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Conheça a opinião dos associados e das associadas do Coletivo sobre diversos temas que dialogam com a atuação do Ministério Público dentro da realidade social brasileira.

Propostas Unificadas para Reforma do Sistema de Justiça da Coalisão em Defesa da Democracia

Por um Sistema de Justiça para um Brasil democrático e solidário.

Como resultado das extensas discussões do Fórum Social Mundial – Justiça e Democracia, em Porto Alegre, em 2022, foi elaborada a proposta unificada visando à Reforma do Sistema de Justiça – com ampla fundamentação.

Divulgamos também as propostas específicas do Coletivo por Um Ministério Público Transformador – TRANSFORMA MP, que serviram de base para o documento maior.

Conheça! Divulgue! Construa!”

O Direito como instrumento e o jurista como arquiteto: a delicada relação entre autocracias, golpes de estado e a profissão jurídica 

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

 Por Rogério Pacheco Alves no GGN

Este ensaio explora a intrincada relação entre autocracias, direito e a profissão jurídica, sustentando duas teses centrais e interligadas: a primeira é que as autocracias necessitam do direito para se legitimarem e se perpetuarem no poder; a segunda é que não existem golpes de estado sem a participação ativa de juristas. O argumento principal é que o direito, longe de ser apenas um obstáculo ao poder autoritário, é frequentemente cooptado e instrumentalizado como uma sofisticada ferramenta de dominação. Nesse processo, os juristas, tradicionalmente vistos como guardiões do estado de direito, podem se transformar nos próprios arquitetos de rupturas institucionais e da consolidação de regimes autocráticos.


De fato, a ideia de que regimes autoritários operam em um vácuo legal, baseados apenas na força, é uma simplificação. Muitos autocratas são, na verdade, mestres na manipulação da lei, entendendo que a coerção explícita gera resistências, enquanto o uso estratégico do aparato legal oferece um caminho mais sutil e eficaz para a consolidação do poder. Nesse contexto, surge o conceito de “legalismo autocrático”, cunhado pela socióloga Kim Lane Scheppele, que o define como o processo pelo qual líderes carismáticos eleitos utilizam os próprios mecanismos da lei para, gradualmente, desmantela as instituições democráticas e as salvaguardas constitucionais. Esses líderes, chamados de “autocratas legalistas”, ascendem ao poder por meio das urnas com um discurso populista e, uma vez no cargo, iniciam uma “revolução constitucional” silenciosa. Usando suas maiorias parlamentares, aprovam leis que, sob uma aparência de juridiciadade, concentram poder no Executivo, neutralizam a oposição e capturam as instituições de controle, como o Judiciário e o Ministério Público. O caso da Hungria sob Viktor Orbán é um exemplo paradigmático dessa tática, mas há outros exemplos mundo afora.


O legalismo autocrático manifesta-se por meio de um roteiro comum, que inclui a captura de instituições de controle (tribunais, agências anticorrupção), a manipulação de regras eleitorais para perpetuação no poder, o ataque à sociedade civil, a movimentos sociais e à imprensa independente, e a reescrita da história com a criação de um “inimigo interno” para justificar medidas autoritárias. Ao usar o direito como sua principal arma, o legalismo autocrático representa um imenso desafio, pois explora a deferência social pela lei, tornando a subversão autoritária difícil de ser reconhecida e combatida.


Se as autocracias precisam do direito, elas precisam também dos profissionais que o manejam, pois não há golpes de estado sem juristas: advogados, juízes, promotores e professores de direito frequentemente desempenham um papel decisivo na derrubada de governos eleitos. Historicamente, a profissão jurídica tem fornecido os quadros “técnicos” e intelectuais para justificar e implementar rupturas, colocando-se na posição paradoxal de ser, ao mesmo tempo, a guardiã e a agressora do estado de direito.


As contribuições dos juristas para os golpes incluem a construção de uma narrativa de “caos” e “ilegalidade” para minar o governo, a elaboração de uma “justificativa jurídica” para a ruptura (invocando o “estado de necessidade” ou a “defesa da Constituição”), a redação de minutas de golpe e de atos institucionais que formalizam o novo regime autoritário e, por fim, a legitimação do novo poder perante o Judiciário e a comunidade internacional. Para tanto, costumam se associar às forças armadas, que se enxergam, historicamente, como poderes moderadores em momentos de crises institucionais. Naturalmente, sempre existem juristas que se mantêm fiéis à democracia, contudo, a história demonstra que a colaboração de uma parte significativa da elite jurídica é, muitas vezes, uma condição necessária para o sucesso e a consolidação de um golpe.


Os golpes militares no Brasil e no Chile são exemplos contundentes. Em ambos, o direito foi um instrumento central para a construção dos regimes autoritários, com a participação indispensável de juristas.


No Brasil, o golpe de 1964 que derrubou o presidente João Goulart contou com amplo apoio da elite jurídica. O Ato Institucional nº 1 (AI-1), redigido por Carlos Medeiros Silva, que ganharia da ditadura uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, e Francisco Campos, o jurista do Estado Novo, é um exemplo clássico de legalismo autocrático: suspendeu garantias constitucionais e cassou mandatos em nome de uma “revolução vitoriosa”, enquanto mantinha a Constituição de 1946 formalmente em vigor. Nomes como Alfredo Buzaid e Hely Lopes Meirelles foram cruciais na construção doutrinária que justificou a repressão. Além disso, o Ato Institucional nº 5 (AI-5), o mais duro de todos, foi redigido por Luís Antônio da Gama e Silva, então Ministro da Justiça e professor catedrático da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.


No Chile, o golpe de 1973 contra Salvador Allende também teve um forte componente jurídico. A oposição usou o Congresso e o Judiciário para criar um clima de ilegalidade. Após a tomada de poder, a Junta Militar foi assessorada por juristas como Jaime Guzmán, arquiteto da Constituição de 1980, que institucionalizou o regime de Pinochet.


Em suma, as autocracias contemporâneas não desprezam o direito; pelo contrário, elas o utilizam como uma poderosa ferramenta de legitimação e dominação, numa verdadeira disputa pelo léxico democrático. Da mesma forma, os golpes de estado não são apenas atos de força bruta, mas contam com a participação decisiva de juristas que constroem a arquitetura jurídica da ruptura. Essa constatação obriga a uma reflexão crítica sobre a responsabilidade ética e política da profissão jurídica na defesa da democracia, especialmente em tempos de crise, quando a fronteira entre a legalidade e o autoritarismo se torna perigosamente tênue. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não será mera coincidência …

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.


Referências:
ALVES, Rogério Pacheco Alves. Ditadura civil-militar no Brasil: a disputa pelo uso do léxico democrático. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro: MPRJ, n. 52, abr./jun. 2014.
CUMMINGS, Scott L. “Lawyers in Backsliding Democracy.” California Law Review, vol. 112, no. 2, 2024, pp. 515-98. Disponível em: https://www.californialawreview.org/print/lawyers-in-backsliding-democracy. Acesso em: 19.set.2025.
DEL NEGRI, André. “Os juristas, o regime militar de 1964 e personalidades autoritárias que cruzaram o marco da Constituição de 1988.” História do Direito, vol. 2, no. 3, 2021, pp. 320-42. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historiadodireito/article/view/82963. Acesso em: 19.set.2025.
Lawyers, Conflict & Transition. “Chile – Lawyers, Conflict & Transition.” Queen’s University Belfast / Ulster University. Disponível em: https://www.lawyersconflictandtransition.org/case-studies/chile/. Acesso em: 19.set.2025.
MACHADO, Rodolfo. Juristas de exceção. In: À espera da verdade: empresários, juristas e elite transnacional. História de civis que fizeram a ditadura militar. Joana Monteleone et alii. São Paulo: Alameda, 2016.
SCHEPPELE, Kim Lane. “Autocratic Legalism.” University of Chicago Law Review, vol. 85, no. 2, 2018, pp. 545-83. Disponível em: https://lawreview.uchicago.edu/print- archive/autocratic-legalism. Acesso em: 19.set.2025.

