Arquivos Diários : janeiro 4th, 2022

Me deixa te amar?

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Meu corpo pede uma escrita de gritos que possa dar conta de alguma retrospectiva de 2021, mas “fracassar é condição de quem escreve”, já disse a jornalista Eliane Brum em Banzeiro ÒKÒTÒ, uma viagem à Amazônia centro do mundo, livro lançado nesse último ano e que é mais do que a leitura do testemunho histórico, político e social de como a humanidade está colocando fim a ela mesma, com direito a palpitações bem mais interessantes e vertiginosas do que as provocadas pela comédia – catástrofe recentemente lançada, “não olhe para cima”, de Adam Mckay.

Ao escolher se mudar para a Amazônia, Eliane a coloca no centro do mundo, fundindo povos e florestas, vidas humanes e não humanes. É seu corpo inteiro, em movimento, que menstrua, tem diarreia, deseja, perde, dói e busca uma nova geografia de sentidos de vida que atravessam, sem dó, nosso corpo de leitor, esburacado com sua escrita. Não é possível sair igual e sem cicatrizes da imersão no seu banzeiro coletivo e singular.

            Me reconheço nessa escrita visceral, no não lugar, na insuficiência e, sobretudo, na violência que nossos corpos brancos, de classe média e de mulheres provocam e sofrem em um mundo que foi capaz de criar um 2021 como o que vivemos.

Começamos o ano com as cenas absurdas de famílias correndo para buscar oxigênio para seus amores não morrerem asfixiados nos corredores abarrotados dos hospitais de Manaus e terminamos com idosos, na Bahia, se agarrando em postes, com água até o pescoço, enquanto sua vida e história submergia na água enlameada do descaso.

            De janeiro a janeiro, em nosso país, faltou ar para amar até o mundo acabar. Mais de 400 mil pessoas que amavam e eram amadas por alguém morreram de COVID, juntando-se às 200 mil que haviam morrido em 2020.

            Os que não morreram asfixiados ou afogados, também perderam o ar e a vontade de amar, tentando explicar a colegas de trabalho, vizinhos e parentes, que hidroxicloroquina curando COVID era um delírio coletivo capitaneado por alguém capaz de defender torturador e produzir escárnio da dor. Perdemos o ar quando vimos que a carta da Pfizer não teve resposta do governo e que a dose de vacina da Covaxin seria quatro vezes mais cara que a da Fiocruz. Asfixiamo-nos com a notícia de que uma operadora de saúde formada por uma rede imensa de hospitais usava cobaias humanas e ameaçava, de demissão, médicos que não prescreviam o famigerado kit covid. Não era “só” ignorância, desespero e negacionismo. Sempre foi, também, ganância. 

            Mas nem a palavra dos melhores cientistas do Brasil e do mundo, nem uma CPI que terminaria apontando a prática de 09 crimes pelo Presidente e seus filhos, nem a Amazônia em chamas, nem as palavras sádicas diariamente cuspidas pelo governo do horror, pareciam afetar uma massa pronta para mitificar o grotesco ético e estético em que nos tornamos nos últimos anos.  

             Em março e abril de 2021, quando atingimos a marca de 3000 vidas perdidas por dia, já estávamos exaustos. Sem virada, o ano “novo” trocou o desespero de 2020 pela sensação devastadora de um profundo cansaço físico e mental.

            O ano só começava e ainda teríamos que aguentar desfiles militares com tanques de guerra fora de época, aglomerações verde/amarelas lotando as ruas do Brasil pelo fim do Supremo Tribunal Federal e por intervenção militar. O povo bradando contra o povo e contra as instituições democráticas pediu a volta do voto em papel porque tinha lido, lá no zap que a amiga da igreja mandou, que a urna eletrônica não era confiável. 

            O ano de 2021 não passou. Se arrastou. Se em 2020 a frase mais ouvida nas reuniões de trabalho foi: “seu áudio está desligado”, em 2021, o “estou muito cansado (a)” ganhou disparadamente.

            De fato, o desamor e o desamar, para quem sabe que amor é ato, exaure.

Mas os brasileiros, segundo pesquisa divulgada pelo psicanalista Christian Dunker, na sua coluna do dia 24 de dezembro do TILT Uol, não escolheram a palavra “exaustão” para marcar o fatídico ano de 2021[1]. Tampouco “depressão” ou “melancolia”.

Escolheram a palavra esperança que, no Brasil, graças a Paulo Freire, é verbo. 

Por algum milagre, macumba ou encantaria, ao que parece, os desenredos de 2021 nos enlutaram sem nos (des)lutar.

Como ensina Freud, no seu famoso texto de 1917, “luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.”. Já, a “melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e da autoestima”.[2] 

Vladimir Safatle, no rastro de Freud, Foucault e outros, reflete que uma das funções do afeto da melancolia é paralisar a capacidade de ação do sujeito. O poder não age coagindo as pessoas diretamente e por muito tempo, porque a coerção externa precisa se fazer 24 horas por dia para ter efeito. A subjugação dos sujeitos funciona, então, na internalização de um poder disciplinar, ou de uma experiência melancólica, que seria a crença da impotência da nossa força. “Não tenho mais nada a fazer, é melhor eu voltar aos meus afazeres e esquecer completamente a minha dimensão social”, exemplifica ele em uma de suas entrevistas.[3]

Mas aqui, e ali, há movimento.

