Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.
O Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, impõe uma reflexão sobre o grave momento brasileiro e a necessidade de limites a atividades predatórias, com atenção especial para a Guerra Química travada contra a natureza e a vida humana.
A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas, chamando a atenção para a questão ambientail. O evento realizado em Estocolmo, na Suécia, em 1972, é um marco histórico na luta pela preservação do planeta.
A ONU vem alertando para os riscos da aplicação errônea e imprudentemente do poder humano de causar danos incalculáveis à vida humana e ao ambiente. Evidências científicas comprovam a multiplicação dos agravos causados pelo homem, com níveis perigosos de poluição da água, do ar, da terra e dos seres vivos, gerando grandes transtornos: desequilíbrio ecológico, destruição e esgotamento de recursos, e graves deficiências, nocivas para a saúde e o meio ambiente, em que ele vive e trabalha. A ignorância, a indiferença e a inconsequência são apontadas como causas de danos imensos e irreparáveis ao meio ambiente da terra do qual dependem a vida e o bem-estar, da geração atual e das futuras.
No Brasil, o STF vem se mostrando atento ao compromisso do Estado brasileiro com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, em sintonia com o consenso dos países civilizados.
Todavia, a tolerância às investidas contra o meio ambiente e ao uso de agrotóxicos, muitos deles banidos dos países em que há preocupação com os efeitos ambientais e na saúde, é agravada pela permissão a técnicas de aplicação que potencializam os agravos à saúde de trabalhadores e de comunidades expostas.
Envenenadores atiçam o confronto com o firme posicionamento do STF, que vem defendendo a pauta civilizatória ambiental. Exemplo de decisão que acirra o conflito entre os Poderes instalados na Praça dos Três Poderes, em Brasília, deu-se com a decisão do STF que suspendeu a portaria da Secretaria de Defesa Agropecuária, que admitia a “aprovação tácita” de agrotóxicos. No mesmo sentido, reconheceu a legítima proibição da pulverização aérea no Ceará (ADI 6137). Foi respaldando a mobilização da comunidade cearense afetada contra a técnica reconhecidamente gravosa para a população exposta à Guerra Química.
Os embates e as disputas da pauta predatória, no entorno da Praça dos Três Poderes, em Brasília, fazem lembrar uma das maiores celebridades brasileiras, inserido no Livro de Aço, no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, situado na mesma praça.
Alberto Santos Dumont foi incluído pelo Congresso Nacional no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, em 2023. O cientista, Patrono da Aeronáutica Brasileira, recebeu os créditos pela engenhosidade, em especial pelo desenvolvimento do avião que fez o primeiro voo autopropulsionado da história, em 1906. O espírito humanista é uma marca pouco conhecida de Santos Dumont, que teria passado os últimos anos de sua vida debilitado, deprimido pelo uso de seu invento na guerra.
Como um homem esclarecido, diante do grau de destruição pelo uso do avião na primeira guerra, anteviu, horrorizado, o que as máquinas voadoras poderiam atingir no futuro, “como espalhadoras da morte, não só entre as forças combatentes, mas também, e infelizmente, entre pessoas inofensivas da zona de retaguarda”. Em 1926, dirigiu-se à Liga das Nações pedindo a abolição da aviação como instrumento de destruição. Justificava-se entre os pioneiros na conquista do ar que “pensavam mais em criar novos meios de expansão pacífica dos povos do que em fornecer-lhes novas armas de combate”.
A manifestação, pacifista e humanista, de Santos Dumont acerca do avião mostra-se oportuna para um chamado à racionalidade, limitando a sanha predatória, de novas técnicas e velhas práticas, como a que pode ser estabelecida caso seja aprovado o projeto que pretende criar a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, facilitando os objetivos de predadores ambientais.
É uma norma que, se aprovada, fatalmente será submetida ao STF por ser incompatível com o disposto no artigo 225 da Constituição, que assegura o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
O gênio brasileiro certamente defenderia o uso pacifista e humanista das inovações, contra os “espalhadores da morte”, a favor da sadia qualidade de vida, direito que impõe ao Poder Público e à coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP
Após trinta e quatro anos de carreira no Ministério Público de São Paulo, recolhi-me aos aposentos, colocando-me a gostosa tarefa de reler livros, ensaios e artigos que foram de especial importância na minha formação e cujas ideias forneceram-me elementos e instrumental teóricos para o exercício da minha função institucional.
Na procura desses escritos, reencontrei e reli recentemente o ensaio O caráter revolucionário, do sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm, pioneiro da chamada Escola de Frankfurt (Instituto para Pesquisa Social), autor de vasta obra, na qual predominam estudos e pesquisas sobre a condição humana em períodos de ascensão e desenvolvimento de regimes totalitários (fascismo e nazismo), da sociedade de consumo, da automatização da produção econômica, da presença permanente do risco de guerras nucleares de grande escala e com potencial destrutivo capaz de provocar colapso social. Das principais obras, destaco as seguintes: Análise do homem, Anatomia da destrutividade humana, O medo à liberdade, Meu encontro com Marx e Freud, Psicanálise da sociedade contemporânea, Ter ou ser?, Conceito marxista do homem, todas publicadas pela antiga e saudosa editora carioca Zahar, na década de 1960, com sucessivas edições que chegam aos dias atuais.
O ensaio que me marcou está na segunda edição da coletânea O dogma de Cristo, publicada em 1965, que li ao final da adolescência, antes de ingressar no curso de Direito. Nesse texto, Fromm elabora uma tipologia do caráter, combinando uma categoria política (estrutura autoritária no Estado e na família) com uma categoria psicológica (a estrutura do caráter). Com base nessa combinação de categorias, faz o confronto e define as duas espécies de caracteres com os quais trabalha no estudo: o autoritário e o revolucionário. Para o autor:
“…a estrutura de caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo senso de força e identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às autoridades, e ao mesmo tempo um domínio simbiótico dos que estão submetidos à sua autoridade. Ou seja, o caráter autoritário sente-se mais forte quando pode submeter-se a uma autoridade e ser parte dela, desde que seja (e até certo ponto apoiado na realidade) exagerada, deificada, e quando ao mesmo tempo pode crescer pelo fato de incorporar os que lhe estão sujeitos à autoridade. É um estado de simbiose sádico-masoquista, que lhe dá uma sensação de força e de identidade” (p. 118).
Adiante, deixa claro que a pessoa dotada de caráter autoritário é:
“… bastante impotente e procura encontrar forças que o protejam e lhe proporcionem sentimento de segurança. O preço pago por esse auxílio é tornar-se dependente dele, perder sua liberdade e reduzir o processo de seu crescimento” (p. 122).
Uma vez definido o que é o caráter autoritário, Fromm passa a descrever os elementos que compõem o caráter revolucionário. Em primeiro lugar, o psicanalista alemão afasta aqueles que, tendo a aparência de revolucionários, não o são. Por exemplo: o participante ativo de uma revolução, pois essa participação não é condição suficiente para caracterizar a pessoa como revolucionária se a ela não se somam outras condições, as quais veremos adiante; o rebelde-ressentido, uma vez que tal pessoa é movida pelo fato de não ser aceita pela autoridade contra quem se rebela; o rebelde-oportunista, ou seja, aquele que se infiltra nas instituições, nas organizações e nos movimentos que objetivam a transformação social com o intuito de obter benefícios pessoais; o fanático, isto é, aquele que atua por idolatria política ou religiosa, apresentando, não raro, confusa percepção da realidade e tendências paranoicas.
Depois dessas observações, Fromm passa a analisar o que, para ele, seria o caráter revolucionário. Como não poderia deixar de ser, o autor apresenta a sua definição de revolução, e o faz em conformidade com sua linha de pensamento, em uma perspectiva político-psicológica. No sentido político, revolução é “a substituição de uma ordem existente por outra historicamente mais progressista”; no sentido psicológico, revolução “é um movimento político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pessoas de caráter revolucionário”. Assim compreendida a revolução, afirma que o “traço fundamental do caráter revolucionário é ser independente – é ser livre”. A independência, por sua vez, “é o oposto da ligação simbiótica aos poderosos, que ocupam posições superiores, e aos impotentes, que ocupam posições inferiores” (p. 121); explicitando que:
“A liberdade e a independência totais só existem quando o indivíduo pensa, sente e decide por si. Só pode fazê-lo autênticamente quando atinge uma relação produtiva com o mundo exterior, que lhe permite reagir de forma autêntica…” (p. 122).
Para a pessoa dotada de caráter revolucionário, “o crescimento da personalidade ocorre no processo de relacionar-se e interessar-se pelos outros e pelo mundo’’; ou ainda, o “caráter revolucionário identifica-se com a humanidade e portanto transcende os estreitos limites de sua própria sociedade e pode, por isso, criticar a sua sociedade, ou qualquer outra, do ponto de vista da razão e humanidade; enfim, o “caráter revolucionário identifica-se com a humanidade” (p. 124).
Acredito que, chegando a esta altura do artigo, o leitor tenda a perguntar o que as lições de Fromm tem a ver com o Ministério Público?
Respondo: tudo a ver.
Explico.
Vamos à Constituição de 1988. Esse primoroso documento político-jurídico constitui-se como verdadeiro projeto societário, antecipando em seu texto o tipo de sociedade que brasileiras e brasileiros decidiram construir após mais de duas décadas de ditadura burguesa-militar. Esse projeto prevê os valores que o fundamentam e o justificam, estabelece os instrumentos para realizá-lo e os objetivos a serem alcançados. Ou seja, por meio dos espaços e instrumentos da democracia semidireta, as cidadãs e cidadãos, as organizações e movimentos sociais, os agentes políticos e econômicos, em responsabilidade compartilhada, têm o compromisso-dever de contribuir para a construção da sociedade livre, justa e solidária, na qual a pobreza e a marginalização sejam erradicadas, as diferenças sociais e regionais sejam reduzidas e o bem comum seja promovido sem preconceito, discriminação e intolerância (art. 3º, incisos I a IV). Trata-se de um projeto de democracia política, econômica e social; de democracia substantiva.