Dois deputados em uma moto: blindagem, anistia e o assalto ao princípio democrático

Foto: EBC

Por Gustavo Livio no GGN

Na calada da noite do dia 16 se setembro, a Câmara dos Deputados aprovou a chamada PEC da Blindagem, que condiciona a abertura de processo criminal contra um parlamentar à autorização de sua casa legislativa. Se um deputado federal porventura assaltar alguém em cima de uma moto ou desviar bilhões em esquemas de orçamento secreto (e essa é apenas uma hipótese), só poderá ser processado criminalmente se houver autorização de seus colegas da Câmara dos Deputados.  

E na calada da noite do dia seguinte (17 de setembro), a Câmara dos Deputados empilhou mais uma atrocidade: aprovou urgência para a votação de um projeto de lei de anistia para os condenados pela tentativa de golpe de estado ocorrida em 08 de janeiro de 2023.

Não sei o que as próximas noites nos reservam, mas os deputados federais desta legislatura parecem ter um apego especial pela ausência de luz, para ser bem sutil em minha crítica. Os horários das votações e os orçamentos secretos que o digam. Mas se a fotofobia é uma epidemia generalizada que se instaurou nas casas legislativas brasileiras, tratemos de lançar luz sobre alguns pontos.

Em primeiro lugar, as duas propostas são flagrantemente inconstitucionais. A PEC da blindagem atenta contra a divisão de poderes e impõe barreiras desarrazoadas que na prática garantem a impunidade de parlamentares. E para quem duvida disso, trago à luz um fato histórico. Quero lembrar aos desmemoriados que este mesmo regime de blindagem já esteve em vigor no Brasil entre 1998 e 2001, período em que a abertura de processo criminal contra parlamentares também dependia da aprovação das respectivas casas. Como era esperado, o corporativismo parlamentar impediu a tramitação de quase todos os processos criminais que o Ministério Público tentava mover contra os congressistas. Nesse noturno período, foram 253 pedidos de abertura de processo criminal embarreirados e apenas em uma oportunidade a autorização foi concedida. O placar é esse mesmo: 253 a 1. Reparem que o número é bastante expressivo. 254 processos criminais contra parlamentares em 4 anos. A média é de aproximadamente 60 casos de impunidade por ano. E ainda querem fazer crer que a lei penal é para todos.

A solitária exceção foi a autorização concedida no caso do deputado federal Jabes Rabelo (PTB-RO), acusado de receptação por comprar um veículo roubado. Nos outros 253 casos, a autorização foi rejeitada pela complacência dos colegas de legislatura. Destaco apenas alguns exemplos, como o caso do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, acusado de liderar um grupo de extermínio no Acre e que teve o pedido de abertura de processo criminal engavetado. Outro caso famoso foi o do então deputado federal Nobel Moura, acusado de tentativa de homicídio contra um caminhoneiro. Para fechar a lista exemplificativa, no ano 2000, o STF pediu autorização para processar criminalmente o senador Luiz Estevão por desvio de verba pública na construção do prédio do TRT em São Paulo. Em todos esses casos, o regime de blindagem garantiu a impunidade dos parlamentares.

A anistia por crimes que atentam contra a democracia também é flagrantemente inconstitucional. A fundamentação é um tanto óbvia: o Estado de direito e a democracia são princípios fundamentais de organização do Estado brasileiro e qualquer atentado contra estes pilares não pode passar em branco. O laboratório da história brasileira exige que não devemos repetir a receita da impunidade dos bárbaros crimes cometidos durante a ditadura empresarial-militar de 1964-85. Não repitamos o erro. A anistia para atentados contra a democracia é uma escatologia jurídica e o STF tem precedentes neste sentido.

 As duas propostas provavelmente não serão aprovadas. Não porque são inconstitucionais, isso não é problema nenhum para a maioria dos parlamentares. Elas não devem ser aprovadas porque a repercussão na mídia e nas redes sociais foi muito negativa. A repercussão é um holofote que ilumina tudo aquilo que os deputados querem que permaneça nas sombras. Atrai a atenção da mídia, do Ministério Público e do Judiciário e cria um sentimento de desgaste que prejudica a renovação da legislatura. E esse é o ponto que gostaria de me aprofundar no que toca às chamadas “crises da democracia”.

 Que as instituições da democracia burguesa não representam de fato os interesses do povo, isso é um tanto óbvio para qualquer um que dedique vinte minutos para ler as manchetes dos jornais. O ponto não-óbvio é a inter-relação entre o modo de produção capitalista (a base econômica da sociedade) e as instituições político-estatais que lhe suportam. O capitalismo, tal como o Rei Midas, transforma em mercadoria tudo o que toca. Com isso, a superestrutura que lhe suporta (dentre elas, as instituições do Estado) também passa a ser regida pela lógica da concorrência mercantil. É o princípio da concorrência, não o do bem comum ou do interesse público, que rege o sistema político nos países de democracia formal-burguesa, pois é este o princípio que regula a Economia e estrutura a sociedade. Como resultado, formou-se um “mercado eleitoral” que disputa a atenção dos eleitores em troca de voto. Este mercado desvirtua os canais reais de representação e hipostasia a institucionalidade política do resto da população.

Essa é, inclusive, uma questão histórica. A ontologia genética das democracias modernas demonstra que elas não foram implementadas para instituir governos populares, longe disso. Na verdade, o objetivo era delimitar o poder político à classe ascendente, à classe de proprietários. Sobre os EUA, basta ler os Federalistas para identificar que a representação política foi idealizada porque os “pais fundadores” acreditavam que os interesses da nação estariam mais bem garantidos se ficassem apenas nas mãos dos proprietários escravocratas. O argumento era que a virtude política se identificava com a propriedade. A representação não foi idealizada somente em função da complexidade das sociedades modernas, mas porque se trata de um mecanismo eficaz de manutenção do poder econômico das classes dominantes. Não à toa a democracia moderna começa sua jornada histórica com o voto censitário e assim permanece durante muito tempo até que o sufrágio universal, depois de muita luta, fosse conquistado.

Mas o sufrágio universal não garantiu que a política passasse a ser regida pelo bem comum ou pelo interesse público. A democracia burguesa não ultrapassa seu aspecto formal porque a igualdade formal-jurídica que lhe serve de fundamento pouco interfere nas nítidas desigualdades socioeconômicas criadas e mantidas pela estrutura econômica capitalista. Se democracia, dentre outros elementos, é determinada como um princípio de socialização do poder político em direção ao bem comum, então temos aqui uma contradição insuperável: se o capitalismo, enquanto estrutura econômico-produtiva, funciona como uma máquina de desigualdades sociais regida por leis gerais de concentração de riqueza e se a concentração do poder econômico engendra a concentração do poder político, então é claro que aquela ideia de socialização do poder típica de um regime materialmente democrático não passará de um sonho. Enquanto o princípio democrático em sentido material demanda socialização do poder político e busca pelo bem comum, a estrutura econômica capitalista direciona seus circuitos no sentido oposto, no sentido da centralização.