Capengas, mancos e arrastados. Desiludidos, despedaçados, exauridos ou insones, vivemos o luto e as perdas do que tínhamos que viver, coletiva e singularmente. Choramos, gritamos, fizemos escrita-navalha, corpo, cicatriz, flertamos com a tal melancolia, e até desamamos, mas não paralisamos.

Eliane Brum moveu seu corpo para o centro do mundo para desbranquecer e virar rio. Daí fez palavra do corpo e nos carregou para junto dela.

Meu amigo Daniel Omar Pérez, filósofo kantiano, psicanalista lacaniano, professor da UNICAMP com pós dourado na Bonn Universitat (Alemanha), deslocou seu corpo dos muros acadêmicos e do currículo extraordinário. “Não sou um intelectual”, ele me disse esse ano, “sou um militante”.

Falemos da transmissão, disseram os psicanalistas. Sim, a missão é trans. Transdiciplinar, transgênero, transcendental, trans(borda)nte, transparente, transversal, transgressora e transformadora. As redes sociais se inundaram de (trans)missões em forma de aulas e textos. Chorei nas aulas poéticas da psicanalista Ana Laura Prates. O saber, a luta e a vida atravessaram litorais e se movimentaram em palavras.

Também as redes sociais se inundaram com fotos de Kim e Tiê, as lindas gêmeas das “duas mães” artistas, que se somam a outras mulheres apaixonadas que semeiam crianças inteligentes no mundo, como Sofia, que opina sobre livros, e ensina, no ato de cor-agem do seu dia a dia, que “amar alguém só pode fazer bem”.   

   Aqui e ali, nos aquilombamos na “rexistência” possível: nos coletivos como o Transforma MP, nas redes de enfrentamento ao racismo e de valorização da diversidade do MPSP, nos grupos que se aconchegam em escuta, música e poesia. Por vezes, nestes quilombos, arrastei. Por vezes, fui arrastada. E assim fomos. Fomos até onde chegamos.  

Não fugimos do luto que nos coube em 2021. Enlutamos e lutamos para aprender sobre o absurdo que é pedir licença para amar alguém. A única impossibilidade que nos é dada nesta vida é a de adoecer na paralisia da espera, na imobilidade e no silêncio do corpo-palavra, no ressentimento ou na frustração de uma desilusão. Tudo isso também está nas entrelinhas do artigo 3º da Constituição Federal.

Apropriados da nossa capacidade de amar em suas múltiplas e singulares formas, sonharemos. Imaginaremos.  Entregaremos nossos corpos, palavras e lutas a quem suportar a aventura vertiginosa, por vezes exaustiva e dolorosa, da entrega ao compromisso de uma vida desejante e de movimento, que proclama a redução das desigualdades, a luta contra as discriminações e a solidariedade.

 Banzeiro, explica Eliane Brum, “é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É um lugar de perigo entre o onde se veio e o aonde se quer chegar”.

Estamos prontos, Eliane, para o banzeiro do entre mundo. Mesmo sendo tão perigoso ser feliz, seguiremos, em 2022, com nossos corpos dançantes, cantantes e escrevedores no movimento amoroso do rio que flui em nós.

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP


[1] https://www.uol.com.br/tilt/colunas/blog-do-dunker/2021/12/24/esperanca-a-palavra-do-ano.htm

[2] Vide Luto e Melancolia, na tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras (volume 12 das Obras completas de Sigmund Freud)

[3] https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/556554-o-brasil-na-era-dos-esgotamentos-da-imaginacao-politica-uma-nacao-de-zumbis-que-tem-na-melancolia-seu-modo-de-vida-entrevista-especial-com-vladimir-safatle

Os abusos judiciais estão cada vez piores: os casos da Boate Kiss e de Ciro Gomes

Por Gustavo Costa no Conjur

Engels e Kautsky, na obra “O socialismo jurídico”, expuseram meticulosamente a impossibilidade de emancipação da população trabalhadora, na sociedade capitalista, por meio do Direito. Para os grandes teóricos, o Direito, fruto da forma social da qual faz parte, só pode mantê-la tal como é — para isso existe —, e jamais poderá contrariar seus principais interesses. O Direito é, em última análise, a forma jurídica da sociedade capitalista.

Ilusões no Direito para a busca de uma sociedade justa e igualitária devem ser prontamente abandonadas. Mas isso não nos deve impedir de denunciar, da forma que for possível, as violações da lei pelos poderes que, ao menos — na verdade só — abstratamente, teriam a tarefa de defender o regime democrático e o respeito à lei. O sistema de Justiça, que tem o honroso papel de fazer cumprir a Constituição, vem falhando miseravelmente no Brasil, corroendo a já por demais combalida democracia.

Da prisão dos réus da Boate Kiss
A acusação contra os réus no conhecido processo criminal, por centenas de homicídios (242) por dolo eventual, e por outras centenas (636) por tentativa de homicídio com dolo eventual (coisa que sequer existe), é juridicamente impossível. Qualquer professor de Direito Penal (nem é preciso fazer citação de nenhum deles) ensina que dolo eventual é uma “espécie de dolo”, ou seja, a consciência e vontade de atingir determinado resultado típico.

Na modalidade eventual, o agente “conforma-se com o resultado” como algo possível e, mesmo assim, age. Diversamente do comportamento culposo, no qual o resultado é previsível, mas não quisto, no dolo eventual o agente quer, ainda que subsidiariamente, o resultado. Um dos principais exemplos dados nas universidades é o do atirador que dispara (a depender do tipo e quantidade de projéteis) contra um grupo de pessoas. Ele pode atingir alguma delas ou não. Mas é óbvio que quem atira contra várias pessoas age com a finalidade de atingir o resultado morte, ainda que ela possa não acontecer — para o agente é indiferente.

No caso da boate, não se pode concluir que os réus, ao não tomarem os devidos cuidados com a produção do show — o que fazia do resultado algo previsível —, de qualquer forma que se possa pensar, queriam o resultado morte ou aceitaram sua ocorrência. E o que é pior: que “tentaram matar” os sobreviventes. No exemplo do atirador, ao atingir uma das pessoas do grupo, ele responderia por um homicídio com dolo eventual do falecido e pela tentativa dos outros 20 que estavam no grupo. Não faz sentido.

Mas ilegalidade tão grave — ou pior — foi a decisão do ministro presidente do Supremo Tribunal Federal de determinar a prisão imediata dos réus. Não porque sua prisão provisória é necessária, mas para a (totalmente inconstitucional) execução provisória da pena (artigo 492, I, “e”, CPP). E pior ainda: pela “gravidade” e “reprovabilidade” dos crimes e credibilidade das instituições. Tudo que já foi rechaçado pelo Plenário da corte (também não é preciso citar os acórdãos; são todos de conhecimento público). Como pode o presidente do tribunal decidir monocraticamente contra jurisprudência pacífica do Plenário, e com evidente supressão de instância?

Dessa forma, é cristalino que não são só alguns integrantes do Poder Executivo que representam “risco à democracia”. Os que se dizem seus defensores deveriam se preocupar com o avanço do Poder Judiciário rumo a um estado autoritário.

Da busca e apreensão contra o ex-governador Ciro Gomes
O conhecido Ciro Gomes, seu irmão (um senador da República) e outros investigados foram alvo do cumprimento, pela Polícia Federal, de mandados de busca domiciliar por fatos ocorridos há mais de sete anos, em razão de suposta propina recebida em decorrência do processo de licitação para a construção da Arena Castelão, utilizada na Copa do Mundo do Brasil.

Sem adentrar o mérito do caso, a primeira coisa que salta aos olhos é uma medida invasiva dessa ordem tanto tempo após o suposto fato. O mandado de busca domiciliar (como qualquer medida cautelar, excepcional) só pode ser utilizado quando não houver outra forma de se buscar as provas de crime (pelo princípio da inviolabilidade de domicílio).

Pior: a prova que se tem contra os investigados é (ora vejam só) a palavra de delator premiado. É dizer, uma pessoa qualquer diz que esse ou aquele praticou um crime e está autorizada a entrada forçada, pelo Estado, em domicílio particular. É algo que esvazia o princípio constitucional, só passível de afastamento, segundo a Constituição, pela ocorrência de fatos graves como flagrante delito, socorro e desastre.

Ainda pretendo examinar os fundamentos da longa decisão, em data próxima.

Passou da hora de os autointitulados defensores da democracia começarem a exigir, de forma clara e veemente, a abolição dessa aberração jurídica chamada “delação premiada”. Pode ela voltar-se contra qualquer um, a qualquer momento. É um poderosíssimo instrumento de perseguição política.

E muitos aplaudem tais abusos judiciais quando praticados contra inimigos. Toda e qualquer ilegalidade praticada pelo Poder Judiciário deve ser combatida, ainda que a vítima seja pessoa de quem não gostamos. Os direitos e as garantias fundamentais não valem só para quem temos simpatia. É preciso denunciar os abusos judiciais que vêm sendo praticados contra aliados de Jair Bolsonaro (quem me conhece sabe o que eu penso da pessoa), como nos casos de Daniel Silveira e Roberto Jefferson.

Em 2017, fiz uma breve reflexão sobre abusos judiciais e jamais imaginei que, quatro anos depois, veria abusos ainda piores. Pelo andar da carruagem, a democracia vai mesmo para o ralo. O Direito — como o conhecemos — está em profunda decomposição. Quando ilegalidades se tornam tão costumeiras, é difícil imaginar que as coisas podem melhorar de forma pacífica.

Bem que Engels e Kautsky disseram: o fim do Direito é sua completa superação. É a sua morte como forma jurídica de uma sociedade egoísta, individualista, excludente e insensível.

O trágico é que muitos sofrem as graves consequências dessa morte lenta e gradual.

Gustavo Roberto Costa é promotor de Justiça em São Paulo, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador — Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia — ABJD.