Se concordamos com Fromm que revolução é a substituição de uma ordem existente por outra historicamente mais progressista, e que essa mudança não ocorre apenas pela via de atos de força concentrados no tempo (revolução jacobina), mas, sobretudo, por mudanças estruturais que se acumulam no processo histórico (revolução progressiva, processual), não é difícil concluir que o projeto societário previsto na Constituição é o de uma nova ordem mais progressista se comparada à ordem existente e a ser superada pela sua implementação. Nesses termos, a Constituição brasileira é revolucionária.
No projeto societário constitucional, o Ministério Público foi contemplado com autonomia institucional, novas atribuições e novos instrumentos aptos a levar avante, no seu espaço de atuação, a implementação desse projeto, pela via da promoção e defesa de interesses e direitos, cuja concretização é imprescindível para a consecução dos objetivos estratégicos da República. Nesse sentido, se o projeto tem conteúdo transformador (mudança para uma ordem social superior), o Ministério Público tem, consequentemente, o compromisso-dever de contribuir decisivamente para a mudança da ordem social, como instituição transformadora, revolucionária.
Por sua vez, os agentes políticos que integram o Ministério Público estão vinculados à estratégia constitucional/institucional e têm o compromisso-dever de atuar concretamente, seja pela via direta dos órgãos de execução, seja pela via indireta dos órgãos da Administração Superior, na realização da revolução progressiva, assim como definida na Constituição de 1988. Para tal, a Constituição deferiu garantias ao agente político do Ministério Público, como a independência funcional, a inamovibilidade e a do promotor natural, para que ele possa atuar de forma desembaraçada, imune às pressões do poder político, do poder econômico e dos constrangimentos internos que possa sofrer. Portanto, o comportamento esperado do agente político do Ministério Público é aquele próprio da pessoa independente, livre, que não se submete ao poder dos que conspiram contra os valores da democracia; é daquele que age e usa seus instrumentos, não para oprimir os destinatários do seu trabalho, mas, sim, para emancipá-los, libertá-los de uma ordem social opressora. O que se espera da pessoa que pretende ingressar no Ministério Público é o de que seja independente, livre, que se identifique com a humanidade, tenha caráter revolucionário, nos exatos termos desenvolvidos por Erich Fromm no ensaio que ilumina este texto.
O que se vê no plano concreto, é a ausência de preocupação do Ministério Público realmente existente com questões dessa importância. Deixo para um próximo artigo a apreciação crítica de alguns elementos que impedem o enfrentamento dessa dificuldade.
O reconhecimento do Tema 1389 de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal fará com que ocorra um debate a respeito de três controvérsias relacionadas à contratação de trabalhadores.
Especificamente, uma delas versa a respeito da “licitude da contratação civil/comercial de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos”.
O ministro relator, Gilmar Mendes, ao tratar do alcance do caso, frisou que o debate não se limita aos contratos de franquia – tema que deu origem ao processo –, mas também abrangerá, dentre outras atividades, o trabalho de motoboys e entregadores.
Apesar de a decisão não mencionar expressamente que engloba a atividade desenvolvida por esses trabalhadores por meio de plataformas digitais, o ministro relator já sinalizou nesse sentido. Contudo, tratar a situação dos entregadores e motoboys no âmbito do Tema 1389 é um equívoco por pelo menos três razões fundamentais.
A primeira é que esse movimento coloca em um único cesto conceitos jurídicos substancialmente distintos cujo tratamento conjunto mais atrapalha do que ajuda. O trabalho via plataformas digitais é um fenômeno recente que desafia paradigmas tradicionais e que, como diversos ministros do STF já reconheceram expressamente em votos anteriores, merece um olhar alinhado com o uso das novas tecnologias no mundo do trabalho.
A pejotização, por outro lado, envolve a simulação fraudulenta na contratação civil/comercial de um trabalhador quando presentes os requisitos da relação de emprego, em flagrante violação ao princípio da primazia da realidade e ao art. 9º da CLT, que considera nulos os atos praticados com o objetivo de desvirtuar a aplicação dos preceitos contidos na legislação trabalhista.
A terceirização, por sua vez, é a prestação de serviços por uma empresa a terceiros, estando regulada pela Lei 6.019/74, alterada pela reforma trabalhista, e com parâmetros constitucionais já claramente estabelecidos pelo STF na ADPF 324 e no Tema 725-RG, configurando matéria jurídica com contornos próprios e específicos.
A segunda razão, de ordem processual e igualmente relevante, é que já existe um caso com repercussão geral reconhecida e que se aproxima muito mais da realidade fática e jurídica desses trabalhadores do que o caso examinado no Tema 1389.
O Tema 1291-RG, de relatoria do ministro Edson Fachin, que trata especificamente do “reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora da plataforma digital”, teve origem em uma reclamação trabalhista apresentada por uma trabalhadora em face da Uber.
Apesar do caso tratar do trabalho de uma motorista, é possível que a tese que será fixada também abranja as atividades de entregadores e motoboys. Um indício robusto e incontestável nesse sentido pode ser encontrado nos participantes da audiência pública convocada pelo ministro Fachin e realizada nos dias 9 e 10 de dezembro de 2024: dentre os 58 expositores, tivemos sete entidades representativas desses trabalhadores e a maior empresa que atua nesse setor, com mais de 80% do mercado brasileiro, a iFood.
Assim, caso se mantenha o entendimento de que entregadores e motoboys que atuam por meio de plataformas digitais estão abrangidos pelo Tema 1389, o processo deveria ser redistribuído ao ministro Fachin, por prevenção: é o que determina imperativamente o art. 325-A do Regimento Interno do STF, norma de observância obrigatória que visa justamente evitar decisões contraditórias sobre a mesma matéria. Caso contrário, estaremos diante de uma situação que violará o princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF) e a economia processual.
A terceira razão remete à proteção material dos direitos fundamentais. Iniciar a análise sobre a forma pela qual ocorre o trabalho de entregadores e motoboys por meio de plataformas digitais a partir da ideia abstrata de “liberdade de organização produtiva dos cidadãos” é fechar os olhos para a realidade concreta e subverter o princípio da primazia da realidade.
Na prática cotidiana, esses homens e mulheres possuem opções de escolha severamente limitadas sobre como desenvolver essa atividade: não podem colocar o preço em seu trabalho, são ranqueados conforme o cumprimento de metas estabelecidas unilateralmente pelas empresas e recebem punições quando não seguem as regras determinadas por elas. Sua liberdade se reduz a aceitar todas as condições impostas nos termos de uso de aplicativos ou ficar impedido de exercer a atividade, não existindo espaços para negociação.
Motoboys e entregadores cruzam as cidades do país em alta velocidade para atender o tempo de entrega imposto pelas empresas e se expõem a riscos altíssimos à sua integridade física (art. 7º, XXII, CF), cujo resultado é o crescente número de acidentes, com vários óbitos documentados, em diversas localidades.
Essa realidade já foi retratada em Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde. São trabalhadores que, por não terem onde satisfazerem as suas necessidades fisiológicas ao longo da jornada, em flagrante violação ao direito à dignidade humana, hidratam-se precariamente e, como consequência, não sangram, sendo cada vez mais comuns, ainda, o relato de doenças renais entre os trabalhadores[1].
Há quem argumente, a partir de uma visão reducionista do fenômeno, que as regras criadas no século 20 para proteger o trabalhador não cabem na realidade do século 21. Entretanto, enquadrar o trabalho via plataformas digitais realizado por entregadores e motoboys sob uma perspectiva de mera liberdade de organização produtiva, sem considerar as assimetrias de poder inerentes a essa relação, terá como resultado lançá-los diretamente ao século 19. Retornaremos à época da pré-regulação trabalhista, marcada por condições degradantes de trabalho e ausência de proteção social, em flagrante retrocesso social vedado pelo ordenamento constitucional brasileiro.
A definição da abrangência do Tema 1389 foi excessivamente ampla, trazendo para o debate situações de trabalhadores que não se relacionam com as controvérsias jurídicas colocadas e que já estão sendo tratadas em outros casos de repercussão geral.
Reconhecer esse cenário, fazendo as devidas distinções técnico-jurídicas, é central para que a fixação da tese pelo STF ocorra da melhor forma possível no Tema 1389, preservando a integridade hermenêutica do sistema constitucional e evitando incongruências jurisprudenciais que poderiam comprometer a própria segurança jurídica das relações trabalhistas no país.
O primeiro passo para isso é retirar formalmente os entregadores e motoboys desse caso, reservando sua análise ao foro processual adequado já estabelecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Sambar sobre a dor é o nosso jeito de fazer política e talvez seja um jeito único no mundo.
Em 2021 publiquei um artigo intitulado “Crises, Circo, Cerco e Ciclos”. E as crises, o circo, o cerco e os ciclos persistem!
O título ainda que alterado preserva a essência, apesar de todos os novos acontecimentos que nos trazem angústia. É que eles trazem à tona o padrão histórico de funcionamento das instituições brasileiras. E tudo acontece sob o olhar da população que se divide entre consciência e alienação; paralisia e ação; protesto e silêncio; conivência e enfrentamento. Posturas, enfim, que não aplacam a tensão social e política que nos últimos anos vêm afetando muito intensamente o país.
Continuamos num ciclo do qual emergem e ainda predominam vozes e ações tresloucadas dos mesmos atores/ detratores da paz: pessoas detentoras de uma riqueza material excessiva ou aspirantes a isso; pessoas aproveitadoras do espaço da política para garantir os seus ganhos drenando o orçamento do Estado; pessoas obtusas no que se refere à necessidade de criar um estado de bem-estar social: ignorantes sobre os princípios de uma vida pública regida pelo princípio da igualdade e do respeito; pessoas conservadoras e cameleônicas no que tange aos valores morais; pessoas enfim perversas em tudo na vida.