A lei geral de concentração capitalista é a doença que contamina todo o sistema político, pois a burguesia continua com poder econômico para garantir que seus interesses dominem o modo geral de pensar. Ela pode financiar pensadores e universidades, pagar lobistas e advogados e contratar espaços publicitários dizendo que o “Agro é pop”. É por isso que surgem as famosas “bancadas”, como as do boi, da bala e da bíblia (a explosão de igrejas neopentecostais também é um exemplo de como as instâncias sociais são capturadas pela forma-mercadoria), com advogados e lobistas que dia sim e dia também ocupam os corredores do Congresso e dos tribunais para zelar pelos interesses dos grupos econômicos que lhes contratam.

O próximo desdobramento dessa doença na arena política – e é este o ponto que interessa agora – é a criação de castas parlamentares relativamente hipostasiadas dos interesses gerais do povo. Digo relativamente por que os círculos da burguesia, é claro, continuam com livre acesso às autoridades políticas brasileiras, faculdade que, é claro, não é estendida à massa da população. Estas castas passam então a trabalhar também para o próprio interesse, como se as instituições fossem finalidades autorreferenciadas, fins em si mesmos e não instâncias deliberativas a serviço do interesse público. O terreno oculto da produção legislativa, as negociatas, a troca de favores e o “toma lá, dá cá” de projetos, tudo isso cria um campo no qual a classe política escapa das relações reais de representação e passa a atuar em causa própria. E para esse propósito, a ausência de luz é decisiva para a continuidade dos circuitos da corrupção parlamentar. E por corrupção parlamentar quero me referir à prática de atuação legislativa em causa própria como antítese ao princípio democrático de socialização do poder político em direção ao bem comum e ao interesse público.

Não é à toa que existe grande déficit no sentimento representativo da população. Há verdade neste sentimento de revolta; não há representação real entre os interesses dos eleitores e o dos políticos eleitos. E este é um fenômeno mundial do que tem se convencionado chamar de “crise das democracias”. Embora o termo seja pouco elucidativo, fato é que o modelo de democracia formal-burguesa, com seus movimentos de conquistas e retrocessos, não se provou capaz de garantir uma identidade aproximada entre representantes e representados. E a grande questão é que esse próprio modelo formal de democracia, erguido sob uma estrutura capitalista (e em especial, nos países de capitalismo dependente), engendra as contradições que colocam em risco sua própria existência.

 Uma das explicações para isso reside justamente na formação de um “mercado político-eleitoral” no qual os parlamentares e candidatos disputam a atenção dos eleitores com chavões genéricos e promessas vazia. O Rei Midas, que transformava tudo o que tocava em ouro, sofria na verdade de uma maldição; pois não conseguia abraçar sua filha ou se alimentar sem que o objeto do seu toque se transformasse em ouro e a ganância devorasse sua existência. Da mesma forma, o capitalismo universaliza a forma-mercadoria e transforma tudo organiza em uma instância mercadológica regida pelo espírito da concorrência. A política eleitoral foi transformada em um mercado. A maldição que lhe segue, neste ponto específico, é o difundido sentimento da antipolítica que deságua em formações fascistóides que direcionam sua revolta de forma abstrata e genérica “contra tudo isso que está aí”. Incapazes de lançar luz adequadamente sobre o problema, personificam seu ódio contra minorias, inventam falsos problemas, denominam tudo de “comunismo” e lutam contra moinhos de vento. E esse é o grande perigo, pois embora insuficiente, a democracia formal é indispensável. Precisa ser aprofundada, não descartada. O ponto a ser destacado é que a democracia liberal-burguesa, entremeada por espaços de desvirtuamento do interesse público e incapaz de garantir espaços reais de representação popular, engendra as contradições que colocam sua própria existência em risco. E aqui me refiro especialmente aos movimentos neofascistas que tentaram deslegitimar o resultado das eleições de 2022 e dar um golpe de estado no dia 08 de janeiro de 2023. São esses mesmos movimentos que esfarelam a democracia em cima de uma moto.

Ao lado do confuso movimento da antipolítica, há outro sentimento igualmente perigoso: o da despolitização, o desinteresse pela política. Lima Barreto disse certa vez que “o Brasil não tem povo, tem público. Povo luta por seus direitos, público só assiste de camarote”. Eu trocaria apenas o termo “camarote” (o povo brasileiro em geral não tem condições financeiras para isso), mas fato é que a desmobilização política do povo guarda conexão com a desilusão verdadeira e real com os caminhos da política institucional.

São movimentos corporativistas como estes, de flagrante tentativa de garantia de impunidade que alimentam os sentimentos de antipolítica que ameaçam a frágil democracia formal que nos resta. O assalto ao interesse público é a chave do sentimento de aversão à política que domina a população brasileira.

Brinquei com o título, mas a verdade é que dois homens em uma moto, dois parlamentares em uma moto… o sentimento geral é de que “ninguém presta na política”, de que “lá só tem ladrão”. Tenho certeza de que o leitor e a leitora já ouviram essa frase. É claro que temos parlamentares sérios, mas o senso comum de déficit representativo é real, essas pessoas não estão de todo erradas. São movimentos de blindagem como esse que alimentam as rodadas de descrédito na política institucional. A degeneração ética da política parlamentar coloca as condições de sua própria destruição ao mesmo tempo em que cria a necessidade de maiores e mais amplas blindagens. E com isso se cria um circuito perigoso, errático e incerto que sequer tangencia a raiz do problema: a própria forma liberal-burguesa da democracia formal e o sistema capitalista como um todo.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Gustavo Livio no GGN é doutorando pela PUC-Rio, mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia, promotor de Justiça do MPRJ, integrante do coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.

O país dos sonhos do STF

Thaís Fidelis Alves Bruch no GGN

Em um país encantado, onde a maioria das pessoas têm seus direitos essenciais preservados, assegurando-se condições de vida dignas a seus cidadãos, não há necessidade de recorrer às estruturas estatais para efetivação de prestações que garantam um patamar mínimo civilizatório.

Nessa pátria povoada por seres iluminados, o capital não explora aqueles que vivem do trabalho, os quais têm consciência que pertencem a uma mesma classe, que sobrevivem da sua energia física psíquica, e não acham que tal característica é um demérito social. Como a assimetria é quase inexistente nesse mundo abençoado, uma jovem advogada, recém-formada, por exemplo, que é “contratada” por cerca de 2.500 mensais, é inserida como “sócia” em um consolidado escritório, já que ela discute de “igual para igual” as cláusulas contratuais com renomados causídicos. Vejam que ela tem um espaço e condições técnicas para fazer suas escolhas; se ela não quer ser sócia, ela que monte, sem dinheiro, o seu próprio escritório. Também pouco importa se, na verdade, é na realidade, ela se comporta como uma empregada. É o tal do darwinismo social, como mencionou o Ministro Barroso, em recente evento em uma famosa universidade deste país peculiar.

