Arquivos Diários : dezembro 2nd, 2024

O STF e os 40 anos de Bhopal

Em 2023, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) marcou posição contra as práticas de uso de agrotóxicos, ressaltando os riscos à saúde, em especial nas causas do câncer.

Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense

Na quarta década da maior catástrofe da indústria química, o Supremo Tribunal Federal (STF) está por decidir uma das mais importantes questões ambientais. Da decisão depende a efetiva proteção dos brasileiros expostos aos agrotóxicos.

Em 3 de dezembro de 1984, a cidade de Bhopal, na região central da Índia, registrou o maior acidente industrial da história. A explosão da fábrica de agrotóxicos deixou entre 4 e 10 mil pessoas mortas imediatamente. A fabricante negou-se a fornecer informações, dificultando o socorro de 200 mil pessoas intoxicadas pela nuvem de veneno. Estimam-se 25 mil casos de cegueira e 50 mil incapacitados para o trabalho. A data emblemática marca o Dia Mundial de Luta Contra os Agrotóxicos.

A desoneração tributária de agrotóxicos é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.553. A ação questiona regras de convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária que reduzem em 60% a base do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços sobre agrotóxicos, além de dispositivos que zeram o Imposto sobre Produtos Industrializados.

Em 5 de novembro, foi realizada audiência pública no STF, conduzida pelo relator, ministro Edson Fachin. Foram dezenas de manifestações de representantes do setor econômico, trabalhadores, governo, cientistas e entidades, além da sociedade civil. 

O setor econômico buscou demonstrar a relevância da atividade econômica que desfruta dos benefícios fiscais há quase 30 anos. Muitos dos representantes de entidades e da sociedade civil demonstraram a iniquidade das vantagens tributárias concedidas a um setor que se anuncia com grande pujança econômica e usa insumos químicos especialmente na produção de commodities de exportação. Foram apresentados dados impactantes do comprometimento do meio ambiente e da saúde de trabalhadores e da população exposta a produtos tóxicos. Chamou a atenção a falta de representante do Ministério da Saúde, área diretamente impactada pelo estímulo ao uso de agrotóxicos.

No Brasil, a tragédia silenciosa e subnotificada é sentida pelas vítimas do espalhamento do veneno na forma de enfermidades crônicas, dado reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde (MS).

No mesmo 5 de novembro, o Ministério da Saúde publicou a Lista atualizada de Doenças Relacionadas ao Trabalho, com o objetivo de orientar as ações de vigilância e promoção da saúde. São mais de 40 enfermidades decorrentes da exposição dos trabalhadores aos agrotóxicos, com várias modalidades de câncer, linfomas, leucemia, hipotireoidismo, Parkinson e depressão.

Em 2023, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) marcou posição contra as práticas de uso de agrotóxicos, ressaltando os riscos à saúde, em especial nas causas do câncer. Indicou que o intensivo uso de agrotóxicos gera grandes malefícios, como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população. O documento aponta o fato de o Brasil permitir o uso de agrotóxicos proibidos em outros países.

A isenção de impostos concedida à indústria de agrotóxicos é apontada pelo Inca como um grande incentivo ao uso que vai na contramão das medidas protetoras, decorrentes do princípio da precaução, que recomenda ações que reduzam progressiva e sustentadamente o uso de agrotóxicos.
Causou surpresa a manifestação da Advocacia Geral da União, favorável à renúncia de receitas, em pauta contrária ao interesse do erário, justamente quando o governo se debate com a crise orçamentária ou colapso fiscal.

Quanto à manifestação dos representantes do Ministério da Agricultura, favorável à continuidade da desoneração e indiferente aos dados que apontam os danos à saúde dos trabalhadores, proprietários ou empregados, chamou a atenção a resistência ao uso da expressão adotada pela lei e pela Constituição: “agrotóxico”, escolhendo usar o eufemismo “defensivos”, que compõe a estratégia de marketing do setor beneficiado pela desoneração.

Essa estudada cautela demonstra um alinhamento com a indústria química que traz preocupação adicional, pois a recente alteração na legislação dos agrotóxicos (Lei nº 14.785 / 2023) concentrou no Ministério da Agricultura a competência exclusiva para o registro de pesticidas. As áreas da Saúde e do Meio Ambiente ficaram com função secundária.

A grave decisão do STF, felizmente, dá-se no contexto em que tem havido compromisso com a Agenda 2030 — Pacto do mundo civilizado com o desenvolvimento sustentável. Há esperanças de que não seja perpetuada a silenciosa tragédia de Bhopal em nossas fronteiras agrícolas.  

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

Eles ainda estão aqui!

Por Gustavo Livio[1]

                Assistimos nos últimos dias a dois eventos bombásticos e inter-relacionados. O primeiro deles, a euforia coletiva despertada pelo filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, uma crítica aberta à ditadura empresarial-militar que narra o drama da família do ex-deputado Rubens Paiva em razão de seu desaparecimento forçado. O segundo, o indiciamento de 37 pessoas pela Polícia Federal no bojo da Operação Contragolpe, dentre os quais se destacam o ex-presidente Jair Bolsonaro, os generais da reserva Braga Netto e Augusto Heleno, além de outros militares de alta patente, todos eles saudosos viúvos da ditadura militar criticada pela película de Walter Salles.

Segundo as investigações até aqui divulgadas, as operações “Punhal Verde Amarelo” e “Copa 2022” tinham objetivos explicitamente golpistas que envolviam o assassinato do então recém-eleito Presidente Lula, seu vice, Geraldo Alckmin e o Ministro Alexandre de Moraes. As reuniões foram arquitetadas na casa do General Braga Netto e contaram com a participação do General Mário Fernandes, do Tenente-Coronel Hélio Ferreira Lima e de dois majores, Rafael Martins de Oliveira e Rodrigo Bezerra, estes quatro últimos já presos. A “Operação Copa 2022”, dedicada ao assassinato do Ministro Alexandre de Moraes, esteve incrivelmente próxima de se consumar e foi abortada de última hora em razão de um adiamento da sessão do STF que ocorria na data marcada para a operação.

O Brasil conta com uma excessiva variedade de partidos políticos. Hoje, são 29. Mas a eles devemos adicionar um partido clandestino; um partido que, a despeito da ausência de registro formal junto ao TSE, interfere decisivamente nos rumos da vida política do país: o Partido Fardado[2]. Desde a República Velha, passando pelos turbulentos anos da década de 1930, pela redemocratização em 1946, pela Ditadura empresarial-militar de 1964-1985 e até os dias de hoje, os Militares historicamente se autoproclamaram detentores de um suposto e ilegítimo “poder moderador” que lhes permitiria interferir nos poderes constituídos para garantir o “interesse nacional e a “ordem pública”, dos quais, claro, eles se avocam como grandes intérpretes. Não faz muito tempo que o Partido Fardado e seus asseclas defenderam a absurda tese de que o artigo 142 da Constituição permitiria que o Presidente eleito poderia determinar uma “Intervenção Militar” a fim de “restaurar a ordem”. A controvérsia ganhou tamanha relevância que a Câmara dos Deputados e o STF foram instados a se manifestar –  contrariamente, é claro.

O Partido Fardado, é claro, não está sozinho. Conta com o suporte luxuoso de sua grande sócia, a alta burguesia, e com o inflamado rancor de uma classe média ressentida composta por adoradores de pneus e hordas conservadoras neopentecostais. Essa tríade – os militares, a alta burguesia e parcela significativa do neopentecostalismo – compõe a base de massas do conservadorismo neofascista brasileiro. Sim, neofascista! Porque um movimento de massas de classe média, ultranacionalista, militarista, anticomunista e fundamentalista religioso carrega consigo as mesmas características centrais do movimento italiano, dê você o nome que quiser dar.

Walter Benjamin, em seu consagrado Teses sobre o Conceito de História, escreveu que “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras””[3]. Sim, eles ainda estão aqui. A ditadura militar não deixou apenas “resquícios”, mas todo um corpo político fluido extremamente influente com grandes privilégios institucionais (aposentadorias robustas e tribunais específicos) e que volta e meia se arvora do poder de bastião de uma “ordem” cujo conteúdo é ditado por eles próprios. Mas mais importante do que isso: esses sucessivos “agoras” têm se perpetuado diante de uma irresponsabilidade quase monárquica dos militares, uma espécie de absolutismo de farda. E não me refiro apenas à Lei de Anistia de 1979 e nem à atual articulação da direita para anistiar os golpistas do dia 08.01.2023. Refiro-me ao fato de que, salvo raríssimas exceções, a história brasileira demonstra que militares de alta patente não são responsabilizados pelos crimes que cometem contra o funcionamento regular das instituições civis (e foram vários…). Refiro-me também à ausência deliberada de uma Justiça de Transição que, ao não acertar as contas com seu passado, saturou o tempo presente de amargos “agoras” que retornam para assombrar o pouco de democracia que temos.

Conrado Hubner escreveu na internet que “Braga Netto não está preso porque o sistema chegou a um limite de quem pode prender”. Eu apenas alteraria o tempo verbal para dizer que esse limite sempre existiu. Não “chegamos a um limite”, o limite é constitutivo de um sistema jurídico erguido sobre uma sociedade de classes. Uns são presos por nada; outros não são presos por nada. A seletividade é constitutiva do Direito Penal, sabemos disso desde sempre. Mas estamos acostumados a olhar para os selecionados e deixamos de mirar os não-selecionados, aqueles a quem a mão do Poder Punitivo não alcança porque, na prática histórica, mais importante do que a subsunção de um fato a um tipo penal é o poder do agente que comete o fato. A Lei nunca foi e nunca será igual para todos enquanto a estrutura da sociedade for marcada por um profundo antagonismo entre as classes sociais na qual o Partido Fardado divide historicamente o Olimpo com a alta burguesia.

Eles ainda estão aqui. Na verdade, sempre estiveram. Não me refiro aos militares como pessoas, mas aos militares organizados em um Partido Fardado. Partido este que desde o Império se aliou às oligarquias agrárias e burguesas para, juntas, se manterem intocáveis no Olimpo do poder (não por acaso o brasão da Polícia Militar ostenta um pé de cana-de-açúcar e um pé de café). Este partido, que cultiva abertamente um gosto peculiar pelas atrocidades da Ditadura Militar – que eles chamam de “revolução” – está sempre à espreita para interferir direta ou indiretamente nos rumos políticos do país.

Mas Walter Benjamin, de novo, nos lega uma das mais motivadoras lições da Filosofia da História: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”[4]. Alguma centelha de esperança brota da articulação dos dois eventos recentes que mencionei no início. O filme fornece a memória das atrocidades da ditadura militar e o indiciamento inédito da Polícia Federal demonstra alguma centelha de esperança de que a irresponsabilidade monárquica do Partido Fardado pode ser rompida no futuro breve. O Brasil tem a oportunidade única de encerrar um jejum de séculos de irresponsabilidade penal dos militares de alta patente por crimes cometidos contra as instituições civis. É claro que nenhuma punição isolada corresponderá a uma Justiça de Transição, essa Justiça com “J” maiúsculo tão ausente no Brasil. Outros países da América Latina tiveram a oportunidade de acertar as contas com seu nebuloso passado autoritário e por isso criaram uma memória coletiva em torno das atrocidades cometidas. Por aqui, ao contrário, a força do Partido Fardado impediu que fizéssemos, e por isso volta e meia vemos manifestações de massa exibindo cartazes em defesa de uma “intervenção militar” ou deputados federais exaltando notórios torturadores no plenário da Câmara dos Deputados.

Responsabilidade penal não é Justiça de Transição. Mas é um passo indispensável para tatuar na pele da história um sonoro e rotundo “Não”. Uma potente mensagem: “Vocês não podem interferir nos rumos do governo legitimamente eleito e permanecer impunes”. Temos em mãos uma oportunidade de ouro de processar, julgar e punir militares de alta patente por crimes cometidos contra nossa superficial democracia. Como um presente saturado de “agoras”, Eles ainda estão aqui! E continuarão aqui até que seja feita uma profunda reforma nas Forças Armadas para a qual a possibilidade de responsabilização criminal é um passo inicial fundamental, embora não suficiente. Que o Procurador-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal tenham a coragem e o apoio popular para dar esse passo.

REFERÊNCIAS

  1. BENJAMIN, WALTER. Teses sobre o conceito de História. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2015/10/02/walter-benjamin-teses-sobre-o-conceito-de-historia/. Acesso em: 21.11.2024

*Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.


[1] Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.

[2] E por “Partido Fardado”, refiro-me não aos militares em si mesmos, mas à organização de militares de alta patente para interferir nos rumos políticos do país.

[3] BENJAMIN, WALTER. Teses sobre o conceito de História. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2015/10/02/walter-benjamin-teses-sobre-o-conceito-de-historia/. Acesso em: 21.11.2024

[4] Ibidem.