Até quando viveremos esse ciclo? Que História é essa em que tudo sucede “…se demorando em ser tão ruim”?
Trata-se de uma História bem capturada pelo samba, que representa a “lágrima clara sobre a pele escura”, como magistralmente cantam Gilberto Gil e Caetano Veloso. Na voz doce de ambos e para quem tem escuta atenta, soa a denúncia e também os versos de alento de que “alguma coisa acontece/no quando agora em mim/cantando eu mando a tristeza embora”.
Aprendemos há muito que “o samba é o pai do prazer/o samba é o filho da dor/o grande poder transformador”. Ele é verdadeiramente isso! Vivemos tempos de tristeza, de raiva e receios no Brasil e o samba nos manteve dominando os nossos pés. Que venham os sambas, apesar da dor, e que também por causa dela nos oferece a noção de coletividade. Uma coletividade que vivo o risco de esfacelamento diante das ignomínias políticas que pululam no país. Para barrar esse processo, o samba nos convoca a fazer uma roda, uma reunião barulhenta, sim, atravessada pela alegria de viver em que o ritmo balança os nossos corpos, nos dá o molejo atrevido e nos desafia a varar a noite para ver o sol nascer. A nossa História tem, sim, que dar em samba, sem desdém!
Sambar sobre a dor é o nosso jeito de fazer política e talvez seja um jeito único no mundo.
No artigo anteriormente publicado, afirmei que a História do Direito transposta em códigos, leis esparsas, instituições e, sobretudo, no texto constitucional, embora diga muito sobre a nossa evolução política e involuções está longe de contar toda a História. De fato, no caso brasileiro, essas normas não dizem nada sobre as forças violentas que nos sacudiram e, eventualmente, nos sacodem. Tomadas como expressão da vitória fundadora de uma ordem, essas normas são vistas na perspectiva de progresso mas as forças continuam amassando os papéis, jogando-os sob botas que passam por cima de qualquer linha, que, de longe, represente um limite civilizatório a ser respeitado.
No Brasil, as botas apoiadas por setores econômicos poderosos da sociedade, escreveram uma parte significativa da nossa História, pelo menos, desde 1889; levantaram-se da poeira depois da ditadura de 1964-1988 e, mais do que nunca, com apoios similares aos do passado, voltaram à sujeira do despudor. Apostaram num ex-militar desqualificado que agitou parcelas variadas da população para, exaltando a história mal contada ao longo da ditadura militar, negar a ocorrência desse período e eleger a desordem como ordem estabelecida sem nada propor de duradouro e razoável, nenhum interesse em alcançar uma convivência social pacífica. Só ideias disruptivas! Desse modo, caminhamos para além de qualquer limite e, para o fundo de um poço com alçapão, como se tem dito nas redes sociais.
CRISE
Eis a sensação que se vivencia no Brasil desde 2016, pelo menos, quando se tirou do poder a Presidente Dilma, acenando-lhe um perverso “Tchau, querida!”. Situação, aliás, que foi muitíssimo agravada senão provocada pela Lava Jato, a qual, com os seus homens engravatados, vaidosos da imagem de Harvard, entusiastas de um power point de fins messiânicos para combater a corrupção sem nunca combatê-la efetivamente; todos eles, seres pobres de espírito democrático, forçaram e arrebentaram as linhas de interpretação constitucional para liberar endinheirados delatores (inventores de informação útil) em troca da prisão de Lula, baseada apenas em convicção. Finalmente, a convicção revelou -se farsa, foi desfeita por decisão do STF que constatou a inexistência de provas, tornando insustentável a prisão de Lula.
Fraturou-se o sistema judicial brasileiro com a Lava Jato e por causa disso, hoje, a temperatura da crise ainda sobe alguns graus.
Para reparar a fratura há uma corrida frenética, exaustiva e desafiadora para que o STF não deixe a “corda se partir” e para fazer valer as instituições burocráticas e institutos da doutrina jurídica brasileira que mais do que nunca representam um sopro de uma ordem minimamente estabilizadora da vida institucional e social do país. O Judiciário, o Ministério Público que são, dentre outras instituições, uma garantia do ideal democrático, abrigam em seus gabinetes pessoas com opiniões divergentes e até opostas e, em certa medida, nutridas por embates cotidianos. Isso por si só constituiria uma realidade democrática, não fossem os delírios de alguns que ainda se sentem inspirados pela Lava Jato e se excedem no seu ofício, impondo aos demais a necessidade de fazer um esforço hercúleo para alcançar uma eficácia mínima de direitos humanos e de cidadania no país, combatendo o lawfare.
Além do ambiente febril no sistema de justiça, no campo da representação política partidária, se tem uma Câmara de Deputados, em boa parte, muito simpática à engorda de bois e não exatamente preocupada com a fome do povo que grassa nas esquinas dos centros urbanos, no interior rural do país e até nas regiões mais verdes.
Foi justamente uma parte significativa dessa Câmara que votou na noite da quinta-feira da semana passada (entre 08 e 09 de maio) uma resolução para barrar uma Ação Penal em curso no STF relativa à tentativa de golpe, em 2023, para salvar um deputado e a partir dele uma penca de gente. Nessa ação o chefe do governo anterior (2018-2022) figura como réu juntamente com os generais cheio de estrelas obscurecidas. A resolução é mais um ato, dentre tantos, tresloucados. Mais um que não se rege pela lógica jurídica existente no país e, desse ponto de vista, não se sustenta. Mais uma ação tresloucada que parece uma metralhadora giratória para transformar a vida institucional do país num campo de ensanguentados à beira da morte. Vive-se, assim, mais uma vez e, com intensidade, uma situação que ameaça a nossa integridade em todos os sentidos: física, social, política, territorial e institucional.
Paira sobre a cabeça dos membros do STF, nesse momento, o temor de que o absurdo desse trancamento da Ação Penal se converta num redemoinho institucional, levando-nos do “Caos à Lama”. Há uma crise profunda dentro de todas as instituições. Tudo é Guerra sem perspectiva de paz e a Câmara intoxicada pela estupidez, na votação recente, cria empecilhos para uma Ação Penal necessária, visando desestabilizar o Poder Judiciário e desacreditá-lo em tudo.
CIRCO
Que ninguém se esqueça, mas temos um ex-Presidente do Brasil egresso das Forças Militares e que tem na cabeça a ideia de ser um “Imperador absoluto”, anunciando de forma tosca: “Constituição sou eu”, “eu sou o Partido X” mesmo sem, à época, ter um.
Os tempos do Imperador, que fique bem claro, nunca foram dourados para o povo brasileiro. Foi nessa época que pessoas foram escravizadas e o Imperador se fazia por bajuladores. Algo muito semelhante às imagens de um paciente no hospital, supostamente recém-cirurgiado em virtude de um problema abdominal grave. Num paralelo com os tempos do Imperador, seus congêneres atuais encontram nas milícias (réplica na contemporaneidade brasileira dos capitães do mato) a proteção dos seus interesses e a realização das suas vontades. Em torno desse “Imperador” sem coroa, mas coberto da arrogância despótica, gravitam muitos serviçais para compor o quadro adoecido e farsa da força de superação.
É “espetáculo” de degradação contínuo o que ocorre no centro da “Corte Imperial”. É como se ela fosse um picadeiro onde tudo que parece absurdo e, efetivamente, o é acontece diante de uma plateia atônita. É como um circo sem magia, um circo mambembe no qual o espetáculo derrapa num figurino esfarrapado. A imaginação seca diante do que se vê. É circo repleto de palhaços sem profissionalismo e sem a inteligência que é habitual nesse personagem circense. São palhaços que se movem na fronteira entre o cômico e o trágico sem saber interpretar nenhum desses estados. É circo cuja plateia se divide entre gente boquiaberta, que vê o fogo consumir a lona e se coloca na saída de emergência e gente que, ainda, se acha absorta nos aplausos.
CERCO
O trabalho normal e necessário que está sendo realizado agora pelo STF, por exemplo, vem provocando muito mal-estar na soberba do “Imperador”.
Como sói ocorrer com todo procedimento de natureza investigatória, ao final do Inquérito sobre a tentativa de golpe no dia 08 de janeiro de 2023, o Procurador Geral de República (PGR), após exame minucioso, fez o seu trabalho: ofereceu a denúncia, assegurando a todos os denunciados o direito de defesa. Nada que esteja fora da Constituição de 1988. Tudo nos conformes. Isso, porém, é visto como um cerco pelo mais espetaculoso dos réus, ávido em agitar os outros para se evadir e não responder pelos atos que cometeu. Ele fez agonizar a jovem democracia brasileira quando estava na cadeira do poder e, agora, se diz adoecido, justo quando a democracia reage dentro das “quatro linhas da Constituição”.
Os contornos institucionais do país, construídos ao longo de décadas da História do Direito vão pouco a pouco se restaurando, enquanto resiste às ameaças delirantes de bestas-fera que pretendem avançar sobre o Estado brasileiro para estraçalhá-lo, tirar-lhe um pedaço e entregar os restos às hienas globais.
CICLOS
O Brasil oscila assim entre o passado e o futuro, às vezes, parecendo se situar nos primórdios da República, sempre que se abre um espaço na imprensa nacional para ouvir gente desqualificada vociferar a favor da tradição, da família e da propriedade. A tradição que consiste em manter nesse território os homens, os machos brancos, de peito estufado contra negros, índios e mulheres, exatamente como fizeram os colonizadores, desta feita, porém, sem caravelas. Eles transitam montados em motocicletas, ou em carros de som para cumprir o suposto papel de macho: demarcar território. Animalesco, aliás! Nessa demarcação, ironicamente, nem o xixi, nem o peito estufado, nem as patas estão se revelando suficientes; as armas lhe são providenciais mas elas estão com pouca munição no momento. Tirem-lhe as armas e não se ouvirá um pio.
