Author : Coletivo

O STF E O FIM DO TRABALHO ESCRAVO (E DOS ACIDENTES DE TRABALHO) NO BRASIL

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

O julgamento do Supremo Tribunal Federal dos trabalhadores para plataformas digitais trará consequências econômicas profundas que não estão sendo debatidas

Por Rodrigo Carelli**

O Supremo Tribunal Federal está prestes a tomar uma decisão que deve fazer desabar as estatísticas do trabalho em condições análogas a de escravo no Brasil. Viva!

Está marcado para o início de fevereiro, pelo seu plenário, o julgamento da existência (ou não) de vínculo empregatício em caso de trabalhador por plataforma digital (seja lá o que isso queira ou possa dizer). Aparentemente a intenção é a de emitir uma decisão vinculante para que a Justiça do Trabalho não possa mais declarar o vínculo nesses casos. Provavelmente a Suprema Corte não irá parar por aí, determinando também a incompetência da Justiça do Trabalho para conhecimento acerca da existência da condição de empregado quando um contrato civil formal estiver em vigor. Não duvido também de que na decisão haja alguma ameaça a algum juiz que ouse tentar verificar a existência do vínculo para além do contrato formal, como ocorre em qualquer outro país do mundo.

Mas o que isso teria a ver com o fim do trabalho escravo e a redução dos números estatísticos do fenômeno? Ora, podendo contratar um trabalhador como prestador de serviços sem o risco da Justiça do Trabalho reconhecê-lo (e responsabilizá-lo), os empregadores irão em massa adotar esse tipo de contratação. Só dar um nome civil ao contrato (seja ele qual for), falar para o trabalhador assinar um papel, e pronto!, imunidade garantida pela mais alta corte do país. Com isso, os escravocratas terão a oportunidade de contratar seus trabalhadores por meio de contratos civis, conseguindo fugir da constatação da condição de escravizado.

Essa possiblidade não é meramente hipotética. Outro dia eu estava em sessão no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, e me deparei com situação idêntica ao que deve se alastrar no Brasil. Era um caso de trabalhadores encontrados em situação análoga a de escravos em um grande festival de música. Eles dormiam no local de trabalho, em papelões lançados ao chão, e recebiam comida imprópria para o consumo humano. Em sua sustentação oral, o advogado da empresa renovou seus argumentos de defesa: não eram empregados, mas sim prestadores de serviço civis, com contrato assinado e tudo. Eram empreendedores, que, no uso de sua autonomia da vontade, colocavam no mercado sua força de trabalho para comercializar bebidas geladinhas junto aos contentes frequentadores do festival. Clamava pela incompetência da justiça especializada, trazendo em seu auxílio a jurisprudência do STF. Neste caso específico, ainda podendo fazê-lo, a turma do tribunal afastou a preliminar e entrou no mérito da causa, verificando que de fato eram todos empregados e estavam realmente em condição desumana.

Se existisse uma decisão vinculante, os magistrados não teriam outra escolha senão dar razão à empresa, pedir desculpas, pois não se tratava de trabalho escravo contemporâneo, mas sim de empreendedores que gozavam sua liberdade econômica, patrões que ordenavam a si mesmos carregar pesadas mochilas com as bebidas e tinham livremente escolhido dormir no chão e comer alimentação vencida.

Qual empregador, podendo firmar um contrato com menos ônus, tributários ou trabalhistas, vai preferir contratar como empregado seus trabalhadores? Qual empregador, mesmo socialmente responsável e consciente, vai arriscar contratar empregados se seus concorrentes vão ter vantagem concorrencial com menos custos decorrente de contratações sem direitos e ainda eliminar riscos frente ao Poder Judiciário?

É claro que vai haver uma debandada geral do que ideologicamente chamam de regime da CLT (em verdade é o regime constitucional de direitos fundamentais no trabalho previsto no art. 7º e seguintes da Constituição da República).  É a Economia, estúpido!, como diria certo presidente estadunidense. Com isso, não somente veremos a queda no número de trabalhadores em situação análoga à de escravo, mas também teremos um desabamento na quantidade de acidentes de trabalho, olha que maravilha! Alguém sabe o número de trabalhadores contratados por plataformas digitais que se acidentaram ou morreram realizando seu novíssimo empreendimento de entregar comida ou transportar pessoas? Ninguém sabe. Esses dados não existem, as empresas tratam esses trabalhadores (olha eu aqui de novo chamando empresários livres de operários) como clientes, parceiros civis, e acreditam não ter obrigações de registro dessas ocorrências. Esses acidentes, com morte, afastamentos ou sequelas, não são contabilizados como de trabalho, permanecendo incógnitos em nossos hospitais públicos e cemitérios, como também nos seguros e estatísticas de acidente de trânsito.

Haverá a percepção estatística de que temos um país com menos trabalhadores escravizados e com raros acidentes de trabalho. Porém, lá na realidade (que parece importar pouco hoje em dia), estando os empresários (os verdadeiros) livres (olha a verdadeira liberdade aí, gente!) de cumprir com as normas de proteção, inclusive ambientais de segurança e saúde no trabalho, o trabalho escravo só vai aumentar e os acidentes vão acontecer de maneira muito mais frequente, como ocorre silenciosamente com motoristas e entregadores.

