Author : Coletivo

ATUALIDADE DO EXAME CRIMINOLÓGICO

Por Plínio Gentil no GGN

O crime, por definição, carrega certo grau de desvalor, pois coloca em risco bens como vida, saúde, liberdade, integridade corporal: o criminoso traz a suspeita de sua desatenção a tais bens e aos valores a eles intrínsecos.

Por essa razão a execução da pena, notadamente a privação de liberdade, em respeito ao princípio de sua individualização, deve observar as características subjetivas do condenado, a fim de que as etapas da vida prisional correspondam ao processo de sua suposta reeducação.

Assim é que emerge o chamado exame criminológico, expressão utilizada para designar a avaliação de profissionais em comportamento e sociabilidade, baseada na observação da vida prisional do sentenciado, com o fim de oferecer uma prognose minimamente segura de sua aptidão para gradualmente alcançar níveis de retorno ao estado de liberdade.

Muito já se discutiu sobre a conveniência dessa perícia, do modo como é realizada e de sua utilidade. A Lei de Execução Penal chegou a dispensar sua obrigatoriedade como requisito para a apreciação dos pedidos de benefícios, contentando-se com o simples atestado de conduta carcerária. No entanto essa dispensa jamais significou proibição, tendo se firmado jurisprudência no sentido de que “admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”, conforme resulta da Súmula n. 439 do Superior Tribunal de Justiça.

Com inteiro acerto o teor de tal enunciado, considerando como correto o que a propósito também já se decidiu, como se vê: “A ausência de periculosidade em face de indivíduo que pratica crimes graves […] não se apura com declaração de bom comportamento, até porque o conceito de bom comportamento não é necessariamente alinhado ao de ausência de periculosidade […]. O que interessa saber, de fato, é se o sentenciado é perigoso ou não […]. Trata-se de aquilatar se o agente de crime grave, pelo qual foi condenado seriamente, está habilitado a aproximar-se da sociedade, sem risco ou com risco mínimo” (cf. TJSP, Ag. Ex. n. 7000624-27.2016.8.26.0047, j. 04/08/2016).

Claro que o exame criminológico está longe de assegurar a reinserção do sentenciado em padrões sociais aceitáveis, mas é praticamente a única referência posta diante do juiz da execução. Seu objetivo é, antes que tudo, indicar a improbabilidade de reincidência, para utilizar o critério adotado pelo Código Penal, no artigo 83, parágrafo único, ao estabelecer requisito para o livramento condicional. Por isso é que alguns corretamente sempre entenderam obrigatória a perícia também na promoção de regime, quando se trate de condenado por crime doloso cometido com violência, física ou moral, à pessoa.

Atualmente a nova redação do artigo 112, parágrafo primeiro, da Lei de Execução Penal, estabelece a regra geral do exame criminológico como condição para a promoção de regime prisional. A redação desse dispositivo fez aflorar discussão acerca de sua aplicabilidade a casos em que a condenação foi anterior à Lei n. 14.843/24, que introduziu a exigência, já sendo conhecida a posição da Sexta Turma do STJ no sentido de que a obrigatoriedade somente vale para condenações posteriores à vigência da lei, que é considerada novatio legis in pejus.

De outro lado, mesmo diante daquilo que agora determina o parágrafo primeiro do artigo 112 da LEP, alguns julgados têm flexibilizado a exigibilidade do exame, fixando-se no sentido de que, tratando-se de medida relacionada à individualização da pena, devem se impor as circunstâncias concretas do caso, podendo ser dispensada a perícia quando a boa conduta for certificada pela unidade prisional e não houver notícia de falta disciplinar. O entendimento ainda considera, pragmaticamente, que a realização do exame indistintamente resultaria em “sobrecarga do sistema prisional, retardando progressões legítimas e agravando a superlotação carcerária” (cf. Ag. Ex. n. c final 67.2024.8.26.0996 do TJSP).

Em suma, considerando a conveniência de, ao mesmo tempo, pacificar a jurisprudência, garantir a segurança pública, assegurar a individualização da pena e gerir o sistema prisional, uma solução razoável seria reconhecer a obrigatoriedade absoluta do exame criminológico nos casos de condenações por crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa, uma vez que se mantém em vigor essa exigência para o livramento condicional. Nos demais casos, a critério do juízo da execução, a perícia criminológica deverá ser determinada, ou dispensada, de conformidade com as circunstâncias do caso e as condições subjetivas do condenado. Se isso não é garantia absoluta de paz social – como qualquer medida judicial tampouco seria -, talvez pudesse contribuir para uma gestão inteligente do sistema de justiça criminal, sempre turbulento e instável.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Plínio Gentil é Procurador de Justiça do MPSP, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.

Nota em repúdio às tentativas de interferência dos EUA no Judiciário brasileiro

O Coletivo Transforma MP vem a público manifestar repúdio às tentativas de interferência do governo dos Estados Unidos nas decisões do Judiciário brasileiro.

A nota reafirma a defesa da soberania nacional, da independência entre os Poderes e do Supremo Tribunal Federal – instituições fundamentais para a democracia brasileira.

Diante da ameaça de retaliações econômicas e pressões externas relacionadas ao julgamento de um ex-presidente, o coletivo convida entidades e órgãos do Sistema de Justiça a se posicionarem institucionalmente em defesa da pátria, da Constituição e do Estado Democrático de Direito.

Amicus Curiae: Coletivo Transforma MP reforça paridade de gênero no Ministério Público brasileiro

O Coletivo Transforma MP entrou com pedido de Amicus Curiae no Supremo Tribunal Federal (STF) para analisar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ajuizada pela Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas. 

O objetivo da ADPF 1231 é apontar  a omissão do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em regular a paridade de gênero na promoção por merecimento das carreiras do Ministério Público. Assinada pela ex-vice-procuradora-geral da República Deborah Duprat, a Ação afirma que o órgão ainda não produziu ato normativo para fomentar a paridade de gênero nas carreiras do Ministério Público brasileiro.

“A inicial sustenta que essa omissão representa violação a diversos preceitos fundamentais consagrados na Constituição da República de 1988, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade material entre homens e mulheres, e o princípio da simetria entre o Ministério Público e a Magistratura, entre outras”, destacou o Coletivo Transforma MP no documento. 

Em 2013 o CNMP chegou a debater a instituição da paridade de gênero para promoção na carreira com base na Resolução 525 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que segue o princípio da simetria entre o Judiciário e o Ministério Público.

De acordo com a ADPF, a Associação requisita que o STF determine que o CNMP crie uma norma nesse sentido em até 30 dias. Enquanto isso, a carreira deve seguir as orientações do CNJ por questão de simetria.

O Coletivo Transforma MP sempre defendeu a paridade de gênero dentro dos espaços de poder e, principalmente, nas carreiras do Judiciário e Ministério Público, ampliando o pluralismo democrático e a valorização da riqueza cultural e social de nosso país, além de romper com as barreiras impostas pelo sistema patriarcal. 

É importante que toda a sociedade debata e divulgue essas iniciativas para continuarmos avançando cada vez mais. 

Confira as nossas Propostas para Reforma do Sistema de Justiça do Coletivo Transforma MP 

Amicus Curiae

BARROSO E A BLINDAGEM DA INDÚSTRIA DO DESCUMPRIMENTO DA LEI TRABALHISTA

Por Rodrigo Carelli no GGN

O Ministro do STF atua como o kafkiano guardião da porta da lei a fim de impedir condenações na Justiça do Trabalho

O Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso participou de evento para empresários no Guarujá, organizado pelo mesmo grupo que já o levou a Paris e a Roma, e resolveu falar “sobre um pouco de tudo”, partindo de generalidades sobre o mundo e sobre o Brasil, passando por piadas e causos, até chegar a questões mais específicas em várias áreas.  