Como se fosse uma série, “Enquanto isso na sala de Justiça”, alguns membros do Ministério Público enfrentam dificuldades para agir, outros se acomodam em fazer um pouco e, de mão em mão, canetadas consignam despachos salutares, brilhantes, corajosos e alguns outros tresloucados e determinantes do pior; os magistrados vão tomando as decisões nos casos para os quais são demandados ou diante das situações em que precisem defender a existência e o exercício de suas funções, produzindo juízos ora acertados, ora equivocados. Lá vai o Brasil cumprindo um ciclo que é quase um eterno retorno!
Eterno retorno, aliás, é uma noção trazida por Nietzsche e compreendida por vezes apenas numa dimensão cosmológica como se fosse um destino fatídico. Em uma linguagem didática e acessível a todos, essa noção talvez possa ser explicada através da metáfora de cartas de um baralho. Imagine que essas cartas sejam contínua e perpetuamente embaralhadas… em virtude disso, sucede que as combinações entre elas, dentro de um tempo que é infinito, vão se repetir e podem mesmo indicar uma sequência de repetição porque as combinações das cartas são finitas. Ao mesmo tempo, esse processo pode abrir a possibilidade de “um novo referencial cosmológico” diverso daquele que vem sustentando a moral do Ocidente. Um dos pilares dessa moral, que repousa no Cristianismo, é a do juízo final. Acredita-se no apocalipse e que ele deve ser o fim de tudo, contraposto, aliás, ao começo de tudo: o Big-Bang!
Esquece-se aí da ciência, segundo a qual o Universo continua se expandindo e também da teoria quântica que enxerga uma partícula cuja trajetória no espaço é incerta. Esquece-se o saber ancestral vindo da África que se move de modo circular e não linear; esquece-se a argúcia dos povos indígenas que protegem a natureza para que os ciclos que lhe favorecem a existência e a sobrevivência não tenham fim.
Há incertezas dentro do ciclo! Que alívio! E que o samba persista como o grande poder transformador.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça aposentada e membra do Coletivo Transforma MP
A interpretação restrita e preponderante do ordenamento jurídico empurra as mães para licença-saúde ou para o desemprego
“Como és guerreira”. Essa é a expressão que costumo ouvir das pessoas frente ao cumprimento das muitas e variadas atividades diárias de mãe típica e atípica, bem como dos meus deveres profissionais. Acredito que as pessoas a utilizem como forma de elogio ou reconhecimento por eu, mesmo diante das inúmeras demandas impostas à mãe que possui uma criança autista, conseguir “entregar” resultados e ser extremamente produtiva quando comparada aos pais trabalhadores que não possuem um filho com deficiência.
Em um dado momento, ouvir e ler que eu sou forte e que “dou conta de tudo” afastava um sentimento de autopiedade e me passava a impressão de que poderia, através da privação do sono, de diversão e de autocuidado, concretizar as minhas aspirações profissionais e acadêmicas, além de desempenhar o importante papel de mãe do Thomas e do Guilherme. Contudo, o decurso do tempo mostrou-me que, nas entrelinhas desses comentários aparentemente elogiosos, havia um componente de crueldade, pois neles residia um método – vamos imaginar que ele seja não deliberado – de afastar a corresponsabilidade da sociedade em proporcionar reais condições para a pessoa com deficiência se tornar autônoma e se desenvolver, e, de igual forma, apoiar os que exercem o papel de cuidadores (na maioria dos casos a mãe) possibilitando que eles/elas possam trabalhar, estudar e ter lazer.
Significa dizer que, na esteira da “nova razão individual” e do “absolutismo da meritocracia” (esse último desprovido de qualquer análise profunda e não enviesada), esses elogios buscam criar uma armadura para seus autores, a fim de que os efeitos da dedicação à pessoa com deficiência não os atinjam. Eles querem apenas é ter pena.
Ainda que eu seja uma mulher branca, com estabilidade financeira, casada com um homem feminista e trabalhando com colegas de elevado conhecimento jurídico e cultural, o que já me coloca em uma situação de vantagem em um país pobre e desigual, não é fácil perceber que o meu local de trabalho não quer que os ”respingos” gerados pela falta de tempo, tristeza, cansaço, ou, pior, pela necessidade de mais recursos humanos ou materiais para exercer a mesma função dos demais os atinja. E, para o meu assombro, a “falta de paciência” também se estende às colegas mulheres e mães.
Não ouse fazer um mestrado e publicar um livro, isso geraria ainda mais dúvidas da sua real carga psicológica e física. Não ouse, igualmente, em prosperar na carreira ou dar palestras, seria um acinte.
Se o cenário já não á afável na área pública, ele piora na iniciativa privada. A interpretação restrita e preponderante do ordenamento jurídico empurra as mães para licença-saúde ou para o desemprego, já que, atualmente, não há obrigação legal de reduzir a jornada de trabalho ou de conceder teletrabalho. E, se uma empresa – voluntariamente – proceder à redução da jornada, ela exigirá a renúncia de posições de direção e chefia ou, ainda, promoverá a redução do salário (de quem precisa muito para pagar as necessárias terapias). Muitas mães atípicas sequer dão publicidade que possuem um filho autista, temendo retaliação ou a dispensa do emprego.
É preciso, então, um olhar mais fraterno da sociedade, para permitir um cuidado com qualidade e, ao mesmo tempo, conferir espaço para a realização profissional. É preciso que a sociedade contribua para este objetivo. Se o mote não for pelo viés humano, que seja pelo econômico: se as crianças autistas não receberem tratamento adequado, elas perderão a chance de serem independentes; e se as suas mães não recebem apoio para prosseguir em suas atividades profissionais, o custo monetário no futuro será maior. E a conta será paga por todos.
Para constar: não sou guerreira e tampouco dou conta de tudo sem pagar um preço altíssimo. As mães não querem pena, querem suporte para poder estudar, trabalhar e sorrir.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP
Thaís Fidelis Alves Bruch – Mãe atípica, Procuradora do Trabalho e Coordenadora do Grupo de Estudos “Inclusão de Pessoas Neurodivergentes no Trabalho” do Ministério Público do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.
Não era esperado que um sul-americano de origem operária — técnico e faxineiro de laboratório e segurança de boate — chegasse ao posto maior da Igreja Católica. Apesar do relato bíblico de que Jesus valorizava a simplicidade. Escolheu para discípulos trabalhadores manuais, pescadores, cobradores de impostos e fabricantes de tendas.
Não era esperado que o papa utilizasse vestes simples: sapatos pretos ortopédicos e batina branca, dispensando sapatos vermelhos, detalhes suntuosos, capas e adornos. Apesar do registro bíblico de que Jesus usava sandálias e uma túnica de “tecido terreno”, sem costuras, um pouco abaixo do joelho — ricos usavam as que iam até o tornozelo.
Não era esperado que o papa dissesse que “a Igreja não pode fechar as portas para ninguém”, em postura de acolhimento a imigrantes, divorciados, uniões estáveis e homossexuais, afirmando que “toda pessoa é filha de Deus. Deus não rejeita ninguém, Deus é pai. E eu não tenho o direito de expulsar ninguém da Igreja. Não só isso, meu dever é sempre acolher”. Apesar das passagens bíblicas em que Jesus oferece acolhimento, perdão e oportunidade de conversão a acusados de crimes e imoralidades.
Não era esperado que o papa criticasse o consumismo. Fazendo a defesa de um modelo “mais inclusivo e humano”, defendesse o bem-estar das pessoas, e não apenas o lucro, incentivando a justiça social. Apesar da mensagem bíblica em que Jesus condena o excessivo apego à riqueza e à exploração dos menos favorecidos.
Não era esperado que o papa devotasse tamanha atenção à ecologia, ambiental e humana. Evocando um admirável cântico de São Francisco de Assis, o Sumo Pontífice assinalou que a Terra, “nossa casa comum”, pode ser comparada ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. O contundente alerta da crise ambiental, na encíclica Laudato Si (2015), supera a visão tradicional do meio ambiente, entrelaçando questões sociais, trabalhistas, econômicas e espirituais. Convoca à ação para a proteção do planeta e aponta para a urgência de uma ecologia integral. Apesar das Escrituras destacarem que, sendo criados à imagem de Deus, não nos foi conferido um mandato para ignorar a necessidade de “cultivar e guardar” o jardim do mundo, sinalizando uma relação de reciprocidade responsável entre os seres humanos, e desses com a natureza, que nos impõe a obrigação de velar, proteger, cuidar e preservar.
Em que pese as precárias condições de trabalho tenham atraído a atenção do Vaticano, desde a Carta Encíclica Rerum Novarum (1891), num contexto em que a “condição dos operários” assustava sob o receio da “solução socialista”, não era esperado que o papa Francisco externasse tão grande sensibilidade com o tema: “Trabalho quer dizer dignidade, trabalho significa trazer o pão para casa, trabalho quer dizer amar!”. A defesa da dignidade nas relações de trabalho, com igual retribuição para homens e mulheres e o respeito pelos direitos conquistados, também veio na forma da convocação para a urgência de um novo pacto social humano que, diminuindo as horas de trabalho, criasse oportunidades para os jovens: o “trabalho é o primeiro dom dos pais e das mães aos filhos e às filhas, é o primeiro patrimônio de uma sociedade. É o primeiro dote com o qual os ajudamos a levantar voo para a vida adulta”. Apesar de que as manifestações de Francisco são inspiradas na figura bíblica de São José operário, desenvolvendo-se como uma prece “Por todos. Para que não falte trabalho a nenhuma pessoa e todos sejam justamente retribuídos e possam gozar da dignidade do trabalho e da beleza do repouso”.
Não se espera que a principal liderança da Igreja Católica, estrutura com sólidas tradições litúrgicas, assuma o protagonismo em temas como o ambiente, o trabalho e a economia. Talvez o carismático papa, apesar de alguns olhares céticos, tenha se posicionado em questões mundanas em razão do evidente risco para o presente e o futuro da humanidade das práticas predatórias, ambientais e trabalhistas, que vêm sendo toleradas ou estimuladas por lideranças leigas. Francisco será lembrado pela sensibilidade de quem, abandonando a postura contemplativa e o cômodo discurso de floreios abstratos, atraiu a admiração de um amplo espectro de credos, demarcando o rumo para que a milenar instituição se mantenha relevante em meio aos graves desafios contemporâneos.
