorias pelas redes sociais deve ser enfrentada de imediato pelos Ministérios Públicos dos Estados e da União, não podendo jamais ser naturalizada ou tida como moralmente defensável.

É preciso que a Instituição também demonstre a irracionalidade do emprego da violência policial contra a população periférica ao invés de camuflá-la como atos de “legítima defesa” indispensáveis para a proteção dos “cidadãos de bem”. Segurança pública não se faz com abuso policial.

Do mesmo modo, a difusão de armas entre os civis em nada favorece a redução da criminalidade. Os agentes políticos devem expressar as pesquisas sérias sobre esse dado e sobre as tragédias decorrentes de tal política armamentista.

Também a desinformação sobre as escolas e as universidades públicas devem ser enfrentadas de imediato pelo Ministério Público, dissipando as cansativas mentiras destiladas rotineiramente entre grupos conservadores.

Enfim, é preciso agir com rigor contra o mau uso das redes sociais enquanto critério ilícito de formação da opinião pública, pois reproduzem notícias falsas contra adversários políticos e inflamam o sentimento fanático em busca da desestabilização contínua do oponente.

Os agentes políticos, diferentemente dos cidadãos comuns, devem ser mais gravemente cobrados por eventuais omissões no exercício do grave mister de salvaguardar o Estado Democrático de Direito.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Antônio de Padova Marchi Júnior é Mestre e Doutor em Direito pela UFMG; Procurador de Justiça do MPMG; membro do Coletivo Transforma MP.

https://jornalggn.com.br/opiniao/sobre-silenciamentos-e-omissoes-por-antonio-marchi-junior/

[1] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/07/governo-dos-eua-produziu-ao-menos-819-documentos-ao-monitorar-lula-por-decadas.shtml#:~:text=Diferentes%20%C3%B3rg%C3%A3os%20do%20Governo%20dos,Fernando%20Morais%2C%20bi%C3%B3grafo%20do%20presidente.. Acesso em 20.7.2024.

[2] A visita virtual ao campo de concentração de Dachau, o primeiro a ser construído, informa a respeito. Disponível em < https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/dachau>. Acesso em 24.7.2024. No ensaio disponível em < https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/deceiving-the-public>, extrai-se a seguinte explicação: o uso da propaganda serviu como uma importante ferramenta para convencer a parte do público alemão que não apoiava Adolf Hitler, e para estimular o avanço do programa nazista, o qual exigia a aprovação, apoio ou participação de amplos setores da população. Combinado com o uso do terror para intimidar aqueles que não se submetiam ao pensamento nazista, um novo organismo de propaganda do Estado, chefiado por Joseph Goebbels, buscava manipular e enganar tanto a população alemã quanto outros países. A cada passo do caminho nazista, eram propagadas mensagens que apelavam à unidade nacional e a um futuro utópico, que ressoava de forma positiva para milhões de alemães. Simultaneamente, eram promovidas campanhas que facilitavam a perseguição aos judeus e a outros grupos excluídos da visão nazista do que era a “Comunidade Nacional”. Acesso em 24.7.2024.

[3] Gallately, Robert. Apoiando Hitler: coerção e consentimento na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011.

[4] Disponível em https://veja.abril.com.br/mundo/os-alemaes-sabiam-e-aplaudiam-atrocidades-do-nazismo. Acesso em 25.7.2024.

[5] Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/geral-58810981>. Acesso em 25.7.2024.

20 ANOS DA MISSÃO NO HAITI: PARA NÃO ESQUECER

Por Plínio Gentil no GGN

Faz vinte anos da criação, pelo Departamento das Nações Unidas para Operações de Manutenção da Paz, da chamada MINUSTAH, sigla que denomina a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti. Foi a partir dos meses seguintes que, então orgulhosamente, o Exército brasileiro passou a comandar tropas da ONU na missão, formadas por contingentes de diversos países, inclusive da América Latina. Durante seus treze anos cerca de 37 mil soldados brasileiros foram enviados ao Haiti. A participação e o comando da empreitada eram vistos como uma presença maiúscula do país numa ação da comunidade internacional e capaz de angariar prestígio. Os resultados, no entanto, parecem ter sido diferentes do esperado e, por isso mesmo, nem esquerda nem direita gostam de mencionar o assunto, que fica apagado da memória dos acontecimentos recentes.