Nesse mesmo território quase mágico, alcançou-se um nível de evolução social quase perfeito, igualitário e justo, como disposto em sua Constituição. Seus cidadãos não precisam de profissionais especializados e que dedicam (ram) a sua vida profissional ao Direito do Trabalho (muito embora eles saibam que ditos operadores são extremamente respeitados em um certo lugar chamado Europa). Vejam só, as normas trabalhistas, que são direitos humanos, não precisam ser idolatradas como “vacas sagradas”, como disse o Ministro Gilmar Mendes, em um evento promovido por empresários. Não precisam porque a Corte Suprema não é instrumento de retrocesso social.

Um viva a este peculiar Estado, que, felizmente, não segue à risca o único mandamento restante da consagrada obra Revolução dos Bichos, de George Orwell: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

*Thaís Fidelis Alves Bruch– Mestra em Direito: Fundamentos Constitucionais de Direito Público e Direito Privado (PUC/RS). Procuradora do Trabalho (MPT/MPU). Ex-Procuradora Federal (AGU/PGF). Membra do IPEATRA. Membra do MP Transforma. Integrante do Grupo de Estudo Inteligência Artificial e Automação: Impactos na Ergonomia e no Meio Ambiente de Trabalho – Saúde Mental e Riscos Psicossociais.

O trabalho decente nas plataformas digitais: parâmetros interamericanos

Por Lorena Vasconcelos Porto no GGN

O trabalho em plataformas digitais está na ordem do dia no Brasil e em diversos países do mundo. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) buscará adotar, em 2026, uma convenção, complementada por uma recomendação, sobre o trabalho decente na economia de plataformas. A União Europeia aprovou a Diretiva 2024/2831, de 23 de outubro de 2024, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais, a qual prevê novas regras para combater o falso trabalho autônomo, entre outros aspectos.


Incluem-se no trabalho em plataformas digitais o crowdwork e o trabalho on-demand por meio de aplicativos. O primeiro seria o labor executado em plataformas on-line que colocam em contato um número indefinido de organizações, empresas e indivíduos por meio de internet, permitindo conectar clientes e trabalhadores em âmbito global. O segundo incluiria atividades tradicionais, como o transporte e a limpeza, que são oferecidas e atribuídas a trabalhadores situados em determinada área geográfica, por meio de aplicativos. A Uber é a mais conhecida das empresas de trabalho on-demand, daí a expressão trabalhadores uberizados.

No Brasil, houve a apresentação do Projeto de Lei Complementar n. 12, de 2024, pelo Poder Executivo, o qual foi alvo de críticas por não assegurar a proteção necessária aos trabalhadores das plataformas digitais. O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral no Tema 1291 relativo ao vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora de plataforma digital. A questão será, portanto, decidida com efeito vinculante.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), por sua vez, na Opinião Consultiva n. OC-27/21, de 05 de maio de 2021, afirmou que “a regulação do trabalho no contexto das novas tecnologias deve ser realizada de acordo com os critérios de universalidade e irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas, garantindo o trabalho digno e decente”, inclusive no âmbito das plataformas digitais. Afirmou o princípio da primazia da realidade e que os Estados devem adotar medidas que visem ao “reconhecimento dos trabalhadores e das trabalhadoras na legislação como empregados e empregadas, se na realidade o são, pois assim devem ter acesso aos direitos trabalhistas que lhes correspondem de acordo com a legislação nacional”. Trata-se de princípio de vigência universal, segundo a OIT, devendo-se dar maior importância aos fatos do que à forma.

Desse modo, caso estejam presentes os requisitos da relação de emprego no trabalho em plataformas digitais, esta deve ser reconhecida e garantidos todos os direitos trabalhistas e previdenciários correspondentes. A necessidade de observância dos tratados internacionais e da jurisprudência da Corte IDH foi reafirmada em Recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Todavia, ainda que não estejam presentes os requisitos da relação de emprego, devem ser assegurados direitos mínimos aos trabalhadores, inclusive àqueles ativados em plataformas digitais. Na Opinião Consultiva n. OC-18/03, de 17 de setembro de 2003, a Corte IDH afirmou que há direitos que são inalienáveis e, portanto, aplicáveis a todos os trabalhadores, a saber: proibição do trabalho forçado ou obrigatório; proibição e abolição do trabalho infantil, atenções especiais para a mulher trabalhadora; e os direitos correspondentes a: associação e liberdade sindical, negociação coletiva, salário justo por trabalho realizado, assistência social, garantias judiciais e administrativas, duração de jornada razoável e em condições de trabalho adequadas (segurança e higiene), descanso e indenização.
Na sentença proferida no Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil, a Corte IDH afirmou que o direito a condições equitativas e satisfatórias, que garantam a segurança, a saúde e a higiene no trabalho, é protegido pelo artigo 26 da Convenção Americana e se aplica a toda pessoa, inclusive quando se trate de trabalho informal.

O mesmo entendimento pode ser extraído do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), firmado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e ratificado pelo Brasil. Esse tratado prevê “o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis”, que assegurem especialmente “condições de trabalho seguras e higiênicas”, e o “direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental”, com “a melhoria de todos os aspectos de higiene do trabalho e do meio ambiente” (arts. 7º e 12). Segundo o Comitê DESC da ONU, esse direito aplica-se a todo trabalhador, mesmo em situação de informalidade.

Desse modo, com fundamento nos parâmetros interamericanos, de observância obrigatória pelo Estado brasileiro, deve ser reconhecida a relação de emprego no trabalho em plataformas digitais se os seus requisitos estiverem presentes. E, ainda que não estejam, devem ser assegurados os direitos mínimos correspondentes ao trabalho digno ou decente.


Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Em busca das mulheres perdidas, por Cristiane Hillal

Leio Freud e também leio mulheres. Enquanto elas buscam nomes e sentidos em mim, eu encontro o que perdi, de mim, nelas.

por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Não procure respostas que não podem ser dadas porque não seria capaz de vivê-las. E a questão é viver tudo.
Viva as perguntas agora.
Rainer Maria Rilke em Cartas a um Jovem Poeta

“Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.”
Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem

Sueli tinha problemas no quadril de tão obesa. Toda vez que entrava em minha sala, eu sentia medo que ela não coubesse na cadeira que eu tinha para oferecer. E era justamente de direito constitucional ao espaço que Sueli vinha falar. Espaço na fila de cirurgia, no transporte especial do SUS, no Conselho Municipal de Saúde. Sueli mal andava, mas atravessava a cidade para colocar seu corpo opulento de dor na minha cadeira frágil. A sua história era interminável, suas perdas eram mais longas que as minhas horas de trabalho, mas o que me fisgava, mesmo, era o laço. Vermelho. Um gigantesco laço de fita vermelho no cabelo combinando com o batom barato que escorria pelos cantos de sua boca carnuda, enquanto ela desfiava seu rosário de lutos. Um filme do Almodóvar passava pela minha cabeça diante daquela figura tão tragicamente mulher, enquanto eu lutava para ser apenas a burocrata que ela buscava, e que daria alguma ilusão de organização àquele caos que as violências sempre deixam nos corpos, sobretudo naqueles corpos de mulheres gordas, negras, periféricas, de batom e laço vermelho nos cabelos. Sueli não estava no mundo para sumir. A cadeira aguentava.