Outras estatísticas serão afetadas também: a de empregos formais, resultando inevitavelmente em uma queda na arrecadação previdenciária. A renda do trabalhador também sofrerá declínio gigantesco, pois não será necessário observar-se nem salário-mínimo, quanto mais pisos salariais negociados por sindicato. E, convenhamos, sindicatos para quê no novo desenho do mercado de trabalho? É a Economia, estúpido!, poderia ser novamente trazido aqui. E a renda do trabalhador e a queda de arrecadação afetam toda a Economia.

As consequências econômicas da decisão que será tomada pelo Supremo Tribunal Federal são colossais e estão sendo muito pouco debatidas. Entretanto, como responsabilizar uma Suprema Corte, que não é submetida ao escrutínio popular do voto, sobre um colapso econômico? De qualquer forma, ela haverá de ser chamada pela população, pelos sindicatos, pela mídia e pelos demais poderes a dar conta de sua decisão ideológica, sem respaldo no texto constitucional, que ao pretender mudar de forma radical todo o arranjo principal da sociedade nos levará a uma grave e real crise em pouco tempo. (Mas alguns ainda dirão que pelo menos haverá liberdade…)

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

**Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

Coletivo Transforma MP e entidades repudiam pesquisa do CFM com viés ideológico contra vacina de Covid-19 em crianças

O Coletivo Transforma MP se juntou à entidades brasileiras de saúde, entre elas a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), para apoiar a nota em defesa da saúde e da ciência.

Em nota, as instituições repudiam a atitude do Conselho Federal de Medicina (CFM) ao promover pesquisa de opinião com médicos sobre a eficácia das vacinas contra Covid-19 aplicadas em crianças entre seis meses e cinco anos. 

“A pesquisa parece não ter outro propósito senão o de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina para Covid- 19, fundada em puro negacionismo médico-científico e teorias da conspiração.” 

O documento também destaca que as vacinas desenvolvidas durante a pandemia de Coronavírus foram implementadas no pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) ao calendário vacinal da criança, baseado em decisão da Câmara Técnica Assessora em Imunizações (CTAI) do Ministério da Saúde. 

As entidades evidenciaram que o método de imunização foi estudado e aprovado por profissionais comprometidos e sérios que testaram todas as etapas necessárias de maneira transparente, portanto não cabe ao CFM desestimular a vacinação infantil contra Covid-19, contrariando a ciência e a ética médica. 

Coletivo Transforma MP parabeniza Vera Lúcia por nomeação no TSE

Foto: redes sociais

O Coletivo Transforma MP parabeniza a nova ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo, que foi nomeada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no último sábado (23). O nome de Vera Lúcia foi escolhido por Lula após o Supremo Tribunal Federal (STF) recomendar uma lista tríplice com indicações para o cargo. 

Vera Lúcia deve ocupar o cargo da ministra Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, que finalizará o seu mandato em breve. 

A futura ministra é a segunda mulher negra a compor a Corte, atrás de Edilene Lobo, que foi nomeada pelo presidente em junho deste ano. 

Em setembro o Coletivo Transforma MP emitiu uma nota apoiando a indicação de mulheres negras e progressistas para o STF, e Vera Lúcia foi uma das pessoas sugeridas, pois tem acompanhado seu trabalho e acredita na capacidade transformadora que possui. 

Entendemos que para uma democracia efetiva é necessário que haja representatividade de todos os grupos populacionais, cabendo ao Judiciário, como um dos Poderes da República, a atuação contramajoritária, contribuindo para a redução das desigualdades presentes na sociedade brasileira, como preconiza nossa Constituição.

Parabéns, Vera Lúcia. 

Boas festas?