            É importante conhecer, ainda que ligeiramente, a história toda. O Haiti, antiga colônia francesa na América Central, foi um dos primeiros países a abolir a escravidão (em 1789), por meio de uma revolução organizada pelos próprios escravizados. A repressão foi violenta, mas os insurgentes mantiveram suas posições e afinal se impuseram. É bem verdade que, ao longo dos anos, o interesse do capital internacional acabou prevalecendo e o país manteve sua rotina de divisão abismal de classes, seguindo a escrita das ex colônias do continente. Cobrado de uma “indenização” bilionária pela França pela independência, ficou condenado à pobreza e apresenta um dos piores índices de desenvolvimento humano das Américas. Foi palco de uma dessas ditaduras-padrão do terceiro mundo entre 1957 e 1986. Ocorre que em 1990 chegou à presidência Jean-Bertrand Aristide, um padre progressista, simpático à Teologia da Libertação, que tentou, por mais de uma década, implantar um programa de distribuição de renda e redução de desigualdades e, como costuma ser, foi confrontado por forças apoiadas pelo grande capital, até que terminou sumariamente coagido, pelos EUA disse ele, a deixar o governo e o país. Seguiu-se um compreensível período de instabilidade e, por conta dessa crise que o próprio imperialismo criou, a ONU, seu braço político, decidiu “estabilizar” o Haiti. Leia-se: impedir a ascensão de governos de esquerda, manter o acúmulo da riqueza da burguesia local e garantir os lucros do capital internacional.

            Nesse contexto é que surge a MINUSTAH. Durante sua vigência era previsto que os recursos destinados ao Haiti seriam administrados pela missão. De seu lado, o Exército brasileiro gostou da perspectiva de, após duas décadas no limbo, retomar seu protagonismo e se reorganizar politicamente como um verdadeiro partido fardado. Deu certo. O primeiro comandante da missão foi o general Augusto Heleno. Em 1970 Heleno, quando instrutor da AMAN, conheceu Jair Bolsonaro; em 1977 era ajudante de ordens do general Sylvio Frota, ministro do Exército que, em tudo vendo a “ameaça comunista”, sabotava a abertura política operada pelo presidente Ernesto Geisel, que afinal o demitiu, numa das ações mais estratégicas e marcantes do começo do fim da ditadura militar. Anos mais tarde, Heleno tornou-se ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro. O jornalista Leonardo Sakamoto[1] aponta outros militares, todos ocupantes de cargos no mesmo governo, como tendo participado da missão no Haiti: Tarcísio de Freitas, Carlos Alberto Santos Cruz, Floriano Peixoto, Luiz Eduardo Ramos, Fernando Azevedo e Silva, Edson Pujol, Otávio Rêgo Barros, José Arnon dos Santos Guerra, Freibergue Rubem do Nascimento. A atuação conjunta no Haiti produziu nas altas esferas militares, um amálgama que os unificou sob a bandeira abstrata do anti-comunismo, do destino manifesto do Ocidente para liderar o mundo e, como base de tudo, da proeminência do capital privado.

            O partido militar, então consolidado, passou a ter presença, direta ou indireta, em fatos significativos da vida política brasileira. Esteve atento aos movimentos de junho de 2013, marcados pela violência da PM, e soube ajudar a convergir suas pautas para temas que uniam a extrema direita; presente esteve na logística do golpe que derrubou Dilma em 2016 – do que é sintoma a exaltação, sem consequência alguma, do então deputado Bolsonaro ao torturador Ustra ao votar pelo impeachment; começou a ocupar o governo com Temer e concluiu a ocupação com Bolsonaro, chegando ao cúmulo de conseguir se tornar instância consultiva dos procedimentos eleitorais. Essa máquina, disciplinada e operante, foi azeitada na missão do Haiti. A ação armada em nome da ONU fez do país centro-americano um laboratório da posterior ocupação da periferia do Rio de Janeiro quando Temer, já refém do partido militar, decretou intervenção federal no estado. O saldo foram cerca de 1500 mortos; o interventor, general Walter Braga Netto, mais tarde candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, teve mais de cem comandados, quando chefiava o Comando Militar do Leste, tomando parte na missão do Haiti. De salto em salto, o partido militar chegou às conhecidas reuniões com o já derrotado Bolsonaro em 2022, em que se discutia a possibilidade de uma ação contra a vitória de Lula, culminando com o desastrado 8 de janeiro de 2023, episódio em que fica difícil ocultar a ação ou a omissão de um sem número de militares, alguns apontados em investigações que se tornaram públicas, outros ainda escondidos no anonimato, que uma atávica conciliação política do progressismo brasileiro insiste em manter.

            Sob certo ponto de vista, a MINUSTAH funcionou perfeitamente: em 2016, um empresário foi eleito presidente do país e a “ordem” se restabeleceu. Da missão militar no Haiti, berço de toda a repentina solidez do partido fardado brasileiro, quase nunca se fala. É importante ver que brotaram inúmeras denúncias de abusos por parte das tropas, de violência física à sexual, contra a população pobre haitiana. Algumas fontes contabilizam grande número de mortos em ações da força armada naquele país, cujas condições urbanas projetam a miséria das favelas cariocas; episódio significativo é uma “operação de pacificação”, em 2005, na maior favela da capital, Porto Príncipe, conhecida como Cité Soleil. Centenas de soldados armados invadiram o bairro e o resultado foram 63 mortos, caso que foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com base em depoimentos de moradores; logo após um terremoto, uma gravíssima epidemia de cólera dizimou parte da população haitiana e há informações de que chegou ao país por via das tropas “de estabilização”. Contabilizam-se 2,5 bilhões de reais empregados pelo Brasil na missão, dos quais apenas 930 milhões foram ressarcidos pela ONU. Ou seja, o saldo de tudo, em termos de ganho nacional, é definitivamente negativo. Por isso os militares brasileiro evitam falar do assunto e não mais reivindicam papel de relevo no que fôra apresentado como uma missão internacional pacificadora. Com eles, a direita finge ter esquecido a coisa toda. A centro-esquerda, como se pode classificar a coalizão semi-progressista que está no governo, pelos mesmos motivos faz que não é com ela: afinal de contas, a missão foi aceita e desenvolvida nos governos Lula-Dilma. Mas para que a história não se perca e a memória não se corrompa, é preciso manter viva a lembrança da participação brasileira na missão do Haiti e, principalmente, das suas consequências no quadro político nacional.

……………………….


[1] <https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2021/07/07/missao-no-haiti-foi-celeiro-de-militares-para-o-ministerio-de-bolsonaro-.htm>. Em 07/jul./2021.

A bomba atômica previdenciária armada pelo STF

Decisões que impedem Justiça do Trabalho de reconhecer vínculos têm a capacidade de exterminar o sistema previdenciário

Rodrigo de Lacerda Carelli no Jota

Em sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Alexandre de Moraes afirmou que é uma injustiça atribuir culpa aos trabalhadores e aposentados pelo déficit da previdência, apontando desvios históricos de fundos do sistema para outros fins como uma das razões e o fim de isenções fiscais que não mais se justificam como uma possível solução.

O ministro talvez não esteja percebendo que outra armadilha contra o sistema previdenciário, de proporções colossais está sendo preparada pela própria corte que integra e contando com seus votos e suas decisões monocráticas.

Mais de 600 acadêmicos de mais de 40 países apontaram para os riscos e a antijuridicidade desse conjunto de decisões. Em outros textos apontamos a tragédia trabalhista que as decisões atuais do STF estão a construir, como a explosão do trabalho escravo e dos acidentes de trabalho.

Mas o que nos importa aqui neste texto é que a tese subjacente à extensão da interpretação do Tema 725, que daria sustentação para esse tipo de decisão, é a de que, uma vez firmado um contrato civil entre empresa e trabalhador, não cabe à Justiça do Trabalho identificar a existência de um vínculo de emprego, bem ao contrário do que impõe nossa lei (art. 9º, CLT), que segue o que ocorre no mundo inteiro, como preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (Recomendação 198) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

Algumas decisões do STF, inclusive recentes, encaminharam as ações que demandavam o reconhecimento do vínculo de emprego para a Justiça Comum, que verificaria somente a existência de algum vício na celebração do contrato.

Uma vez cristalizada essa tese, os empregadores não precisarão ter nenhum temor em firmar contratos civis com trabalhadores, sejam eles de que espécie for (MEI, PJ, parcerias, cotas societárias ínfimas etc.), mantendo os poderes empregatícios em todas as suas dimensões. Uma vez firmado o contrato, e aceito pelo trabalhador sem nenhuma coação ou ameaça (para o STF, a ameaça implícita inerente de não conseguir a vaga de emprego e não poder alimentar a família se não aceitar a proposta não conta como ameaça), o empregador estará blindado de qualquer responsabilização.

É claro que, como nenhum empresário é otário ou rasga dinheiro, e talvez premido pela concorrência, passará a contratar trabalhadores pelas diversas formas mais baratas e com menos constrangimentos legais, como sindicatos e fiscalização, pois não terá nada a perder, nem mesmo o seu poder empregatício. Se o risco é zero, o que levaria o empregador a manter os trabalhadores formalmente como empregados? Com isso, os trabalhadores deixarão de contribuir como empregados e sim de acordo com o seu contrato formal. Mais do que isso: os empregadores, na maior parte dos casos, deixarão de contribuir como patrões. 

No caso da contratação por Microempreendedor individual (MEI), por exemplo, com exceção de alguns serviços como hidráulica, eletricidade, pintura, alvenaria, carpintaria, manutenção e reparo de veículos, não há contribuição previdenciária patronal, e o trabalhador recolhe somente 5% do salário mínimo, o que nem de longe garante qualquer equilíbrio atuarial.

Essa contribuição, aliás, é um engodo: mais da metade dos MEIs estão inadimplentes. São 7,5 milhões de trabalhadores no país. Não é de se espantar que quando ultrapassarem a idade produtiva serão absorvidos pela assistência social, ou seja, toda a sociedade pagará. A previdência do MEI mais para um duplo faz de conta: o trabalhador faz de conta que paga e o Estado faz de conta que no futuro vai garantir a previdência para esses trabalhadores.

Já o trabalhador contratado como pessoa jurídica (como a contratação como sócios com cotas ínfimas) deve recolher em cima do pró-labore e não há contribuição por parte do empregador. 

Será uma tragédia para o sistema, como vem alertando a Receita Federal, que também aponta rombos na arrecadação de imposto de renda com essa série de decisões. Em relação à previdência, uma conta simples pode ser feita para se ter uma noção da catástrofe: considerando que o salário médio médio mensal de trabalhadores no Brasil é de R$ 2.979, se dez por cento dos trabalhadores com carteira assinada no Brasil (que hoje totalizam 37,995 milhões de empregados) forem migrados para outras formas contratuais, somente com a sonegação da contribuição patronal o rombo será de R$ 2.263.742.000 a cada mês.

Em um ano o rombo será de mais de R$ 29 bilhões, contando o décimo terceiro salário. Porém, se está tudo liberado, em pouco tempo haverá muito mais do que 10% de migração. Imaginando um cenário (ainda conservador, considerando o potencial destrutivo das decisões da Suprema Corte) em que metade dos trabalhadores brasileiros fossem contratados da forma menos onerosa, o rombo seria de mais de 11 bilhões por mês, o que totaliza mais de R$ 145 bilhões por ano, ou 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB). 

Isso é só a parte contributiva do empregador, que deveria ser acrescida da perda com a contribuição do empregado, que varia de 7,5% até 14%. As contas, nesse caso, são mais difíceis de se fazer, mas a sonegação poderia facilmente chegar, no segundo cenário, a R$ 5 bilhões por mês ou R$ 65 bilhões por ano. O total, juntando a contribuição patronal e do trabalhador, alcançaria então a quase 2% do PIB de rombo por ano.

Não há como sustentar nenhum sistema com um rombo dessa envergadura. Os ministros da Suprema Corte, a começar pelo ministro Moraes, que externou preocupação com a questão do déficit da previdência, devem se posicionar nos autos com responsabilidade sobre a questão.

Já é momento de perceberem que o extremismo de suas posições será um desastre sem paradigma, não só no Brasil, como no mundo. Os ministros do STF estão montando, a todo vapor, uma bomba atômica social e fiscal. Essa bomba deve ser urgentemente desmontada, antes que seja tarde demais.

Rodrigo Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.