Como se sabe, quando alguém pretende falar sobre tudo, corre o risco de tocar em assuntos sobre os quais não tem conhecimento. E foi o que aconteceu: o presidente do STF voltou a cometer equívocos sobre a Justiça do Trabalho, apresentando uma visão unidimensional: o ministro demonstra somente conseguir observar as relações de trabalho sob o prisma do empresariado, como alertamos tantas vezes em nosso livro.

No mesmo estilo da sua famosa frase “98% das ações trabalhistas do mundo são brasileiras”, Barroso afirmou que há uma indústria de reclamações trabalhistas criada por advogados. De forma deselegante, disse que, depois da rescisão contratual, na qual “o trabalhador recebeu o que tinha que receber, um advogado o encontra e diz assim: eu consigo mais uns caraminguás para você. E aí ajuíza a reclamação, pede equiparação, pede hora extra que não ganhou”.  Deixando de lado o deslize na elegância e na lealdade com a classe da advocacia, a qual compôs por tantos anos, percebem-se mais dois pontos importantes. O primeiro deles é a falta de consistência na afirmação, pois se o trabalhador recebeu tudo  o que tinha para receber, de onde sairão “os caraminguás” que a Justiça do Trabalho irá conceder? O segundo ponto está contido na resposta que o ministro tenta dar a essa pergunta: o trabalhador vai pedir a condenação da empresa em “equiparação”, “hora extra que não ganhou”. Aqui há uma contradição forte. O contexto de sua fala é o anúncio que o ministro fez de algo que estaria “passando abaixo do radar” dos empresários: uma resolução do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que regulamenta a homologação de rescisões pela Justiça do Trabalho. Barroso anunciou que agora a resolução permite que, “em qualquer caso, se estiverem de acordo e assistidos por advogado, a rescisão pode ser levada à Justiça do Trabalho que a homologa, ficando  proibido ajuizar ação trabalhista.” Nessa hora a plateia empresarial concedeu os únicos e efusivos aplausos durante toda a diversificada fala do presidente do STF. John Lennon teria ironizado que neste momento foi ouvido também o chacoalhar das joias da plateia. A contradição é evidente: como disse Barroso, “mais da metade das reclamações trabalhistas estão associadas às verbas rescisórias”. Ora, se mais da metade das ações são decorrentes de pedidos de verbas rescisórias, os “caraminguás” que virão de “pedidos de equiparação” e de “horas extras não ganhas” não serão objeto da rescisão, pois não são verbas rescisórias, e não terão sido discutidas na homologação pela Justiça.

Aqui cai o maior pressuposto de Barroso, que é o de que empregadores que pagam tudo sofrem com ações trabalhistas: se mais da metade das ações são por falta de pagamento de verbas rescisórias, isso só pode se dever ao fato que os empregadores não pagaram as verbas rescisórias e o trabalhador foi obrigado a entrar na Justiça para receber o básico. Não tem nada a ver com o empresário sério e que paga tudo certinho que Barroso desenha em sua palestra . Bem ao contrário do que afirma ser “o que acontece muito frequentemente, todo mundo sabe disso”, quem tem conhecimento de causa e não fica só escutando empresário sabe que a frase mais ouvida por trabalhadores brasileiros no momento da dispensa é o famoso “vá procurar seus direitos”. O que gera a suposta indústria de ações trabalhistas é a verdadeira indústria de descumprimento da lei pelos empregadores. O que ocorre bastante no Brasil é o puro roubo de salários, conforme expressão muito utilizada nos Estados Unidos em relação à sonegação de remuneração dos trabalhadores (“wage theft”). É isso que traduz a maior parte das ações no Brasil, conforme os números do próprio CNJ.

Assim, parece que o objetivo é evitar o ajuizamento de ações em relação a direitos como “pedidos de equiparação” e “horas extras que não ganhou”. Ou seja, que se proíba ajuizar ação para receber direitos sonegados ao longo da relação de trabalho. Isso explica as palmas entusiásticas da classe empresarial.

Aqui tem um ponto importante: o Ministro também afirmou que o volume excessivo de ações pode dificultar o investimento, gerar insegurança jurídica e desestimular a formalização de vínculos empregatícios. Mais uma vez o argumento não faz sentido, porque não é a formalização que gera as ações, mas a sonegação de direitos. A única coisa que a falta de formalização faz é aumentar o número de pedidos que deverão ser julgados procedentes pela Justiça, pois não impede o ajuizamento de ação em face de empresas, a menos que o STF negue o direito dos não formais de ajuizar as ações trabalhistas.

Assim, parece não ser nada adequada a solução dada pelo ministro para o problema que apresenta: para evitar que advogados “mauzinhos” levem as empresas a responderem na Justiça pelo pagamento de verbas trabalhistas não pagas, incentiva-se, pasme-se!, o ajuizamento de ações de homologação judicial de rescisões trabalhistas, desta vez com advogados “bonzinhos” de trabalhadores (encontrados em locais diferentes daqueles em que circulam os “mauzinhos”? Encontrados na empresa ou pela empresa?). Ora, não foi explicado como o advogado contratado pelo trabalhador passa, em um passe de mágica, de mauzinho para bonzinho. Fica também a dúvida se todo trabalhador agora, para receber suas verbas rescisórias, deve ter que contratar um advogado. Quem irá custeá-lo?

Outro ponto em sua palestra demonstra que Barroso realmente tem um fetiche pela negociação entre empregado e empregador. Ele falou que, na ação de homologação, o juiz verificará o cumprimento de direitos fundamentais, mas não tem que se intrometer na questão patrimonial, pois não cabe interferir na negociação entre trabalhador e patrão. Ele parece realmente acreditar que um trabalhador, ao ser mandado embora, necessitado de receber o que tem minimamente direito, incluindo o saldo de salário do último mês, dinheiro que o manterá vivo no período de desemprego, está possibilitado de negociar livremente com o patrão. Qualquer um que tenha conhecimento do que realmente ocorre nas relações de trabalho e como é a vida de pessoas trabalhadoras, sabe que a necessidade poderá fazer com que o trabalhador seja obrigado a “negociar,” o que outros, com mais pé no chão e noção de realidade, chamariam de renunciar a direitos e a valores.

Percebe-se, no entanto, que não há nenhum plano ou projeto do ministro quanto à indústria do descumprimento generalizado de direitos trabalhistas, o que poderia, isso sim, quem diria?, evitar ações. Nem mesmo se verifica uma preocupação real com o número de ações da Justiça do Trabalho, pois, no final das contas, Barroso e o CNJ estão incentivando a judicialização. Como ele mesmo disse na sua palestra, a resolução “não esvazia a Justiça do Trabalho, seria uma resistência política complexa, mas muda a jurisdição de contenciosa para voluntária.” Fora o ato falho que cometeu ao dizer, no não-dito, que não é esvaziada somente por conta da “resistência política complexa”, fica clara a tentativa de blindagem das empresas, ao mudar a natureza da Justiça do Trabalho. Se não podemos acabar com ela, mudemos sua natureza!

O que se percebe é que tudo não passa de mais uma tentativa de impedir o acesso do trabalhador ao Judiciário e transformar a Justiça do Trabalho em mero órgão carimbador de rescisões. Essa estratégia foi por várias vezes requentada nas últimas décadas (inclusive há outra tentativa do mesmo estilo correndo atualmente, em outro front, a partir de articulação que estaria sendo feita pelo Ministro Gilmar Mendes. Como das outras vezes, trata-se de mais uma tentativa de blindagem da indústria das ilegalidades trabalhistas. Franz Kafka sabia tudo e previu no seu conto Diante da Lei o que Barroso está propondo. Vale a pena ler o conto e perceber como Barroso está fazendo o papel de guardião da porta da lei, que tem como função impedir o acesso dos trabalhadores ao direito do trabalho.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.  

Banco Central Antidesenvolvimento

Por Gustavo Livio no GGN

Do ponto de vista econômico, o neoliberalismo simplesmente não pode prosperar sem amordaçar quem detém o controle sobre a chave do cofre.

Para a surpresa apenas dos ingênuos, o presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, defendeu publicamente na semana passada a aprovação da PEC 65\2023. Trata-se nada mais nada menos do que uma proposta que pretende constitucionalizar o que se convencionou chamar de “privatização do Banco Central”. Em verdade, a PEC pretende transformar o BACEN em uma empresa pública com autonomia orçamentária. O termo “privatização” não é técnico, mas ainda assim é indicativo de um afastamento cada vez maior entre o governo eleito e o Banco Central.

Os problemas dessa medida são muitos. Destaco aqui a consumação do divórcio entre o Poder Executivo e o BACEN, o que aprofunda a cisão entre as políticas fiscal e monetária. É como se o Estado se separasse cada vez mais do seu banco oficial. Esse novo arranjo institucional permite a formação de fissuras que vão na contramão de visões desenvolvimentistas que exigem redução dos juros e expansionismo monetário. Além disso, os ganhos obtidos com senhoriagem (fonte de receita obtida com a emissão de moeda) deixarão de ser repassados ao Tesouro Nacional. Apenas a título de informação, entre 2018 e 2023, o lucro com senhoriagem do Banco Central foi de R$ 114 bilhões (1) e suas receitas excedem sistematicamente suas despesas de custeio. Esse valor, que hoje é repassado ao Tesouro Nacional, deixaria de sê-lo.

O importante é que o afastamento crescente entre o Estado e seu banco, para colocar em termos leigos, ou entre política fiscal e política monetária, em termos técnicos, é a chave para impedir o ativismo estatal na condução de uma economia a serviço do desenvolvimento econômico. Esse divórcio, iniciado com a aprovação da “autonomia” do Banco Central, se consumaria quase definitivamente com a transformação do BC em empresa pública.

E aqui não podemos fechar os olhos para um problema histórico: a substituição do paradigma desenvolvimentista pelo paradigma da estabilidade. O que isso quer dizer? Significa uma mudança fundamental sobre as funções precípuas da política econômica do governo. Enquanto no pós-guerra tanto os governos de esquerda quanto os de direita se preocupavam essencialmente com o crescimento econômico, a partir dos anos 1980 o neoliberalismo destrói o impulso desenvolvimentista e instaura um pacto pela estabilidade que, a bem da verdade, aniquila as chances de crescimento econômico sustentado. Dito de outra forma: entre 1930-1980, governos de esquerda e de direita se preocupavam essencialmente com a industrialização do país e com o crescimento econômico. Entre 1950 e 1980, o Brasil cresceu a uma taxa média fenomenal de 7% a.a, a renda per capita cresceu 4.4% a.a em termos reais e nos empenhávamos na edificação de uma indústria nacional razoavelmente sofisticada (2). O neoliberalismo revogou essas tarefas e estabeleceu uma fixação obsessiva pelo controle inflacionário. O problema é que a tal estabilidade tem sufocado as chances de crescimento econômico diante dos marcos institucionais aprovados a partir da década de 1990 (o tripé macroeconômico). Hoje comemoramos um crescimento pífio de 3% que não levará o país a lugar algum. Para que essa missão estabilizadora tivesse êxito, o poderio fiscal e monetário do Estado, que decorrem de sua soberania, precisaria ser algemado, pois, como argumenta a ortodoxia hegemônica, o expansionismo fiscal causa supostas perturbações no sistema de preços. O resultado é que o crescimento econômico tem ficado refém de um marco institucional antidesenvolvimento.

O Banco Central é uma peça central nesse xadrez das lutas de classes. Do ponto de vista econômico, o neoliberalismo simplesmente não pode prosperar sem amordaçar quem detém o controle sobre a chave do cofre. Dentre outras funções, o Banco Central emite moeda, fixa a taxa básica de juros, é o depositário das reservas de divisas e fiscaliza as instituições financeiras. O Banco Central se converteu em guardião do tripé macroeconômico (superávit fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante), o grande sacramento do neoliberalismo a serviço da austeridade fiscal: as taxas de câmbio são afetadas pelas estratosféricas taxas de juros (que atraem investimentos externos curto-prazistas); o controle sobre a emissão de moeda determina o resultado primário; e, por fim, a função precípua do BC passou a ser alcançar as metas de inflação fixadas pelo Conselho Monetário Nacional.

É por isso que o Banco Central é a garota dos olhos do neoliberalismo. É por isso os grandes telejornais defendem tão enfaticamente sua “autonomia” enquanto demonizam a “politização” do banco. A democracia burguesa se tornou uma ameaça: quanto menor a interferência do governo democraticamente eleito, mais seguros estarão os interesses da burguesia financeira. Quanto mais “técnicas” forem as decisões, melhor! Assim, o Banco Central pode fixar as taxas de juros nos píncaros sem que sua cúpula seja substituída discricionariamente. André Esteves pode ser o consultor oficial do Banco Central, sempre, é claro, recomendando elevação da taxa de juros porque o mercado está com medo. Ao fim do processo, todos os presidentes do BC retornam para seu lugar de origem. Campos Neto se torna Chefe Global de políticas públicas do Nubank e Gabriel Galípolo possivelmente seguirá caminho semelhante. Como resultado, ganham as classes rentistas, perdem as classes trabalhadoras.

Precisamos voltar a colocar o crescimento econômico como meta fundamental e, para isso, é preciso derrubar o tripé macroeconômico e reabilitar a função do Banco Central como motor de uma política desenvolvimentista que devolva ao crescimento econômico o protagonismo que merece. É claro que devemos discutir que tipo de crescimento precisamos e como ele será produzido e redistribuído, mas fato é que sem crescimento não haverá desenvolvimento e sem ativismo fiscal não haverá nenhum dos dois. O Banco Central não pode se afastar do poder executivo eleito, que, por sua vez, não pode se afastar dos objetivos fundamentais previstos no artigo 3º, II e III da Constituição de 1988: o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais. O que está acontecendo é que as progressivas “autonomias” do Banco Central só servem para afastar o Estado do grande instrumento para concretizar sua missão constitucional enquanto a grande finança consolida seus tentáculos de poder sobre os cofres do Estado.

Se quisermos ousar fugir de nosso destino cármico, se quisermos sonhar com a superação do subdesenvolvimento e cumprir a missão constitucional é preciso retomar o poder político sobre o Banco Central. Um Estado incapaz de gerir a própria moeda é um Estado incapaz de promover desenvolvimento econômico e, assim, de cumprir sua missão histórica. Não é possível competir no capitalismo global sem enfrentar o problema da financeirização da economia e sem desenvolver mecanismos de planejamento estatal industrial forte e de longo prazo, para os quais o fator “preço da moeda” é essencial.

É preciso também superar a ideia de que a inflação é sempre um mal a ser combatido. Paremos para pensar: inflação é fenômeno aparente de um conflito distributivo mais profundo entre fornecedores e consumidores. Não é uma anomalia, é uma relação social estruturante do capitalismo. Em níveis razoáveis, revelam uma economia saudável. Países deflacionários costumam ter sérios problemas (quem irá investir em ramos da economia com preços sistematicamente decrescentes? Quem irá comprar hoje sabendo que o preço de amanhã será menor?). Além disso, a inflação é um fenômeno multicausal complexo, o que significa dizer que existem inflações de diversos tipos cujas respostas demandam uma farmacologia igualmente diversa. Não faz sentido controlar inflação de alimentos com elevação da taxa de juros. Para esse tipo de inflação, por exemplo, estoques reguladores funcionam muito melhor.  A monotonia da taxa de juros como resposta para todos os males é sintoma de uma sociedade sufocada pela financeirização.

O laboratório da história já deu 45 anos para o neoliberalismo provar seu valor e, para a surpresa de ninguém, estamos relativamente mais pobres e desiguais do que antes. Ao mesmo tempo, a fatia dos 1% alcançou ganhos históricos via taxas de juros, privatizações e desregulamentações do capital financeiro. A progressiva submissão do Banco Central à burguesia financeira tem sido crucial para sufocar os sonhos desenvolvimentistas cristalizados inclusive como normas constitucionais; mas também tem sido indispensável para manter os ganhos do capital financeiro obscenamente altos, as taxas de desemprego e informalidade elevadas e o povo na miséria.

A senhora da história, a luta de classes, se desenha sobre o papel do Estado, seus orçamentos e suas instituições. Ela não é mais visível a olho nu como no século XIX, quando grevistas lutavam contra os patrões para obter melhores condições de trabalho. Mas ainda está aí, firme e forte. Hoje, ela se esconde por trás de legislações obtusas, reuniões secretas e jantares com o lobby da burguesia. E talvez não exista peça mais central na querela do que o Banco Central, o portador da chave do cofre e da senha do computador responsável pela emissão de moeda.

Vivemos tempos em que as frações dominantes da esquerda adotam uma postura conciliatória defensiva que, no fundo, não defende nada e acaba fortalecendo uma direita com configurações cada vez mais próximas do fascismo. É preciso, portanto, trabalhar na mobilização de um pensamento novo sobre o futuro e sobre os sujeitos da história. O apagamento do futuro enquanto categoria histórica que mobilizava o presente na direção do progresso comum é sintoma de uma era que incorporou a tese do “fim da história”, a tese de que não existe alternativa; é sintoma de uma sociedade cuja capacidade humana de imaginar outros futuros desejáveis foi colapsada. Deixamos de utilizar a gramática histórica da esquerda. Expressões como “projeto de desenvolvimento”, “socialismo”, “classe trabalhadora”, “indústria” e “nação” saíram do vocabulário usual e se tornaram démodé.

Cabe à classe trabalhadora criar flancos de movimento para acumular forças na direção de seus interesses; cabe aos partidos que representam a classe se empenhar nessa direção. Gabriel Galípolo, indicado pelo Presidente da República, defende abertamente um projeto de afastamento ainda maior do Banco Central em relação ao núcleo político eleito. Esse é mais um sinal de que a esquerda, enquanto força motriz dos avanços civilizatórios da história, de fato está morta no Brasil e precisa ressurgir.  

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

Gustavo Livio é Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do Coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.

REFERÊNCIAS

1 – Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-06/pec-promove-privatizacao-do-bc-e-pode-ter-custo-fiscal-ao-pais. Acesso em: 08.06.2025

2 – Nesse sentido, ver FERREIRA, Pedro Cavalcanti; VELOSO, (Org.). Desenvolvimento Econômico: Uma Perspectiva Brasileira. Elsevier-Campus, 2012

Santos Dumont e a guerra contra o meio ambiente

Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense

O Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho, impõe uma reflexão sobre o grave momento brasileiro e a necessidade de limites a atividades predatórias, com atenção especial para a Guerra Química travada contra a natureza e a vida humana.

A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas, chamando a atenção para a questão ambientail. O evento realizado em Estocolmo, na Suécia, em 1972, é um marco histórico na luta pela preservação do planeta.

A ONU vem alertando para os riscos da aplicação errônea e imprudentemente do poder humano de causar danos incalculáveis à vida humana e ao ambiente. Evidências científicas comprovam a multiplicação dos agravos causados pelo homem, com níveis perigosos de poluição da água, do ar, da terra e dos seres vivos, gerando grandes transtornos: desequilíbrio ecológico, destruição e esgotamento de recursos, e graves deficiências, nocivas para a saúde e o meio ambiente, em que ele vive e trabalha. A ignorância, a indiferença e a inconsequência são apontadas como causas de danos imensos e irreparáveis ao meio ambiente da terra do qual dependem a vida e o bem-estar, da geração atual e das futuras.

No Brasil, o STF vem se mostrando atento ao compromisso do Estado brasileiro com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, em sintonia com o consenso dos países civilizados.

Todavia, a tolerância às investidas contra o meio ambiente e ao uso de agrotóxicos, muitos deles banidos dos países em que há preocupação com os efeitos ambientais e na saúde, é agravada pela permissão a técnicas de aplicação que potencializam os agravos à saúde de trabalhadores e de comunidades expostas.

Envenenadores atiçam o confronto com o firme posicionamento do STF, que vem defendendo a pauta civilizatória ambiental. Exemplo de decisão que acirra o conflito entre os Poderes instalados na Praça dos Três Poderes, em Brasília, deu-se com a decisão do STF que suspendeu a portaria da Secretaria de Defesa Agropecuária, que admitia a “aprovação tácita” de agrotóxicos. No mesmo sentido, reconheceu a legítima proibição da pulverização aérea no Ceará (ADI 6137). Foi respaldando a mobilização da comunidade cearense afetada contra a técnica reconhecidamente gravosa para a população exposta à Guerra Química.

Os embates e as disputas da pauta predatória, no entorno da Praça dos Três Poderes, em Brasília, fazem lembrar uma das maiores celebridades brasileiras, inserido no Livro de Aço, no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, situado na mesma praça.

Alberto Santos Dumont foi incluído pelo Congresso Nacional no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, em 2023. O cientista, Patrono da Aeronáutica Brasileira, recebeu os créditos pela engenhosidade, em especial pelo desenvolvimento do avião que fez o primeiro voo autopropulsionado da história, em 1906. O espírito humanista é uma marca pouco conhecida de Santos Dumont, que teria passado os últimos anos de sua vida debilitado, deprimido pelo uso de seu invento na guerra.

Como um homem esclarecido, diante do grau de destruição pelo uso do avião na primeira guerra, anteviu, horrorizado, o que as máquinas voadoras poderiam atingir no futuro, “como espalhadoras da morte, não só entre as forças combatentes, mas também, e infelizmente, entre pessoas inofensivas da zona de retaguarda”. Em 1926, dirigiu-se à Liga das Nações pedindo a abolição da aviação como instrumento de destruição. Justificava-se entre os pioneiros na conquista do ar que “pensavam mais em criar novos meios de expansão pacífica dos povos do que em fornecer-lhes novas armas de combate”.

A manifestação, pacifista e humanista, de Santos Dumont acerca do avião mostra-se oportuna para um chamado à racionalidade, limitando a sanha predatória, de novas técnicas e velhas práticas, como a que pode ser estabelecida caso seja aprovado o projeto que pretende criar a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, facilitando os objetivos de predadores ambientais.

É uma norma que, se aprovada, fatalmente será submetida ao STF por ser incompatível com o disposto no artigo 225 da Constituição, que assegura o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O gênio brasileiro certamente defenderia o uso pacifista e humanista das inovações, contra os “espalhadores da morte”, a favor da sadia qualidade de vida, direito que impõe ao Poder Público e à coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP

Meu encontro com Fromm e o Ministério Público

Fromm elabora tipologia do caráter, combinando uma categoria política (estrutura autoritária) com uma categoria psicológica (a do caráter).

Por Marcelo Pedroso Goulart no GGN

Após trinta e quatro anos de carreira no Ministério Público de São Paulo, recolhi-me aos aposentos, colocando-me a gostosa tarefa de reler livros, ensaios e artigos que foram de especial importância na minha formação e cujas ideias forneceram-me elementos e instrumental teóricos para o exercício da minha função institucional.

Na procura desses escritos, reencontrei e reli recentemente o ensaio O caráter revolucionário, do sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm, pioneiro da chamada Escola de Frankfurt (Instituto para Pesquisa Social), autor de vasta obra, na qual predominam estudos e pesquisas sobre a condição humana em períodos de ascensão e desenvolvimento de regimes totalitários (fascismo e nazismo), da sociedade de consumo, da automatização da produção econômica, da presença permanente do risco de guerras nucleares de grande escala e com potencial destrutivo capaz de provocar colapso social. Das principais obras, destaco as seguintes: Análise do homem, Anatomia da destrutividade humana, O medo à liberdade, Meu encontro com Marx e Freud, Psicanálise da sociedade contemporânea, Ter ou ser?, Conceito marxista do homem, todas publicadas pela antiga e saudosa editora carioca Zahar, na década de 1960, com sucessivas edições que chegam aos dias atuais.

O ensaio que me marcou está na segunda edição da coletânea O dogma de Cristo, publicada em 1965, que li ao final da adolescência, antes de ingressar no curso de Direito. Nesse texto, Fromm elabora uma tipologia do caráter, combinando uma categoria política (estrutura autoritária no Estado e na família) com uma categoria psicológica (a estrutura do caráter). Com base nessa combinação de categorias, faz o confronto e define as duas espécies de caracteres com os quais trabalha no estudo: o autoritário e o revolucionário. Para o autor:

“…a estrutura de caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo senso de força e identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às autoridades, e ao mesmo tempo um domínio simbiótico dos que estão submetidos à sua autoridade. Ou seja, o caráter autoritário sente-se mais forte quando pode submeter-se a uma autoridade e ser parte dela, desde que seja (e até certo ponto apoiado na realidade) exagerada, deificada, e quando ao mesmo tempo pode crescer pelo fato de incorporar os que lhe estão sujeitos à autoridade. É um estado de simbiose sádico-masoquista, que lhe dá uma sensação de força e de identidade” (p. 118).

Adiante, deixa claro que a pessoa dotada de caráter autoritário é:

“… bastante impotente e procura encontrar forças que o protejam e lhe proporcionem sentimento de segurança. O preço pago por esse auxílio é tornar-se dependente dele, perder sua liberdade e reduzir o processo de seu crescimento” (p. 122).

Uma vez definido o que é o caráter autoritário, Fromm passa a descrever os elementos que compõem o caráter revolucionário. Em primeiro lugar, o psicanalista alemão afasta aqueles que, tendo a aparência de revolucionários, não o são. Por exemplo: o participante ativo de uma revolução, pois essa participação não é condição suficiente para caracterizar a pessoa como revolucionária se a ela não se somam outras condições, as quais veremos adiante; o rebelde-ressentido, uma vez que tal pessoa é movida pelo fato de não ser aceita pela autoridade contra quem se rebela; o rebelde-oportunista, ou seja, aquele que se infiltra nas instituições, nas organizações e nos movimentos que objetivam a transformação social com o intuito de obter benefícios pessoais; o fanático, isto é, aquele que atua por idolatria política ou religiosa, apresentando, não raro, confusa percepção da realidade e tendências paranoicas.

Depois dessas observações, Fromm passa a analisar o que, para ele, seria o caráter revolucionário. Como não poderia deixar de ser, o autor apresenta a sua definição de revolução, e o faz em conformidade com sua linha de pensamento, em uma perspectiva político-psicológica. No sentido político, revolução é “a substituição de uma ordem existente por outra historicamente mais progressista”; no sentido psicológico, revolução “é um movimento político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pessoas de caráter revolucionário”. Assim compreendida a revolução, afirma que o “traço fundamental do caráter revolucionário é ser independente – é ser livre”. A independência, por sua vez, “é o oposto da ligação simbiótica aos poderosos, que ocupam posições superiores, e aos impotentes, que ocupam posições inferiores” (p. 121); explicitando que:

“A liberdade e a independência totais só existem quando o indivíduo pensa, sente e decide por si. Só pode fazê-lo autênticamente quando atinge uma relação produtiva com o mundo exterior, que lhe permite reagir de forma autêntica…” (p. 122).

Para a pessoa dotada de caráter revolucionário, “o crescimento da personalidade ocorre no processo de relacionar-se e interessar-se pelos outros e pelo mundo’’; ou ainda, o “caráter revolucionário identifica-se com a humanidade e portanto transcende os estreitos limites de sua própria sociedade e pode, por isso, criticar a sua sociedade, ou qualquer outra, do ponto de vista da razão e humanidade; enfim, o “caráter revolucionário identifica-se com a humanidade” (p. 124).

Acredito que, chegando a esta altura do artigo, o leitor tenda a perguntar o que as lições de Fromm tem a ver com o Ministério Público?

Respondo: tudo a ver.

Explico.

Vamos à Constituição de 1988. Esse primoroso documento político-jurídico constitui-se como verdadeiro projeto societário, antecipando em seu texto o tipo de sociedade que brasileiras e brasileiros decidiram construir após mais de duas décadas de ditadura burguesa-militar. Esse projeto prevê os valores que o fundamentam e o justificam, estabelece os instrumentos para realizá-lo e os objetivos a serem alcançados. Ou seja, por meio dos espaços e instrumentos da democracia semidireta, as cidadãs e cidadãos, as organizações e movimentos sociais, os agentes políticos e econômicos, em responsabilidade compartilhada, têm o compromisso-dever de contribuir para a construção da sociedade livre, justa e solidária, na qual a pobreza e a marginalização sejam erradicadas, as diferenças sociais e regionais sejam reduzidas e o bem comum seja promovido sem preconceito, discriminação e intolerância (art. 3º, incisos I a IV). Trata-se de um projeto de democracia política, econômica e social; de democracia substantiva.

Se concordamos com Fromm que revolução é a substituição de uma ordem existente por outra historicamente mais progressista, e que essa mudança não ocorre apenas pela via de atos de força concentrados no tempo (revolução jacobina), mas, sobretudo, por mudanças estruturais que se acumulam no processo histórico (revolução progressiva, processual), não é difícil concluir que o projeto societário previsto na Constituição é o de uma nova ordem mais progressista se comparada à ordem existente e a ser superada pela sua implementação. Nesses termos, a Constituição brasileira é revolucionária.

No projeto societário constitucional, o Ministério Público foi contemplado com autonomia institucional, novas atribuições e novos instrumentos aptos a levar avante, no seu espaço de atuação, a implementação desse projeto, pela via da promoção e defesa de interesses e direitos, cuja concretização é imprescindível para a consecução dos objetivos estratégicos da República. Nesse sentido, se o projeto tem conteúdo transformador (mudança para uma ordem social superior), o Ministério Público tem, consequentemente, o compromisso-dever de contribuir decisivamente para a mudança da ordem social, como instituição transformadora, revolucionária.

Por sua vez, os agentes políticos que integram o Ministério Público estão vinculados à estratégia constitucional/institucional e têm o compromisso-dever de atuar concretamente, seja pela via direta dos órgãos de execução, seja pela via indireta dos órgãos da Administração Superior, na realização da revolução progressiva, assim como definida na Constituição de 1988. Para tal, a Constituição deferiu garantias ao agente político do Ministério Público, como a independência funcional, a inamovibilidade e a do promotor natural, para que ele possa atuar de forma desembaraçada, imune às pressões do poder político, do poder econômico e dos constrangimentos internos que possa sofrer. Portanto, o comportamento esperado do agente político do Ministério Público é aquele próprio da pessoa independente, livre, que não se submete ao poder dos que conspiram contra os valores da democracia; é daquele que age e usa seus instrumentos, não para oprimir os destinatários do seu trabalho, mas, sim, para emancipá-los, libertá-los de uma ordem social opressora. O que se espera da pessoa que pretende ingressar no Ministério Público é o de que seja independente, livre, que se identifique com a humanidade, tenha caráter revolucionário, nos exatos termos desenvolvidos por Erich Fromm no ensaio que ilumina este texto.

O que se vê no plano concreto, é a ausência de preocupação do Ministério Público realmente existente com questões dessa importância. Deixo para um próximo artigo a apreciação crítica de alguns elementos que impedem o enfrentamento dessa dificuldade.

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Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

Marcelo Pedroso Goulart é Promotor de Justiça aposentado do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP

Tema 1389 e o STF: até eles, os entregadores?

Abrangência excessivamente ampla trouxe para o debate situações que não se relacionam com as controvérsias jurídicas colocadas
Priscila Dibi Schvarcz, Renan Bernardi Kalil no Jota

O reconhecimento do Tema 1389 de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal fará com que ocorra um debate a respeito de três controvérsias relacionadas à contratação de trabalhadores.

Especificamente, uma delas versa a respeito da “licitude da contratação civil/comercial de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos”.

O ministro relator, Gilmar Mendes, ao tratar do alcance do caso, frisou que o debate não se limita aos contratos de franquia – tema que deu origem ao processo –, mas também abrangerá, dentre outras atividades, o trabalho de motoboys e entregadores.

Apesar de a decisão não mencionar expressamente que engloba a atividade desenvolvida por esses trabalhadores por meio de plataformas digitais, o ministro relator já sinalizou nesse sentido. Contudo, tratar a situação dos entregadores e motoboys no âmbito do Tema 1389 é um equívoco por pelo menos três razões fundamentais.

A primeira é que esse movimento coloca em um único cesto conceitos jurídicos substancialmente distintos cujo tratamento conjunto mais atrapalha do que ajuda. O trabalho via plataformas digitais é um fenômeno recente que desafia paradigmas tradicionais e que, como diversos ministros do STF já reconheceram expressamente em votos anteriores, merece um olhar alinhado com o uso das novas tecnologias no mundo do trabalho.

A pejotização, por outro lado, envolve a simulação fraudulenta na contratação civil/comercial de um trabalhador quando presentes os requisitos da relação de emprego, em flagrante violação ao princípio da primazia da realidade e ao art. 9º da CLT, que considera nulos os atos praticados com o objetivo de desvirtuar a aplicação dos preceitos contidos na legislação trabalhista.

A terceirização, por sua vez, é a prestação de serviços por uma empresa a terceiros, estando regulada pela Lei 6.019/74, alterada pela reforma trabalhista, e com parâmetros constitucionais já claramente estabelecidos pelo STF na ADPF 324 e no Tema 725-RG, configurando matéria jurídica com contornos próprios e específicos.

A segunda razão, de ordem processual e igualmente relevante, é que já existe um caso com repercussão geral reconhecida e que se aproxima muito mais da realidade fática e jurídica desses trabalhadores do que o caso examinado no Tema 1389.

O Tema 1291-RG, de relatoria do ministro Edson Fachin, que trata especificamente do “reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora da plataforma digital”, teve origem em uma reclamação trabalhista apresentada por uma trabalhadora em face da Uber.

Apesar do caso tratar do trabalho de uma motorista, é possível que a tese que será fixada também abranja as atividades de entregadores e motoboys. Um indício robusto e incontestável nesse sentido pode ser encontrado nos participantes da audiência pública convocada pelo ministro Fachin e realizada nos dias 9 e 10 de dezembro de 2024: dentre os 58 expositores, tivemos sete entidades representativas desses trabalhadores e a maior empresa que atua nesse setor, com mais de 80% do mercado brasileiro, a iFood.

Assim, caso se mantenha o entendimento de que entregadores e motoboys que atuam por meio de plataformas digitais estão abrangidos pelo Tema 1389, o processo deveria ser redistribuído ao ministro Fachin, por prevenção: é o que determina imperativamente o art. 325-A do Regimento Interno do STF, norma de observância obrigatória que visa justamente evitar decisões contraditórias sobre a mesma matéria. Caso contrário, estaremos diante de uma situação que violará o princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF) e a economia processual.

A terceira razão remete à proteção material dos direitos fundamentais. Iniciar a análise sobre a forma pela qual ocorre o trabalho de entregadores e motoboys por meio de plataformas digitais a partir da ideia abstrata de “liberdade de organização produtiva dos cidadãos” é fechar os olhos para a realidade concreta e subverter o princípio da primazia da realidade.

Na prática cotidiana, esses homens e mulheres possuem opções de escolha severamente limitadas sobre como desenvolver essa atividade: não podem colocar o preço em seu trabalho, são ranqueados conforme o cumprimento de metas estabelecidas unilateralmente pelas empresas e recebem punições quando não seguem as regras determinadas por elas. Sua liberdade se reduz a aceitar todas as condições impostas nos termos de uso de aplicativos ou ficar impedido de exercer a atividade, não existindo espaços para negociação.

Motoboys e entregadores cruzam as cidades do país em alta velocidade para atender o tempo de entrega imposto pelas empresas e se expõem a riscos altíssimos à sua integridade física (art. 7º, XXII, CF), cujo resultado é o crescente número de acidentes, com vários óbitos documentados, em diversas localidades.

Essa realidade já foi retratada em Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde. São trabalhadores que, por não terem onde satisfazerem as suas necessidades fisiológicas ao longo da jornada, em flagrante violação ao direito à dignidade humana, hidratam-se precariamente e, como consequência, não sangram, sendo cada vez mais comuns, ainda, o relato de doenças renais entre os trabalhadores[1].

Há quem argumente, a partir de uma visão reducionista do fenômeno, que as regras criadas no século 20 para proteger o trabalhador não cabem na realidade do século 21. Entretanto, enquadrar o trabalho via plataformas digitais realizado por entregadores e motoboys sob uma perspectiva de mera liberdade de organização produtiva, sem considerar as assimetrias de poder inerentes a essa relação, terá como resultado lançá-los diretamente ao século 19. Retornaremos à época da pré-regulação trabalhista, marcada por condições degradantes de trabalho e ausência de proteção social, em flagrante retrocesso social vedado pelo ordenamento constitucional brasileiro.

A definição da abrangência do Tema 1389 foi excessivamente ampla, trazendo para o debate situações de trabalhadores que não se relacionam com as controvérsias jurídicas colocadas e que já estão sendo tratadas em outros casos de repercussão geral.

Reconhecer esse cenário, fazendo as devidas distinções técnico-jurídicas, é central para que a fixação da tese pelo STF ocorra da melhor forma possível no Tema 1389, preservando a integridade hermenêutica do sistema constitucional e evitando incongruências jurisprudenciais que poderiam comprometer a própria segurança jurídica das relações trabalhistas no país.

O primeiro passo para isso é retirar formalmente os entregadores e motoboys desse caso, reservando sua análise ao foro processual adequado já estabelecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal.

Crises, circo, cerco e ciclos continuam tomando conta do Brasil

Bruna Linzmeyer em ‘O Grande Circo Místico’ — Foto: Divulgação

Por Maria Betânia Silva no GGN

Sambar sobre a dor é o nosso jeito de fazer política e talvez seja um jeito único no mundo.

Em 2021 publiquei um artigo intitulado “Crises, Circo, Cerco e Ciclos”. E as crises, o circo, o cerco e os ciclos persistem!

O título ainda que alterado preserva a essência, apesar de todos os novos acontecimentos que nos trazem angústia. É que eles trazem à tona o padrão histórico de funcionamento das instituições brasileiras. E tudo acontece sob o olhar da população que se divide entre consciência e alienação; paralisia e ação; protesto e silêncio; conivência e enfrentamento. Posturas, enfim, que não aplacam a tensão social e política que nos últimos anos vêm afetando muito intensamente o país.

Continuamos num ciclo do qual emergem e ainda predominam vozes e ações tresloucadas dos mesmos atores/ detratores da paz: pessoas detentoras de uma riqueza material excessiva ou aspirantes a isso; pessoas aproveitadoras do espaço da política para garantir os seus ganhos drenando o orçamento do Estado; pessoas obtusas no que se refere à necessidade de criar um estado de bem-estar social: ignorantes sobre os princípios de uma vida pública regida pelo princípio da igualdade e do respeito; pessoas conservadoras e cameleônicas no que tange aos valores morais; pessoas enfim perversas em tudo na vida.

Até quando viveremos esse ciclo? Que História é essa em que tudo sucede “…se demorando em ser tão ruim”?

Trata-se de uma História bem capturada pelo samba, que representa a “lágrima clara sobre a pele escura”, como magistralmente cantam Gilberto Gil e Caetano Veloso. Na voz doce de ambos e para quem tem escuta atenta, soa a denúncia e também os versos de alento de que “alguma coisa acontece/no quando agora em mim/cantando eu mando a tristeza embora”.

Aprendemos há muito que “o samba é o pai do prazer/o samba é o filho da dor/o grande poder transformador”. Ele é verdadeiramente isso! Vivemos tempos de tristeza, de raiva e receios no Brasil e o samba nos manteve dominando os nossos pés. Que venham os sambas, apesar da dor, e que também por causa dela nos oferece a noção de coletividade. Uma coletividade que vivo o risco de esfacelamento diante das ignomínias políticas que pululam no país. Para barrar esse processo, o samba nos convoca a fazer uma roda, uma reunião barulhenta, sim, atravessada pela alegria de viver em que o ritmo balança os nossos corpos, nos dá o molejo atrevido e nos desafia a varar a noite para ver o sol nascer. A nossa História tem, sim, que dar em samba, sem desdém!

Sambar sobre a dor é o nosso jeito de fazer política e talvez seja um jeito único no mundo.

No artigo anteriormente publicado, afirmei que a História do Direito transposta em códigos, leis esparsas, instituições e, sobretudo, no texto constitucional, embora diga muito sobre a nossa evolução política e involuções está longe de contar toda a História. De fato, no caso brasileiro, essas normas não dizem nada sobre as forças violentas que nos sacudiram e, eventualmente, nos sacodem. Tomadas como expressão da vitória fundadora de uma ordem, essas normas são vistas na perspectiva de progresso mas as forças continuam amassando os papéis, jogando-os sob botas que passam por cima de qualquer linha, que, de longe, represente um limite civilizatório a ser respeitado.

No Brasil, as botas apoiadas por setores econômicos poderosos da sociedade, escreveram uma parte significativa da nossa História, pelo menos, desde 1889; levantaram-se da poeira depois da ditadura de 1964-1988 e, mais do que nunca, com apoios similares aos do passado, voltaram à sujeira do despudor. Apostaram num ex-militar desqualificado que agitou parcelas variadas da população para, exaltando a história mal contada ao longo da ditadura militar, negar a ocorrência desse período e eleger a desordem como ordem estabelecida sem nada propor de duradouro e razoável, nenhum interesse em alcançar uma convivência social pacífica. Só ideias disruptivas! Desse modo, caminhamos para além de qualquer limite e, para o fundo de um poço com alçapão, como se tem dito nas redes sociais.

CRISE

Eis a sensação que se vivencia no Brasil desde 2016, pelo menos, quando se tirou do poder a Presidente Dilma, acenando-lhe um perverso “Tchau, querida!”. Situação, aliás, que foi muitíssimo agravada senão provocada pela Lava Jato, a qual, com os seus homens engravatados, vaidosos da imagem de Harvard, entusiastas de um power point de fins messiânicos para combater a corrupção sem nunca combatê-la efetivamente; todos eles, seres pobres de espírito democrático, forçaram e arrebentaram as linhas de interpretação constitucional para liberar endinheirados delatores (inventores de informação útil) em troca da prisão de Lula, baseada apenas em convicção. Finalmente, a convicção revelou -se farsa, foi desfeita por decisão do STF que constatou a inexistência de provas, tornando insustentável a prisão de Lula.

Fraturou-se o sistema judicial brasileiro com a Lava Jato e por causa disso, hoje, a temperatura da crise ainda sobe alguns graus.

Para reparar a fratura há uma corrida frenética, exaustiva e desafiadora para que o STF não deixe a “corda se partir” e para fazer valer as instituições burocráticas e institutos da doutrina jurídica brasileira que mais do que nunca representam um sopro de uma ordem minimamente estabilizadora da vida institucional e social do país. O Judiciário, o Ministério Público que são, dentre outras instituições, uma garantia do ideal democrático, abrigam em seus gabinetes pessoas com opiniões divergentes e até opostas e, em certa medida, nutridas por embates cotidianos. Isso por si só constituiria uma realidade democrática, não fossem os delírios de alguns que ainda se sentem inspirados pela Lava Jato e se excedem no seu ofício, impondo aos demais a necessidade de fazer um esforço hercúleo para alcançar uma eficácia mínima de direitos humanos e de cidadania no país, combatendo o lawfare.

Além do ambiente febril no sistema de justiça, no campo da representação política partidária, se tem uma Câmara de Deputados, em boa parte, muito simpática à engorda de bois e não exatamente preocupada com a fome do povo que grassa nas esquinas dos centros urbanos, no interior rural do país e até nas regiões mais verdes.

Foi justamente uma parte significativa dessa Câmara que votou na noite da quinta-feira da semana passada (entre 08 e 09 de maio) uma resolução para barrar uma Ação Penal em curso no STF relativa à tentativa de golpe, em 2023, para salvar um deputado e a partir dele uma penca de gente. Nessa ação o chefe do governo anterior (2018-2022) figura como réu juntamente com os generais cheio de estrelas obscurecidas. A resolução é mais um ato, dentre tantos, tresloucados. Mais um que não se rege pela lógica jurídica existente no país e, desse ponto de vista, não se sustenta. Mais uma ação tresloucada que parece uma metralhadora giratória para transformar a vida institucional do país num campo de ensanguentados à beira da morte. Vive-se, assim, mais uma vez e, com intensidade, uma situação que ameaça a nossa integridade em todos os sentidos: física, social, política, territorial e institucional.

Paira sobre a cabeça dos membros do STF, nesse momento, o temor de que o absurdo desse trancamento da Ação Penal se converta num redemoinho institucional, levando-nos do “Caos à Lama”. Há uma crise profunda dentro de todas as instituições. Tudo é Guerra sem perspectiva de paz e a Câmara intoxicada pela estupidez, na votação recente, cria empecilhos para uma Ação Penal necessária, visando desestabilizar o Poder Judiciário e desacreditá-lo em tudo.

CIRCO

Que ninguém se esqueça, mas temos um ex-Presidente do Brasil egresso das Forças Militares e que tem na cabeça a ideia de ser um “Imperador absoluto”, anunciando de forma tosca: “Constituição sou eu”, “eu sou o Partido X” mesmo sem, à época, ter um.

Os tempos do Imperador, que fique bem claro, nunca foram dourados para o povo brasileiro. Foi nessa época que pessoas foram escravizadas e o Imperador se fazia por bajuladores. Algo muito semelhante às imagens de um paciente no hospital, supostamente recém-cirurgiado em virtude de um problema abdominal grave. Num paralelo com os tempos do Imperador, seus congêneres atuais encontram nas milícias (réplica na contemporaneidade brasileira dos capitães do mato) a proteção dos seus interesses e a realização das suas vontades. Em torno desse “Imperador” sem coroa, mas coberto da arrogância despótica, gravitam muitos serviçais para compor o quadro adoecido e farsa da força de superação.

É “espetáculo” de degradação contínuo o que ocorre no centro da “Corte Imperial”. É como se ela fosse um picadeiro onde tudo que parece absurdo e, efetivamente, o é acontece diante de uma plateia atônita. É como um circo sem magia, um circo mambembe no qual o espetáculo derrapa num figurino esfarrapado. A imaginação seca diante do que se vê. É circo repleto de palhaços sem profissionalismo e sem a inteligência que é habitual nesse personagem circense. São palhaços que se movem na fronteira entre o cômico e o trágico sem saber interpretar nenhum desses estados. É circo cuja plateia se divide entre gente boquiaberta, que vê o fogo consumir a lona e se coloca na saída de emergência e gente que, ainda, se acha absorta nos aplausos.

CERCO

O trabalho normal e necessário que está sendo realizado agora pelo STF, por exemplo, vem provocando muito mal-estar na soberba do “Imperador”.

Como sói ocorrer com todo procedimento de natureza investigatória, ao final do Inquérito sobre a tentativa de golpe no dia 08 de janeiro de 2023, o Procurador Geral de República (PGR), após exame minucioso, fez o seu trabalho: ofereceu a denúncia, assegurando a todos os denunciados o direito de defesa. Nada que esteja fora da Constituição de 1988. Tudo nos conformes. Isso, porém, é visto como um cerco pelo mais espetaculoso dos réus, ávido em agitar os outros para se evadir e não responder pelos atos que cometeu. Ele fez agonizar a jovem democracia brasileira quando estava na cadeira do poder e, agora, se diz adoecido, justo quando a democracia reage dentro das “quatro linhas da Constituição”.

Os contornos institucionais do país, construídos ao longo de décadas da História do Direito vão pouco a pouco se restaurando, enquanto resiste às ameaças delirantes de bestas-fera que pretendem avançar sobre o Estado brasileiro para estraçalhá-lo, tirar-lhe um pedaço e entregar os restos às hienas globais.

CICLOS

O Brasil oscila assim entre o passado e o futuro, às vezes, parecendo se situar nos primórdios da República, sempre que se abre um espaço na imprensa nacional para ouvir gente desqualificada vociferar a favor da tradição, da família e da propriedade. A tradição que consiste em manter nesse território os homens, os machos brancos, de peito estufado contra negros, índios e mulheres, exatamente como fizeram os colonizadores, desta feita, porém, sem caravelas. Eles transitam montados em motocicletas, ou em carros de som para cumprir o suposto papel de macho: demarcar território. Animalesco, aliás! Nessa demarcação, ironicamente, nem o xixi, nem o peito estufado, nem as patas estão se revelando suficientes; as armas lhe são providenciais mas elas estão com pouca munição no momento. Tirem-lhe as armas e não se ouvirá um pio.

Como se fosse uma série, “Enquanto isso na sala de Justiça”, alguns membros do Ministério Público enfrentam dificuldades para agir, outros se acomodam em fazer um pouco e, de mão em mão, canetadas consignam despachos salutares, brilhantes, corajosos e alguns outros tresloucados e determinantes do pior; os magistrados vão tomando as decisões nos casos para os quais são demandados ou diante das situações em que precisem defender a existência e o exercício de suas funções, produzindo juízos ora acertados, ora equivocados. Lá vai o Brasil cumprindo um ciclo que é quase um eterno retorno!

Eterno retorno, aliás, é uma noção trazida por Nietzsche e compreendida por vezes apenas numa dimensão cosmológica como se fosse um destino fatídico. Em uma linguagem didática e acessível a todos, essa noção talvez possa ser explicada através da metáfora de cartas de um baralho. Imagine que essas cartas sejam contínua e perpetuamente embaralhadas… em virtude disso, sucede que as combinações entre elas, dentro de um tempo que é infinito, vão se repetir e podem mesmo indicar uma sequência de repetição porque as combinações das cartas são finitas. Ao mesmo tempo, esse processo pode abrir a possibilidade de “um novo referencial cosmológico” diverso daquele que vem sustentando a moral do Ocidente. Um dos pilares dessa moral, que repousa no Cristianismo, é a do juízo final. Acredita-se no apocalipse e que ele deve ser o fim de tudo, contraposto, aliás, ao começo de tudo: o Big-Bang!

Esquece-se aí da ciência, segundo a qual o Universo continua se expandindo e também da teoria quântica que enxerga uma partícula cuja trajetória no espaço é incerta. Esquece-se o saber ancestral vindo da África que se move de modo circular e não linear; esquece-se a argúcia dos povos indígenas que protegem a natureza para que os ciclos que lhe favorecem a existência e a sobrevivência não tenham fim.

Há incertezas dentro do ciclo! Que alívio! E que o samba persista como o grande poder transformador.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça aposentada e membra do Coletivo Transforma MP

Maternidade atípica e as relações de trabalho

Por Thaís Fidelis Alves Bruch no GGN

A interpretação restrita e preponderante do ordenamento jurídico empurra as mães para licença-saúde ou para o desemprego

“Como és guerreira”. Essa é a expressão que costumo ouvir das pessoas frente ao cumprimento das muitas e variadas atividades diárias de mãe típica e atípica, bem como dos meus deveres profissionais. Acredito que as pessoas a utilizem como forma de elogio ou reconhecimento por eu, mesmo diante das inúmeras demandas impostas à mãe que possui uma criança autista, conseguir “entregar” resultados e ser extremamente produtiva quando comparada aos pais trabalhadores que não possuem um filho com deficiência. 

Em um dado momento, ouvir e ler que eu sou forte e que “dou conta de tudo” afastava um sentimento de autopiedade e me passava a impressão de que poderia, através da privação do sono, de diversão e de autocuidado, concretizar as minhas aspirações profissionais e acadêmicas, além de desempenhar o importante papel de mãe do Thomas e do Guilherme. Contudo, o decurso do tempo mostrou-me que, nas entrelinhas desses comentários aparentemente elogiosos, havia um componente de crueldade, pois neles residia um método – vamos imaginar que ele seja não deliberado – de afastar a corresponsabilidade da sociedade em proporcionar reais condições para a pessoa com deficiência se tornar autônoma e se desenvolver, e, de igual forma, apoiar os que exercem o papel de cuidadores (na maioria dos casos a mãe) possibilitando que eles/elas possam trabalhar, estudar e ter lazer.

Significa dizer que, na esteira da “nova razão individual” e do “absolutismo da meritocracia” (esse último desprovido de qualquer análise profunda e não enviesada), esses elogios buscam criar uma armadura para seus autores, a fim de que os efeitos da dedicação à pessoa com deficiência não os atinjam. Eles querem apenas é ter pena.

Ainda que eu seja uma mulher branca, com estabilidade financeira, casada com um homem feminista e trabalhando com colegas de elevado conhecimento jurídico e cultural, o que já me coloca em uma situação de vantagem em um país pobre e desigual, não é fácil perceber que o meu local de trabalho não quer que os ”respingos” gerados pela falta de tempo, tristeza, cansaço, ou, pior, pela necessidade de mais recursos humanos ou materiais para exercer a mesma função dos demais os atinja. E, para o meu assombro, a “falta de paciência” também se estende às colegas mulheres e mães.

Não ouse fazer um mestrado e publicar um livro, isso geraria ainda mais dúvidas da sua real carga psicológica e física. Não ouse, igualmente, em prosperar na carreira ou dar palestras, seria um acinte.

Se o cenário já não á afável na área pública, ele piora na iniciativa privada. A interpretação restrita e preponderante do ordenamento jurídico empurra as mães para licença-saúde ou para o desemprego, já que, atualmente, não há obrigação legal de reduzir a jornada de trabalho ou de conceder teletrabalho. E, se uma empresa – voluntariamente – proceder à redução da jornada, ela exigirá a renúncia de posições de direção e chefia ou, ainda, promoverá a redução do salário (de quem precisa muito para pagar as necessárias terapias). Muitas mães atípicas sequer dão publicidade que possuem um filho autista, temendo retaliação ou a dispensa do emprego.

É preciso, então, um olhar mais fraterno da sociedade, para permitir um cuidado com qualidade e, ao mesmo tempo, conferir espaço para a realização profissional. É preciso que a sociedade contribua para este objetivo. Se o mote não for pelo viés humano, que seja pelo econômico:  se as crianças autistas não receberem tratamento adequado, elas perderão a chance de serem independentes; e se as suas mães não recebem apoio para prosseguir em suas atividades profissionais, o custo monetário no futuro será maior. E a conta será paga por todos.

Para constar: não sou guerreira e tampouco dou conta de tudo sem pagar um preço altíssimo. As mães não querem pena, querem suporte para poder estudar, trabalhar e sorrir.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

Thaís Fidelis Alves Bruch – Mãe atípica, Procuradora do Trabalho e Coordenadora do Grupo de Estudos “Inclusão de Pessoas Neurodivergentes no Trabalho” do Ministério Público do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.