Por Plínio Gentil no GGN

Em Gaza e seus arredores milhões de pessoas vivem a incerteza do dia seguinte. São habitantes da região – os palestinos -, descendentes dos que há dois mil anos ali foram se estabelecendo. Têm casas, filhos, trabalho e, mesmo em tempo de paz, submetem-se a um verdadeiro apartheid étnico, que lhes impõe incontáveis restrições. Se nunca foram propriamente senhores desse território, que se estende para muito além dali e há tempos é sujeito a domínio estrangeiro, nele viviam em absoluta maioria até 1948. Nesse ano uma resolução da ONU formalizou o que já vinha sendo posto em prática: a ocupação da área por colonos identificados com a tradição judaica, vindos principalmente do leste europeu. Terras eram compradas com financiamento de judeus bilionários e distribuídas aos interessados em ir para a “terra prometida”. A ocupação começava primeiro pela povoação, depois pela implantação de instituições exclusivas, depois por meio de ação militar e paramilitar, como a explosão do Hotel King David, em Jerusalém, que deixou mais de noventa mortos, dirigida por um futuro primeiro-ministro do futuro Estado de Israel.
Para legitimar a ocupação, planejada desde o fim do século XIX, desenvolveu-se uma doutrina política, o sionismo, inicialmente laica, mas que viu na aliança com o judaísmo e suas instâncias religiosas o elemento ideal para um amálgama capaz de unir toda uma etnia. Os judeus, desde o ano 70 DC, se integraram a vários estados e nações mundo afora e sua reunião num único território não era uma demanda expressiva, menos ainda consensual, entre eles. O holocausto nazista contra os judeus, graças ao justo repúdio que causou em todo o mundo, forneceu ao sionismo, sem querer, o ingrediente que faltava para a criação do estado judaico, o que obteve aprovação até mesmo da União Soviética.
Então o sionismo ganhou ares de doutrina libertária e o mundo parece não ter percebido que, aos poucos, ela se materializava num movimento em busca da colonização de um território habitado por outros povos e a implantação de um estado teocrático, já que estabelecido em bases religiosas, destinado a uma etnia específica.
Isto não poderia, é claro, ser obtido pacificamente, mas aí entra o interesse geopolítico das grandes economias ocidentais, pois a região visada era um importante entreposto entre o Ocidente e o Oriente e, mais relevante que isso, numa área próxima a enormes reservas de petróleo. Era preciso manter ali um regime amigo e politicamente alinhado aos interesses das petroleiras ocidentais, daí o apoio político, econômico e militar desde sempre dado ao estado de Israel.
Só que, no ponto a que as coisas chegaram, Israel começa a ser um amigo incômodo. A matança da população palestina, cujos dados hoje apontam para cerca de vinte mil vítimas, a metade crianças e mulheres – civis portanto –, vem provocando protestos significativos em todo o mundo. Essa oposição à violência israelense, embora minimizada pela mídia empresarial, parte muitas vezes da própria comunidade judaica, que faz questão de se dizer não representada pela ação militar contra a Palestina. Enfim, o governo israelense vai ficando isolado e seu principal aliado, do outro lado do Atlântico, por conta desse apoio já não tem certeza de reeleger seu presidente.
O sionismo, que por dezesseis anos foi considerado racismo pela ONU, nada tem a ver com judaísmo, ou semitismo, termo usado para generalizar o conjunto de cultura, história e religião dos judeus. Mas a equiparação enganosa dos dois conceitos é conveniente ao sionismo e a triste ironia do destino é que ninguém como ele está fazendo tanto pelo anti-semitismo, o que é uma consequência previsível da onda mundial de condenação à violência militar israelense e da crescente perda de apoio político de Israel.
É hora de governos, movimentos, partidos, intelectuais, artistas, a academia, associações, sindicatos, coletivos e todas as pessoas de boa vontade, humanistas e amantes da paz, de quaisquer matizes ideológicos, dizerem um basta – não apenas retórico – ao que se converteu num genocídio, transmitido em tempo real e que, por isso mesmo, não pode ser ignorado por ninguém. É cínico falar em boas festas enquanto as coisas continuarem assim.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Plínio Gentil é Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.

O STF coloca o Brasil na contramão do mundo civilizado em trabalho por aplicativos

Aqui temos um ponto (entre vários) que o STF não entendeu:  as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma.

Por Rodrigo Carelli no GGN

Duas notícias em sentido opostos vieram à tona quase simultaneamente. De um lado, o Supremo Tribunal Federal – STF, pela sua primeira turma, entendeu inexistente vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas que se utilizam de plataformas digitais para realização de seu negócio, encaminhando a questão para o plenário para julgar a questão de forma definitiva e ainda determinando que seja oficiado o Conselho Nacional de Justiça para que juízes do trabalho que julgam de forma diferente sejam punidos. De outro, o Conselho e o Parlamento Europeus chegaram a um acordo inicial para a melhoria das condições dos trabalhadores em plataformas por meio de uma diretiva, que criará critério para determinar a existência da relação de emprego. Não poderia haver um contraste maior: uma corte suprema retirando todos os direitos dos trabalhadores, inclusive fundamentais relativos ao trabalho e legisladores reconhecendo a existência de direitos trabalhistas e da relação de emprego.

O Conselho Europeu foi bem claro na comunicação que fez ao público: “atualmente, a maioria dos 28 milhões de trabalhadores em plataforma na União Europeia, incluindo motoristas, trabalhadores domésticos e entregadores de comida, são formalmente autônomos. Não obstante, um número deles tem que obedecer às mesmas regras e restrições de um empregado. Isso indica que existe de fato uma relação de emprego e deveriam desfrutar dos direitos trabalhistas concedidos aos trabalhadores assalariados ao abrigo do direito nacional e da União Europeia” (grifos no original, nossa tradução). Como afirma o comunicado, a diretiva “dá resposta a esses casos de classificação incorreta e facilita a reclassificação desses trabalhadores como empregados”.

