Arquivos Diários : outubro 9th, 2020

Marcas dos Sobreviventes do Trabalho Infantil

Por Leomar Daroncho no GGN

Embora haja certa fartura de informações, a questão cultural e a pobreza seguem sendo fatores que levam crianças e adolescentes a serem obrigados a trabalhar.

O Dia da Criança lembra a rotina de brincadeiras da infância de parte dos brasileiros. Essa não é, porém, a marca dos lares pobres que enfrentam a guerra da sobrevivência.

Marielma de Jesus Sampaio, uma menina de 11 anos, foi espancada, torturada e morta pelo casal para quem trabalhava como babá, em Belém do Pará.  O laudo médico apontou fratura em costelas, cortes e perfuração em rins e pulmões, além de indícios de violência sexual. Os patrões, Ronivaldo Guimarães Furtado e Roberta Sandrelli Rolim, foram condenados pelo crime, em 2006.

No início da história teria havido um acordo “para o bem” de menina, no interior do estado. Marielma cuidaria do bebê do casal, na capital, em troca de  estudo, roupa e comida. Sua pobre família receberia uma cesta básica mensal.

A reportagem da BBC que narra a tragédia também conta o caso de uma empresária presa em 2018 acusada de toturar uma menina de 12 anos que trabalhava como empregada doméstica, e que a patroa, Sílvia Calabresi, dizia tratar como filha adotiva.[1] O serviço doméstico está na lista TIP das Piores formas de Trabalho Infantil (Decreto 6.481 / 2018).

Na cidade gaúcha de São Leopoldo, em 2014, um adolescente de 13 anos que operava uma betoneira numa obra morreu eletrocutado.[2] A construção civil também está na lista TIP.

No final de 2018, a Fiscalização do Trabalho descreveu o lixão de Porto Velho, em Rondônia, como cenário de horror psicológico. Crianças trabalhavam e viviam “no mesmo nível de cães e urubus”.[3] Pelos riscos biológicos e contaminantes, o trabalho com mateirial reciclável nos lixões está na Lista TIP.

Publicação do Tibunal Superior do Trabalho (TST) apontou dados do IBGE de que 5,5 milhões de brasileiros, de 5 e 17 anos, trabalham quando deveriam estar na escola. Desses, 174,8 mil crianças de 10 a 14 anos estavam no trabalho doméstico. Um indicador muito preocupante é o de que entre as crianças em trabalho precoce 90% apresentam mau desempenho ou abandonam a escola.[4]

Para a ministra do TST, Kátia Magalhães Arruda, as famílias e a sociedade não consideram a escola como uma alternativa, dando força ao mito da necessidade de ocupar o tempo ocioso das crianças. Segundo a ministra, o trabalho não as deixará mais protegidas da violência das ruas: “Boa parte da sociedade é conivente ou omissa com essas práticas, além das próprias famílias – que, muitas vezes, estimulam seus filhos a serem explorados, algumas por necessidade e vulnerabilidade social, outras pela crença de que ‘é melhor trabalhar do que roubar’”. [5]

Nas rotinas de fiscalização do Ministério Público do Trabalho (MPT) e dos Auditores Fiscais do Trabalho ainda é comum encontrar crianças trabalhando em Carvoarias.[6] No interior de Pernambuco, em 2019, foi flagrada criança de 3 anos raspando mandioca numa Casa de Farinha.[7]

Apesar da subnotificação, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), com base em dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, informa que entre 2007 e 2018 o Brasil teve 43.777 acidentes de trabalho com crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos, sendo registradas 261 mortes.[8]

Embora haja certa fartura de informações, a questão cultural e a pobreza seguem sendo fatores que levam crianças e adolescentes a serem obrigados a trabalhar. A ignorância justifica, em alguns casos, a defesa desse triste caminho, reservado às crianças mais pobres. Não será aprofundado nesse espaço, mas existem estruturas, instrumentos e recursos orçamentários para o enfrentamento do problema. O MPT trabalha na questão com um Projeto que se desenvolve em 3 grandes eixos: educação, políticas públicas (programas de renda) e aprendizagem (profissionalização).[9]

Crianças que ganham menos para fazer o trabalho de adultos são exploradas e estão sujeitas a acidentes que podem deixar sequelas graves como cegueira, queimaduras e amputações. Também não serão discutidos aqui, mas esses acidentes e o abandono das crianças também podem ser traduzidos em custos para a sociedade.

Dada essa realidade, importa pouco, no Dia da Criança, justificar os dispositivos constitucionais (art. 227) que asseguram a Proteção Integral à Criança, proibindo o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e qualquer trabalho a menores de 16,  salvo na condição de aprendiz, a partir de 14, desde que garantido o acesso à escola.

Também importa pouco justificar a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil e a ação imediata para sua eliminação.  Trata-se da primeira norma internacional do trabalho a conquistar ratificação de todos os 187 países da OIT. O último a aderir, em agosto de 2020, foi o Reino de Tonga.

Assim, nem deveria haver polêmicas quando se afirma que manifestações que ameacem os parâmetros e idades mínimas contraria a Constituição e compromissos assumidos pelo Brasil.  A insensata defesa do trabalho de crianças atenta contra o consenso civilizatório da humanidade, devendo ser reprimido, pois expõe o país a vexame e a represálias da comunidade internacional.

Noutro segmento que alimenta a fantasia de crianças e de famílias pobres, o futebol, os números indicam o rigorosíssimo funil da guerra pela sobrevivência. É de cerca de 0,03% a chance de sucesso na seleção de meninos que se submetem às peneiras, primeiro filtro na admissão à base dos clubes profissionais. Estudo do Professor Luiz Henrique Toledo[10] indica que, no segundo filtro, os efetivamente profissionalizados e aproveitados em clubes grandes apenas 0,2% vêm da peneira. Ou seja, é infinitamente reduzido o número dos sobreviventes nessa guerra (aproximadamente 1 para cada 1,5 milhão de meninos sonhadores), ainda que muitos se submetam a explorações e abusos extremados, como foi o caso dos  vivos nos contêineres do Ninho do Urubu – Flamengo, em 2019.[11]

Apesar disso tudo, incorporou-se ao imaginário dos brasileiros a narrativa de casos, reais ou fantasiosos, com o enredo de pessoas de bem que teriam prosperado, trabalhando desde criança em atividades pesadas e com pouco estudo. O senso comum repete – convictamente – a narrativa de que essa seria uma opção válida para as crianças pobres, em geral acrescentando que fora disso sobraria a perdição da ociosidade, dos vícios, da exploração sexual e da criminalidade. Em alguns casos, sobreviventes marcados para sempre pela exploração do trabalho infantil reproduzem o discurso.

História com esses contornos, no interior de Goiás, ganhou as redes sociais no episódio de um adulto que passou imagem positiva do trabalho de um menino de 10 anos. O aspecto mais marcante do caso, no viés que dominou as manifestações, foi deixado de lado. O comerciante, que só completou o ensino fundamental num programa de alfatização de adultos, identificou-se com a fibra e a saga do menino. Ele também é sobrevivente de uma infância pobre e sofrida. Trabalhando no campo e como soldador desde muito cedo, carrega marcas de uma doença crônica que possivelmente está relacionada à exposição aos agrotóxicos e aos gases liberados na solda de metais. Estudos relacionam a exposição aos agrotóxicos a diversas doenças crônicas, inclusive Câncer, e os vapores tóxicos da solda com danos em rins, pulmões e no sistema nervoso central; além de úlceras estomacais, doenças respiratórias e Câncer de pulmão.

O mais interessante é que o adulto reconhece que teria tido uma vida de menores dificuldades se tivesse  tido a oportunidade de estudar quando criança. Por isso, prioriza o estudo na vida dos próprios filhos.

O Manual do CNMP de Atuação do Ministério Público na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil considera “incontestável que o labor precoce de crianças e adolescentes interfere direta e drasticamente em todas as dimensões do seu desenvolvimento (…) afeta a saúde e o desenvolvimento físico-biológico, uma vez que os expõe a riscos de lesões, deformidades físicas e doenças, muitas vezes superiores às possibilidades de defesa de seus corpos”.[12]

Portanto, há obrigação institucional de atuação nesses casos, conforme a Constituição. Felizmente, o adulto do interior goiano teve a oportunidade de compreender a situação, corrigindo a conduta, e o Estado tem os instrumentos para agir e proteger o menino, para que a trágica história de danos e destruição do futuro não se repita.

Quanto ao trabalho de crianças nas ruas, a situação degradante e perigosa que cerca as atividades de malabares, vendedores ambulantes, flanelinhas, engraxates e lavadores de parabrisas, também está entre as Piores Formas de Trabalho Infantil.

O Decreto 6.481, de 2008, relaciona como prováveis riscos da atividade a exposição à violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas; exposição à radiação solar, chuva e frio; acidentes de trânsito; atropelamento. Indica como prováveis repercussões na saúde das crinaças: ferimentos e comprometimento do desenvolvimento afetivo; dependência química; doenças sexualmente transmissíveis; atividade sexual precoce; gravidez indesejada; queimaduras na pele; envelhecimento precoce; câncer de pele; desidratação; doenças respiratórias; hipertermia; traumatismos; e ferimentos.

Pesquisa da Procuradora do Trabalho Elisiane dos Santos indicou que os números oficiais do setor podem estar muito defasados, pois o levantamento do IBGE é feito em domicílio. Os números reais do contingente de crianças nessas atividades tendem a ser omitidos.[13]

Nos cursos de gestão é comum referir o caso da análise das marcas de tiros na fuselagem dos aviões que voltavam das batalhas, durante a Segunda Guerra Mundial. Em análise simplista, a demarcação das regiões mais atingidas das aeronaves indicaria posições que necessitariam de reforço, sem incrementar o peso total da aeronave.

O Estatístico Abraham Wald, a quem se atribui a Teoria do Viés de Sobrevivência (Survival Bias), alertou que os dados tratavam apenas dos aviões que conseguiram retornar à base. Assim, recomendou o reforço da blindagem das áreas sem marcas, como a cabine e os motores. Possivelmente os atingidos nessas áreas mais vulneráveis não haviam sobrevivido, e ninguém estava analisando esses casos.

Ocorre erro de análise semelhante quando o senso comum foca os sobreviventes do trabalho infantil como opção válida para os mais pobres. Ao ignorar o contingente dos que ficam pelo caminho, eliminados, sequelados, marginalizados e sem formação educacional que permita romper o círculo vicioso da pobreza, deixa de considerar a informação mais importante, para o ser humano e para uma sociedade que se pretende civilizada.

Não é brincadeira! É responsabilidade da família da sociedade e do Estado desconstruir o raso discurso do senso comum nessa chaga social. Manifestações irrefletidas de desinformados ou ignorantes demandam esclarecimentos e orientação para o ajuste de condutas. Quando o discurso contra a Constituição e a pauta civilizatória resulta do oportunismo ou da má-fé, compete a instituições, como o Ministério Público, agir nessa trincheira que atrasa e envergonha a Nação brasileira.

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.

[1] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36433363>

[2] Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/03/05/menino-de-13-anos-morre-ao-operar-betoneira-em-porto-alegre.htm>

[3] Disponível em: <https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2018/12/07/coleta-de-lixo-e-suspensa-em-porto-velho-apos-denuncias-de-trabalho-infantil-no-lixao-municipal.ghtml>

[4] Disponível em: <http://www.tst.jus.br/web/combatetrabalhoinfantil>

[5] Disponível em: <http://www.tst.jus.br/web/combatetrabalhoinfantil>

[6] Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2014/01/paulistano-usa-carvao-feito-com-trabalho-escravo-e-infantil/>

[7] Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/fiscalizacao-flagra-crianca-de-3-anos-trabalhando-em-casa-de-farinha-em-pernambuco/

[8] Disponível em: <https://fnpeti.org.br/noticias/2019/04/23/mais-de-43-mil-criancas-e-adolescentes-sofreram-acidentes-de-trabalho-nos-ultimos-11-anos-no-pais/>

[9] Disponível em: <https://mpt.mp.br/pgt/areas-de-atuacao/coordinfancia>

[10] Disponível em: <https://www.ludopedio.com.br/v2/content/uploads/115801_Tese_completa.pdf>

[11] Disponível em: <https://brasil.elpais.com/esportes/2020-02-06/investigacao-sobre-incendio-no-ct-do-flamengo-se-arrasta-e-atrasa-denuncia-contra-acusados-pela-tragedia.html>

[12] Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Guia_do_trabalho_infantil_WEB.PDF>

[13] Disponível em: <https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/crianca-que-trabalha-nas-rua-fica-fora-das-estatisticas-do-trabalho-infantil/>

 

 

É nula a decisão que converte de ofício a prisão em flagrante em preventiva, decidiu a 2° turma do STF

 

Artigo de Rômulo Moreira no Empório do Direito 

Em sessão realizada no último dia 06 de outubro, a 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal, em julgamento unânime, concedeu, de ofício, o Habeas Corpus nº. 188.888/MG, de relatoria do Ministro Celso de Mello, firmando-se o entendimento de que “o magistrado competente não pode converter, ex officio, a prisão em flagrante em prisão preventiva no contexto da audiência de custódia, pois essa medida de conversão depende, necessariamente, de representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público.”

Também ficou expressamente consignada, nos termos do voto do relator, e também sem divergências, “a impossibilidade jurídica de o magistrado, mesmo fora do contexto da audiência de custódia, decretar, de ofício, a prisão preventiva de qualquer pessoa submetida a atos de persecução criminal (inquérito policial, procedimento de investigação criminal ou processo judicial), tendo em vista as inovações introduzidas nessa matéria pela recentíssima Lei nº. 13.964/2019, que deu particular destaque ao sistema acusatório adotado pela Constituição, negando ao Juiz competência para a imposição, ex officio, dessa modalidade de privação cautelar da liberdade individual do cidadão.”[1]

Corretíssimo o entendimento da 2ª. Turma da Suprema Corte, desautorizando, inclusive, decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça e de diversos Tribunais de Justiça, pois tais decisões afrontavam flagrantemente o processo penal de modelo acusatório, violando, ademais, os arts. 282, § 2º., e 311, ambos do Código de Processo Penal.

Como se sabe, desde há muito, atividades de natureza persecutória (como é a decretação de ofício de medidas cautelares) não podem estar em mãos do Magistrado, sem que tenha sido para isso demandado e desde que não venha a ser o julgador do caso, “sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor`.”[2]

Assim, mostra-se absolutamente alheia ao princípio acusatório a possibilidade do Juiz penal, ex officio, ainda que já na fase processual (e, com muito mais razão, antes dela), determinar qualquer que seja a medida cautelar, pois assim agindo estará atuando tal qual Jacques Fournier, o velho Juiz inquisidor, o bispo da Diocese de Pamiers, “um dos grandes inquisidores de todos os tempos, um homem temido, sobretudo por causa de suas investidas obsessivas, maníacas e eficazes, contra todo o gênero de suspeitos.” [3]

Há muito também se sabe que o sistema acusatório impõe-se “na maioria dos sistemas processuais, e na prática demonstrou ser muito mais eficaz, tanto do ponto de vista da investigação, como para preservar as garantias processuais.”[4] Neste sistema, ademais, veda-se que o Magistrado “realize as funções da parte acusadora”[5], “que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregada do julgamento”[6].

É verdade que aqui e acolá vê-se sempre alguém defendendo o protagonismo do Juiz no processo penal, muitas vezes a partir da ideia de que se deve buscar uma tal verdade real, legitimadora de toda e qualquer possibilidade de atuação jurisdicional, ainda que meramente persecutória. Neste aspecto, deve-se fazer referência a Muñoz Conde, especialmente quando afirma que “o processo penal em um Estado de Direito não somente deve procurar o equilibrio entre a busca da verdade e a dignidade dos acusados, mas também deve entender a verdade mesma, não como uma verdade absoluta, mas como o dever de apoiar uma condenação somente quando, indubitável e intersubjetivamente, possa se dar como provado o fato. Tudo o mais é puro fascismo e representa a volta aos tempos da Inquisicão, dos quais se supõe termos felizmente saído.”[7]

Mais grave ainda, é quando se busca a verdade material ou substancial, certamente aquela “carente de limites e alcançável a partir de qualquer meio, degenerando-se para um juízo de valor amplamente arbitrário do fato, e resultando inevitavelmente numa concepção autoritária e irracionalista do processo penal.”[8]

Não esqueçamos, afinal, conforme ensina Jacinto Coutinho, que “o discurso sobre a Verdade/verdade é eficaz e seduz as pessoas que buscam nele o arrimo necessário para sua segurança.”[9]

Portanto, em definitivo, não se pode, num proceso acusatório, permitir um agir de ofício por parte do Magistrado, ainda mais para decretar uma prisão provisória de ofício; do contrário, voltaremos aos tempos medievais, onde se condenava a partir de um processo concebido sob os auspícios do princípio inquisitivo, caracterizado, como diz Ferrajoli, por “uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar a verdade”, confiando-se, ingenuamente, “não somente a verdade, como também a tutela do inocente, às presumidas virtudes do poder que julga.”[10]

Destarte, permitir que o Juiz converta de ofício (ou decrete, dá-se o mesmo) a prisão em flagrante em prisão preventiva representa uma séria ruptura com o princípio acusatório, fundante do sistema acusatório, além de comprometer irremediavelmente a imparcialidade que deve nortear a atuação jurisdicional.[11] Evidentemente, e para não confundir imparcialidade com neutralidade, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.”[12]

Veja-se, muito a propósito, e mais uma vez, o que escreveu Aury Lopes Jr.: “A imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor (poderes investigatórios) ou, pior, quando ele assume uma postura inquisitória decretando – de ofício – a prisão preventiva. Assim, ao decretar uma prisão preventiva de ofício, assume o juiz uma postura incompatível com aquela exigida pelo sistema acusatório e, principalmente, com a estética de afastamento que garante a imparcialidade.”[13]

Assim, e para finalizar, a decisão que converte/decreta a prisão em flagrante em prisão preventiva é nula!, conforme agora decidiu a 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal.

 

Notas e Referências

[1] Leia aqui íntegra da ementa, relatório e voto do Ministro Celso de Mellohttp://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC188888acordao.pdf. Acesso em 06 de outubro de 2020.

[2] LOPES JR, Aury. Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74.

[3] LADURIE, E. Le Roy. Montaillon, