O livro do “Coletivo Transforma MP Justiça e Democracia em Pedaços” foi lançado no XXV Congresso Nacional de Procuradores e Procuradoras do Trabalho, promovido pela Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT).
O lançamento ocorreu em São Paulo na tarde do último sábado, 02, e contou com a presença do promotor de Justiça MPSP e membro do Coletivo Daniel Serra Azul Guimarães como apresentador da obra.
Durante o evento outros exemplares também foram divulgados, entre eles o livro “Crianças Invisíveis” da procuradora do MPT e membra do Coletivo Elisiane dos Santos, cujo objetivo é retratar o trabalho infantil e o racismo existente nas ruas do Brasil.
A obra “Sub-humanos: o capitalismo e a metamorfose da escravidão ” de autoria do procurador do MPT e membro do Coletivo, Tiago Cavalcante, também foi destaque entre os exemplares. O manuscrito é sobre a opressão e violência deixadas pelos tempos da escravidão que estão presentes no mundo do trabalho dacontemporaneidade. O autor reflete sobre as diversas maneiras de exploração dos trabalhadores nas diferentes conformações sociais, em especial a sociedade capitalista.
A guerra é o maior fracasso da humanidade e ninguém em sã consciência pode deixar de condená-la. Não há como apoiar a destruição de vidas humanas, a separação de famílias e os dramas dos refugiados que a guerra acarreta. A operação militar russa que deu início a mais uma guerra neste século ainda tem um agravante. Ela nos traz de volta a ameaça nuclear e a sensação de impotência diante das grandes disputas geopolíticas pelo poder. E nos traz também uma pergunta incômoda: quem devemos condenar pela guerra?
Todas as ações humanas que atingem outros seres vivos estão sujeitas a julgamento moral. É impossível fugir da dimensão moral que acompanha a condição humana. E isso vale também para as ações dos países e de seus líderes. Não conseguimos escapar às noções de certo e errado, de justo e injusto, de culpado e inocente. O filósofo italiano Norberto Bobbio advertia, contudo, que primeiro é preciso compreender para só depois julgar: não podemos julgar as pessoas (e as nações) a partir do que elas deveriam ter feito se não sabemos exatamente o que elas fizeram e por que fizeram. A mídia hegemônica ocidental já elegeu, porém, seu vilão da história: a culpada é a Rússia, e o motivo da guerra é a aventura expansionista de Vladimir Putin, cujo objetivo é o de recuperar os territórios perdidos com a dissolução da União Soviética em 1991 para instituir um novo império russo. Mas será que essa afirmação é verdadeira mesmo? Voltemos um pouco no tempo para tentar entender a gênese do conflito.
2. Alguns fatos que não podem ser ignorados
Mal terminada a segunda guerra, vencida pelos aliados e com um papel fundamental da URSS nessa vitória, a Alemanha foi separada ao meio e o mundo dividido em dois blocos políticos e geográficos. Simplificando bastante, pode-se dizer que a Alemanha Oriental e o leste da Europa passaram a constituir a zona de influência soviética, e a Alemanha Ocidental e o oeste da Europa a zona de influência estadunidense. Iniciava-se então a guerra fria e já em 1949 foi fundada a OTAN, aliança militar criada com o objetivo de defesa contra a União Soviética e o bloco socialista. Inicialmente, integravam a OTAN 12 países: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Itália, Dinamarca, Noruega, Luxemburgo, Islândia, Bélgica, Holanda e Portugal. Em 1955, após a derrota na guerra da Coreia, os EUA promovem o rearmamento massivo e a remilitarização da Alemanha Ocidental e a incorporam à OTAN[1]. Em resposta, nesse mesmo ano a URSS institui o Pacto de Varsóvia, aliança militar do bloco soviético, do qual faziam parte a União Soviética, a Alemanha Oriental, a Bulgária, a Hungria, a Polônia, a Tchecoslováquia, a Romênia e a Albânia (que saiu do pacto em 1968). Durante a guerra fria foram ainda incorporadas à OTAN a Grécia, a Turquia e a Espanha.
Saltemos no tempo agora para o ano de 1989. Cai o muro de Berlim. Os países do Leste Europeu abandonam o socialismo e transformam-se em países capitalistas. Em 25 de fevereiro de 1991, é assinado o acordo de dissolução do Pacto de Varsóvia. E em 31/12/1991, dissolve-se, por fim, a União Soviética e seu regime socialista, e ganham independência a Rússia, a Ucrânia, a Lituânia, a Letônia, a Estônia, a Bielorrússia, a Geórgia, a Moldávia, a Armênia, o Azerbaijão, o Cazaquistão, o Turcomenistão, o Tajiquistão, o Uzbequistão e o Quirguistão. A partir dessa sucessão de eventos, o leitor já pode começar sua primeira reflexão: a OTAN nasceu como uma aliança militar cuja finalidade era a defesa contra o bloco soviético e o avanço do socialismo. Com o fim da União Soviética e diante do colapso do socialismo nos países do leste europeu e do nascimento de uma Rússia capitalista, a OTAN não perdera sua razão de existir e deveria, assim, ser extinta?
Não foi isso, porém, o que aconteceu. Já nas discussões diplomáticas durante o processo de reunificação da Alemanha, iniciado a partir de 1989, um sistema de segurança eurasiano de Lisboa a Vladivostok, sem blocos militares, foi rejeitado. E depois de muitas conversas e promessas, Gorbachev, então líder da URSS, foi convencido a aceitar a permanência da OTAN na Alemanha reunificada, desde que não houvesse expansão para o leste. Muitos líderes mundiais participaram dessas conversas diplomáticas e garantiram que a OTAN não se expandiria para o leste. Como lembra Richard Sakwa, professor de política russa e europeia, “todos os documentos do Arquivo de Segurança Nacional publicados em 2017 mostram que dezenas de líderes ocidentais disseram que a OTAN não se expandiria além da Alemanha unificada”[2]. O então Secretário de Estado dos EUA James Baker resumiu assim essa promessa: “não apenas para a União Soviética, mas também para outros países europeus, é importante ter garantias de que, se os Estados Unidos mantiverem sua presença na Alemanha no âmbito da OTAN, nem um centímetro da jurisdição militar atual da OTAN se expandirá na direção oriental”[3].
No entanto, em 1997, quando Boris Iéltsin exercia a Presidência da Rússia, é promulgado o Ato Fundador das Relações de Cooperação entre a Otan e a Rússia. Esse Ato previu a incorporação de novos membros à OTAN e ao mesmo tempo proibiu a implantação de armas nucleares no território dos novos membros, além da construção de estruturas militares permanentes no leste. A Rússia, na verdade, sonhava em fazer parte do grupo das nações do ocidente. Porém, em 1999, quem ingressam na OTAN são Hungria, Polônia e República Tcheca. Nesse mesmo ano, a OTAN comete sua primeira violação ao direito internacional no pós-guerra fria: sem o aval da ONU, a OTAN entra em guerra contra a Iugoslávia, impedindo a Rússia de usar seu direito de veto no Conselho de Segurança. Aos poucos a Rússia começa a desconfiar de que sofrera um duplo golpe: a perda de sua influência na Europa Central e Oriental e sua exclusão do grupo de nações do ocidente. Julga-se tratada não como uma parceira leal do ocidente por sua contribuição para o fim do sistema comunista, mas como a grande perdedora da guerra fria. Percebe-se em Moscou que “a OTAN, longe de existir em parceria com a Rússia ou mesmo apesar da Rússia, parecia existir contra ela”[4].
Apesar disso, ao subir ao poder em 2000, Vladimir Putin acena aos EUA com vários gestos de boa vontade. Aceita a instalação provisória de bases norte-americanas na Ásia Central, ordena o fechamento de bases herdadas da URSS em Cuba e a retirada de soldados russos do Kosovo. Os EUA, em contrapartida, anunciam sua intenção de instalar partes de seu escudo antimíssil na Europa Ocidental (contrariando o Ato Fundador Rússia-OTAN); em 2001, retiram-se do tratado de mísseis antibalísticos; e em 2004, invadem o Iraque, também sem a autorização da ONU, e com a oposição da Rússia, da Alemanha e da França. Ainda em 2004 acontece a segunda expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Nela ingressam três ex-repúblicas soviéticas, Lituânia, Letônia e Estônia, além da Bulgária, Eslováquia e Eslovênia. Por fim, em 2006, começam as negociações para a entrada da Geórgia e da Ucrânia na OTAN.
Diante desses desdobramentos, Putin faz um duro discurso na Conferência sobre Segurança, realizada em Munique em 2007[5]. Lembra o caráter indivisível da segurança global, citando a afirmação do Presidente americano Franklin D. Roosevelt, segundo a qual “a segurança para um é a segurança para todos”. Critica o mundo unipolar sob a hegemonia dos EUA e suas ações militares unilaterais e violadoras do direito internacional. Diz que é preciso pensar seriamente sobre um novo desenho para a arquitetura da segurança global e chama a atenção para a necessidade de buscar um equilíbrio entre os interesses de todos os participantes do diálogo internacional. Putin critica ainda os planos dos EUA de expandir certos componentes de seus sistemas antimísseis para a Europa, alertando que isso pode gerar uma nova corrida armamentista. E, por fim, denuncia que a expansão da OTAN não se relaciona com a modernização da aliança ocidental e nem com a segurança da Europa. Para ele, essa expansão representa uma grave provocação que reduz o nível de confiança mútua entre a Rússia e os EUA.
Retórico ou não, o fato é que o discurso de Putin não foi levado a sério e, em 2008, a OTAN convida formalmente a Geórgia e a Ucrânia para fazer parte da aliança do Atlântico Norte. Ao mesmo tempo, os EUA praticam nova violação ao direito internacional, insistindo no reconhecimento da independência do Kosovo, que era agora uma província sérvia. O ressentimento russo gerado por tudo isso fez com que a Rússia interviesse militarmente no conflito na Geórgia em 2008, e reconhecesse, em seguida, a independência das repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia. A resposta dos EUA foi anunciar, em 2009, um novo modelo de defesa antimíssil na Europa, mais inteligente e rápido, e incorporar à OTAN mais 2 países: Croácia e Albânia. É a terceira expansão da OTAN em direção às fronteiras russas.
O agravamento da crise OTAN-Rússia acontece, porém, com o golpe dado na Ucrânia em 2014, quando um Presidente amigável à Rússia foi deposto e colocado em seu lugar um Primeiro-Ministro favorável aos EUA e à entrada da Ucrânia na OTAN. A região da Crimeia, porém, resiste ao golpe. De maioria russa, ela declara sua independência e manifesta o desejo de juntar-se à Rússia. Após um referendo amplamente favorável à incorporação (embora contestado pela Ucrânia), a Rússia envia tropas à Crimeia e a anexa. Na região do Donbass, no leste da Ucrânia, há também resistência ao golpe, e as províncias de Donestk e Lugansk, de origem russa, também declaram sua independência. Uma guerra civil começa e o exército ucraniano bombardeia as duas repúblicas separatistas. Em setembro de 2014, decreta-se uma trégua e iniciam-se as negociações que culminarão nos Acordos de Minsk. O segundo desses acordos, firmado entre Ucrânia e Rússia e referendado pela resolução 2022 do Conselho de Segurança da ONU em 17 de fevereiro de 2015, estabeleceu que as repúblicas de Donestsk e Lugansk continuariam a pertencer à Ucrânia, tendo, porém, direito a certa autonomia cultural e político-administrativa. Os acordos, contudo, não são cumpridos pela Ucrânia e, até o dia da intervenção militar russa, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos constatou que mais de 14 mil pessoas tinham sido mortas nas ações militares da Ucrânia contra Donestsk e Lugansk. Muitos denunciam a violência dos ultranacionalistas e dos grupos paramilitares ucranianos de extrema-direita contra a população de origem russa. Enquanto isso, a expansão da OTAN para o leste prossegue e, em 2017, Montenegro é integrado à OTAN.
Passam-se os anos. Em 2019, a Rand Corporation, ligada às agências de informações estadunidenses, publica o relatório Extending Russia[6], no qual orienta como os EUA poderiam explorar certas vulnerabilidades da Rússia a partir de provocações em vários campos da geopolítica. Trecho do prefácio do documento é revelador: “Analisamos uma série de medidas não violentas capazes de explorar as reais vulnerabilidades e ansiedades da Rússia como meio de pressionar o Exército e a economia da Rússia e o estatuto político do regime no país e no estrangeiro. Os passos que analisamos não teriam a defesa ou a dissuasão como objetivo principal, embora pudessem contribuir para ambas. Pelo contrário, tais passos são pensados como elementos de uma campanha concebida para desestabilizar o adversário, que forçariam a Rússia a competir em campos ou regiões onde os Estados Unidos têm vantagem competitiva, levando a Rússia a expandir-se militar ou economicamente, ou levando o regime a perder prestígio e influência nacional e/ou internacionalmente”. O documento deixa claro que as recomendações do relatório cobrem uma ampla gama de opções nos campos militar, econômico e político, indo desde modernização, poder e estratégia militar a sanções econômicas e diplomacia. Coincidência ou não, alegando violações russas, os EUA abandonam o Tratado de Armas Nucleares de Alcance Intermediário em 2019: abria-se então a porta para a OTAN instalar mísseis nucleares em vários pontos do continente europeu. Por fim, em 2020 acontece a quinta expansão da OTAN para o leste: a Macedônia do Norte (país situado na ex-Iugoslávia) é incorporada à aliança militar do Atlântico Norte.
Chegamos, enfim, a 2021. Joe Biden toma posse como Presidente dos EUA e o ingresso da Ucrânia na OTAN retorna à pauta estadunidense. A escalada do conflito avança. Em 17 de março, Biden faz uma declaração afirmando que Putin é um assassino. Em 24 de março, o Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky declara que a Ucrânia vai recuperar a Crimeia. No dia seguinte, tropas russas são enviadas à zona da fronteira com a Ucrânia. Em entrevista coletiva, Putin volta a falar no princípio da indivisibilidade da segurança e diz que é inaceitável a ampliação da OTAN em direção às fronteiras russas. Na entrevista, ele lembra que não há armas russas perto das fronteiras estadunidenses e que são as armas da OTAN que avançam rumo às fronteiras russas. Em dezembro de 2021, a Rússia exige que os Acordos de Minsk voltem a ser cumpridos e que a Ucrânia renuncie a entrar na OTAN. O ocidente desconversa. Já em fevereiro de 2022, Zelensky reforça o pedido de ingresso da Ucrânia na OTAN e, na Conferência de Munique, menciona a possibilidade de a Ucrânia voltar a fabricar armas nucleares. Logo em seguida, a Rússia reconhece a independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk. E sob a justificativa de proteção das duas repúblicas contra os ataques contínuos do exército e das milícias neonazistas ucranianas, no dia 24 de fevereiro dá início à invasão russa.
3. Compreender, antes de julgar: uma análise a partir de estudiosos estadunidenses da política internacional
Antes de nos perguntarmos se a Rússia tinha justificativa para invadir a Ucrânia, convém examinar uma indagação normalmente feita em relação à incorporação da Ucrânia à OTAN: se a Ucrânia é uma nação soberana, ela não teria o direito de entrar na OTAN? Ela não teria o direito de decidir quem são seus aliados? John Mearsheimer, cientista político americano e estudioso da geopolítica das grandes potências[7], adverte, contudo, que, na política internacional, os países só levam em conta o direito internacional na medida em que isso sirva aos seus interesses estratégicos. Havendo conflito entre esses interesses e o direito internacional, os países privilegiam seus interesses estratégicos contra o direito internacional. Gostemos ou não, é assim que funciona a realpolik internacional. Por isso, segundo Mearsheimer, não faz muito sentido perguntar se a Rússia tem o direito a que a Ucrânia permaneça um Estado neutro, ou se a Ucrânia tem o direito a escolher os EUA e a OTAN como aliados. Para ele, o que importa perguntar é o que uma grande potência militar (como a Rússia) pode fazer quando se sente ameaçada: quando ameaçadas, grandes potências reagem. Essa é uma afirmação verdadeira, empiricamente comprovada. E um exemplo nos basta aqui. Quando, em novembro de 1961, os EUA instalaram mísseis nucleares na Turquia e na Itália, e no ano seguinte a União Soviética, em resposta, começou a construir bases e a instalar ogivas nucleares em Cuba, a Marinha americana fez um bloqueio naval a Cuba e por pouco não começa a terceira guerra mundial. Esse é o mundo real: o mundo do poder e não do direito. É por isso que na geopolítica dos poderosos, as ações baseadas na prudência importam mais do que as ações baseadas nos direitos. E quando estão em jogo conflitos contra potências nucleares, a paz só pode ser garantida pela prudência e pelo bom senso.
Indaguemo-nos então: os EUA agiram com prudência e bom senso ao insistirem na expansão da OTAN e, em especial, na entrada da Ucrânia nessa aliança militar? A Rússia tinha razões para sentir-se ameaçada? Consultemos o que alguns estrategistas da política americana pensam sobre o assunto. Em 1998, quando ainda se discutia a primeira expansão da OTAN, George Kennan, diplomata americano e responsável pela política de contenção da URSS durante a guerra fria, advertiu que essa expansão consistia em um “erro trágico”. Em suas palavras: “Eu acho que isso é um erro trágico. Não havia qualquer razão para isso. Ninguém estava ameaçando ninguém. (…) As pessoas não conseguem entender? Nossas diferenças na guerra fria eram com o regime comunista soviético. E agora nós estamos nos voltando contra as mesmas pessoas que fizeram a maior revolução não sangrenta da história para derrubar o regime soviético”[8]. Para Stephen Cohen, professor de estudos russos, a expansão da OTAN representa uma promessa não cumprida dos EUA. Embora a promessa não tenha se tornado um tratado formal, diz ele, os EUA empenharam sua palavra e depois a desonraram. Para a Rússia, diz Cohen, a expansão da OTAN significou sobretudo uma quebra de confiança[9].
Henry Kissinger, secretário de estado dos EUA entre 1973 e 1977, logo após o golpe na Ucrânia escreveu um artigo para o The Washington Post[10], no qual diz que a questão ucraniana não pode ser colocada como um confronto entre o Ocidente e o Oriente. Recomendando prudência, afirma que “se a Ucrânia quiser sobreviver e prosperar, ela não deve ser o posto avançado de um dos lados contra o outro – deve funcionar como uma ponte entre eles”. Chamando os EUA à razão, afirma que “o ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser apenas um país estrangeiro”. Kissinger lembra que “a história russa começou no que foi chamado de Kievan-Rus e que “algumas das batalhas mais importantes pela liberdade russa, começando com a Batalha de Poltava em 1709, foram travadas em solo ucraniano”. Defendendo que a demonização de Putin não é uma política, mas um “álibi para a ausência de uma”, Kissinger apela ao bom senso e diz que “os EUA precisam evitar tratar a Rússia como uma aberração que deve ser pacientemente ensinada sobre as regras de conduta estabelecidas por Washington”.
Em um debate recente[11], promovido já depois da invasão russa, John Mearsheimer relembra as duas crises que precipitaram a invasão da Ucrânia. A primeira delas foi causada por um golpe em fevereiro de 2014, apoiado pelos EUA, que destituiu do poder um Presidente eleito democraticamente e colocou em seu lugar um Primeiro-ministro aliado de Washington e hostil a Moscou. E a segunda crise foi provocada em dezembro de 2021, quando já não havia dúvida de que a Ucrânia estivesse se tornando um membro de fato da OTAN. Juridicamente, a OTAN não havia tomado qualquer providência concreta para integrar a Ucrânia a ela. Mas factualmente, a Ucrânia era armada e seus soldados treinados pela OTAN. Mearsheimer sustenta que a ideia segundo a qual Putin pretende instituir um novo império russo é simplesmente falsa. Ele relembra que antes do golpe na Ucrânia ninguém dizia que Putin era agressor e expansionista. Sua tese é a de que, com o golpe, os EUA provocaram a reação da Rússia e depois a acusaram de expansionismo para justificar a política de expansão da OTAN para contê-la. E desde 2017, ao armarem e treinarem o exército ucraniano, e ao mesmo tempo incentivarem a Ucrânia a acreditar que a OTAN interviria se houvesse uma invasão russa, os EUA adotaram uma política de provocação direta à Rússia, cujo objetivo era o de obter vantagens econômicas e políticas de uma reação militar russa.
Ao intervir nesse mesmo debate, Jack Matlock, diplomata americano nos governos Reagan e George Bush, afirma que, durante a guerra fria, a diplomacia americana costumava respeitar os líderes soviéticos, e que considera a estratégia atual de demonizar Putin equivocada e perigosa. Segundo ele, hoje há um grande esforço para difamar e insultar Putin e o povo russo, situação bastante perigosa.
Apesar de tudo isso, ainda há quem pense que a Rússia não tinha razão alguma para sentir-se ameaçada pela expansão da OTAN. Theodore Postol, professor de ciência, tecnologia e segurança internacional na Universidade de Massachusetts, pensa diferente. Em artigo publicado em 2019[12], ele afirma que a instalação do novo sistema americano de defesa antimísseis na Polônia e na Romênia gerou uma crise com a Rússia que culminou com a saída das duas potências, em 2019, do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares de Alcance Intermediário. Postol argumenta que as queixas russas procedem, pois esses sistemas “têm características que os tornam especialmente ameaçadores para a Rússia”. Segundo ele, os componentes desses sistemas são “capazes de lançar mísseis de cruzeiro e mísseis antiaéreos” e “isso cria uma ameaça de ataque curto à Rússia por meio de mísseis de cruzeiro convencionais ou com armas nucleares dos EUA que, de outra forma, seriam proibidas pelo Tratado”. Em uma entrevista dada ainda em 2015, Putin já havia protestado contra esse novo sistema de defesa antimísseis da OTAN, estacionado no leste europeu e carregado com mísseis de longo alcance. Postol disse ainda que o sistema de alarme precoce da Rússia não permite detectar, com precisão, um ataque nuclear a ela[13]. Segundo ele, essa inferioridade do sistema russo justifica a preocupação da Rússia com sua segurança, já que ela não tem capacidade para reagir a tempo a um ataque nuclear. Registre-se que hoje a Rússia está praticamente cercada. 14 países que antes pertenciam ao bloco soviético, pertencem agora à OTAN. E a pretensão da OTAN não é apenas incorporar a Ucrânia e a Geórgia. Parece nítido seu interesse também por Bielorrússia e Cazaquistão, aliados de Moscou.
4. O golpe de 2014 e a participação dos EUA
Ray Mcgovern, ex-analista da CIA nos tempos da guerra fria, com atuação na política externa relacionada à União Soviética, afirma que o golpe da praça Maidan é o golpe mais anunciado da história. 18 dias antes do golpe, foram vazados áudios de conversas mantidas entre a então subsecretária de Estado dos EUA Victoria Nuland e o embaixador de Washington na Ucrânia, Geoffrey Pyatt. Nessas conversas, os dois discutem sobre qual líder ucraniano deveria ser nomeado como Primeiro-ministro após a derrubada do presidente Viktor Yanukovych, aliado da Rússia. A preferência de Nuland é por Arseniy Yatsenyuk. Diz ela: “acho que Yats é o cara que tem a experiência econômica, a experiência de governo”[14]. Menos de um mês após o vazamento, Yatsenyuk é nomeado Primeiro-ministro da Ucrânia.
Já não é segredo o modo como os EUA patrocinam os golpes que lhes interessam. Antes, a CIA desempenhava diretamente esse papel por meio de golpes militares. O Brasil, o Chile, a Argentina e o Paraguai foram vítimas dessa atuação da CIA. Mas com os escândalos envolvendo a CIA, a estratégia americana mudou. Agora os EUA agem mediante ONGs, como o National Endowment for Democracy (NED), e suas táticas têm o objetivo de apresentar os golpes ao público como revoluções populares espontâneas. Agências como o NED financiam manifestantes, órgãos de mídia para manipular a percepção e as emoções do povo, e inclusive mercenários assassinos para realizar operações de bandeira falsa. No golpe de 2014 na Ucrânia, a própria Nuland foi filmada distribuindo biscoitos aos manifestantes ucranianos. E menos de duas semanas depois do vazamento de seus áudios, franco-atiradores, posicionados em um edifício controlado por um grupo neonazista ucraniano (o Setor Direito), atiraram em quase 100 pessoas, entre manifestantes e policiais. Embora os EUA tenham culpado partidários do governo da Ucrânia, outro áudio vazado revelou que o chefe de negócios estrangeiros da União Europeia e o ministro estoniano dos negócios acreditavam que as forças pró-EUA encenaram um ataque de bandeira falsa para precipitar o golpe. A mídia ocidental, porém, escondeu tudo isso. Apesar das provas mostrando que essa matança foi feita pela extrema-direita ucraniana, favorável ao golpe, o silêncio da mídia hegemônica foi absoluto. Embora Carl Gershman, presidente do NED, tenha escrito em 2013 que a Ucrânia era o “maior prêmio” para os EUA e um importante passo provisório para derrubar Putin, a versão oficial para o golpe de 2014 é insatisfação popular espontânea dos ucranianos em relação ao governo corrupto de Yanukovych. A mídia também silencia sobre a violência desde então praticada contra russos étnicos por milícias neonazistas ucranianas inspiradas por Stepan Bandera, nacionalista ucraniano que se aliou a Hitler na segunda guerra para combater o exército soviético. O caso mais conhecido de violência neonazista na Ucrânia pós-golpe foi o massacre de Odessa, ocorrido ainda em 2014, quando a Casa dos Sindicatos foi incendiada e dezenas de militantes antifascistas foram queimados vivos[15].
5. Por que a provocação e não a prudência?
Quem acompanha com atenção a política externa americana, sabe que a interferência dos EUA em outros países não tem por finalidade criar democracias, mas apenas consolidar zonas de influência que garantam vantagens econômicas para suas empresas e o acesso direto a matérias-primas. Agora não é diferente. Em sua guerra econômica contra a Rússia, os EUA têm grande interesse em substituí-la como os maiores exportadores de petróleo e gás para a Europa. Com esse objetivo em mente, os EUA lutaram com todas as suas armas para evitar a entrada em funcionamento do gasoduto Nord Stream 2, que tem a capacidade para entregar aos europeus cerca de 55 milhões de metros cúbicos anuais do gás natural russo. A aplicação de sanções econômicas à Rússia por invadir a Ucrânia era o meio mais eficaz para isso e deu certo: com o início da invasão, a certificação do gasoduto foi suspensa.
Mas não é só isso. A maior oligarquia estadunidense é o seu gigantesco complexo industrial militar, e são os interesses dessa poderosa indústria da guerra que melhor explicam a provocação americana à Rússia. Conforme esclarece o economista Michael Hudson, a base econômica do complexo militar estadunidense é o aluguel do monopólio que ele exerce na venda de armas para a OTAN, para exportadores de petróleo do Oriente Médio e para outros países[16]. Hudson afirma que o preço das ações das empresas militares americanas subiram imediatamente após a notícia do ataque russo. Os investidores reconheceram que a guerra acarretará um aumento dos lucros de monopólio da indústria americana da guerra. A escalada militar desencadeada em fevereiro, segundo Hudson, “promete aumentar a venda de armas para a OTAN e para outros aliados dos EUA”. A própria Alemanha concordou em aumentar seus gastos com armas para mais de 2% do PIB. Hudson comenta que “é mais realista ver a política econômica e externa dos EUA em termos do complexo industrial militar, do complexo de petróleo gás e mineração e do complexo bancário e imobiliário do que em termos da política de republicanos e democratas”. Para Hudson, “os principais senadores e representantes do Congresso americano não representam seus estados e distritos, mas os interesses econômicos e financeiros de seus principais contribuintes da campanha política”. Agora que a guerra está em andamento na Ucrânia, o interesse dessa fantástica oligarquia militar não é o de parar a guerra, mas o de prolongá-la, inundando a Ucrânia com armas e aumentando mais e mais seus lucros, enquanto enfraquece política e economicamente a Rússia e justifica, com a invasão russa, a necessidade da existência e da expansão da OTAN.
6. A Rússia tinha alguma alternativa razoável à invasão?
Alguns analistas têm dito que o argumento de invadir a Ucrânia para evitar mísseis nucleares da OTAN a 4 minutos de Moscou não procede. Afinal, as 3 ex-repúblicas soviéticas Lituânia, Letônia e Estônia também fazem parte da OTAN e estão tão próximas de Moscou quanto a Ucrânia. Sendo assim, se quisesse evitar o risco de mísseis tão perto de suas fronteiras, a Rússia deveria voltar-se também contra os 3 países bálticos. Há alguns aspectos, porém, que fazem o caso Ucrânia tão especial para a Rússia. Primeiro, a longa história compartilhada entre os dois países, em que se misturam afinidades étnicas, linguísticas, relações pessoais íntimas, comércio econômico substancial e muito mais. Como Stephen Cohen recorda, “mesmo após os anos de escalada do conflito entre Kiev e Moscou desde 2014, muitos russos e ucranianos ainda pensam em si mesmos de maneira familiar”[17]. Em segundo lugar, é preciso levar em conta que, em 2004, quando os países bálticos entraram na OTAN, a Rússia ainda não voltara a ser a potência militar que é hoje. Naquele momento, ela simplesmente não pôde evitar a incorporação desses 3 países à OTAN e, depois de consumada a incorporação, não podia invadi-los, pois isso significaria uma declaração de guerra à OTAN: pelo seu estatuto, a OTAN tem o dever de proteger os países aliados. Agora a situação é diferente. A Rússia voltou a ser uma potência militar e, depois de 15 anos (o discurso de Putin contra a expansão da OTAN é de 2007), resolveu agir. Não se pode desprezar ainda as justificativas dadas por Moscou para o início da invasão: 1) o desenvolvimento de armas nucleares na Ucrânia; 2) a existência de laboratórios de armas biológicas dos EUA na Ucrânia; 3) a iminência de um gigantesco ataque ucraniano às repúblicas de Donetsk e Lugansk, o que acarretaria muitas mortes de civis[18]. Especificamente sobre essa última justificativa, Patrick Armstrong, ex-analista do Departamento de Defesa Nacional do Canadá, comenta que pouco antes da invasão russa, “as Forças Armadas da Ucrânia estavam posicionadas para atacar as repúblicas de Donetsk e Lugansk e não para defender as fronteiras ucranianas”[19]. Para ele, isso é mais do que sugestivo. Válidas ou não as razões russas, o que é certo é que os interesses americanos em levar a Rússia à guerra são incontestáveis. As múltiplas guerras com as digitais americanas desencadeadas neste curto século (no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria, na Somália, no Iêmen, na Nigéria) e as quase 1000 bases militares que os EUA têm espalhadas em todos os continentes (inclusive 118 bases na Alemanha e 119 no Japão) mostram a sua vocação imperialista e bélica. As provocações americanas começaram há 22 anos, com a primeira expansão da OTAN para o leste, quebrando a promessa feita a Gorbachev. Depois disso, os EUA violaram o direito internacional seguidas vezes. Violaram-no ao iniciarem guerras sem a autorização da ONU, ao instalarem bases militares fixas e um novo sistema de defesa antimísseis no leste europeu, e ao promoverem golpes em países que fazem fronteira com a Rússia. O descumprimento dos acordos de Minsk pela Ucrânia e os ataques às populações russas das repúblicas separatistas da região do Donbass são também provocações à Rússia. A alternativa da Rússia à invasão seria render-se ao cerco completo e ilegal de suas fronteiras pela OTAN. É impossível não lembrar que, nos últimos tempos, também a Bielorrússia e o Cazaquistão, aliados russos, têm sido vítimas de tentativas de golpes travestidos de revoluções populares promovidas pelos EUA.
7. Podemos julgar a Rússia? Uma não conclusão.
Volto ao início deste texto. É impossível fugir da dimensão moral que acompanha a condição humana. Contudo, julgamentos morais de pessoas que agem em nome de um povo inteiro, sob circunstâncias extremamente complexas, são julgamentos muito difíceis de fazer. As decisões que essas pessoas tomam são às vezes respostas a dilemas trágicos, nos quais o sofrimento sempre estará presente: muitos sofrerão como consequência da decisão de agir, e outros tantos sofrerãoem decorrência da decisão de não agir.Julgar respostas a dilemas trágicos exige conhecimento ilimitado da situação de fato existente (e nós não temos esse conhecimento), além de uma ponderação correta acerca do mal menor (também quase impossível de prever). Todos somos a favor da paz e adoraríamos viver em um mundo sem guerras, sem violência, e no qual o diálogo e a diplomacia prevalecessem. Mas para julgar a Rússia, não podemos nos colocar apenas na nossa pele ou na pele dos ucranianos. Precisamos calçar também os sapatos dos russos. Podemos ignorar a situação dos cidadãos de Donetsk e Lugansk e de um povo que, ao longo dos séculos, sofreu inúmeras invasões de outros povos, a última das quais lhe custou cerca de 20 milhões de mortos? Sobre essas investidas, o professor José Luís Fiori recorda que a fronteira ocidental da Rússia “já havia sido atacada e invadida pelos Cavaleiros Teutônicos do Papa, no início do século XVII; pelas tropas suecas e luteranas do Rei Carlos XII, no início do século XVIII; pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, no início do século XIX; e pelas tropas da Alemanha Nazista e sua Operação Barbarossa, iniciada em 22 de junho de 1941, envolvendo 3,5 milhões de soldados, responsáveis pela morte de cerca de 20 milhões de russos, muitos deles trucidados pura e simplesmente com vistas a apropriação dos recursos naturais da Ucrânia e do Cáucaso”[20]. Diante do expansionismo ilegal da OTAN, da ameaça nuclear à Rússia e do massacre dos russos étnicos do leste da Ucrânia que se seguiu ao golpe promovido pelos EUA, que opções Putin e os representantes do povo russo ainda tinham? Deixo claro que essa não é uma pergunta retórica. Eu realmente não tenho resposta para ela. O que sabemos é que os apelos de Putin feitos aos EUA para a construção de um novo sistema internacional de segurança global que levasse em conta também a segurança da Rússia nunca foram levados a sério. E simplesmente demonizar a figura de Putin e “cancelar”os russos não nos ajudará a compreender o conflito Rússia/OTAN/Ucrânia e tampouco servirá para nos livrar da guerra e do fantasma da nova ameaça nuclear que paira sob o planeta.
[1]Visentini, Paulo Fagundes. Por que o socialismo ruiu? Almedina, 2021, p. 63.
[13]Matlock faz essa afirmação no debate acessível pela nota 11.
[14]O documentário Ucrânia em Chamas, de Oliver Stone, mostra, com detalhes, todo o processo que levou ao golpe de 2014. O filme está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RUysUTDPW_k
[18]Patrick Armstrong, ex-analista do Departamento de Defesa do Canadá, escreve sobre essas justificativas russas no artigo What I got wrong and why, disponível em sua página pessoal no endereço https://patrickarmstrong.ca/
O Coletivo Transforma MP emitiu uma nota nesta quarta-feira, 16, repudiando o desmonte da Política Nacional de Arquivos Públicos e Privados. No início do mês uma reportagem no site Carta Capital denunciou as reformas no Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), órgão responsável pela preservação documental de relevância pública, cuja mudanças podem afetar o armazenamento e descarte de arquivos importantes da história do país, inclusive os que foram produzidos durante o período ditatorial.
O Coletivo Transforma MP destaca que a admissão de pessoas não profissionais e a falta de instrução para descartar os registros, podem acarretar em prejuízos para a sociedade brasileira, que nunca reparou as injustiças e suas consequências que ocorreram no passado.
“Os arquivos públicos sempre foram uma fonte essencial para a compreensão de nossa história. Mais do que matéria de estudo acadêmico, servem como meio para um ajuste de contas com a própria história e suas mazelas. Para reparar é preciso primeiro conhecer. Para conhecer é preciso acesso às informações. O exemplo mais notório é a própria publicação do livro Brasil Nunca Mais – que fundamentadamente expôs os crimes do Estado Brasileiro, valendo-se de extensa pesquisa documental em arquivos públicos. Já disse Edmund Burke “Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la”. Acrescentamos: será sempre manipulado pelas elites dominantes. Vale observar que a própria existência dos documentos não pode ser considerada “ameaça” a quaisquer interesses políticos – mas como bases para exames técnicos e embasados em fatos, de forma a garantir um debate qualificado e narrativas que vão além das mera fake news”.
Começo este breve texto esclarecendo aos amigos leitores que nada, absolutamente nada, do que está aqui escrito tem por finalidade defender ou justificar a invasão russa ao território ucraniano. Deixo claro que, em meu ponto de vista, a violenta incursão da Rússia em seu país vizinho, liderada por um autocrata conservador, antileninista e anticomunista, tem sido criminosa, desproporcional e desnecessária, e poderá levar o mundo a uma intensa militarização cujo maior vencedor será a indústria bélica.
Esse esclarecimento se faz necessário diante da polarização de opiniões que gira em torno do tema. Hoje, qualquer crítica que se faça a um dos lados tem sido interpretada como apoio incondicional ao seu opositor, como se no mundo existissem apenas o bom e o mau, a esquerda e a direita, o branco e o preto. Nessa guerra, no entanto, são muitos os tons de cinza.
Dito isto, sinto-me mais à vontade para analisar a repercussão dos fatos nas denominadas “democracias ocidentais”. Nelas, prevalece uma só versão do conflito: um único vilão, uma única nação capaz de colocar o futuro da humanidade em xeque. É essa atribuição de responsabilidade unidirecional a razão da russofobia, um sentimento de aversão à Rússia e ao povo russo que surgiu na Alemanha nazista e, agora, tem sido vivamente resgatado nos países ocidentais (neo)liberais.
De fato, a Rússia e sua população têm sido castigadas em várias frentes:
No campo cultural e artístico, Disney, Sony, Warner Bros e Paramount suspenderam estreias de filmes no país; festivais de cinema de Cannes, Glasgow e Estocolmo cancelaram a participação de delegações russas e não exibirão filmes produzidos com incentivo financeiro do governo russo; a Bienal de Veneza e o Museu de Grevin de Paris também anunciaram sanções a personalidades e artes russas; os Maestros russos Pavel Sorokin e Valery Gergiev foram demitidos da ópera de Londres e da orquestra filarmônica de Munique, respectivamente.
No campo desportivo, a seleção russa foi oficialmente excluída da Copa do Mundo de futebol; times russos foram banidos de competições internacionais; a Federação Internacional de Tênis suspendeu a participação da Rússia dos torneios internacionais; as paralimpíadas de inverno suspenderam atletas da Rússia; a Fórmula 1 cancelou o GP da Rússia e a Federação Internacional de Automobilismo determinou que pilotos russos corram com bandeira neutra; o piloto russo Nikita Mazepin e seu patrocinador principal, a gigante química Uralkali, tiveram seus contratos rescindidos pela equipe de Fórmula 1 Haas.
Na esfera geopolítica e econômica, a Rússia foi banida do principal sistema bancário internacional (Swift); transações e importações de produtos russos foram suspensas; ativos financeiros foram congelados; dezenas de corporações multinacionais suspenderam relações com o mercado russo, incluindo-se Microsoft, Google, Apple, Youtube, Instagram, Samsung, Netflix, Spotify, Amazon, Fedex, Nike, Adidas, empresas automobilísticas e as maiores operadoras de cartões de crédito Visa e Mastercard.
As relações comunitárias também foram seriamente comprometidas. O russo virou o inimigo. A onda de perseguições está em todo canto: na vizinhança, no trabalho, na universidade. Até mesmo Dostoiévski, um dos maiores escritores e filósofos da história, entrou na onda dos “cancelamentos”: a Universidade Bicocca chegou a suspender um curso sobre a obra do autor.
Os ataques, as sanções, as restrições, que aparentemente se baseiam em causas justas, não tiveram lugar, no entanto, quando as invasões, as guerras e as bombas partiram de países ocidentais (neo)liberais. Os EUA já invadiram países soberanos, já bombardearam populações civis, já financiaram e apoiaram ditaduras protofascistas. Tudo isso, muitas vezes, com o apoio da OTAN, organização que se expande cada vez mais para além do ocidente e finca dezenas de bases militares nas fronteiras da Rússia.
A verdade é que todos esses ataques à Rússia, todas essas sanções geopolíticas e econômicas, representam a vitória ideológica da narrativa do ocidente (neo)liberal. Trata-se de uma narrativa hipócrita e dissimulada, tal qual o comportamento pacifista e humanista dos membros da OTAN e dos EUA, país que já cometeu todos os crimes de guerra anunciados na legislação internacional.
Segundo Hannah Arendt, essa dissimulação da realidade costuma ocorrer por meio das “mentiras organizadas”, retóricas que carecem de validade e estão historicamente presentes em regimes totalitários e se perpetuaram nas democracias liberais. A organised lying nada mais é do que a instrumentalização política de versões deturpadas da realidade, visando a desestabilizar ou mesmo apagar fatos testemunhados e conhecidos, conferindo-lhes uma nova roupagem. Em seu artigo Lying in Politics: Reflections on The Pentagon Papers, Arendt examinou os documentos do Pentágono que justificavam a guerra do Vietnã e demonstrou que a realidade foi manipulada, inclusive mediante o desprezo de fatos históricos e políticos.
A russofobia representa, portanto, a expressão mais fiel do sucesso da mais recente organised lying do neoliberalismo ocidental. E a vitória dessa narrativa, que condena veementemente a Rússia e livra todos os seus “oponentes” ocidentais, conta com um fator determinante: a localização geográfica do território invadido. Em outras palavras, a diferença entre a guerra russa e as guerras americanas, majoritariamente apoiadas pela OTAN, repousa sobretudo na população atacada: enquanto as vítimas dos mísseis russos são europeus brancos, os americanos têm despejado todo o seu arsenal bélico no sul global, isto é, em sociedades distantes da civilização europeia onde predominam uma estrutura de exploração e dominação com arranjos coloniais.
A violência desferida pelas democracias (neo)liberais ocidentais são direcionadas a territórios que estão posicionados geograficamente abaixo do horizonte civilizatório europeu, onde a sociabilidade tem por base o poder arbitrário exercido sobre uma população subalterna, excluída e oprimida composta por não humanos, por aqueles e aquelas que nada são – não são homens, não são mulheres, não são sujeitos de direitos. São apenas colonos e, como tais, ignorados pela modernidade ocidental.
Essas distintas realidades, disjungidas por um fosso colonial que separa o pensamento ético pautado na retórica dos direitos humanos da violência experimentada nas sociedades excluídas, cuja realidade vivenciada pela população oprimida em nada se aproxima dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, justificam a conduta dos países (neo)liberais ocidentais e suas instituições que, encobertos por um disfarce humanista, impõem à Rússia, e somente a ela, o ônus da guerra.
O mundo está em guerra, e não são apenas tanques e mísseis as armas das nações beligerantes: a hipocrisia, o cinismo, a farsa são igualmente artifícios do embate político. É por isso que ser fiel à verdade é, como diz Hannah Arendt, o primeiro passo para a transformação do mundo e para a consagração da paz universal.
Enquanto a organised lying for a tônica da política global, o mundo estará em guerra.
Tiago Muniz Cavalcanti
Procurador do Trabalho, membro do Coletivo Transforma MP. Doutor em Direito.
Uma legião de pessoas bem preparadas (e outras nem tanto) já o fizeram. Cada um que tire suas conclusões.
O que inquieta é militância do “pacifismo a qualquer custo”.
Putin seria, para alguns (notadamente para a mídia hegemônica), um ditador, sanguinário, assassino, mostro, homofóbico e outras coisas mais, ao intervir militarmente na Ucrânia.
Reconhecem o papel nefasto dos EUA e da OTAN, mas não deixam de “condenar” a ação russa. Dizem que defendem a “paz mundial”.
Ademais, o apoio, o financiamento e o armamento (pelo ocidente) de tropas declaradamente nazistas na Ucrânia põem o povo russo (que já enfrentou os nazistas uma vez, ao preço de 20 milhões de vidas) em alerta máximo. Eles sabem o que é ter nazistas a suas portas, e não brincarão com esse fato.
Sabem também que a única forma de lidar com nazistas é com armas na mão – os seguidores de Hitler não são adeptos do diálogo para a resolução de controvérsias.
Não bastasse, há indícios da possível existência de laboratórios que produzem armas biológicas e doenças fatais na Ucrânia, os quais seriam mantidos no local em parceria com os EUA (a confirmar).
Grupos neonazistas somados a armas químicas e biológicas. O resultado não pode ser bom para a segurança do povo russo.
Isso sem contar a quantidade de informações que devem ter os serviços de inteligência, das quais possivelmente nunca saberemos.
Portanto, sentar no sofá, debaixo do ar condicionado, apanhar o seu celular e fazer postagens nas redes sociais, para “condenar veementemente” a operação militar russa, ser a favor “da paz” irrestrita, chamar Putin de tirano, ditador etc., é muito fácil.
Difícil deve ser ter a responsabilidade pela segurança de centenas de milhões de pessoas, e ver crescer a escalada de ameaças contra o seu povo diariamente.
Será que o discurso pacifista seduz a população palestina em Gaza, exterminada há mais de 70 anos pelas forças sionistas do Estado de Israel? Será que hastear a bandeira branca impedirá o genocídio dos palestinos?
Será que bradar pela “paz incondicional” será algo bem recebido pelos moradores das favelas cariocas, mortos aos milhares pelo Estado brasileiro?
Claro que não situações diferentes, mas são exemplos eloquentes de que a violência pode ser um recurso necessário – embora indesejado.
Não tenho condições de avaliar se a operação militar russa foi ou não necessária. Nem se foi ou não proporcional.
Mas a análise concreta da situação concreta (não baseada em fantasias, ilusões e subjetivismo) exige que se reconheça que a ação militar para autodefesa é algo que pode ser levado a cabo para a garantia da segurança de um país e de um povo.
O julgamento moral dos acontecimentos é o mais pobre possível.
A favor da paz sim, mas sem o armamento pesado nas mãos de grupos neonazistas, sem mísseis apontados para nenhum país, sem a produção de armas biológicas e sem o ataque a minorias étnicas.
Senão a paz será apenas o direito de “morrer em paz”.
A diplomacia tem limites.
E, no caso da guerra da Ucrânia, há sérios indícios de que as “notas de repúdio” já não vinham funcionando para garantir a paz.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Mestre em direito internacional pela Universidade Católica de Santos. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
Acompanhe a live “Feminismos e Democracia” organizada pelas integrantes do Coletivo Transforma MP.
Para debater o dia 8 de Março, o Coletivo Transforma MP está promovendo a live Feminismos e Democracia, que será transmitida no dia 10 de março às 19h pelo instagram ( @transforma_mp).
A discussão contará com a mediação da Procuradora Regional do Trabalho, coordenadora do GT7 do Conselho Nacional do Ministério Público e integrante do Coletivo Transforma MP, Lutiana Lorentz; e terá como convidada especial a assistente Social, cofundadora e coordenadora de CRIOLA, membra do Comitê Mulheres Negras Rumo a um Planeta, Lúcia Xavier.
O evento também contará com a presença de duas membras do Coletivo Transforma MP. A procuradora do Trabalho, vice Coordenadora do GT de Comunidades Tradicionais do MPT, Cecília Santos; e a procuradora de Justiça aposentada do MPPE, fundadora do GT Racismo do MPPE, Maria Bernadete Martins de Azevedo Figueiroa.
A maioria das faculdades particulares está retomando, ou em vias de retomar, as aulas presenciais. Seus gestores alegam arrefecimento da pandemia do Covid e dizem atender a uma reivindicação de alunos e seus familiares.
A verdade é bem outra: com dois anos de ensino online, muitas faculdades dispensaram professores e duplicaram o número de alunos por sala de aula. Com isso reduziram custos com folha de pagamentos e aumentaram seus lucros, pois as mensalidades não foram reduzidas. Fora a economia com energia elétrica, equipes de limpeza e outros serviços.
A tal reivindicação dos alunos é bem diferente daquela alegada pelas faculdades privadas: o que eles sempre pretenderam, desde a oficialização do ensino remoto, foi a diminuição das mensalidades ao nível daquelas cobradas pelos cursos dados na forma de EAD (ensino à distância), pois, na verdade, este foi o tipo de ensino que passou a ser ministrado. Então está bem claro o que desejam as faculdades, que têm o lucro por meta e a educação por mercadoria: assegurar a fidelidade da sua clientela, que é como chamam os alunos, sem reduzir seus preços.
Só que, como tudo custa, a maioria dessas faculdades pouco está fazendo para garantir que professores, alunos e funcionários sejam preservados do contágio do coronavírus, cada vez mais multiplicado em novas variantes. Várias e várias declaradamente se recusam a exigir o passaporte de vacinação. Turmas de alunos, muitas das quais duplicadas na pandemia, continuarão a ter suas aulas nas mesmas salas desprovidas de recursos adequados para diminuir o risco de contágio. Muitas dessas salas, mesmo em universidades de ponta, permanecem do mesmo tamanho, com acomodações amontoadas, pouca ventilação e nenhum distanciamento entre os alunos. As respectivas mantenedoras, quando se manifestam, simplesmente alegam que não podem fazer diferente, que a maioria está vacinada e que, afinal de contas, o Covid já não está matando tanto como antes – o que é só meia verdade, pois num país que contabiliza 650 mil mortos não é qualquer redução no índice de óbitos que dará motivos para cessarem os cuidados com o vírus. Na maioria dos casos, essas mantenedoras não apresentam qualquer política para integrantes dos grupos de risco, seja entre professores, estudantes ou funcionários.
Em uma tradicional universidade privada de S. Paulo os professores foram simplesmente convocados para dar aulas a partir de determinado dia, sem espaço para diálogo a respeito da conveniência e oportunidade desse retorno, que, para piorar as coisas, acontecerá logo após o fim de semana do carnaval, ocasião em que sabidamente há reuniões, festas e inevitáveis aglomerações, potencializando o contágio, que só vai produzir danos nas semanas seguintes. “Não haverá água disponível, nem distanciamento, nem microfone, nem oferecimento de máscaras ou álcool gel”, diz o comunicado endereçado aos mestres. Assim mesmo.
A resistência e mobilização de professores os têm levado, em diversos pontos do estado, a permanecer em assembleias permanentes e a procurar canais para reivindicar aquilo que é o mais básico e que nem precisaria ser reivindicado: o mínimo respeito ao seu direito à saúde e à vida, justamente após dois anos em que todos, rigorosamente todos, conviveram com dramas e perdas decorrentes da pandemia, que poderiam em parte ter sido evitados se tivéssemos políticas públicas pautadas pela ciência e voltadas para a preservação de vidas humanas.
Nessa batalha pelo óbvio os sindicatos e as associações de professores têm exercido um papel central: como representantes desses trabalhadores, podem agir soberanamente, sem colocar em risco o emprego de cada qual, coisa que nenhum professor individualmente conseguiria fazer sem a certeza da pronta demissão. O que comprova que essas entidades coletivas, mesmo após a reforma trabalhista, que de todas as formas procurou asfixiá-las, seguem como a única força capaz de exigir direitos fundamentais para os professores, contra a máquina poderosa das empresas privadas de ensino. Em S. Paulo e em algumas cidades do interior há notícias de representações ao Ministério Público do Trabalho e mesmo de ações judiciais pedindo medidas urgentes para evitar o pior, pois é evidente o periculum in mora: depois que o vírus se espalhar no ambiente acadêmico, toda providência será tardia e só restará rezar e esperar. Nesse contexto essas reivindicações assumem a feição de um verdadeiro pedido de socorro.
Espanto maior é ser justamente na universidade que se trave uma batalha tão desnecessária quanto surreal: nega-se a ciência no ambiente que, por definição, devia cultuá-la, por meio de atitudes que vão do simples descaso até argumentos cientificamente insustentáveis e eticamente cínicos, como o de que tal ou qual governo em breve abolirá o distanciamento e as máscaras. Como se fosse possível decidir por decreto quando e em que condições a contaminação deixará de acontecer. Claro que falta combinar com o vírus.
Que a pandemia tem sido um grande negócio para alguns bilionários já é fato sabido. Na área da educação aloja-se um número considerável de grandes fortunas, algumas em fase de multiplicação. A empresa privada eufemisticamente chamada de instituição de ensino, muitas vezes com ações na bolsa de valores, deve seus lucros àquilo que alguns denominam reforma empresarial da educação, movimento impulsionado pelo capital financeiro internacional, com orientação técnica do Banco Mundial, e que descobriu a educação como lucrativa mercadoria, passando a impor à atividade educacional, que deveria ser emancipadora, a lógica, os modos e o linguajar de uma fábrica de qualquer coisa. Tem gestores em lugar de diretores e clientes em vez de educandos, abordados num declarado trabalho de captação. Logo pouca diferença haverá entre uma concessionária de veículos, um posto de gasolina e uma universidade. O professor, neste cenário, não passa de uma peça substituível, um simples elo na correia de transmissão de um ensino padronizado. Essa coisificação do mestre é que possibilita tratá-lo com tal desrespeito em que a declarada negligência com seu direito à vida e à saúde pareça natural e não cause a esperada indignação. Vale o mesmo raciocínio, é claro, para o professor do ensino básico. A agravante, no nível superior, é o agigantamento das turmas de alunos e sua inevitável aglomeração por longas horas em espaços semifechados. Na universidade não há associações de pais e mestres, para pressionar a mantenedora, e em muitas delas os centros acadêmicos simplesmente não existem. Enfim a conta fecha: educação como negócio, professores como coisa, reformas contra direitos trabalhistas, sindicatos deliberadamente enfraquecidos, embora atuantes, alunos sem representação, pandemia como fonte de enriquecimento, fim da pandemia por decreto e vamos todos ao matadouro, amém. Para resistir a essa lógica do avesso apenas a organização consciente de professores, agindo coletivamente, como se tem demonstrado.
Plínio Gentil é Procurador de Justiça do MPSP, professor universitário e membro do Coletivo Transforma MP.
O Metaverso foi anunciado com pompa e circunstância por Mark Zuckerberg em outubro de 2021. Em uma jogada de marketing ousada, e mostrando todas as fichas que estão sendo colocadas no Metaverso, ele alterou o nome de sua empresa para Meta. A apresentação mostrava cenas que poderiam estar em episódios da série Black Mirror como San Junipero, Playtest ou Striking Vipers. O Metaverso é apresentado como um mundo virtual, no qual as pessoas vão poder trabalhar, divertir-se, namorar, jogar, negociar, consultar ou ter qualquer tipo de relacionamento com outras pessoas, próximas ou não. As pessoas serão representadas pelos avatares que desejarem, em um ambiente que criarem ou adquirirem, em um mundo de maravilhoso colorido e de diversão permanente (pelo menos assim é vendido na propaganda), possibilitado por realidade virtual (VR, sigla em inglês) empoderada por avançada inteligência artificial. Esse “mundo” será acessado por meio de sensores de movimento no estilo Kinect do videogame Xbox e por óculos de imersão em vídeo tipo Samsung Gear VR, sendo prometido que a pessoa se sentirá como se estivesse realmente dentro desse universo artificial. Também será proposta a utilização de realidade aumentada, ou seja, a possibilidade de utilização de efeitos visuais, como um holograma, na forma de telas de computador ou mesmo de pessoas, que serão projetadas no mundo físico ou mesmo visualizadas a partir de óculos especiais. Importante dizer que as outras gigantes da tecnologia pretendem também criar seus próprios “mundos virtuais”, ou expandir o mundo real com imagens digitais, como a Mesh da Microsoft, que está sendo incorporada à plataforma Teams.
Os questionamentos jurídicos brotam automaticamente e em profusão: quais os efeitos do Metaverso no direito? Qual norma é aplicável para as relações jurídicas ali travadas? De qual Estado emanará essas normas, eis que atuará mundialmente, com pessoas realizando trocas em todo o planeta? Ou se regulam pelas normas estipuladas pela plataforma, as famosas condições de uso? Ou deverá haver uma regulação própria toda nova? Os avatares são sujeitos à mesma proteção?
De imediato temos que fazer uma colocação crucial: não se trata de um “mundo”, ou de nova e outra “realidade”, ou de um “local” no qual as pessoas vão interagir. A pretensão ideológica de tratar a Internet como um mundo à parte, sem lei, em total independência com o físico, vem de longo tempo e é expressa na Declaração de Independência do Ciberespaço, de John Perry Barlow, que se tornou um lema das grandes empresas do Vale do Silício. Da ideia de que o “Código é a Lei”, nas palavras de Lawrence Lessig, as empresas passaram a se esparramar mundo (real) afora quebrando as normas estatais e tentando – a todo e qualquer custo – implementar as suas próprias, transpondo a codificação do algoritmo para os códigos legais. Imaginar a Internet, ou as plataformas, como um espaço cibernético, ou seja, como um lugar, é a sacada ideológica para a fuga das leis estatais que regulam as relações jurídicas e sua substituição por regras mais favoráveis a essas empresas. Porém não se trata de um mundo à parte: as plataformas baseadas na Internet fazem parte, hoje mais do que nunca e cada vez mais, do mundo real. São constituídas e possibilitadas pelas leis locais, que lhe garantem desde os direitos imateriais como imagem e marca até a possibilidade de remessa de lucros para seus países de origem. A inexistência de um ciberespaço é facilmente verificável a partir dos termos e condições de uso de uma plataforma como a Uber, que prevê expressamente que os dados coletados de usuários e trabalhadores no Brasil serão transferidos para os Estados Unidos da América.
Como o próprio anúncio de Zuckerberg afirma, trata-se de uma nova plataforma, com recursos e dispositivos mais avançados. A estrutura em nada difere das mais antigas, como o próprio Facebook, ou de outras tantas como YouTube, Instagram, WhatsApp, Amazon, Zoom, Mercado Livre etc. Sendo uma plataforma, compõe-se de uma infraestrutura física e algorítmica para realização de uma função ou negócio. No caso, serão plataformas que pretendem criar as condições de reunião de todo o tipo de interações humanas que se possa imaginar que será por meio dela realizada. Grifei porque isso é de extrema importância para os efeitos jurídicos: a plataforma é o instrumento para a realização da atividade, e não o local onde ela acontece. Assim, o termo de “Realidade Virtual” é muito mais um conceito de marketing do que qualquer outra coisa, pois não existe um mundo virtual: existe o mundo real, onde as pessoas estão e onde elas realizam as suas atividades e relações jurídicas, mesmo que à distância.
Relações jurídicas à distância: essa é uma das chaves jurídicas. Na apresentação do Metaverso acima citada isso fica bem claro quando ele fala que a partir da pandemia do Coronavírus as pessoas passaram a se relacionar à distância, e que ele acreditava que isso tinha vindo para ficar. A todo tempo é repetido: pessoas que estão em lugares diferentes podem se encontrar. Isso é mais realístico, e mais consentâneo com o real, do que dizer que as pessoas vão ser teletransportadas ou pularão para dentro de um universo alternativo. Isso atualmente já acontece o tempo inteiro: fazemos negócios pelo WhatsApp, compramos algo na Amazon, trabalhamos pelo Teams, vemos familiares pelo Zoom, trabalhamos coletivamente em textos e planilhas pelo GoogleDocs etc. Nesse mundo das plataformas, os avatares são extensões da pessoa humana, como a imagem e o nome, e merecerão idêntica proteção como um direito da personalidade.
Zuckerberg deu às relações de trabalho um capítulo específico na sua apresentação, mostrando que ele terá espaço especial no Metaverso, o que não poderia ser diferente como já ocorre com as plataformas atuais. Vamos então tentar das a resposta à pergunta principal em relação e esse ponto específico: qual lei aplicável às relações de trabalho via Metaverso ou similares.
O Brasil ratificou a Convenção de direito internacional privado de Havana, conhecido como Código de Bustamante. Segundo o seu art. 198, em relação à proteção social e os acidentes de trabalho, incluído aí o direito do trabalho, será aplicado o critério da territorialidade ou lex loci exectutionis, ou seja, a lei do local de execução do contrato de trabalho, e não o da contratação. Esse princípio é também previsto pela Convenção de Roma de 1980, aplicável à União Europeia, que deixa bem claro, em seu art. 6ª, item 2, “b”, que as relações de trabalho serão reguladas “pela lei do país em que ou a partir do qual o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente seu trabalho. (grifo nosso)”
A Internet não ocorre nas nuvens, ela é a ligação entre pessoas, físicas e jurídicas, realizada por meio de uma rede mundial de computadores e servidores. O trabalho nunca é realizado em um “mundo virtual”, ou “nas nuvens”, ou “na plataforma”; ele sempre é realizado em um local real por uma pessoa de carne e osso (e com necessidades, desejos, motivações etc.), cujo resultado ou produto é transmitido via plataforma. O local de prestação do trabalho é aquele em que o trabalhador se situa e o realiza, e não a plataforma, como aparentam entender Valerio De Stefano, Antonio Aloisi e Nicolas Countouris, que apresentam as plataformas como “locais de trabalho”. As condições de trabalho físicas são sempre no local real. Os danos psicológicos por atos realizados por meio das plataformas são sentidos também no ambiente físico, e não no virtual. Um assédio moral ou sexual realizado por telefone, pelo WhatsApp, pelo Skype ou pelo Metaverso ocorrem no mundo real, e não em um mundo à parte. Da mesma forma, uma organização virtual do trabalho tóxica gera efeitos no mundo real e não no virtual.
Assim, em princípio, a lei aplicável a um trabalhador contratado por empresa estrangeira para realizar um trabalho qualquer com a utilização da plataforma Metaverso será a do local em que se situa o trabalhador. Essa regra é a mesma se o trabalho à distância for realizado por meio de correspondência, telefone ou uma plataforma como a Zoom ou a Google Meet. A mesma lógica deve ser aplicada para trabalhos realizados para a própria plataforma, como criação de ambientes, desenho de funcionalidades e as milhares novas formas de trabalho que serão criadas.
Entretanto, como De Stefano, Aloisi e Countouris alertam, a facilidade com que essas novas plataformas criarão “ambientes ou escritórios virtuais”, inclusive com ferramentas como tradução simultânea e holografias realistas, possibilitará a contratação por empresas de pessoas ao redor do mundo sob condições menos custosas do que no país do contratante, onde ficará o resultado do trabalho. Isso gera a possibilidade de utilização dessas plataformas como instrumento de dumping social. Esse alerta segue aquele do filme “Sleep Dealer (México/EUA, 2008)”, no qual trabalhadores mexicanos são contratados para a construção civil nos Estados Unidos sem precisar deixar o país, controlando à distância, por meio de uma plataforma, robôs que executam a edificação de prédios reais.
Esse problema pode ser resolvido com normas como a Lei nº 7.064/1982, que regula a contratação de trabalhadores brasileiros por empresas para a realização de atividades no exterior, que prevê a aplicação do princípio da norma mais favorável (art. 3º, II). Ou seja, verifica-se qual a norma mais favorável entre a lei da atividade laboral e aquela do contratante e ela será o ordenamento aplicável. Pode-se utilizar esse dispositivo por analogia, que é prevista no Brasil como fonte secundária do direito, às relações de trabalho realizadas por plataformas de “mundos virtuais”. Outra possibilidade é a aplicação da exceção prevista no art. 6º, item 3, onde se afirma o princípio do centro da gravidade, ou do “most relevant relashionship”, aplicando-se a lei do país da pessoa física ou jurídica que recebe o resultado do trabalho quando um contrato “apresenta conexões mais estreitas com outro país”. A aplicação desse dispositivo recebe aplicação no Brasil por conta da previsão do art. 8º da Consolidação das Leis de Trabalho que prevê o direito comparado como fonte na ausência de norma específica.
Essas duas regras podem ajudar a simplificar o problema aparentemente complexo das plataformas de “mundos virtuais”. O mais importante no momento é não deixar margem para a criação de “mundos sem lei”, do qual piratas, como nas antigas águas marítimas oceânicas, poderão se aproveitar para explorar, com navios, espadas e canhões virtuais, trabalhadores de todo o mundo.
Rodrigo de Lacerda Carelli é professor do programa de pós-graduação em Direito da UFRJ, procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro e membro do coletivo Transforma MP.
O etnocídio é um elemento constante na relação entre o Estado brasileiro e as populações indígenas. Como afirmado por Eduardo Viveiros de Castro, o etnocídio é a “essência mesma” dessa relação, e que se estende de 1500 até os dias atuais. O diagnóstico, ao mesmo tempo desconfortável e exato, desafia a sociedade brasileira contemporânea. Ainda segundo Viveiros de Castro, pode ser considerada etnocida toda ação política que resulte na “destruição do modo de vida das comunidades [indígenas], ou constitua grave ameaça (ação com potencial etnocida) à continuidade desse modo de vida”.
Como o próprio autor ressalva, houve sempre práticas de resistência a essas ações etnocidas. Muitas delas não tiveram repercussão institucional, mas se inscreveram na história da presença dos povos indígenas no Brasil. Além disso, houve um processo político que representou uma transformação estrutural na abordagem da questão indígena. Para compreender esse processo, é preciso voltar um pouco no tempo.
35 anos atrás, no dia 1º de fevereiro de 1987, o Brasil iniciava uma jornada de institucionalização e consolidação de sua jovem democracia. Era a sessão de instalação da Assembleia Nacional Constituinte, que havia sido convocada pela Emenda Constitucional nº 26/85. Num percurso acidentado e permeado por questões ligadas à dinâmica partidária da época, a Constituinte chegou a um texto final que foi promulgado em 5 de outubro de 1988.
E aquele texto seria revolucionário para a questão indígena. Revertendo uma orientação que vinha desde os tempos do Brasil Colônia, o ordenamento jurídico passou a reconhecer aos povos indígenas, com a vigência da Constituição de 1988, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).
Essa mudança de orientação possui uma história. E ela foi escrita pelos próprios povos indígenas, que tomaram parte de forma expressiva e constante no processo constituinte, apresentando demandas e reivindicando direitos. Podemos dizer que os indígenas se fizeram presentes desde o início dos trabalhos constituintes. Eles figuram entre os primeiros atores sociais a perceber a importância daquela oportunidade histórica e, exatamente por isso, conseguiram uma mobilização efetiva, que influenciou a redação da Constituição desde as audiências iniciais nas subcomissões temáticas até as derradeiras votações no Plenário e ajustes de redação final.
Um episódio específico, ocorrido na fase de discussão do texto na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, é bastante revelador acerca da profundidade das mudanças que seriam incorporadas na Constituição e da presença de práticas etnocidas na história brasileira. No dia 5 de maio de 1987, várias lideranças indígenas estiveram na subcomissão e deram seu testemunho. Entre eles se destaca o pronunciamento de Ailton Krenak, na época um jovem líder do povo krenak, que vive na região do Rio Doce, Minas Gerais.
Toda a manifestação de Ailton Krenak se baseia na oposição entre guerra e paz. No seu entendimento, aquela Assembleia Constituinte representava uma oportunidade para celebração de um tratado de paz entre os brancos e os povos originários brasileiros. É importante frisar que Krenak não estava propondo uma metáfora. Seu argumento tinha fundamento histórico: o povo krenak descende dos botocudos. Em 1808, uma carta régia emitida por D. João VI, à época príncipe regente do Reino de Portugal, ordenava que se iniciasse uma “guerra ofensiva” contra os botocudos, classificados como “antropófagos” e “violentos”. Na carta régia D. João VI determina que os exércitos reais tomem posse das habitações dos botocudos, a partir da “superioridade de minhas reais armas”, que deveriam infligir um “justo terror”, com a finalidade de fazer com que os indígenas se sujeitassem “ao doce jugo das leis” e que se tornassem “vassalos úteis”. A carta régia, emitida no dia 13 de maio de 1808, está disponível no portal da Câmara dos Deputados.
Exatamente por essa razão, Ailton Krenak insiste na relação entre guerra e paz: “O Estado brasileiro trata as populações indígenas como inimigos de guerra. Somos remanescentes de um processo de extermínio, ainda não foi assinado um tratado de paz entre o Estado brasileiro e as populações indígenas” (Ata da 11ª reunião ordinária da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 21.5.1987, p. 150).
Krenak demonstra, ainda, sensibilidade e percepção acerca do que representava aquela audiência pública. Ela era parte de um processo amplo de escrita de um documento constitucional fundante, com capacidade de redefinir as relações entre brancos e povos indígenas no Brasil. Essa transformação significaria um tratado de paz dotado de eficácia e caráter definitivo: “assinem um tratado de paz com o povo indígena, porque as gerações futuras não terão que ouvir uma acusação de terem sujado as mãos no sangue do povo indígena. Reconheçam os nossos direitos, respeitem os nossos direitos e o nosso povo (…) É uma tarefa da Nação brasileira, de todas as pessoas que habitam este País, de estancar esta sangria, de fazer um tratado de paz com o povo indígena” (Ata da 11ª reunião ordinária, p. 152).
Ao contrário de vários outros temas da Constituinte, que sofreram muitas modificações e supressões entre a redação do anteprojeto nas subcomissões e comissões temáticas e as votações no Plenário, o capítulo sobre populações indígenas pouco se alterou: as inovações já estavam no anteprojeto da subcomissão e foram, em sua parte principal, conservadas na redação final do texto.
Porém, como sabemos, nenhuma norma jurídica produz efeitos de forma automática e imediata. É essencial, para o direito moderno, o elemento institucional. Um texto constitucional precisa ser acompanhado de políticas públicas e ser reconhecido por câmaras legislativas e tribunais.
Nem sempre é um processo simples. Em outros textos publicados neste espaço, temos demonstrado a sucessão de práticas desconstituintes no Brasil contemporâneo, a afetar temas centrais da Constituição de 1988, como a tutela do meio ambiente, a proteção do trabalho, a importância da educação, das políticas de reparação e memória.
O mesmo impulso de destruição do núcleo da Constituição de 1988 se faz sentir em relação aos povos indígenas. Como bem assinalado por Viveiros de Castro, as ameaças provêm de todos os poderes estabelecidos: o Executivo abandona toda e qualquer política responsável e estimula abertamente a ocupação ilegal e atividades de mineração em terras indígenas (cf. PL 191/2020) e o Legislativo discute projetos de lei que visam a relativizar normas de licenciamento ambiental (PL 3729/2004) e a exigir a presença, em 5 de outubro de 1988, dos indígenas nas terras por eles reivindicadas (PL 490/2007). É o chamado “marco temporal”, conceito que se originou no Judiciário, especificamente no Supremo Tribunal Federal, na tarefa de construir o arcabouço jurisprudencial alusivo à posse e usufruto das terras indígenas.
Trata-se, na verdade, de uma negação da Constituição, de uma prática desconstituinte. Sob a justificativa de estabelecer uma suposta “segurança jurídica” ao tema, o STF, em algumas decisões proferidas por turmas (órgãos fracionários), acaba por estabelecer uma exigência que não está no texto constitucional: a prova da presença, ao tempo da promulgação da Constituição, dos indígenas nas terras reivindicadas. Em outras palavras, essa interpretação joga a Constituição contra a Constituição. A matéria teve sua apreciação interrompida no Plenário do STF por pedido de vista regimental, e continua sem definição à vista.
Vale retomar a definição de etnocídio proposta por Viveiros de Castro. A negativa de exercício dos direitos estabelecidos na Constituição revela a tendência etnocida do Estado brasileiro. Há evidente ameaça às formas de vida dos povos indígenas quando são impostas condições de difícil comprovação, que não estão expressas no texto constitucional e que ignoram o fato de que os povos indígenas vêm sendo submetidos ao esbulho da posse de suas terras tradicionais, prática bem anterior à promulgação da Constituição de 1988, que procurou reverter essa situação.
Há várias formas de praticar etnocídio. A atual, que ocorre diante dos nossos olhos, é por intermédio de práticas desconstituintes levadas a efeito pelas instituições que deveriam zelar pela Constituição.
*Cristiano Paixão é Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla.Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Eixos, planos,ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB).
Brasil do século 21, 2022 — fatos notórios Fevereiro — agitação nas redes sociais por causa de uma fala feita no podcast Flow pelo youtuber Monark. Ele defendeu, sem hesitar, a criação de um partido nazista no país, na presença do deputado Kim Kataguiri e da deputada Tábata Amaral.
A deputada reagiu corretamente com o argumento de que o nazismo tem por objetivo o extermínio do povo judeu, mas deixou de fazer apelo contundente à ordem constitucional brasileira, gestada sob os ideais da democracia. Já o deputado Kim Kataguiri não refutou a opinião de Monark e criticou a Alemanha por ter criminalizado o partido nazista. Implicitamente, não concordou que a incitação ou propaganda nazista, no Brasil, seja crime. Foi “mais realista do que o rei”: desconsiderou o que o Holocausto significa para o povo judeu, apegou-se a uma ideia sobre a qual é incapaz de avaliar os seus efeitos práticos e parece ter fascínio pela estética da subjugação das pessoas a um poder delirante e perverso.
Diante da repercussão negativa, o youtuber fez um vídeo de desculpas. Disse que estava bêbado, como se a embriaguez fosse algo aceitável num podcast, seu “espaço de trabalho”, sugeriu que sua fala não tem a ver com aquilo que pensa, insinuou humildade ao convidar judeus para conversar!!! O pedido de desculpas, na forma e no conteúdo, foi nebuloso. Difícil dizer se sacramenta a ignorância, a irresponsabilidade ou foi deboche. Ele foi desligado da empresa do podcast e os patrocínios, retirados.
O deputado federal Kim Kataguiri também foi às redes pedir desculpas nada convincentes. Manteve uma mistura de ignorância e arrogância, articulando argumentos falaciosos. Para ele, a criação de um partido nazista permitiria conhecer os apoiadores a fim de combatê-los. De novo ignora a história do Brasil e falta compreensão do que isso significa para a democracia.
Registre-se que, a partir da CF/88, o Brasil viveu quase duas décadas de uma inédita estabilidade política. Sociedade e instituições se encontraram no ideal democrático, o qual o Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por Kim Kataguiri (antes de se tornar parlamentar), solapou com uma eficiência indecorosa no apoio explícito que deu à operação “lava jato”: importante pilar, como fartamente provado, do golpe judicial-parlamentar e midiático que criminalizou a política, atingindo a presidenta Dilma Roussef, e possibilitou a implantação de uma agenda neoliberal supressiva de direitos sociais, capitaneada por Michel Temer, que assumiu no lugar dela. O povo foi miserabilizado, com a retirada de empregos, salário, casa e comida, em favor da concentração de renda nas mãos de pessoas sem apreço pela democracia e pelas diversas atividades produtivas que dinamizavam a economia do país.
O MBL ampliou o flerte com a economia neoliberal, predatória da vida coletiva, submissa à cobiça estadunidense comprometedora do exercício da soberania brasileira e do manejo dosado dos recursos naturais do país, e Kim Kataguiri conquistou o mandato de deputado. Após a manifestação que fez sobre a criação de um partido nazista e críticas à legislação alemã, tomando como referência a lógica constitucional estadunidense, que admite o partido nazista, teve contra si um pedido de cassação no Conselho de Ética da Câmara por quebra de decoro.
Na sequência, Adrilles, comunicador da Jovem Pan, fez um gesto de saudação nazista e foi demitido.
O presidente da República, por sua vez, sempre “notável” pela agressividade e insensibilidade à dor alheia quando fala ou até quando cala, repudiou o nazismo. Porém, estendeu esse repúdio ao comunismo, cujo significado, obviamente, ignora, dividindo o pódio dessa ignorância intelectual e comportamental com o autor da fala censurada.
Vale dizer que o comunismo não prega o extermínio de ninguém; as ideias que propaga não se confundem com as experiências históricas malogradas, quando se tentou concretizá-las. Nessas experiências o comunismo se distanciou das ideias e o termo passou a ter várias interpretações e sentidos. O nazismo, ao revés, traz como ideia o extermínio do povo judeu, baseado no racismo e insuflado pelo discurso de ódio, e se realizou completamente, na Alemanha dos anos 30, provocando uma guerra mundial. Eis porque lá é considerado crime e os nazistas que foram presos, julgados.
Já no Brasil, o presidente, quando ainda era deputado federal, ao proferir voto de impeachment na sessão de 17/4/2018 da Câmara de Deputados, contra Dilma Rousseff, homenageou o torturador coronel Brilhante Ustra. A despeito disso e do fato de a tortura ser proibida nos termos da CF/88 (artigo 5º, incisos III, XLII e XLVII) e tipificada como crime na Lei nº 9.455/97, ele foi eleito presidente e continua…
Nota-se, assim, que falas aparentemente ocasionais, como se fossem gafes, não são desprovidas de significados. Conscientes ou inconscientes, os atos de fala são carregados de sentido e, se exprimem algo de ruim, esse algo habita no interior do ser que os enuncia. Toda fala é reveladora de sentimento ou até da falta de algum sendo denunciada nas ações. Não por acaso o presidente da República associou o nome do coronel Ustra ao terror e, em geral, denota indiferença ao falar de morte e não demonstra entusiasmo ao falar de vida.
Num discurso na Hebraica do Rio de Janeiro, em abril de 2017, menosprezou um quilombola; já fez chacota do cabelo de um negro, dizendo que dele talvez saíssem baratas; ofendeu a deputada Maria do Rosário, afirmando que ela “não merecia ser estuprada” de tão feia; ignorou o número de mortos durante a pandemia da Covid-19 e nunca se solidarizou com os familiares e amigos desses mortos; silenciou diante do assassinato do imigrante congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro. Enfim, as situações de fala e até as de silêncio do presidente são infindáveis e perturbadoras. Desde que chegou ao Planalto, suas falas são fonte para a replicação de condutas nefastas. As suas próprias à frente da administração do país são um “bom” mau exemplo. Na gestão da pandemia se superou e está no radar do Tribunal Internacional Penal de Haia, enquanto o procurador-geral da República, no Brasil, fica inerte.
Falas ou atos de teor nazista e racista não podem mais se tornar uma repetição em cascata no Brasil. Numa eventual ocorrência, devem sempre merecer por parte das autoridades competentes e sérias, que existem e resistem no âmbito das instituições, o devido tratamento legal, erguido como proteção à democracia na CF de 1988. Ela, a Constituição, é o parâmetro obrigatório de aplicação das leis a ela inferiores. No caso de condutas que remetam direta ou indiretamente à defesa do nazismo, o ordenamento jurídico brasileiro conta com a Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei nº 9.459/97, que proíbe essa atitude. É uma lei que poderia ser melhor redigida nesse particular, mas cuja interpretação está de acordo com a CF/ 88. O artigo 20 prevê que a incitação à discriminação de raça, cor, etnia, religião é punível, assim como o uso de qualquer símbolo ou propaganda para fins de divulgação do nazismo.
Considerando que o nazismo traz ideias frontalmente opostas aos princípios democráticos contidos na CF/88 e com potencial para destruí-la, fazendo desaparecer do horizonte da vida política do país a democracia, torna-se inaceitável defender a criação de um partido nazista. Uma tal proposta leva ao fim política porque a elimina as pessoas. O nazismo, que subsiste através de grupos delirantes mundo afora, inclusive no território brasileiro, tem as mesmas ideias de outrora e, como se rege por um discurso de ódio, define o seu inimigo. O elemento central é o racismo, que na Alemanha foi baseado na chamada superioridade racial do povo alemão contra os judeus. No Brasil, pode significar o incremento assombroso do racismo contra negros, indígenas, ciganos etc.
Admitir o exercício da liberdade irrestrita de expressão para sustentar a criação do partido nazista equivale a cair num paradoxo ameaçador do projeto democrático, que o Brasil não abandonou e ainda precisa aprofundar, radicalizando-o, para se manter íntegro, inteiro e acolhedor da diversidade que o constitui como país. Um partido nazista implica fomentar condições institucionais e instrumentos propagadores do discurso de ódio, com permissão legal para matança de quem for contra o partido, diluindo todos os vínculos que caracterizam o ser humano como um ser social e político. Sobre a possibilidade de leis permissivas para matar, uma tentativa foi feita na época em que o ex-juiz Sérgio Moro (declarado suspeito pelo STF na condução do processo relativo à operação “lava jato”) ocupava o cargo de ministro da Justiça. Ele enviou ao Congresso o denominado pacote “anticrime”, prevendo a possibilidade de que a polícia estaria autorizada a matar, em certas circunstâncias. Uma previsão ampla e muito fluida que flertava com fascismo e foi barrada pelo Congresso. Nenhuma surpresa no fato de que o ex-juiz suspeito tenha sido apoiado pelo MBL e pelo atual parlamentar Kim Kataguiri.
Ignorar os contornos de uma sociedade verdadeiramente democrática leva ao paradoxo de admitir a liberdade de alguns para destruir o exercício da liberdade de todos. De todos, mesmo! Inclusive dos que defendem a liberdade de expressão irrestrita. Monark, defensor dessa ideia, aliás, voltou às redes para dizer que a reação à sua fala é desproporcional e exagerada. Esqueceu que as pessoas estão fazendo uso da própria liberdade de expressão e exigindo respeito à ordem jurídica.
Brasil entre os séculos 15 e 19 [1] — fatos documentados Foi ao longo desses séculos que se deu a migração forçada de pessoas negras do continente africano para o território do Brasil colônia com vistas a escravizá-las na produção açucareira e expandir o reino português. Um negócio muito lucrativo, um ato de comércio ambicioso que vendia tanto gente quanto açúcar. O “corpo” negro sofreu uma dominação com uso de tecnologias de opressão.
O discurso de que as pessoas negras eram mercadoria foi o passo inicial. Diferenças culturais e de cor foram as ideias usadas para inferiorizá-las e defini-las como coisas. A pessoa humana foi reduzida ao seu corpo físico, ignorando-se-lhe a dimensão psíquica de ser falante e pensante. Os corpos negros foram, então, objetificados desprotegidos, sendo desumanizados, o que já iniciara em África, quando recebiam um número de identificação para serem leiloados e o preço dependia, peso, expressão dos músculos, dentição. Mães e filhos eram separados.
Na Ilha de Gorée (Senegal), porto importante na rota dos navios negreiros, onde se situa o prédio que abrigava o mercado de negros e negras à época do tráfico, vê-se um corredor estreito que levava diretamente ao navio no atracadouro. Relata-se que na travessia desse corredor até a embarcação, as pessoas eram tão espremidas que muitas se desesperavam buscando uma brecha para se lançarem ao mar e, não raro, ou se arrebentavam nos rochedos ou eram devoradas por tubarões. Na chegada ao destino, efetuava-se o “descarrego” dos “corpos” viventes (sobreviventes), encaminhando-os aos seus donos, depois de adotarem um nome português.
Nas fazendas, os “corpos” eram submetidos a um processo de classificação, em virtude dos atributos físicos, para o fim de cumprirem certas funções: do trabalho na cozinha ao trabalho nos engenhos. A senzala era o espaço de recolhimento de todos eles, após o término do trabalho, sob vigilância. Esse era um lugar de contenção do corpo extenuado. Mas por causa da resistência “teimosa” das pessoas negras, a senzala também era um espaço de significação de vida para elas. Ali reunidas, reproduziam os rituais do lugar de origem, para conferir ou resgatar o sentido da existência.
E dentro desse sistema de moagem existencial, eram submetidos ao castigo e à tortura dos “corpos” desviantes. O corpo era adestrado para o trabalho e não podia fazer outra coisa, por conseguinte, a pessoa humana que ele representava era ignorada e subjugada na sua dimensão psíquica.
Para operar esse sistema opressivo, havia os capatazes ou feitores. Enfim, desenvolverem-se tecnologias de uso, exploração e dominação de “corpos” negros e tudo em para o acúmulo de riqueza daqueles que ocupavam os postos mais altos de poder: os homens brancos.
1) Alemanha, século 20 — fatos documentados e filmados 1920 — A Alemanha, destroçada depois da 1ª Grande Guerra e endividada por força do Tratado de Versalhes, vê nascer o nazismo sob o influxo de ideias relativas à superioridade do povo alemão, gestadas na virada do século 19 para o século 20. Defendia-se uma raça pura por meio da eliminação dos judeus. Para tanto, montou-se um sistema e equipamentos de extermínio, seguido da expropriação de suas riquezas. A crença na superioridade racial do povo alemão resultou na desumanização dos judeus, submetidos a toda sorte de suplício, e permitiu o aumento da riqueza material do país para a realização de planos de expansão territorial.
A questão racial, uma das características principais do nazismo, nutrida no discurso de ódio, acelerou o genocídio de milhões em poucos anos com a sofisticação das tecnologias de extermínio: trem apinhado de pessoas que sequer sabiam para onde estavam indo, campos de trabalho forçado levando o corpo à exaustão, câmaras de gás disfarçadas de banheiros, experimentos científicos, vigilância etc. Embora no discurso os judeus não fossem um objeto, na prática, se tornaram.
2) Desumanização: técnica discursiva e a ação prática correspondente É desesperador pensar que a espécie humana tenha podido em tempos diversos e ainda tão próximos viver apenas do seu lado predador, sem atentar para as lições do passado.
Do século 15 ao 19, no Brasil, ou no século 20, na Alemanha, destaca-se a elaboração de um discurso sobre aqueles que deveriam ter a “carne triturada” para nutrir o banquete dos que circulavam nos salões do poder. Em cada época, deu-se um nome a esse processo de seleção artificial entres os seres viventes, naturalizando o extermínio, ou banalizando o mal, como disse Hannah Arendt. O lado predatório da espécie humana criou mecanismos de colonização dos seus semelhantes, tendo, por fim último, extrair a riqueza material em favor de alguns poucos.
Mas o ser humano não é só um arranjo genético que guarda a memória animalesca de luta pela sobrevivência física; ele é, antes de qualquer coisa, um ser falante, pensante e inventor de símbolos: um sujeito. A linguagem é, sem dúvida, a sua produção simbólica mais sofisticada e complexa, e tem potencial para interferir na sua sobrevivência sob vários pontos de vista. Desumanizar uma parcela de indivíduos através do discurso, nutrido no ódio e, desconsiderar qualquer compromisso com a preservação da espécie sempre foi imprescindível na ocorrência de genocídios.
Percebe-se que a linguagem desumanizante, através de um discurso de ódio, esteve e está presente tanto no racismo contra os negros, que vêm sofrendo um “genocídio crônico”, prolongado ao longo de séculos, quanto, no nazismo, que na Alemanha, se agudizou. O discurso de ódio em relação aos judeus ativou o que estava recuado na memória da humanidade.
A engrenagem de extermínio de novo funcionou começando com a elaboração de um discurso enviesado, raso, simplificado para capturar as estruturas do inconsciente. No inconsciente, o ser humano é quase sempre um predador e para tanto o ódio e o ressentimento são combustíveis. Quem minimamente acessa o inconsciente ou compreende esse mecanismo busca a melhor forma de interagir com os outros.
Em pleno século 21, fazer referência ao nazismo com naturalidade, sem relacionar isso ao horror, é chocante. Ignorar o racismo nesse processo e como fator estruturante para escravizar o povo negro até hoje, idem. Há uma superposição de imagens sobre um mesmo fenômeno: a desumanização… Como nos filmes…
Trens carregados de gente/navios negreiros; um destino ignorado/numeração dos corpos/identificação/quantidades; quebra de laços afetivos; corpos classificáveis/traição e discórdias estimuladas; os castigos corporais infligidos aos judeus e tronco para o negro ser supliciado.
Um intervalo de algumas décadas entre o fim da abolição no Brasil (1888) e o início do nazismo na Alemanha (1930). Uma virada de século!
Mais uma virada de século, anos 2000.
2013-2014, movimento MBL: livre de que e pra quem?, 2014, operação policial/processo judicial, estranhamente batizada de “lava jato”, prisão em série de várias pessoas de empresários a políticos, baseando-se quase que exclusivamente em delações. A figura do inimigo. Prisão do ex-presidente Lula, que estava havia mais de seis anos sem cargo no governo brasileiro, visto dentro e fora do país como a melhor liderança política; 2016, no Parlamento, um militar saindo do anonimato exalta a figura de um torturador; 2018, lança notícias falsas contra o seu principal adversário, é consagrado vencedor e se torna presidente, convida o juiz da “lava jato” para ser ministro da Justiça.
Depois… Miséria, discórdia nas famílias, fissuras institucionais, desmonte de programas sociais, elevação do número de armas, crimes contra o patrimônio público, devastação florestal, tensões sociais, desfile de tanques no Planalto, volta dos generais de pijama, ao poder.
Nada a ver com o filme britânico “Menino de Pijama Listrado”, sobre a Alemanha na 2ª Grande Guerra Mundial. Generais não são meninos. Na reserva “vestem pijamas”, fazem parte da História. Não ocupam o lugar do menino do filme, pois o protagonismo deles é outro…
Filme muito triste. História trágica. Que a população do país se torne protagonista e abandone a posição de espectador. Isso que evita a farsa.
[1] Sobre a escravidão e o tráfico negreiro, o romance histórico – “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, é imprescindível.