Para isso, a futura diretiva utilizou a técnica de feixe de indícios, especificando alguns já utilizados para reconhecimento de relação de emprego no direito do trabalho europeu, prevendo que será considerado empregado se houver pelo menos dois de cinco indicadores na relação com a empresa: 1) limites máximos de montante que um trabalhador pode receber; 2) supervisão da execução do trabalho, inclusive por meios eletrônicos; 3) controle da distribuição ou atribuição de tarefas; 4) controle das condições de trabalho e restrições à escolha do horário de trabalho; e 5) restrições à liberdade para organizarem o seu trabalho e regras relativas à sua aparência ou conduta. Podem ainda os Estados-Membros acrescentar outros indicadores. Nos casos em que haja pelo menos dois indícios, há uma presunção da existência do vínculo empregatício, cabendo às empresas o ônus de comprovar em juízo que não existe relação de emprego. A diretiva também avança em relação à utilização dos algoritmos, mas isso é algo tão avançado para o nível da discussão no Brasil, que é bastante rasa, que deixaremos de lado esse importante ponto para analisarmos com mais calma os indicadores trazidos pela nova diretiva.

Percebe-se que o primeiro indicador da existência da relação é ligado à própria noção de trabalho autônomo: a precificação do trabalho deve ser realizada pelo trabalhador, e não pela empresa. A possibilidade de indicar o preço do seu trabalho é central para a caracterização do trabalho por conta própria, pois não há independência se o quanto você ganha é determinado por outra pessoa. Se uma empresa coloca um teto remuneratório para o seu trabalho, este não é de forma alguma autônomo.

O segundo indicador é a verificação da existência da subordinação, inclusive aquela realizada por meio de algoritmos, o que inclusive já tem previsão expressa na Consolidação das Leis do Trabalho (art. 6º, parágrafo único).

Os terceiro e quarto indicadores também preveem formas de controle que são considerados compatíveis com uma situação de relação de emprego, por meio de atos que demonstram a participação do trabalhador em atividade econômica alheia.

O quinto indicador é relativo a uma das facetas do poder empregatício, que é o poder organizativo da atividade econômica. Se há o poder de organizar a atividade econômica, inclusive em relação à aparência ou condutas dos trabalhadores, esses não são, de forma nenhuma, autônomos.

Alguém que conhece a práticas das empresas que se utilizam de plataforma digital para realização do próprio negócio, seja ele o transporte de pessoas ou de mercadorias, poderia afirmar que todos os indicadores são encontrados de maneira límpida. Entretanto, há sim empresas que por meio de suas plataformas digitais na qual não serão encontrados todos esses indicadores, como plataformas digitais que não se imiscuem na gestão do serviço prestado pelo trabalhador, nem no preço do trabalho, como por exemplo a GetNinjas.

Aqui temos um ponto (entre vários, é verdade) que o STF não consegue entender: as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. Não são iguais nem mesmo aquelas que atuam no mesmo ramo de negócio.

A decisão do STF citada no começo do artigo tem equívocos de várias dimensões ou camadas. Um pequeno trecho da sessão de julgamento, na fala do relator Ministro Alexandre de Moraes, pode demonstrar uma dessas dimensões de equívoco: “Aquele que dirige um veículo, aquele que faz parte da Cabify, da Uber, do Ifood, ele tem a liberdade de aceitar as corridas que ele quer”. No entanto, a afirmação genérica é falsa. As empresas não funcionam da mesma forma, não têm o mesmo algoritmo e não têm a mesma política. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. As empresas não atuam de forma igual nem mesmo aquelas no mesmo ramo de negócio. E ainda dentro da mesma empresa há modelos diferentes.

Tomemos o exemplo da iFood. A iFood tem duas formas de atuar: uma com os chamados de entregadores “nuvem”, que atuam diretamente na plataforma, controlados pelo algoritmo e GPS, com preços prefixados pela empresa, tarefas distribuídas pela plataforma, e prejuízo na classificação ao negar entregas; outra forma é o “OL”, de Operador Logístico, modelo no qual a iFood terceiriza a gestão dos trabalhadores para uma empresa, que os arregimenta, os “administra” em horários fixos em que não se pode negar chamados.

Já a Rappi atua com trabalhadores empregados na categoria “personal shopper”, que é o comprador nos supermercados, e por entregadores contratados via plataforma digital. Em tese, os entregadores podem negar chamados, no entanto, passam a não receber trabalhos, que são garantidos somente aos que se comprometerem a cumprir turnos fixos e que ativem o botão “autoaceitar”. Além disso, a empresa realiza exigência de produtividade em relação a aceitações, conclusão, avaliação do cliente, número de reservas de horários e trabalho em períodos de alta demanda que para que o trabalhador seja classificado na empresa, que tem várias categorias, que definem quem receberá mais e melhores trabalhos.

A Uber, por sua vez, entrou inclusive com ação judicial em face de desenvolvedora de aplicativo que orientava os motoristas a escolherem as melhores corridas, impedindo a sua utilização. Além disso, a não aceitação influencia na nota final dos trabalhadores.

Todas essas empresas precificam o trabalho, realizam supervisão eletrônica, fazem distribuição e atribuição de tarefas, controlam as condições de trabalho e restrigem a organização dos trabalhadores.

Assim, as decisões partem de uma premissa equivocada, muito distante da realidade. A distância quilométrica da realidade se dá por um motivo muito simples: não cabe ao Supremo Tribunal Federal analisar fatos. O STF, pela Constituição, somente pode fazer análise de constitucionalidade das decisões judiciais, não cabendo delimitar quadro fático. Não tem competência para isso, ainda mais na via estreitíssima da Reclamação Constitucional.

