Arquivos Diários : março 16th, 2021

Coletivos lançam nota reafirmando repúdio às ilegalidades da Lava jato

 

Os coletivos Transforma MP, ABJD, APD AJD e Coletivo de Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia lançaram uma nota de repúdio à declaração pública por parte de membros do Ministério Público de apoio à operação Lava Jato e ao ex-juiz Sérgio Moro. 

Os processos da operação Lava Jato relativos ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estão em julgamento no Supremo Tribunal Federal, para analisar a competência e parcialidade de Sérgio Moro. 

De acordo com as entidades, as práticas ilegais efetuadas pela Lava Jato não podem ser confundidas com combate à corrupção no país, e que para combater qualquer tipo de irregularidades deve-se respeitar a Constituição Federal de 1988, atendendo aos interesses de toda a sociedade e dos valores que fundamentam nossa República”. 

NOTA PÚBLICA

Associação de Juízes para a Democracia – AJD, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD, Associação Advogadas e Advogados Públicas para a Democracia – APD, Coletivo Defensoras e Defensores Públicos pela Democracia e  coletivo Transforma MP vêm a público expressar sua divergência em relação ao apoio de membros do Ministério Público à atuação no âmbito da operação Lava Jato, irresignados com as críticas feitas por ministros integrantes da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal durante o julgamento do HC n° 164.493.

Declarações públicas em favor de ações ilegais, de condutas desviantes e antirrepublicanas durante a condução de uma investigação criminal, se revelam como uma resposta corporativa, incompatível com o Estado Democrático de Direito.

A prática do devido processo legal constitucional, uma conquista da democracia, não pode, em qualquer hipótese, ser afastada em nome de um suposto combate à corrupção. A propósito, sob a égide dessa mesma bandeira e com métodos similares, já se alicerçaram ditaduras civis e militares mundo afora e no nosso país, inclusive.

Não se combate crimes cometendo crimes. A máxima repetida pelo ministro Gilmar Mendes é a melhor lição que se pode tirar de toda essa história. O Direito não deve servir de motor da prática de ilegalidades. Os instrumentos do sistema de Justiça não podem ser manipulados para perseguir cidadãs e cidadãos. O processo penal não pode ser utilizado como veículo para disputa política, de acordo com as preferências ideológicas de agentes públicos.

São de tal modo alarmantes e vergonhosas as revelações de práticas de fraudes dos membros do Ministério Público e do juiz durante a condução da operação Lava Jato, que o reconhecimento das nulidades pelo STF deveria ter ocorrido há mais tempo, antes, por exemplo, que pudesse comprometer um pleito eleitoral de dimensão nacional, como ocorreu em 2018.

Ao defendermos o combate efetivo a todas as formas de corrupção, o lado em que nos colocamos é o da Constituição Federal, da defesa do interesse de toda a sociedade e dos valores que fundamentam nossa República.

Universidade pública: lugar de democracia e liberdade

 

Tempos de ameaças à democracia, tempos de ataques à Constituição

Por Cristiano Paixão* no Jota 

Em vários textos publicados neste espaço, temos tratado do fenômeno de desconstitucionalização vivido pelo Brasil nos últimos tempos. O processo teve início em 2014, e foi assumindo diversas formas, por meio da participação de atores políticos integrantes dos três poderes do Estado. Do ataque ao núcleo de proteção dos direitos sociais até a desmontagem interna de estruturas voltadas à concretização do texto constitucional em pontos cruciais como tutela do meio ambiente, combate ao racismo e preservação do patrimônio histórico (https://jornalggn.com.br/artigos/destruindo-por-dentro-praticas-desconstituintes-do-nosso-tempo-por-cristiano-paixao/0), passando pela utilização oportunista do contexto de pandemia para radicalizar o processo de precarização dos direitos sociais (https://jornalggn.com.br/artigos/covid-19-e-o-oportunismo-desconstituinte-por-cristiano-paixao/), verifica-se um conjunto de práticas desconstituintes que, interpretadas em seu conjunto, acarretam o esvaziamento significativo do texto promulgado em outubro de 1988 (https://jornalggn.com.br/artigos/captura-da-constituicao-e-manobras-desconstituintes-cronica-do-brasil-contemporaneo-por-cristiano-paixao/).

Nos primeiros meses de 2021, nova ameaça desconstituinte se faz presente. O alvo agora são as universidades públicas. Alguns atos praticados por órgãos de controle do poder executivo federal ativaram um sinal de alerta na comunidade acadêmica. Professores da Universidade Federal de Pelotas são investigados em virtude de manifestações acerca da omissão governamental em relação à pandemia; professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco é notificada a se pronunciar por conta de opiniões sobre o governo expressas de modo público; um ofício do Ministério da Educação recomenda a vigilância sobre discursos produzidos por integrantes da comunidade universitária.