Dona Leia chegou perfumada, magrinha e amparada pela cuidadora. Quase 80 anos. Apresentou a demanda: vim saber se estou louca. Me estendeu um contrato de arrendamento de um posto de gasolina e disse que tinham falsificado sua assinatura. Sem que eu pedisse, puxou um papel e uma caneta. Letrinha por letrinha. O corpo todo naquele nome, o nome todo naquele corpo. O corpo, a letra e o nome, tudo era miúdo. Dona Leia se arrastava inteira com seus ossinhos naquele papel. Poucas coisas me fascinavam nos inquéritos policiais, mas particularmente amava os laudos grafotécnicos. Essa coisa tão singular que é a letra e aqueles relatórios tão sabidos: Fulano cortou o T para cima, para baixo, terminou a perna do Z com inclinação para cá, ou para lá… – Pronto, disse. Olhei. Eram assinaturas muito parecidas, mas não havia dúvida: – A senhora foi vítima de crime de estelionato, anunciei. A senhora magrinha e perfumada me escreveu um nome, eu lhe devolvi outros. Em nenhum deles estava a palavra louca. Os ossinhos de Dona Leia se voltaram todos para a cuidadora: – Ouviu?!

Quando Marina chegou, parecia muito mais jovem do que realmente era, talvez pela agitação. Essa pressa de viver de gente entalada de sentimento por dentro. Não falava, despejava, jorrava palavra, como se a qualquer momento eu fosse cortar sua voz, sair correndo, deixar a cortina cair, apagar a luz, virar pó ou alguma coisa parecida. Em pouco mais de 10 minutos, resumiu 10 anos de vida. Fiquei com medo que ela morresse de palavra, ali, na minha frente, quando começou a descrever a vida com seu marido, pastor evangélico: – Ele colocava a faca na minha virilha, diz e paralisa. Me perco hipnotizada naqueles olhos imensos contornados por cílios postiços, acostumados a garoas e enchentes. Quase fico ali para sempre, no espetáculo das águas chegando, mas julgo leal explicar que não sou Promotora de Justiça Criminal… que vou encaminhá-la … e ela interrompe: – Meu ex-marido já está sendo processado, eu quero mesmo é que a senhora tome providências contra minha Igreja. Marina respirava. Eu não.

Depois de alguns anos, encontrei Sueli em um evento estadual para conselhos municipais. Ela usava uma cadeira de rodas, e já não brigava com as cadeiras: tinha inventado seu próprio assento no mundo. Estava indignada, com o microfone na mão, defendendo as letrinhas do SUS e dando bronca na Prefeitada toda. O companheiro, cego, a acompanhava da plateia. O vermelho transbordava do seu corpo todo.

Depois que o processo penal terminou e que eu mudei de Comarca, Dona Leia me achou, e insistiu para que eu tomasse um chá em sua casa. Continuava com aqueles ossinhos que pareciam que iam quebrar e eu fui. Ela morava em uma fazenda gigantesca, com um pôr do sol maravilhoso. Nas paredes do escritório fotos dela com Presidentes e personalidades políticas importantes da história do Brasil. Eu não consegui disfarçar meu espanto e ela, entre marota e comovida, me disse que eu tinha sido a primeira pessoa, em toda sua vida, que lhe fazia algo sem saber quem era ela. A senhora magrinha e perfumada, que nada tinha de louca, não usava, na assinatura, o sobrenome da família de banqueiros mais conhecida do país e ali, sob o poente de uma vida, ela me contou das infindáveis perdas que podem esconder um nome, e um sobrenome, para muito além do que um laudo grafotécnico sabido poderia descobrir.     

Marina era tão apressada, quanto inteligente. Depois de 10 anos se sentindo culpada por não perdoar toda sorte de violência doméstica, ela entendeu que não bastava escapar de um homem. Era preciso escapar de um Deus que preferia as mulheres mortas a separadas. Trouxe todo o plano pronto: artigos em inglês sobre a origem da coisa toda, nomes dos Pastores que lhe fecharam as portas, datas. Trouxe Efésios 5:22-25, a Constituição Federal e a vontade de perder uma Igreja sem que essa Igreja lhe perdesse. 

As mulheres que buscam o Ministério Público trazendo suas histórias perderam maridos, pais ou filhos. Perderam espaço. Perderam tempo. Às vezes perderam sua casa, às vezes uma igreja inteira. Em todas às vezes perderam um pouco delas mesmas e levaram suas perdas na esperança de que a lei lhes desse nomes e sentidos.

Em 1917, no cerne dos abalos da primeira guerra mundial, Freud escreveu sobre luto e melancolia. Naquela ocasião, ele falou sobre a perda de si mesmo quando se perde um objeto sobre o qual se depositava libido, ou amor, ou esperança, ou desejo, ou o nome que se quiser dar. “A sombra do objeto recai sobre o eu”, é sua célebre frase, ao revelar que perder o outro é perder, também, quem éramos junto àquele outro.  E não há, mesmo, como viver sem perder.

Leio Freud e também leio mulheres. Enquanto elas buscam nomes e sentidos em mim, eu encontro o que perdi, de mim, nelas.

“O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava com ela. Era incomodado pelo pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção”.

Por que, afinal, amar, se vamos perder? Perguntava o poeta.

E Freud lhe responde:

“Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso”.

Sueli coloca batom vermelho. Leia se perfuma. E Marina contorna sua enchente em cílios gigantes.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal – Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP

Referências:

  1. Os nomes são fictícios.
  2. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, v. 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 170-193.
  3. FREUD, Sigmund. A transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Obras completas, v. 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 327-334.

Imagens da vida e da morte através das câmeras e em sobrevoos

Maria Betânia Silva no GGN

Entre os dias 13 e 17 deste mês de agosto, no Recife, teve lugar a 5a Mostra de Cinema Árabe Feminino trazendo curtas metragens realizados por mulheres do mundo árabe ou por mulheres de outros países conhecedoras da cultura árabe.

A Mostra segue agora para a Cidade do Rio de Janeiro, Niterói e Duque de Caxias.

O encerramento dessa Mostra, no Recife, se deu com a exibição do longa metragem de Carol Mansour e Mina Khalidi que acompanhou a atuação profissional do médico Ghassan Abu- Sittah, de família Palestina e que esteve em todas as situações de ataque a Gaza nas últimas décadas, muito especialmente, após o início  da invasão em outubro de 2023, marco do projeto genocida posto em prática pelo governo sionista do primeiro- ministro israelense.

Ghassan esteve atuando no hospital Al- Shifa, um dos maiores de Gaza, que acabou sendo destruído por bombardeios como todos os demais hospitais, inclusive o Al Ahli, que lá existiam. Especializado no Reino Unido em cirurgia plástica labial e reputado como o melhor nessa especialidade que demanda um elevado grau de dificuldade porque, como  diz o próprio  Ghassan : “os lábios do rosto são a expressão de uma beleza em movimento”, ele viveu o horror dos bombardeios ameaçadores da vida e do resto de vida de pacientes e profissionais de saúde presentes no interior dos hospitais alvo das ações militares israelenses.

O longa metragem “ Um estado de devoção” no qual a atuação dele assim como sua pessoa, a sua trajetória profissional e a sua vida familiar é posta em foco revela muito do que significa a resistência palestina ante ao processo histórico que foi estreitando as terras palestinas ao longo do tempo e ainda mais a Faixa de Gaza desde a criação do Estado de Israel 1948. O genocídio que ora se perpreta em Gaza está plasmado nas imagens do filme, tornando- se, como bem pontuou a curadora da Mostra, Carol Almeida (PE), um arquivo para História.

As cenas são impactantes tal como o discurso, as ações  e a postura profundamente humanista de Ghassan Abu- Sittah que com muita sabedoria sabe usar as palavras com destreza e verdade do mesmo modo que usa seu conhecimento médico e as suas mãos para manter vivos os feridos e ajudar os que se safaram da violência das armas cuidadosamente concebidas pelo governo de Israel para dilacerar corpos e exterminar vidas.

Assistir a esse filme é uma forma de aprender a ver, ouvir  ler o mundo e a vida dos palestinos através dos poros, exatamente isso. Conhecer a vida dos palestinos através da pele que lhes é arranhada e arrancada cotidianamente. Assistir a esse filme é  um exercício gigantesco de saber segurar o coração num ritmo que oscila a cada instante, entre aceleração e repouso definitivo, terminal. Assistir a esse filme é uma forma de chegar perto e de se desprender do lugar de conforto no qual nos encontramos para encontrar o outro que nos é sabido e que desconhecemos ou preferimos desconhecer para não  chorar. Preferimos sempre não chorar. Mas precisamos mesmo é chorar, chorar muito para sairmos da impotência, da paralisia. Quem chora sente desconforto, mas não sente o alívio imediato,  que só chega com o tempo ou com ação para tanto. Se não agirmos de alguma forma enquanto temos lágrimas levaremos os sentimentos que nos dão a graça da vida.

Numa das inúmeras falas de Ghassan ao longo do filme, entre a postura firme de não se ver como herói tal como sugerem muitas das pessoas que o conhecem ou que passaram a conhecê- lo, ele declara que nunca fez tantas amputações ao longo de sua carreira como fez em Gaza quando lá esteve a trabalho, sobretudo nos últimos dois anos. Enfatiza que essas amputações têm afetado muito significativamente as crianças em tenra idade sendo, inclusive, em muitos casos, uma forma de evitar o alastramento de uma infecção que lhes poderia levar a óbito. Enfim, o conhecimento médico aí se coloca a serviço de uma medida que não se resume a optar entre a vida e a morte de um ser humano em seus primeiros anos de vida. A rigor, essa medida representa também uma necessidade de manter vivo os descendentes de um povo alvo de um genocídio. Ghassan registra que os membros amputados (mãos, pés) são postos em sacos plásticos e enterrados num cemitério sob o rótulo: “ mãos de…, pés de…”

Precisa dizer mais? Melhor não! Isso já é dor demais para escrever, pra imaginar, pra sentir…e é também dor suficiente para saber que estamos bem atrasados em agir para interrompê- la.

Falar em ‘dor suficiente’ é se valer do absurdo que as palavras podem engendrar diante das imagens dentro e fora das telas sobre a situação em Gaza. Dor é dor e cada corpo, cada pessoa suporta o que pode.

No entanto, quem vive ou vivia em Gaza, quem vai até lá, quem já foi até lá, quem conseguiu sair de lá suporta o que nunca imaginou ser capaz de suportar. Inclusive suporta ouvir da boca de muita gente  (que felizmente não é a maioria ao redor do mundo) que é preciso avançar nos bombardeios e desertificar Gaza de sua gente por essa ou aquela razão. As razões mais estúpidas disfarçadas de uma racionalidade que coincide com a racionalidade do Estado exterminador de futuro e que por sua vez tem tudo a ver com os Estados do passado: aqueles que invadiram territórios  alheios e exterminaram as gentes que lá viviam e que de lá nunca saíram.

Ouvir falas que expõem “razões” do ataque a Gaza justificando- o significa ser explodido por dentro, antes mesmo de ser esmagado por uma caixa de alimento jogada de um avião. Viver em Gaza se tornou sinônimo de “viver de morte”. E assim morremos todos um pouco a cada dia enquanto Gaza está servindo de laboratório e nós obedecemos a fila para viver os efeitos dos testes bem sucedidos.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP

Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça aposentada e integrante do Coletivo Transforma MP.

O TARIFAÇO DE TRUMP E A LÃ DA SALAMANDRA

Por Lorena Vasconcelos Porto no GGN

Há cerca de um mês, o presidente norte-americano Donald Trump anunciou que aplicaria uma tarifa de 50% sobre os produtos importados do Brasil. A cobrança foi atribuída a uma suposta relação comercial injusta e à postura do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao ex-presidente do país. Os dados, no entanto, demonstram que os EUA possuem superávit comercial com o Brasil. Ademais, como declarado pela própria China, trata-se de “interferência externa injustificada nos assuntos internos do Brasil“, o qual deve defender a democracia, soberania e dignidade nacionais.

O tarifaço norte-americano, segundo especialistas, seria uma retaliação aos BRICS, tendo sido aplicado também a outros integrantes, como a Índia. É notório o incômodo de Washington com a crescente influência chinesa, notadamente no Sul Global, com as Novas Rotas da Seda. A China possui atualmente a maior rede diplomática do mundo (embaixadas, consulados, missões permanentes), superando os EUA e a França. No final do século XX, 80% dos países comercializavam mais com os EUA do que com a China, o que baixou para 30% em 2018, tornando-se essa última a principal parceira comercial de 128 de 190 países. A China é “o elefante na sala. Ela fascina e preocupa”, sobretudo os EUA.

O tarifaço foi questionado pelo Brasil perante a Organização Mundial do Comércio (OMC), apontando-se a violação de compromissos assumidos pelos EUA, como o princípio da nação mais favorecida e os tetos tarifários negociados no âmbito daquela organização. Houve questionamentos também perante tribunais norte-americanos, que decidirão se o presidente pode declarar “estado de emergência” e cobrar tarifas adicionais de importação, com a possibilidade de o caso chegar à Suprema Corte.

Considerando o impacto negativo para importadores e consumidores norte-americanos, foram excluídos do tarifaço quase 700 itens, como suco de laranja, combustíveis, veículos, aeronaves civis e determinados tipos de metais e madeira. Na longa lista, encontra-se o cancerígeno amianto, que ainda é utilizado por alguns setores nos EUA, embora com diversas restrições e com prazos em curso para finalização.

Asbesto, oriundo do grego, ou amianto, derivado do latim, são sinônimos comerciais de um grupo heterogêneo de minerais encontrados naturalmente na crosta terrestre e facilmente separáveis em fibras. O amianto reúne diversas propriedades físicas, destacando-se a incombustibilidade, flexibilidade, boa resistência à tensão e à corrosão, sendo excelente isolante térmico e acústico. O amianto era chamado, de acordo com uma antiga crença, de “lã da salamandra”, pois este pequeno animal era considerado, erroneamente, capaz de desafiar o fogo sem se queimar.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1998, declarou que todas as variedades minerais do amianto, inclusive o crisotila ou branco, são cancerígenas e que não existe limite seguro de exposição. No Brasil, o Decreto n° 3.048/1999 prevê que o amianto é agente etiológico e de risco associados a diversas doenças ocupacionais (Anexo II, Lista A, item II).

Em razão das propriedades cancerígenas, diversos países baniram o uso e o aproveitamento econômico do amianto e dos produtos que o contêm, para proteger a saúde dos trabalhadores e da própria sociedade. No Brasil, vários Estados da Federação e Municípios editaram leis proibitivas do amianto, mas a Lei federal n. 9.055/1995 (art. 2º) permitia a extração, industrialização, utilização e comercialização do crisotila. Em 2017, o STF considerou válidas cinco leis estaduais e uma municipal e declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do referido dispositivo da lei federal. Destacou a natureza comprovadamente cancerígena do amianto e a impossibilidade de seu uso seguro, além da existência de matérias-primas alternativas.

Todavia, para prosseguir com as atividades da mina de propriedade do Grupo Eternit em Minaçu/GO, e em contrariedade à decisão do STF, foi editada a Lei 20.514/2019, no Estado de Goiás, que autoriza a extração e o beneficiamento do amianto crisotila para exportação. Foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6200 pela Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT) para questioná-la, o que ainda está pendente de decisão final pelo STF. Espera-se que a mesma postura de defesa da Constituição da República -, demonstrada pelo STF para a salvaguarda da democracia brasileira e utilizada como pretexto para o tarifaço de Trump -, seja adotada no julgamento da ADI 6200, impedindo a exportação, inclusive para os EUA, do cancerígeno amianto.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Lorena Vasconcelos Porto é Procuradora do Trabalho. Membro do Coletivo Transforma MP. Doutora em Autonomia Individual e Autonomia Coletiva pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade de Roma “Tor Vergata”. Professora Convidada da Universidade de Lyon 2 (França), do Mestrado em Direito do Trabalho da Universidad Externado de Colombia (Bogotá) e de cursos de pós-graduação “lato sensu” no Brasil.

A infância esquecida em Bruzundanga?

Por Thaís Fidelis Alves Bruch no GGN

No livro “Os Bruzundangas”, do nosso engenhoso Lima Barreto, escrito na época da República Velha, e cujo título é o nome do país objeto da narrativa, conta-se que, no referido território, não se tinha uma política de Estado, mas, apenas de governo. Significa dizer que o planejamento a longo prazo de pontos essenciais ao bem comum não era priorizado, mas, sim, medidas que possibilitassem a permanência de determinados grupos no poder, através de pleitos que agradassem àqueles que lhes dão suporte. Assim, questões estratégicas para o progresso social da nação ficavam em segundo plano. Será que algo similar ocorre no Brasil?

Há claros indícios que caminhamos nesse sentido. De fato, um dos alvos cruciais para o nosso desenvolvimento consiste na efetivação das políticas públicas de combate ao trabalho infantil. Essa batalha já foi assumida com seriedade por países hoje desenvolvidos, que conseguiram romper com o ciclo de pobreza gerado pelo trabalho precoce, oportunizando educação adequada e apoio às famílias. Na contramão desse sucesso, o Brasil apresentou, no período de 2019 a 2022, um aumento de 7% nos casos de trabalho infantil, conforme as informações extraídas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua) publicada em 2023 pelo IBGE.

Sabe-se que as ferramentas contra essa chaga social devem ser aplicadas de forma sistêmica, com todos os atores sociais atuando em rede, e dirigindo-se para os núcleos familiares e para o meio social que oferece riscos à criança e ao adolescente. Essa abordagem precisa ocorrer de forma capilarizada, ou seja, nos municípios onde se constata o trabalho infantil. Contudo, também em direção reversa, a União não efetua o repasse de numerário às cidades para concretizar as Ações Estratégicas do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), desde 2019, ao fundamento de que essas verbas figuram dentre aquelas inseridas no contingenciamento orçamentário.

O bloqueio dessa verba específica é visivelmente inconstitucional e afronta as normas internacionais de proteção à infância e adolescência. O Poder Executivo deve, com prioridade absoluta e de forma integral, assegurar saúde, educação, lazer, dignidade aos seres humanos em desenvolvimento, afastando-os de quaisquer formas de opressão e exploração. Ora, a não alocação de recursos aos municípios configura claro desmantelamento e enfraquecimento da rede de proteção, além de reduzir o espaço de participação da sociedade civil no confronto com essa chaga social.

Ainda há esperança de que não sejamos como os samoiedas de Bruzundanga, cuja estética e forma do discurso são mais importantes que a essência e a prática, tampouco como os políticos daquelas bandas, que tem o poder e a vaidade como motes e não o interesse público. E nada mais importante para um país que se pretenda próspero do que cuidar daqueles que representam o seu futuro.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Thaís Fidelis Alves Bruch- Mestra em Direito: Fundamentos Constitucionais de Direito Público e Direito Privado (PUC/RS). Procuradora do Trabalho (MPT/MPU). Ex-Procuradora Federal (AGU/PGF). Membra do IPEATRA. Membra do MP Transforma. Integrante do Grupo de Estudo Inteligência Artificial e Automação: Impactos na Ergonomia e no Meio Ambiente de Trabalho – Saúde Mental e Riscos Psicossociais.

Sobre o “agir” e o “aproveitar da existência” do Ministério Público

Por Antônio de Padova Marchi Júnior no GGN

Durante recente sessão de terapia recebi a advertência acerca da importância dos projetos futuros para a saúde psíquica.

Através deles se alcança um certo sentido de esperança, de busca por um objetivo palpável e de qual caminho seguir, fortalecendo a disposição e o bem-estar emocional. Organizar metas e se dispor a executá-las estimulam a motivação, ajudam a contornar o desânimo e contribuem para uma vida mais estimulante. 

Dissertando sobre os objetivos do tratamento psicanalítico, Leopoldo Fulgencio designa, de modo sintético, dois índices materiais da saúde psíquica elencados por Freud: o de agir (realizar) e o de aproveitar da existência. Segundo o autor, são essas capacidades que “Freud espera poder reestabelecer para que o próprio paciente possa conquistar um modo de vida mais proveitoso, no uso de suas forças e energias, conquistando ‘uma capacidade de atividade e de prazer, em geral, sem restrições’”.

Tendo alcançado recentemente 59 anos de idade, 31 de casamento e com os filhos já independentes, tratei de reforçar alguns planos e traçar outros de curto, médio e longo prazos com a minha esposa.

Sem deixar de agradecer, agradecer e agradecer todas as bençãos recebidas, é preciso recobrar projetos e apostar no futuro. Sim, sempre haverá o futuro. E o melhor da vida ainda pode estar por vir.

No campo profissional, após 37 anos do meu sonhado (e projetado) ingresso no MPMG, o desafio da aposentadoria começa a se desenhar com mais intensidade.

Refletindo a esse respeito, percebi que os projetos futuros também se aplicam em favor da saúde institucional e permitem cogitar sobre as ambições do Ministério Público brasileiro.

Não por acaso, inclusive por recomendação do próprio Conselho Nacional, os diversos ramos passaram a elaborar e a atualizar programas de “eficiência administrativa”, voltado para a modernização da infraestrutura e da tecnologia para a melhoria das rotinas de trabalho, e de “planejamentos estratégicos”, voltado para a atuação finalística.