E nisso difere profundamente nossa corte suprema de algumas europeias que já julgaram a questão, como por exemplo a Corte de Cassação na França, a Suprema Corte do Reino Unido e o Tribunal Supremo na Espanha, que são instâncias revisionais e julgaram com base nos fatos de cada ação que chegou a eles. E difere mais ainda no procedimento: julgaram nos limites subjetivos e objetivos de cada lide que chegou, não pretendendo dar nenhum efeito vinculante a essas decisões.

A Suprema Corte brasileira está prestes a determinar a inexistência de vínculo empregatício em razão da pessoa (empresas que se autoproclamam plataformas digitais), de maneira abstrata, com base em pressupostos que se mostram longe da realidade, com decisão vinculante, e ainda pretende punir os juízes do trabalho que julguem conforme determina a Constituição analisando os fatos a partir da causa de pedir. Cada uma dessas particularidades jamais foi vista em todo o mundo, quem dirá todas elas conjuntamente, o que mostra o absurdo que estamos vivenciando. É uma jabuticaba transgênica gigante com agrotóxicos.

No mundo inteiro, e a diretiva europeia renova e reforça esse aspecto, a relação de emprego é verificada a partir de um quadro fático. A relação de emprego surge na realidade e o contrato é dela derivado, e não o contrário.

Assim, estamos em uma situação em que o Brasil, por sua Suprema Corte, pretende fechar a porta de acesso aos direitos fundamentais da Constituição, julgando com base em discursos retóricos das próprias empresas e pretendendo julgar a inexistência de uma relação de emprego de forma absoluta e, possivelmente impossibilitando o legislador de dizer o contrário, pois supostamente o STF está interpretando a Constituição. Enquanto isso, na Europa, as instituições estão, ao contrário, preocupadas com a fraude à relação de emprego realizada por essas mesmas empresas e deixando mais claro ainda os pressupostos para que seja reconhecida. O Supremo Tribunal Federal está levando o Brasil para a contramão do mundo civilizado. Isso talvez diga muito não somente sobre nossa corte suprema, mas também sobre o próprio Brasil.

*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP

CNMP homenageia membros do MP, entre eles integrantes do Coletivo Transforma MP

11/12/2023 Entrega de certificados de boas práticas resolutivas do CNMP, no auditório do MPDFT. FOTO ED FERREIRA/MPDFT.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) homenageou nesta segunda-feira (11) os membros do Ministério Público brasileiro que colaboraram para construir uma entidade mais resolutiva. Entre os oito homenageados, três são membros do Coletivo Transforma MP, Lenna Nunes Daher, Ludmila Reis Brito Lopes e Marcelo Pedroso Goulart.  

É uma honra para o Coletivo Transforma MP ter integrantes Promotores e Procuradores de Justiça que desempenham um trabalho humano e resolutivo ao exercer suas funções buscando de fato concretizar a Constituição Federal e assim alcançar a transformação social visando uma sociedade mais livre, justa e solidária.

Investigação criminal supervisionada em caso de prerrogativa de foro

Artigo do Procurador de Justiça e integrante do Coletivo Transforma MP, Prof. Rômulo Moreira, no Conjur

No último dia 6 de setembro, o ministro Alexandre de Moraes confirmou a necessidade, sob pena de nulidade, de autorização judicial prévia para a investigação de agentes públicos com prorrogativa de foro. A decisão monocrática foi tomada em liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.447.

Ao deferir parcialmente a medida cautelar, o ministro também determinou o imediato envio dos inquéritos policiais e procedimentos de investigação, que tenham sido instaurados no Tribunal de Justiça do Pará pela polícia judiciária e pelo Ministério Público, para imediata distribuição e análise do desembargador-relator, a quem caberá analisar se há justa causa para a continuidade da investigação.

Na ação constitucional, alegou-se afronta à Constituição a respeito do foro por prerrogativa de função, uma vez que a jurisprudência da Suprema Corte afirma a necessidade de supervisão judicial desde a abertura do procedimento investigatório até o eventual oferecimento da denúncia.

Segundo o ministro Alexandre de Moraes, “a Constituição Federal estabeleceu, como regra, o julgamento dos processos judiciais em dupla instância, isto é, inicialmente por um juiz (primeira instância da justiça) e, posteriormente, por um colegiado (segunda instância). Por outro lado, o relator observou que, no contexto estadual, a Constituição Federal estabeleceu a competência privativa dos Tribunais de Justiça para julgar juízes estaduais (e do Distrito Federal) e membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade”.

Segundo ele, “as hipóteses de foro por prerrogativa de função são excepcionais ressalvas aos princípios constitucionais do juiz natural e da igualdade e, nessa condição, devem ser interpretadas de maneira estrita, sob pena de se transformar a exceção em regra”, ressaltando “que, conforme a jurisprudência do STF, as investigações contra autoridades com prerrogativa de foro no Supremo submetem-se ao prévio controle judicial, o que inclui a autorização judicial para o início das investigações.”