O mundo revisitou nos últimos dias diversos acontecimentos, ideias e histórias do papa Francisco, morto no feriado de Páscoa. Dentre todas não passou desapercebido uma característica pessoal do pontífice: a sensibilidade diante de todo e qualquer tipo de sofrimento.
Esse apanágio permeia os temas mais importantes da humanidade que foram objetos de reflexões cuidadosas: totalitarismo financeiro, crise climática, imigração, justiça social, igualdade, pobreza, marginalização, povos indígenas, desinformação por redes sociais, abusos sexuais, fraternidade, liberdade religiosa, guerras, encarceramento penal massivo, funções da pena e missão do direito penal. Nada, absolutamente nada, passou superficialmente pela mente privilegiada dele.
A insistência no princípio da dignidade humana norteou as preocupações na questão penal. O postulado kantiano de que o homem não pode ser instrumentalizado, porque possui dignidade própria que impede qualquer tipo de utilitarismo, foi defendido corretamente sem cair na armadilha do retributivíssimo moralista.
Aliás, apesar da força religiosa histórica do fundamento absoluto da pena como retribuição da culpabilidade, o repúdio à incitação da vingança parte também da concepção de dignidade humana, que geralmente é usado para impedir instrumentalizações contra os fins preventivos da pena. Isso reafirmou o postulado clássico de Beccaria, segundo o qual “não existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em alguns casos o homem deixe de ser pessoa e se torne coisa” (XX, Violências). [1]
As condições degradantes de vida no cárcere foram denunciadas a partir do contato direto com a realidade (realismo), é dizer, sem intermediação do idealismo penal. No discurso do Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, de 15 de novembro de 2019, isso ficou claro: “O direito penal, também nas suas correntes normativistas, não pode prescindir de dados elementares da realidade, como os que manifestam a operacionalidade concreta da função sancionatória. Qualquer redução dessa realidade, longe de ser uma virtude técnica, ajuda a esconder as caraterísticas mais autoritárias do exercício do poder.”
Lembrança mesmo em estado de saúde ruim
Por isso, tal como descreveu em 1781 Edmund Burke sobre os feitos de John Howard, o pai da reforma do sistema penitenciário, o papa Francisco “mergulhou nas profundezas das masmorras, mergulhou na infeção dos hospitais, inspecionou as mansões da tristeza e da dor, mediu as dimensões da miséria, da depressão e do desprezo, lembrou-se dos esquecidos, assistiu os negligenciados, visitou os abandonados, comparou e coligiu os aflitos de todos os países”.
Não foi por outra razão que os prisioneiros estocados em cavernas modernas foram lembrados mesmo quando o estado de saúde dele não era estável. Nos últimos dias de sua vida, após sair da Policlínica Agostino Gemelli, em Roma, apesar das dificuldades físicas, os pensamentos estavam voltados aos sofrimentos dos presos. Ele não só visitou a prisão Regina Coeli de Roma, conforme revelou o jornal italiano La Repubblica, como também doou 200 mil euros ao centro penitenciário de menores Casal del Marmo de Roma.
O monsenhor Benoni Ambarus recordou que a relação entre o papa e a população carcerária não é nova: “Até poucos dias atrás, o Santo Padre estava arrastando seu corpo para o Regina Coeli, para gritar ao mundo, com toda a sua força, a necessidade de prestar atenção aos prisioneiros. Ele doou seus últimos bens a eles, 200.000 euros de sua conta pessoal”. “Quando conversamos sobre isso, eu o vi perturbado, ele sofria pensando nas condições das prisões.” [2]
Outros momentos foram marcantes para todos aqueles que se interessam pela questão penal: o discurso à delegação da Associação Internacional de Direito Penal, de 23 de outubro de 2014, alertou-se para um fenômeno comum das sociedades modernas: pânicos morais criam, de forma estereotipada, os próprios responsáveis por supostos danos sociais, quase sempre concentrados na vítimas do processo de marginalização social. Sobre isso disse ele:
“A realidade mostra que a existência de instrumentos legais e políticos necessários para enfrentar e resolver conflitos não oferece garantias suficientes para evitar que alguns indivíduos sejam considerados culpados dos problemas de todos. A vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada. Contudo, vivemos em tempos nos quais, tanto por parte de alguns sectores da política como de certos meios de comunicação, por vezes se incita à violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei.”
Luta contra a opressão A figura do bode expiatório das mazelas sociais é uma forma de acalmar os sentimentos de insegurança de parcela abastada da população, que são alimentados por um discurso politizado do inconsciente. Mas, por outro lado, é também um caminho legitimador da criminalização da pobreza, da manutenção da violência da pena de prisão contra os mais vulneráveis. Nesse ponto, na luta contra todas as formas de opressão, o papel dos meios de comunicação ganha bastante relevância, porque a liberdade de imprensa tem um papel importante de informar corretamente, mas não pode criar alarme, pânico social e destruir histórias pessoais na divulgação de fatos criminosos. Isso porque, como disse ele, “estão em jogo a vida e a dignidade das pessoas, que não podem se tornar casos publicitários, muitas vezes até mórbidos, condenando os supostos culpados ao descrédito social antes de serem julgados ou forçando as vítimas, com fins sensacionalistas, a reviver publicamente a dor sofrida”.
A espetacularização de casos penais deveria, há muito, ser completamente abolida, seja mediante proteção da imagem e nome das pessoas supostamente envolvidas no cometimento de um tipo de injusto, seja proibindo programas de rádio e televisão de natureza sensacionalista. Há também, ao lado desse discurso politizado do inconsciente que representa os criminosos como pessoas perigosas e diferentes, aquilo que atualmente chamamos de populismo penal, de direita e de esquerda, que arranca da pulsão irracional punitiva, como alimento do senso comum, para encarcerar e, de consequência, excluir socialmente.
O apelo convicto nos fins da pena, como remédio recomendado aos vários tipos de problemas sociais, é incorreto sob qualquer ponto de vista. Afinal, asseverou ele, “não se trata de confiança em qualquer função social tradicionalmente atribuída à pena pública, mas antes da convicção de que mediante tal pena se possam obter aqueles benefícios que exigiriam a implementação de outro tipo de política social, económica e de inclusão social”. O fanatismo dos agentes penais e do homem de rua pelas funções declarada da pena de prisão é uma forma de enfermidade do ser. Uma mescla de maldade, vingança e frustração.
Sistemas penais sem controle
Por outro lado, há clara percepção de que os sistemas penais estão fora de controle. O fim de prevenção retratado na mera intimidação (efeito geral negativo) só tem servido para endurecer as penas e causar desproporcionalidade.
Com isso, na prática, implementa-se a finalidade mais deletéria da pena de prisão sobre os condenados e encarcerados, que é a neutralização ou inocuização, sem qualquer utilidade social. De consequência, o debilitamento do direito penal da liberdade gera um direito penal da desigualdade para as classes subalternas e, concomitantemente, um direito penal do privilégio para os grupos sociais economicamente abastados. Essa degeneração do direito penal pelo discurso expansionista da prevenção da pena foi observada por ele:
“Assim, o sistema penal vai além da sua função propriamente sancionatória para se colocar no terreno das liberdades e dos direitos das pessoas, sobretudo das mais vulneráveis, em nome de uma finalidade preventiva cuja eficácia, até agora, não se pôde comprovar, nem sequer nas penas mais graves, como a pena de morte. Corre-se o risco de não conservar nem sequer a proporcionalidade das penas, que historicamente reflecte a escala de valores tutelados pelo Estado. Foi-se debilitando a concepção do direito penal como ultima ratio, como recurso à sanção, limitado aos factos mais graves contra os interesses individuais e colectivos mais dignos de protecção. Debilitou-se também o debate sobre a substituição da prisão com outras sanções penais alternativas.”
Na Carta ao penalista argentino Zaffaroni, o papa Francisco adverte o erro comum de insistir apenas no castigo e confundir justiça com vingança. Recorda que, na esteira da produção científica comprometida com a liberdade, o aumento e endurecimento de penas não resolvem os problemas sociais nem diminuem os índices de delinquência.[3]
Nesse sentido, no discurso do Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, de 15 de novembro de 2019, ele descreve o estado atual do direito penal: “… o direito penal não conseguiu proteger-se das ameaças que, nos nossos dias, dominam as democracias e a plena força do Estado de direito. Por outro lado, o direito penal ignora frequentemente os dados reais, assumindo assim a forma de conhecimento meramente especulativo.”
Desafio ao sistema judiciário
Assim, diante da idolatria do mercado, do mercado divinizado e globalização do capital especulativo, que conduz a um modelo de exclusão, os penalistas “deveriam perguntar-se hoje é o que podem fazer com os seus conhecimentos para combater este fenômeno, que põe em risco as instituições democráticas e o próprio desenvolvimento da humanidade.”
O desafio de cada penalista seria reabilitar o princípio-guia da cautela in poenam, isto é, “conter a irracionalidade punitiva, que se manifesta, entre outras coisas, no aprisionamento em massa, no apinhamento e na tortura nas prisões, na arbitrariedade e no abuso das forças de segurança, no alargamento do âmbito da pena, na criminalização do protesto social, no abuso da prisão preventiva e na rejeição das mais básicas garantias penais e processuais”.
Neste contexto, ele deixou claro que “a missão dos juristas pode ser unicamente a de limitar e conter tais tendências. É uma tarefa difícil, em tempos nos quais muitos juízes e agentes do sistema penal devem desempenhar a sua tarefa sob a pressão dos meios de comunicação de massa, de alguns políticos sem escrúpulos e das pulsões de vingança que se insinuam na sociedade. Quantos têm tal responsabilidade estão chamados a cumprir o seu dever, dado que não fazê-lo põe em perigo vidas humanas, que precisam de ser cuidadas com maior intrepidez de quanta se tem por vezes no cumprimento das próprias funções”.