A propósito, o art. 31, V, do Regimento Interno do CNMP (RI/CNMP) estabeleceu a Comissão de Planejamento Estratégico (CPE/CNMP) objetivando a “condução democrática do processo de planejamento, de médio e longo prazo, das diretrizes de ação do Conselho Nacional do Ministério Público e do Ministério Público brasileiro”.

Outra função da CPE/CNMP é conduzir os trabalhos de formulação de objetivos, metas e indicadores estratégicos nacionais, fomentar a troca de experiências em gestão com as unidades do Ministério Público e analisar indicadores e estatísticas institucionais.

O “Planejamento Estratégico Nacional: Ministério Público 2020/2029”, instituído pelo CNMP, estabelece como meta prioritária os seguintes retornos para a sociedade: (i) defesa dos direitos fundamentais; (ii) transformação social; (iii) indução de políticas públicas e (iv) diminuição da criminalidade e da corrupção.

Para tanto, se compromete a buscar 12 resultados institucionais, a saber:

1 Contribuir para o aperfeiçoamento do regime democrático;

2 Assegurar o respeito aos direitos da criança e do adolescente, do idoso e da pessoa com deficiência;

3 Promover a igualdade, a inclusão social e assegurar o respeito às comunidades tradicionais;

4 Assegurar o direito à educação, à saúde e ao trabalho digno;

5 Zelar pela defesa e proteção do meio ambiente e desenvolvimento sustentável;

6 Combater a improbidade administrativa e defender os patrimônios público, social, histórico e cultural;

7 Assegurar a defesa dos direitos do consumidor e proteger as ordens econômica e financeira;

8 Atuar na prevenção e na repressão do trabalho escravo e do tráfico de pessoas;

9 Fortalecer o controle externo da atividade policial;

10 Aperfeiçoar o sistema prisional e as medidas alternativas;

11 Atuar na prevenção e na repressão da criminalidade organizada, do tráfico de drogas e dos crimes de fronteira;

12 Fortalecer a prevenção e a repressão de crimes graves, tanto comuns como militares.

Entre tantas atribuições de fundamental relevância, se distingue a primeira, ou seja, a defesa intransigente e o aperfeiçoamento do regime democrático, sem o qual todas as demais sucumbem.

O Promotor de Justiça João Gaspar Rodrigues destacou com bastante propriedade que “o Ministério Público detém uma competência constitucional, ainda pouco explorada e estruturada (em termos teóricos e práticos), que é a defesa do regime democrático (CF/88, artigo 127, caput)”.

Após criticar a instituição por fazer apenas “ato de presença na atribuição aludida” e cobrar uma atuação mais efetiva a partir dos elementos normativos dados, os quais, devidamente valorizados e bem interpretados, podem “criar atitudes, fixar coordenadas de atuação, influir no pensamento e na ação futura dos membros do Ministério Público”, prossegue com absoluta precisão:

Criar um sistema de defesa democrática é uma tarefa extremamente difícil, ao passo que as energias desdemocratizantes vêm com a promessa de transgressão e excitação (Gray, 2018, p. 112). A fragilidade da democracia é testemunha do perene sonho de uma vida sem restrições e da sedução por movimentos disruptivos, ainda que conservadores ou reacionários.

Nas mãos erradas, a defesa democrática pode se tornar uma arma, tanto mais poderosa quanto maior for a inércia e a omissão. Desse modo, não é qualquer agente público que pode se apropriar dessa competência, que pressupõe, acima de tudo, um notável compromisso de lealdade — que beira a heroicidade — com os princípios mais essenciais da democracia. Isso por uma razão muito simples: a atribuição de defesa democrática não se confunde com a simples defesa da ordem jurídica, tanto que a Constituição atribui, em separado, esta competência também ao Ministério Público […].

Os membros do Ministério Público, todos sem exceção, frente à Constituição e seus comandos, e principalmente, face ao fluxo histórico-identitário da instituição, devem ser democratas convictos e por inteiro, com sólidas credenciais republicano-democráticas: nem desleais, nem semileais, pois como afirmam Levitsky e Ziblatt (2023, p. 13), a deslealdade e até a semilealdade podem matar a democracia, principalmente, se têm origem em suas instituições de salvaguarda […].

Enquanto instituição, o Ministério Público só se desenvolve na medida em que obedece à sua natureza histórica: servir lealmente à democracia e aos elevados interesses da sociedade. Este é o caminho, o tao, de sua essência.

O atual quadro de ataques explícitos – internos e externos – à soberania nacional e ao Poder Judiciário desafia em último grau a capacidade de o Ministério Público proteger a democracia no Brasil, pois, repita-se, sem ela todos os demais projetos institucionais se tornam inexequíveis.

Esse movimento orquestrado surgiu a partir de uma profunda e sistemática desinformação produzida em larga escala através das redes sociais, manipuladas por big techs interessadas muito especialmente na concentração de dinheiro e de capital, o que, num mundo capitalista, implica em potente concentração de poder.  Pavimentou-se, assim, o ambiente perfeito para a introdução e a consolidação do “neofascismo de plataforma” idealizado pela ultradireita mundial, cada vez mais robusto com as sucessivas e multifacetadas investidas do presidente americano.

O Ministério Público que emergiu da CR/88 não tem o que fazer num regime totalitário.

Já passou da hora de a Instituição vir a público por meio dos seus órgãos representativos e, demonstrando perfeita união entre os seus ramos, federais e estaduais, realizar um ato público de desagravo ao STF e ao Poder Judiciário brasileiro.

Em curtíssimo prazo, criar uma força-tarefa para cobrar dos integrantes do Congresso Nacional o respeito à Constituição cidadã e à legislação infraconstitucional, sempre fundado na inafastável independência dos poderes.

É preciso ainda que a Instituição adote medidas para restaurar os conceitos de liberdade, liberdade de expressão, laicidade e democracia, entre outros, tão deturpados por algoritmos manejados em favor de inescrupulosos políticos extremistas e influenciadores digitais vinculados ao movimento neofascista.

O controle externo da atividade policial, jamais implementado de maneira efetiva, deve ser tratado com prioridade diante do inaceitável número de mortes causadas por integrantes das forças de segurança e a ínfima taxa de responsabilização por tais homicídios. É preciso fechar essa ferida que remanesce do período ditatorial. A anistia ampla, geral e irrestrita impediu a punição de agentes que assassinaram, abusaram e torturaram em nome do regime. Com a militarização da polícia, essa permissividade passou a permear os métodos e as atividades de segurança pública no Brasil, como se a violência e a tortura fossem indispensáveis à tarefa de prevenir e reprimir a criminalidade.

O Ministério Público encontra na CR/88 a sua razão de ser e, por isso, precisa apostar na coletividade, se inserir no meio das pessoas, deixar a apatia de lado e se apresentar como agente transformador da realidade. Não pode jamais desistir da soberania nacional, da democracia, dos direitos humanos e de um mundo solidário possível.

Mais do que nunca, esse é o momento de agir para afastar definitivamente o gérmen da ruptura que se reinstalou na cultura política do país e, bem estrategicamente falando, se aproveitar da existência que lhe foi dada pelo Poder Constituinte para se impor como a principal instituição de salvaguarda do regime democrático.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Antônio de Padova Marchi Júnior é Procurador de Justiça do MPMG; Mestre e Doutor em Direito pela UFMG; Professor do Curso de Direito do IBMEC e integrante do Coletivo Transforma MP.