Essa decisão do ministro foi confirmada, por unanimidade, pelo plenário da Suprema Corte, na sessão virtual finalizada no último dia 20 de novembro, quando foi confirmada a necessidade de autorização judicial prévia para a investigação de agentes públicos com prerrogativa de foro.

Em seu voto no mérito da ação, o relator reiterou “que, de acordo com a jurisprudência do STF, as investigações contra autoridades com prerrogativa de foro na Corte se submetem ao prévio controle judicial, o que inclui a autorização judicial para as investigações. Esse mesmo entendimento tem sido aplicado pelo Supremo na solução de controvérsias relacionadas aos tribunais de segundo grau.

Pois bem.

Esta decisão da Suprema Corte segue decisões anteriores no sentido de que quando o investigado tem prerrogativa de foro, a respectiva apuração criminal deverá ser “supervisionada” pelo respectivo órgão jurisdicional competente.

Com efeito, a 2ª Turma concedeu Habeas Corpus de ofício para extinguir, por ausência de justa causa, a Ação Penal nº 933, ajuizada contra um deputado federal, acusado de praticar um crime eleitoral. Em questão de ordem, os ministros entenderem que houve nulidade na investigação com relação ao réu, uma vez que o procedimento foi supervisionado por Juízo incompetente. De acordo com os autos, o parlamentar foi indiciado em inquérito supervisionado por Juiz de primeiro grau quando cumpria mandato de prefeito. Recebida a denúncia em primeira instância, os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal após a diplomação do réu como deputado federal.

Segundo ficou definido nesta decisão, a competência para supervisionar investigação de crime eleitoral imputado a prefeito é do Tribunal Regional Eleitoral, segundo destacou o relator da ação, ministro Dias Toffolli, citando o Enunciado 702 da súmula do Supremo Tribunal Federal. No caso, segundo o ministro, houve indícios de que o então prefeito teria praticado crime eleitoral por ter supostamente oferecido emprego a eleitores em troca de votos, valendo-se do cargo que ocupava. “Nesse contexto, não poderia o inquérito ter sido supervisionado por juízo eleitoral de primeiro grau e muito menos poderia a autoridade policial direcionar as diligências apuratórias para investigar o prefeito e tê-lo indiciado”, disse o relator. Dessa forma, segundo ele, “a usurpação da competência do Tribunal Regional Eleitoral para supervisionar as investigações constitui vício que contamina de nulidade aquela investigação realizada em relação a este detentor de prerrogativa de foro”. Seguindo o entendimento do relator, os ministros da Segunda Turma votaram pela concessão de habeas corpus de ofício para extinguir a ação penal originária por ausência de justa causa, nos termos do artigo 395, III do Código de Processo Penal, diante da nulidade do procedimento investigatório.

Da mesma maneira, no julgamento do Inquérito nº 2.116, em que o Ministério Público Federal pedia a apuração de possível envolvimento de um senador em suposto esquema de desvio de verbas federais em obras municipais, o plenário decidiu que o inquérito deveria prosseguir sob a fiscalização da Suprema Corte.

Também no julgamento do Inquérito nº 3.305, no qual um deputado federal era acusado de fazer parte de quadrilha destinada ao desvio de recursos públicos. Neste caso, a denúncia foi rejeitada em razão de o inquérito ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados. O então relator do inquérito, ministro Marco Aurélio, ressaltou que o entendimento do Supremo Tribunal Federal era de que a competência do Tribunal para processar autoridades com prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Uma vez identificada a participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à corte. “É inadmissível que uma vez surgindo o envolvimento de detentor de prerrogativa de foro, se prossiga nas investigações”, afirmou. Seu voto foi acompanhado por unanimidade.

Com o mesmo entendimento, a 1ª Turma determinou o arquivamento do Inquérito nº 3.552, no qual um deputado federal era acusado de contratação de uma funcionária fantasma em seu gabinete na Câmara dos Deputados. Os ministros acolheram a questão de ordem apresentada pela defesa no sentido de que o Inquérito nº 3.552 era um desmembramento do Inquérito nº 3.305, arquivado pela Primeira Turma, em julgamento anterior, por ter sido conduzido em primeira instância, mesmo depois da inclusão de parlamentar federal entre os investigados, usurpando a competência do Supremo. O então relator do inquérito, ministro Marco Aurélio, observou que o entendimento do Supremo é de que a competência para processar autoridades com prerrogativa de foro inclui a fase de inquérito. Dessa forma, assim que for identificada a participação dessas autoridades, os autos devem ser imediatamente remetidos à corte. 

Também neste mesmo sentido, o ministro Gilmar Mendes determinou o arquivamento do Inquérito 2.963, contra um senador, sua esposa e quatro filhos por suposta prática dos crimes de falsidade ideológica, desvio de contribuições previdenciárias e crimes contra a ordem tributária. O inquérito foi instaurado pela polícia federal, por requisição do Ministério Público Federal. A decisão, conforme o ministro, ocorreu sem prejuízo de que novo procedimento de investigação venha a ser instaurado para apurar os fatos citados na notícia-crime. Porém, ele entendeu que o inquérito deveria ser trancado por não ter sido requerido pelo procurador-geral da República. O relator observou que a requisição para a instauração do inquérito pela polícia federal foi realizada por procurador da República, sem qualquer delegação do procurador-geral da República.

Naquela oportunidade, o relator afirmou: “Como cediço, o inquérito para investigar fatos em tese praticados por membro do Congresso Nacional, na qualidade de coautor ou autor, não só é supervisionado pelo STF, como tem tramitação eminentemente judicial e não obedece ao processamento dos ordinários inquéritos policiais”, salientando que, nesses casos, a abertura da investigação apenas se dá no Supremo Tribunal Federal, por requisição do procurador-geral da República ou de subprocurador-geral da República que atue na corte mediante delegação.

Em outro julgamento, o plenário decidiu, na Petição nº 3.825, que “a abertura de inquérito originário no STF depende de requisição do procurador-geral da República e de supervisão desta Corte”. Para o relator, “há vício de origem na instauração do presente procedimento, ao menos no que diz respeito ao membro do Congresso Nacional investigado”. Isso porque, no caso, o delegado de Polícia Federal apenas comunicou ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria-Geral da República a instauração do inquérito, ao mesmo tempo em que determinou a prática de diversos atos de investigação. “Agindo dessa forma, a Polícia Federal, de acordo com requisição de procurador da República oficiante em 1ª instância, chamou para si atribuição que é do procurador-geral da República, exercida perante o Supremo Tribunal Federal”, afirmou o relator.

Outrossim, o ministro Teori Zavascki determinou o arquivamento da Petição nº 5.220, lembrando que cabia ao procurador-geral da República oferecer inquérito, com exclusividade, para apuração de fatos delituosos envolvendo detentores de prerrogativa de foro na Suprema Corte. “A atuação do titular da ação penal, nas investigações perante o Supremo Tribunal Federal, ganha contornos especiais, tanto que é irrecusável a promoção de arquivamento de inquérito apresentada pelo procurador-geral da República, em especial quando ausentes elementos à formação da sua opinio delicti”, ressaltou o ministro. No caso, conforme o relator, o próprio chefe do Ministério Público assinalou que não há notícia de que o suposto autor do referido vazamento de informações seja detentor de prerrogativa de foro no âmbito do Supremo, “o que, por si só, impede a instauração de inquérito perante esta Corte”.

Mesmo quando se trata de governador, a investigação criminal será levada a cabo pelo Superior Tribunal de Justiça, não havendo necessidade, para tanto, de autorização da Assembleia Legislativa, que somente será de rigor para admissibilidade da acusação. Neste sentido, o ministro Luiz Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, autorizou a abertura de investigações envolvendo dois governadores. O ministro apontou que, em situações envolvendo governadores, a corte tem reconhecido a possibilidade de que processos e julgamentos dependem de autorização do Poder Legislativo. “Todavia, é bem de ver que, nesta fase inicial de investigação, ainda não é o caso de requerer autorização prévia das assembleias legislativas”, escreveu (Sindicância nº 456 — Processo nº. 2015/0006612-0).

Sobre a investigação criminal supervisionada judicialmente, assim afirmou o ministro Gilmar Mendes:

Se a Constituição estabelece que os agentes políticos respondem, por crime comum, perante o Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do Supremo Tribunal Federal. A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-Relator do Supremo Tribunal Federal.  A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais ou do próprio Presidente da República. No exercício de competência penal originária do Supremo Tribunal Federal (Constituição Federal, art. 102, I, b c/c Lei nº 8.038/1990, art. 2º e Regimento Interno, arts. 230 a 234), a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo dominus litis. Questão de ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado. Conforme o Supremo Tribunal Federal: A outorga de competência originária para processar e julgar determinadas Autoridades (detentoras de foro por prerrogativa de função) não se limita ao processo criminal em si mesmo, mas, à base da teoria dos poderes implícitos, estende-se à fase apuratória pré-processual, de tal modo que cabe igualmente à Corte — e não ao órgão jurisdicional de 1ª instância — o correlativo controle jurisdicional dos atos investigatórios (Supremo Tribunal Federal: Reclamação 2349/TO, — Reclamação nº 1150/PR). A inobservância da prerrogativa de foro conferida a Deputado Estadual, ainda que na fase pré-processual, torna ilícitos os atos investigatórios praticados após sua diplomação (Supremo Tribunal Federal: Habeas Corpus 94.705/RJ, relator Ministro Ricardo Lewandowski). A partir da diplomação, o Deputado Estadual passa a ter foro privativo no Tribunal de Justiça, inclusive para o controle dos procedimentos investigatórios, desde o seu nascedouro até o eventual oferecimento da denúncia” (Inquérito nº 2.411/MT, Informativo 483).

Não obstante tais decisões, sempre nos pareceu um tanto quanto estranho que um órgão jurisdicional “supervisione” uma investigação criminal e depois processe e julgue o mesmo caso penal (sendo o relator também o mesmo, o que é mais grave).