No dia de hoje, a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, por intermédio de seu órgão de maior representatividade, aprovou uma Declaração sobre a liberdade de ensino. Em um texto articulado e coerente, com o uso adequado dos conceitos e categorias que devem nortear qualquer manifestação oficial de órgãos vinculados ao poder público, a Declaração deixa claro que “a liberdade de ensino não pode ser limitada, condicionada ou abolida por atos de Ministros de Estado e de outros agentes públicos”. A Declaração prossegue afirmando, com propriedade, que eventuais atos praticados contra a liberdade de ensino são inválidos, ofensivos à Constituição e não devem ser obedecidos, considerando as garantias constitucionais da autonomia universitária, da liberdade de cátedra e do direito ao uso da palavra em perspectiva crítica, que é, aliás, inerente à própria razão de ser da universidade (https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/professores-da-unb-prometem-ignorar-atos-do-governo-contra-liberdade-de-ensino.html).

Esse tipo de ataque possui evidente natureza desconstituinte. Como registram as fontes históricas, as universidades e seus atores sociais (alunos, pesquisadores, professores) foram alvos diretos da ditadura militar que se instalou no Brasil entre 1964 e 1985. Integrantes da comunidade acadêmica foram perseguidos, demitidos, torturados e mortos. A sede da UNE no Rio de Janeiro foi incendiada no mesmo dia em que o golpe militar foi desencadeado. Estudantes e professores, para resistir, tiveram que ingressar na clandestinidade. O Decreto-Lei 477 (chamado de “AI-5 das universidades”) aprofundou o arbítrio e a violência praticados contra a comunidade acadêmica.

A UnB foi perseguida fortemente pela ditadura, desde o início do regime dos generais. Em 9 de abril de 1964, mesmo dia em que foi baixado o primeiro dos atos institucionais, Anísio Teixeira, então Reitor, foi expulso, por tropas do Exército e da Polícia Militar de Minas Gerais, de seu gabinete na Universidade. Estava trabalhando normalmente, para manter vivo o projeto humanista e inovador que havia construído em conjunto com Darcy Ribeiro. 12 professores foram presos nesse mesmo dia. O Conselho Diretor foi destituído. Essa seria a primeira de muitas intervenções do regime na UnB.

Como ficou claro pelo Relatório apresentado pela Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, houve um trabalho sistemático, ao longo de todo o regime militar, para sufocar e reprimir a liberdade que era constantemente exigida por alunos e professores. Um capitão de mar e guerra da Marinha foi nomeado Reitor. Uma Assessoria de Segurança e Informações funcionava na própria Reitoria. Delações, infiltrações e práticas abusivas pela comunidade de informações eram usuais (http://www.comissaoverdade.unb.br/relatorio).

É importante relembrar esses fatos para ressaltar a dimensão libertária, emancipatória e democrática do preceito constitucional que garante a autonomia universitária. Nunca é demasiado lembrar que a Constituição de 1988 representa um ponto de ruptura em relação à ordem jurídica preexistente. Não é por acaso que a tortura (amplamente praticada pelo regime, chegando a atingir dezenas de milhares de vítimas) é considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Além disso, o art. 8º do Ato das Disposições Transitórias estipula um programa de reparação a todos aqueles que foram atingidos por atos de exceção praticados ao longo do regime ditatorial.

Com isso queremos ressaltar que a vigência da Constituição de 1988 significou, para a comunidade universitária, o retorno à legalidade, à democracia e ao Estado de Direito. E que atos estatais, independentemente de sua origem, que não levem em consideração esses postulados, são nulos de pleno direito. É evidente, nesse contexto, que a mobilização contra as universidades públicas é mais uma etapa das pressões desconstituintes que se reproduzem na sociedade atual, a partir de setores do próprio Estado.

Em resposta a essas pressões, é fundamental resgatar a Declaração hoje aprovada pelo Conselho da Faculdade de Direito da UnB, que, em suas linhas conclusivas, reafirma seu compromisso em respeitar e garantir a liberdade de ensino, “sem ceder um único milímetro a quaisquer pressões de natureza despótica e inconstitucional”. Isso porque, em suas próprias palavras, a Faculdade leva a Constituição a sério, e recomenda a todos que tomem a mesma atitude.

Ao assim se manifestar, a Faculdade de Direito mantém sua postura em defesa da democracia e relembra aos atores políticos do presente sobre a trajetória de todas e todos que lutaram contra o arbítrio e a violência de um regime tirânico. Honestino Guimarães, Iara dos Santos Delgado e Paulo de Tarso Celestino foram alunos da UnB. São desaparecidos políticos, vítimas da ditadura. A geração deles lutou por liberdade e democracia. Que sejam lembrados e homenageados, e que a universidade pública continue a zelar pela observância dos princípios e regras que estruturam o Estado Democrático de Direito.

*Cristiano Paixão é Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Direito, História e Literatura: tempos e linguagens” (CNPq/UnB). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.