A partir da primazia da vida e a dignidade da pessoa humana (Primatus principii pro homine), hoje tão esquecidos, o papa Francisco ainda é enfático:
1) rejeita a pena de morte, legais e ilegais (execuções extrajudiciais); 2) rechaça a pena perpétua, que “é uma pena de morte escondida”; 3) propõe a retomada do direito penal mínimo de proteção de bens jurídicos e uma justiça penal restaurativa, sem deixar de insistir na melhoria das atuais condições carcerárias, em respeito ao princípio da dignidade humana das pessoas privadas da liberdade, porque em diversas partes do mundo as deploráveis condições de detenção são um autêntico aspecto desumano e degradante, como produto das imperfeições do sistema penal e resultado do exercício arbitrário e cruel do poder sobre as pessoas privadas da liberdade; 4) denuncia as condições da prisão dos presos sem condenação e dos condenados sem julgamento, porque a prisão preventiva abusiva que procura uma antecipação da pena constitui “outra forma contemporânea de pena ilícita oculta, para além de uma aparência de legalidade;” 5) alerta sobre a tortura e outras medidas e penas cruéis desumanas e degradantes, entre elas a própria reclusão em prisões de máxima segurança; 6) alerta sobre a aplicação das sanções penais a crianças e idosos e a outras pessoas especialmente vulneráveis; 7) define exemplos do campo de legitimidade do direito penal: o delito do tráfico de pessoas como delito contra a humanidade; o delitos de corrupção sempre e quando “causam graves danos sociais, quer em matéria económica e social, quer em qualquer tipo de obstáculo que se intrometa no funcionamento da justiça com a intenção de conseguir a impunidade para as próprias burlas ou para as de terceiros;” os crimes económicos organizados dos mais poderosos, das corporações do capital financeiro internacional, que afetam a propriedade, o meio ambiente e a vida dos povos indígenas, levando as pessoas à fome, à miséria, à migração forçada e à morte por doenças evitáveis; os delitos ambientais quando constitutivos do «ecocídio», ou seja, da perda, dano ou destruição de ecossistemas num determinado território, cujos habitantes são severamente afetado pela contaminação maciça do ar, dos recursos da terra e da água, flora e fauna; 8) denuncia o incentivo involuntário à violência, expressada na ideia de legítima defesa liberal, que justifica os crimes cometidos por agentes das forças de segurança; 9) repudia a cultura do desperdício e a cultura do ódio; 10) constata o uso do lawfare e as falsas acusações contra líderes políticos progressistas, que instrumentaliza a luta contra a corrupção com a finalidade de combater os governos indesejados, reduzir os direitos sociais e promover um sentimento de antipolítica do qual beneficiam aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário.
Legado do papa Francisco
Com essas lições preciosas, o legado deixado é imenso: desmarcara os hipócritas que, sedimentes cristãos, são indiferentes aos sofrimentos das pessoas mais vulneráveis, vítimas das agências penais e seus métodos bárbaros. Cristãos de mera fachada e moralistas medievais que, no fundo, gozam do sofrimento humano, não se envergonham do incremento da violência e causam desigualdade na aplicação do direito e injustiça social. Políticas de lei e ordem, armamentistas e de ampliação incontrolável dos poderes policiais (alguns selvagens) estão entre as mais tocas violações dos direitos fundamentais básicos dos cidadãos.
O projeto anti-iluminista em curso, na política e no direito, mas no direito penal em especial, é um retrocesso civilizatório. Portanto, barbárie. É uma programa que atenta contra os valores universais da dignidade humana, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, dos direitos humanos, da separação de poderes e da democracia material. De um lado degenera o direito penal humanista do modelo de Beccaria, pensado justamente para evitar a crueldade e a desproporcionalidade das penas, enquanto que, de outro, abre espaço para um direito penal sem legitimação ético-politica, discriminatório e classista.
No fundo, a luta do papa Francisco contra o poder punitivo irracional em prol dos pobres e do oprimidos é a defesa enfática da refundação (onde já existiu) do garantismo penal, da cultura penalística iluminista e da democracia liberal. Nessa na trincheira entre civilização e barbárie em que se busca um horizonte construtivo de um outro mundo possível, mais inclusivo, mais humano e mais igualitário, ele já faz uma falta imensa.
[1]Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. De José de Faria Costa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 105.
[2]Ossino, Andrea, in Jornal La Reppublica, Monsignor Ambarus: “Prima di morire Papa Francesco ha donato 200mila euro ai detenuti dal suo conto”, 23/04/2025.
[3] Carta do Papa Francisco a E. Raúl Zaffaroni, Boletim IBCCRIM n. 260, 2014, p. 2.
Jacson Zilio é doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha), promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná e membro fundador do Coletivo Transforma MP.
Pensar o lugar híbrido do Ministério Público entre o jurídico e o político é uma tarefa necessária e uma condição de possibilidade do regime democrático em nosso país.
O hibridismo entre o jurídico e o político, esse lugar fronteiriço, soa absolutamente natural à ciência política e à sociologia, mas soa como um lugar estranho aos juristas, que partem de uma noção muito difundida de que direito e política são campos absolutamente distintos e inconciliáveis. E há também um certo consenso de que o direito e a moral são instâncias de correção e purificação da política, ou seja, a percepção da moral como instância de legitimação do bom direito e do direito e da moral como filtros da política. Esse é um antigo debate que data, pelo menos, do século XVIII.
A princípio, o jurídico seria o campo da técnica, da neutralidade e do manejo argumentativo das normas; o campo esvaziado, portanto, de qualquer conteúdo político, o que seria afiançado pelo ingresso mediante concurso público de provas e títulos (art. 127, § 2º) e, no caso do Ministério Público, pela desvinculação do Executivo promovida pela Constituição Federal de 1988 (art. 129, IX). Técnica e neutralidade marcariam, então, o campo jurídico e lhe agregariam legitimidade (legítima, porque neutra, é a atuação do operador jurídico que se apoia apenas na técnica).
Já a política seria o conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica de conflitos quanto a bens públicos,[1] ou “a ideia que conduz à promoção da justiça, da liberdade, da segurança e do bem-estar da comunidade e em nome da qual se promove a atividade conducente à conquista e ao exercício do poder político”.[2]
Há linhas tênues entre o jurídico e o político e sua distinção é problemática, mas talvez seja possível sustentar ao menos uma diferenciação metodológica que se verifica nos campos da linguagem (o juridiquês como estratégia de construção do discurso competente),[3] da argumentação (fortemente principiológica no cenário neoconstitucionalista) e da participação social (a opacidade do sistema jurídico v. a maior porosidade do campo político). Pode-se pensar também numa distinção epistemológica: de um lado, o direito e seus universais abstratos, seu dever-ser e seu código binário (lícito – ilícito); de outro, a política e o seu relacional, seu acúmulo experiencial e os limites nem sempre muito claros entre o lícito e o ilícito.
Mas, não obstante a distinção entre o jurídico e o político, que acolhemos apenas provisória e precariamente, é possível verificar na atuação do Ministério Público brasileiro a existência de pontos de interseção entre o jurídico e o político, os quais estão ancorados no próprio texto constitucional, o que torna difícil a separação desses dois campos. Ou seja, há um campo fronteiriço de atuação do Ministério Público entre o jurídico e o político, um campo de interseção e de certa circularidade que resulta, fundamentalmente, de três razões.
Ao estabelecer as atribuições do Ministério Público, o seu papel, a Constituição prevê não só escopos propriamente jurídicos (a função de custos juris em processos individuais é um bom exemplo), mas também escopos sociais (v.g., atuar como instância de pacificação de conflitos sociais) e políticos (velar pela estabilidade democrática e promover o exercício da cidadania e a participação política através da ampliação do debate público e da visibilização de direitos sociais e de populações vulneráveis etc).
Além disso, o próprio desenho institucional do Ministério Público sofre intervenções do Executivo e do Legislativo e também de entidades da sociedade civil, como se dá relativamente à composição do Conselho Nacional do Ministério Público.
A terceira razão reside no fato de que membros do Ministério Público gozam de independência funcional e de garantias constitucionais (inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios) típicas de agentes políticos. Inclusive, isso faz com que o Ministério Público seja considerado, por alguns, como um quarto poder.
Em suma, o Ministério Público é uma agência política em razão de sua autonomia frente aos Poderes, das prerrogativas que ostenta, da possibilidade de manejo de poderosos instrumentos extrajudiciais e judiciais de controle e da amplitude de suas atribuições constitucionais.[4]–[5]
Mas, mais especificamente, onde estão situadas tais interseções?
As interseções entre o jurídico e o político
No campo das interseções entre o jurídico e o político é possível enxergar no texto constitucional pelo menos duas “camadas”, que se tocam e se comunicam.
Primeira camada: interseções processuais (extrajudiciais e judiciais)
O art. 129, I da Carta Política confere ao Ministério Público brasileiro a titularidade privativa da ação penal. A gestão de populações através do manejo do direito penal é uma velha técnica de controle social, sobretudo das populações “marginais”. Ou seja, o controle social de “populações perigosas”, geralmente jovens negros da periferia, faz do Ministério Público um ator central da política criminal concebida como resposta à demanda por ordem.[6]
As atribuições originárias dos Procuradores-Gerais de Justiça no campo penal também são extremamente sensíveis, pois podem desestabilizar coalizações políticas e, no limite, a própria democracia, seja por ação ou por omissão.