Com efeito, sob o ponto de vista do sistema acusatório, e em respeito às suas regras e aos seus princípios, tal “investigação supervisionada” soa, no mínimo, inadequada e estranha aos postulados constitucionais. Por enquanto, porém, é o que temos nesta verdadeira “torre de babel” que é a investigação preliminar no processo penal brasileiro.

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.

O Trilho e o Veneno

Arquivo / EBC

Por Leomar Daroncho e Lincoln Cordeiro no Correio Braziliense

A propósito do Dia Internacional de Luta Contra os Agrotóxicos – 3 de dezembro -, a NetFlix lançou a minissérie “Heróis dos Trilhos” (The Railway Men: The Untold Story of Bhopal 1984), anunciada pelo streaming como “Drama. Histórico. Suspense”. A produção indiana é inspirada em história real: a maior tragédia da indústria química, em Bhopal, Índia, em 1984.

Sem pretender dar spoiler, registre-se que milhares de trabalhadores morreram quando uma unidade da Union Carbide India Limited (UCIL) liberou o gás isocianato de metila (MIC). A série mostra o trágico fim de milhares de moradores, passageiros e funcionários da ferrovia, próxima à fábrica de agrotóxicos.

Nesta hecatombe, estima-se em cerca de 15 mil o número de mortes imediatas e calcula-se que cerca de 500 mil pessoas sofreram danos pela exposição ao gás altamente tóxico. Passados 39 anos, ainda há um exército de sequelados: 25 mil casos de cegueira e 50 mil incapacitados, com doenças crônicas, além de uma geração de crianças debilitadas. Dados chocantes, como o caso dos médicos heroicos que morrem envenenados fazendo boca a boca nas vítimas, são relatados na pesquisa que resultou no romance histórico de Javier Moro: “Meia-noite Em Bhopal”.

Há especial destaque para as estratégias empresariais para lidar com a exposição, que também estão presentes na saga brasileira dos agrotóxicos: negar dados científicos, disseminando dúvidas e ameaças contra pesquisas que apontam danos ao meio ambiente e à saúde das populações expostas ao veneno. Em Bhopal, q ocultação de informações técnicas, sob o pretexto do sigilo industrial, prejudicou o tratamento das vítimas.  

Outra estratégia recorrente é culpar as vítimas, acusadas de não usar equipamentos de suposta proteção e não seguir recomendações de segurança, algumas delas impraticáveis. No limite, levantam a suspeita de sabotagem. A culpa seria de terceiros.

No Brasil, Paulínia, em São Paulo, já provou do veneno dos agrotóxicos, diante do desastre, com danos localizados, na fábrica de agrotóxicos da Shell/Basf. Investigações do Ministério Público do Trabalho constataram a contaminação dos solos, da água e do ar por substâncias com potencial teratogênico (danos na gestação), genotóxico (danos genéticos) e carcinogênico (câncer). A Ação judicial, no caso, resultou um acordo, em 2013, pelo qual as empresas, sem assumir a culpa, destinaram R$ 200 milhões a pesquisas e ao tratamento de vítimas de intoxicação. Parte do valor beneficiou a construção de centros de pesquisa e tratamento do câncer, inclusive o conceituado Hospital do Câncer de Barretos. Também se assegurou a indenização e o tratamento vitalício a mais de mil vítimas.

Paulínia não encerra a tragédia brasileira com os agrotóxicos. Disputamos o posto de maior mercado consumidor de agrotóxicos, desde 2009, com frequentes medidas governamentais e legislativas liberando e flexibilizando o uso de produtos tóxicos banidos nos países de origem. O gigantesco volume de veneno é espalhado pelas regiões agrícolas criando um rastro de enfermidades agudas (instantâneas) e crônicas (como o câncer), que é silenciado pela deficiência na estrutura de saúde e pelas dificuldades de notificação.

Em “La Argentina Fumigada”, a jornalista argentina Fernanda Sández relata a saga da ciência diante da indústria química que investe na “opacidade”, no “silêncio”, na reação às “perguntas incômodas” e no “negacionismo científico”, um quadro agravado pela complacência das autoridades.

Assim como os trabalhadores e moradores de Bophal não tinham conhecimento dos riscos da indústria que os incapacitou ou matou, brasileiros das fronteiras agrícolas não estão informados dos riscos dos agrotóxicos, presentes no ar, na água potável e nos alimentos com resíduos de substâncias, muitas proibidas noutros países.

Nas fronteiras agrícolas a exposição vem sendo associada a casos de câncer, malformações, desregulação endócrina, depressão, suicídios e puberdade precoce de crianças, como no caso da Chapada do Apodi, no Ceará, pelo intenso uso do veneno.

Como convém à disputa pela audiência, a apocalíptica trama indiana destaca os heróis ferroviários. O saldo fatal de intoxicados seria muito pior sem o heroísmo que salvou vidas. No Brasil, em que se insiste na flexibilização e no estímulo ao uso de mais veneno, não há heróis, mas serão muitas as vítimas enquanto permanecer o silêncio perturbador da sociedade.

Leomar Daroncho e Lincoln Cordeiro são Procuradores do Trabalho