Os novos problemas do PLP 12/2024

Renan Kalil no Jota

Em março, o Projeto de Lei Complementar 12/2024 (PLP 12/2024) foi enviado para o Congresso Nacional com o objetivo de regular o trabalho dos motoristas que atuam por meio de plataformas digitais. À época, apontamos os seus principais problemas: a equivocada caracterização das plataformas digitais como intermediárias, a insuficiência na definição do trabalho autônomo e vedação do reconhecimento da relação de emprego mesmo quando presentes elementos de controle do trabalho.

Após meses de intensos debates em diversos espaços, incluindo audiências públicas e seminários realizados pela Câmara dos Deputados, um substitutivo ao PLP 12/2024 foi divulgado recentemente. Não apenas os antigos problemas permaneceram, como novos foram criados.

O principal se refere ao descanso. A Constituição prevê que se trata de um direito do trabalhador. Porém, o substitutivo subverte a lógica que justifica reconhecer o repouso para o trabalhador e o coloca como um dever. Sim, para o motorista que trabalha por meio de plataformas digitais, o descanso será um dever.

Concebido como mecanismo de proteção ao trabalhador, o descanso é um dos instrumentos que limita a quantidade de horas que uma pessoa pode prestar serviços para outra. Dessa forma, busca-se fazer com que o beneficiário das atividades realizadas pelo trabalhador assegure um período mínimo para recomposição das energias entre o fim de uma jornada e o começo da outra.

Caracterizar o descanso como dever joga água no moinho da transferência das responsabilidades apenas para os trabalhadores em uma relação fortemente desigual. Colocar nas costas dos motoristas a obrigação de controlar o seu próprio descanso em um contexto no qual não decidem o preço do seu trabalho e são punidos por não aceitarem uma quantidade mínima de corridas ou por cancelarem viagens apenas reforça a discrepância de poderes entre trabalhadores e plataformas.

O art. 4º do substitutivo diz que dentro de um período de 24 horas, o motorista tem a obrigação de repousar por pelo menos 11 horas, devendo ficar desconectado de todas as plataformas. É oferecida a possibilidade de fracionamento desse intervalo de 11 horas, desde que garantido o mínimo de 6 horas ininterruptas de descanso.

Em relação aos períodos de descanso, percebemos que, diante da necessidade de encontrar referências, busca-se o socorro na lei trabalhista. Não é à toa que o art. 4º traz os limites já previstos nos arts. 66 e 235-C da CLT. Contudo, uma exígua responsabilidade é atribuída às plataformas digitais na observância desses parâmetros.

O art. 5º estabelece as punições para o descumprimento do dever de descansar. O motorista pode ser suspenso de todas as plataformas que tiver cadastro e ficar impedido de ingressar em novas plataformas por 30 dias. Em caso de repetição desse descumprimento, a punição é aplicada em dobro. Essas penalidades serão impostas após a lavratura de auto de infração por órgão de fiscalização do Poder Executivo.

Aqui, manifesta-se um dos lados perversos de caracterizar o descanso como dever: o não cumprimento, por parte do motorista, impede-o de trabalhar e sujeita-o a receber multa. Em outras palavras, o trabalhador é colocado em uma condição de algoz de si mesmo no âmbito de uma relação assimétrica na qual sua autonomia é extremamente reduzida.

Ao mesmo tempo que debatemos o PLP 12/2024, o restante do mundo também discute a regulação do trabalho via plataformas digitais. Em abril, o Parlamento Europeu aprovou uma diretiva sobre o tema. O texto prevê regras para combater a classificação fraudulenta dos trabalhadores como autônomos: foi estabelecida uma presunção legal de que a relação entre uma plataforma e um trabalhador é uma relação de trabalho quando se identifiquem elementos de controle e direção da atividade. Caso a plataforma queira refutar essa presunção, cabe a ela demonstrar que a relação é de outra natureza.

Ou seja, enquanto debatemos como proibir de forma absoluta a possibilidade de reconhecer uma relação de emprego e transformamos direitos em deveres, a Europa discute como oferecer proteção social aos trabalhadores a partir da análise do que ocorre no mundo dos fatos. Se o Brasil quiser sair da contramão da regulação do trabalho via plataformas digitais, é necessária uma alteração de rota urgente.

RENAN BERNARDI KALIL é Procurador do Trabalho, doutor em Direito pela USP e professor da graduação em Direito no Insper.