Além disso, no modelo atual, o Ministério Público possui um grande poder de agenda na escolha de medidas mais efetivas de atuação e de seleção de casos de maior relevância social e uma grande discricionariedade negocial no processo penal (transações penais, acordos de não persecução e colaborações premiadas), sem que haja programas de integridade e códigos de ética suficientemente claros a respeito dos parâmetros dos acordos e de seus limites, o que seria fundamental num momento em que o direito penal se contratualiza e permite generosos poderes discricionários ao Ministério Público.
Ainda na esfera penal, um outro campo politicamente sensível é o controle externo da atividade policial (art. 129, VII), que por ter sido exercido de forma tímida pelo Ministério Público nas últimas décadas levou à captura do debate pelo Supremo Tribunal Federal.[7]
A proteção dos direitos difusos e coletivos e a atuação no campo das políticas públicas (art. 129, III, da Constituição), especialmente relativamente aos direitos sociais, através de ferramentas previstas na Constituição (o inquérito civil e a ação civil pública, principalmente) e na legislação infraconstitucional (o termo de ajustamento de conduta, sobretudo), também compõem o que denominamos aqui de interseções processuais. As ações coletivas nas áreas da saúde (acesso a medicamentos etc) e da educação (acesso à creches, financiamento da educação, educação especial etc) são bons exemplos de intervenções importantes do Ministério Público no campo dos direitos sociais, com todas as dificuldades e problemas que daí decorrem.
A camada de interseções processuais é também composta pelo papel constitucional de defesa do regime democrático (art. 127 da Constituição), uma atuação que se volta à garantia de igualdade na competição política, ao combate à desinformação, ao combate ao controle que as milícias exercem sobre determinados territórios etc, e na própria judicializacão de temas ordinariamente afetos aos poderes propriamente políticos, como a disputa em torno do sentido das regras eleitorais e das práticas do jogo eleitoral.
Segunda camada: desenho institucional
Há, nisso que chamo aqui de interseções entre o jurídico e o político, também uma segunda camada relativa ao desenho institucional do Ministério Público, especificamente a seus órgãos de controle e de Administração superior.
A primeira interseção na esfera institucional diz com a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle (art. 130-A da Carta) cujos integrantes são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, recaindo a nomeação sobre membros indicados pelo próprio Ministério Público, mas também pelo Judiciário, pela Ordem dos Advogados do Brasil, além de dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada indicados pelo parlamento. Não é preciso mencionar que o processo de escolha dos integrantes do Conselho Nacional do Ministério Público tem natureza eminentemente política, mesmo relativamente aos membros indicados pelo próprio Ministério Público, geralmente oriundos das associações classistas ou de integrantes da Administração superior do parquet (ex-Procuradores-Gerais, por exemplo).
Nessa segunda camada também chama a atenção a forma como a Carta Política trata do processo de escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Ministérios Públicos estaduais pelos Governadores, após a formação de listas tríplices pela classe (art. 128, § 3º). A formação da lista tríplice se dá após processo eleitoral interno em que os candidatos apresentam suas propostas ao eleitorado, formado por promotores de justiça e procuradores de justiça em atividade, que vão desde melhores condições de trabalho e exercício das atribuições constitucionais, até questões tipicamente vencimentais e classistas.[8]–[9] Formada a lista tríplice, a segunda e decisiva etapa se dá nas coxias da antessala do Governador, que pode escolher livremente qualquer dos componentes da lista, ou seja, não necessariamente o candidato mais votado pela classe, num processo claramente político que não conta com qualquer mecanismo de controle social e transparência. No âmbito do Ministério Público da União a discricionariedade de escolha é ampla, dando-se a nomeação do Procurador-Geral da República, livremente, pelo Presidente da República, após sabatina do Senado (art. 128, § 1º, da Constituição Federal). Nesse caso, não há sequer lista tríplice, muito embora a associação de classe (ANPR), historicamente, realize consulta prévia aos membros do parquet da União e encaminhe a lista tríplice não vinculante ao Presidente da República.[10]
Se no processo de nomeação o protagonismo é do Executivo, já a possibilidade de destituição dos Procuradores Gerais de Justiça e do Procurador Geral da República é outorgada aos parlamentos dos Estados e da União (art. 128, §§ 2º e 4º, da Constituição Federal).
No campo das interseções entre o jurídico e o político poderiam ser também mencionadas a legitimidade do Ministério Público para a propositura de Ações de Inconstitucionalidade (art. 129, IV), que provocam a jurisdição constitucional e política dos Tribunais, sobretudo do Supremno Tribunal Federal; e a missão de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição (art. 129, II).
Tais interseções ou circularidades podem ser construtivas e úteis aos direitos fundamentais e à democracia ou destrutivas, com se viu em passado recente, e no Brasil poucas instituições habitam e operam nessa zona fronteiriça entre o jurídico e o político: tal não se dá com a advocacia pública, tampouco com a Defensoria Pública; nem mesmo com o Judiciário, salvo relativamente ao seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal, que exerce jurisdição constitucional e, portanto, política.
Em alguns pontos de interseção há técnica jurídica e questões processuais em jogo, sem dúvida, mas a dimensão política é altamente porosa à ideologia, o que impacta a dimensão propriamente jurídica.[11] Ou seja, a dimensão política de atuação do Ministério Público é a porta de entrada da ideologia, o que não é aqui afirmado necessariamente num sentido negativo – salvo relativamente a ideologias antidemocráticas – até porque não há neutralidade na atuação dos operadores do direito, porque não existe neutralidade ideológica, “salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém”.[12]
Além disso, nas interseções muitas vezes não há clareza sobre as fronteiras: onde termina o jurídico e onde começa o político (e vice-versa)? Isso pode se dar, por exemplo, nas negociações realizadas pelo Ministério Público no campo das políticas públicas (termos de ajustamento de conduta), o que envolve discussões de legalidade, mas também discussões sobre prazos, condições etc. Tais fronteiras vão se tornando cada vez mais borradas diante da complexidade de demandas por novos direitos e de suas resistências conservadoras.
Mas há também, no próprio texto constitucional, ao menos duas importantes interdições entre o jurídico e o político relativamente ao Ministério Público.
As interdições entre o jurídico e o político
O art. 128, § 5º, II, “d” e “e” da Constituição vedam o exercício de outras funções públicas, salvo uma função de magistério,[13] e a filiação político-partidária.
Embora as interdições constitucionais impostas ao Ministério Público sejam vistas por alguns como negativas – e o argumento geralmente é o de que tais interdições impedem a representatividade do pensamento do Ministério Público no campo político, diferentemente do que se verifica em outras carreiras jurídicas – penso que elas estabelecem um importante equilíbrio entre o jurídico e o político, um antídoto aos riscos inerentes a um desenho híbrido feito pela própria Constituição.
Se considerarmos que o componente político está no DNA do Ministério Público brasileiro, as interdições constitucionais mostram-se necessárias, na medida em que o perfil político da instituição é potencialmente capaz de empurrar os seus membros para a vida partidária ou para o exercício de cargos de natureza política na Administração Pública ou no parlamento, o que colidiria com o seu papel constitucional de defesa da igualdade da disputa eleitoral e de controle dos atos do Estado. Assim, as interdições são imperativos éticos que visam a garantir a impessoalidade da atuação dos membros do Ministério Público, muito embora não tenham se mostrado capazes de impedir algumas atuações claramente orientadas por interesses político-partidários, como se viu na Operação Lava Jato de Curitiba e sua exótica Fundação.
Os tensionamentos advindos do híbrido jurídico-político
Já se vê então que o campo minado entre o jurídico e o político gera diversos tensionamentos e questionamerntos com as quais o Ministério Público tem convivido desde a instalação desse novo perfil constitucional. Vejamos alguns deles, ao menos os mais evidentes.
Já que a arte da política é a de mobilizar esforços em torno de valores e forjar o consenso, construindo coalizações entre interesses,[14] como lidar com os pontos de interseção entre o jurídico e o político a partir das lentes da pura “técnica”, da neutralidade e de valores morais privados sem conhecer minimamente a ética política e a sua dinâmica relacional? Além disso, como lidar com tais pontos de interseção sem uma formação que vá além do jurídico? Este último ponto é particularmente importante, uma vez que a formação de promotores de justiça e procuradores da república costuma ater-se à dogmática jurídica, havendo poucos incentivos ao aperfeiçoamento funcional numa dimensão interdisciplinar.
Um outro tensionamento consiste em estabelecer parâmetros éticos para lidar com a possibilidade constitucional de intervenções políticas de outros poderes, especialmente quando tais intervenções vão de encontro às decisões da classe (por exemplo, quando o processo de nomeação do Procurador-Geral recai sobre o candidato que não seja o mais votado da lista tríplice).
Temos aqui um campo especialmente delicado e as discussões giram em torno da legitimidade constitucional e democrática da escolha dos Chefes dos Ministérios Públicos pelo Executivo, modelo previsto constitucionalmente, e se tal modelo não careceria de aperfeiçoamentos, mas também sobre a legitimidade interna para a gestão de uma instituição cujos membros gozam de independência funcional, a dificultar a construção de agendas de atuação e de políticas institucionais minimamente coesas por uma Chefia institucional não respaldada internamente por seus pares. Naturalmente, mesmo quando a nomeação recai sobre o mais votado da lista tríplice não há garantias de uma atuação coesa da instituição, dada a independência funcional de seus integrantes, mas a nomeação de quem não encabece a lista tríplice, não obstante a legitmidade democrático do Chefe do Executivo, pode agravar a dispersão do Ministério Público no cumprimento de seus papéis constitucionais.
Outro ponto de tensão se refere a como atuar na defesa dos direitos humanos e das populações vulneráveis e no campo das políticas públicas contra os Poderes Executivo e Legislativo, ou seja, contra os demais atores do campo político (por exemplo, no controle externo da atividade policial). Quais são os limites reais da independência funcional em situações de tensionamento das relações com o poder político? Em que medida uma Promotoria isolada e sem o respaldo de sua instituição é de fato capaz de exercer o controle do Estado à luz dos direitos humanos e dos direitos fundamentais?
Indo além, diante da envergadura das tarefas constitucionais conferidas ao Ministério Público, é necessário resistir ao voluntarismo político,[15] que decorre de uma avaliação pessimista da capacidade da sociedade civil de se defender de forma autônoma, de uma avaliação pessimista dos poderes político-representativos e de uma idealização do papel do Ministério Público na representação da sociedade (a suprir tal deficiência, radicada na própria fragilidade da experiência democrática brasileira, o Ministério Público atuaria como uma ponte entre a sociedade civil e o Estado, vocalizando os interesses público e social, tal qual um poder moderador). O voluntarismo político incorpora a ideia de que o Ministério Público deve atuar como um agente privilegiado de “transformação da realidade social”, inclusive articulando entidades e órgãos e executando projetos sociais nas mais variadas áreas.
Há aqui um paradoxo: o voluntarismo do Ministério Público reforça o seu papel político, muito embora o voluntarismo se edifique a partir de uma retórica “apolítica” de neutralidade (a atuação do Ministério Público seria impessoal) e de tecnicismo (as leis como ferramentas genéricas e abstratas do direito e o Ministério Público como corporação técnica). O problema do voluntarismo é que, levado a extremos, pode gerar graves danos à democracia e às liberdades públicas, além de criar falsas expectativas sobre as reais possibilidades de responsividade do Ministério Público. Pode-se afirmar, inclusive, que do voluntarismo político de parte do Ministério Público resultaram as recentes tentativas de limitação de suas prerrogativas e ferramentas de atuação, como uma resposta da política ao que considera abusos e ilegalidades praticados em nome do combate à criminalidade e à corrupção ou mesmo em nome da defesa dos direitos transindividuais.
Ainda na linha dos tensionamentos, é necessário construir um diálogo com a sociedade civil e os movimentos sociais e lidar melhor com as exigências de accountability.
Percebe-se uma grande resistência do Ministério Público brasileiro à prestação de contas, o que é motivado por duas razões principais: a primeira delas é a independência funcional, pois agências independentes encontram poucos estímulos à prestação de contas; a segunda é a própria garantia da vitaliciedade dos membros do Ministério Público, uma garantia fundamental, mas que se encontra no extremo oposto da alternância própria da política, que é um estímulo importante à accountability.
Mas não se trata de um problema insolúvel e já há alguns caminhos abertos, tal como a elaboração de planos institucionais de atuação coordenada, os quais conjugam independência funcional e unidade e que devem ser permeáveis à sociedade civil e aos movimentos sociais, por intermédio de audiências e reuniões públicas amplamente divulgadas e de participação incentivada.
Enfim, dadas as suas amplas e complexas atribuições constitucionais, não há nada de verdadeiramente surpreendente em considerar o Ministério Público brasileiro um híbrido entre o jurídico e o político. Uma instituição política que, contudo, não dever ser partidária, o que constitui, ao mesmo tempo, um enorme desafio e condição de possibilidade da democracia. Ou seja, a zona de confluência entre o jurídico e o jurídico e os naturais tensionamentos que daí surgem estão na pauta permanente da instituição desde o seu novo perfil dado pela Constituição de 1988, em seus esforços de aperfeiçoamento e na resistência ao cumprimento de suas tarefas constitucionais, inclusive pelo campo político.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP
Rogério Pacheco Alves- Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional e Professor Ajunto da Universidade Federal Fluminense. Promotor de Justiça do MPRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.
O Coletivo Transforma MP entrou com pedido de ingresso como Amigo da Corte no Tribunal Superior do Trabalho (TST) para discutir o tema Pejotização, que se refere à contratação de empregados como pessoa jurídica.
O caso concreto envolve um industriário de Vila Velha (ES) que pede o reconhecimento de vínculo empregatício após ser contratado como pessoa jurídica para exercer as mesmas funções e no mesmo contexto organizacional que os trabalhadores com vínculo empregatício de uma empresa de energia.
No documento, o Coletivo Transforma MP enfatiza a crescente pejotização, nos últimos anos, e seus efeitos negativos para os trabalhadores, que se veem desprovidos de seus direitos trabalhistas, assim como para o FGTS e para Previdência Social. Em relação à Previdência Social, os dados utilizados apresentados pelo Coletivo foram extraídos do Relatório “Pejotização entre Trabalhadores Recentemente Demitidos e seus Impactos”, elaborado pela Auditoria Fiscal do Trabalho, que comprova a gravidade da questão: entre 2022 e 2024, mais de 5,2 milhões de trabalhadores que tiveram vínculos de emprego rescindidos abriram CNPJs, sendo 61% como MEIs. Mas muitos deles continuam a laborar para as mesmas empresas. Essa conversão de empregado em pseudo-empreendedor gerou perdas anuais de R$53,3 bilhões em contribuições previdenciárias e R$13,7 bilhões ao FGTS.
O Transforma MP juntou à ação o artigo “Os efeitos da Pejotização na Seguridade Social”, escrito pela Procuradora do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP, Dra. Vanessa Patriota da Fonseca, que analisa a pejotização como fenômeno enfraquecedor do sistema de proteção social, precarizando as relações laborais e comprometendo os pilares da seguridade social e da justiça fiscal.
O Transforma MP sempre defendeu os direitos sociais trabalhistas e os direitos humanos em geral, razão de ser do próprio coletivo, e está atento a todos os desmontes que estão ocorrendo no país nos últimos anos, inclusive o enfraquecimento do Judiciário Trabalhista. Espera que todos os órgãos que compõem o sistema de Justiça, especialmente o Supremo Tribunal Federal na condição de guardião maior da constituição, atentem-se para o problema e tenham capacidade de distinguir verdadeiros contratos de prestação de serviço de relações de emprego escondidas com o véu da pessoa jurídica.
Direito do Trabalho e democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem
França, maio de 1940. O Exército alemão invade o país em uma velocidade impressionante. As divisões de blindados (Panzerdivision) avançam em um ritmo avassalador, impulsionadas pela ingestão massiva de metanfetamina pelos soldados, inaugurando a chamada Blitzkrieg (guerra-relâmpago). Após a conquista alemã de Abbeville, há apenas um porto aberto no Atlântico como última possibilidade de fuga: Dunquerque. Era questão de horas bloqueá-la e encurralar as tropas Aliadas. Todavia, Hitler emitiu o “comando de parada”, ordem até hoje discutida pelos especialistas em história militar.
Foi o tempo necessário para os britânicos organizarem uma evacuação sem precedentes: 10 mil embarcações de socorro atravessaram o Canal da Mancha, entre navios de guerra, barcaças, vapores, iates particulares e lanchas do Tâmisa, e resgataram cerca de 340 mil soldados, por meio de pontes improvisadas de caminhões cobertos por tábuas. Era a Operação Dínamo, na qual foram imprescindíveis as embarcações civis, como bem retratado no filme Dunkirk, de Christopher Nolan , tendo inspirado o discurso do então primeiro-ministro Winston Churchill no Parlamento do Reino Unido: “Lutaremos nas praias, lutaremos nos terrenos de desembarque, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; nunca nos renderemos”. O fracasso dessa operação poderia ter ocasionado a derrota dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, com consequências desastrosas para a democracia e os direitos humanos na Europa.
Brasil, abril de 2025. O Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a repercussão geral no Tema 1389 sobre a competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade. O relator, ministro Gilmar Mendes, determina a suspensão nacional de todos os processos que tratam da fraude à relação de emprego por meio da contratação de trabalhador autônomo ou constituído como pessoa jurídica (“pejotização”). Há, assim, a possibilidade de legitimação da fraude e de retirada da competência da Justiça do Trabalho com efeito vinculante.
No julgamento de reclamações constitucionais, ministros do STF já vinham admitindo que basta contratar o trabalhador com uma roupagem diversa (sócio, “PJ”, franqueado, associado, etc.) para se afastar a relação de emprego, não importando que os requisitos dela estejam presentes. Trata-se da destruição rápida e avassaladora do Direito do Trabalho no Brasil, em um ritmo de guerra-relâmpago (Blitzkrieg) conduzida pelo STF.
O Direito do Trabalho e a democracia compartilham da mesma estrutura de valores: limitam o poder e permitem que os mais fracos dele participem. Se essas funções essenciais são atingidas, há uma erosão da ideia democrática. A exemplo do discurso de Churchill, é necessário resistir e combater em todas as frentes possíveis. Para tanto, é imprescindível o engajamento da sociedade, dos trabalhadores e dos sindicatos. A Operação Dínamo não teria sido bem-sucedida sem as embarcações civis.
Assim como os Aliados se salvaram pelo oceano em Dunquerque, também podemos recorrer, no além-mar, aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de afirmar que o acesso à justiça requer uma jurisdição especializada com competência exclusiva em matéria trabalhista, consagra o princípio da primazia da realidade para o reconhecimento da relação de emprego, ao contrário do que vem decidindo o STF. Trata-se de princípio de vigência universal, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), devendo-se dar maior importância aos fatos do que à forma.
Em um caso concreto, mesmo com decisão do STF transitada em julgado, se houver violação a dispositivo da Convenção Americana, ratificada pelo Brasil, é possível apresentar uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que a investiga e busca uma solução amistosa entre as vítimas e o Estado. Caso não haja conciliação e a Comissão constate a violação do direito, sem o cumprimento de suas recomendações, apresenta a demanda à Corte Interamericana, que pode vir a reconhecer a responsabilidade internacional do Estado e condená-lo.
Recentemente, a Comissão Interamericana manifestou preocupação com essas decisões do STF, que “não reconhecem a condição de empregados em situações que deveriam estar amparadas pelas normas internacionais e nacionais, o que leva à negação das respectivas proteções trabalhistas e sociais (…), o que também afeta a competência da Justiça do Trabalho”.
A batalha que vivenciamos hoje é decisiva, como a de Dunquerque, e a derrota implicará o aniquilamento do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil, com consequências nefastas para a democracia e os direitos humanos.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP
Lorena Vasconcelos Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.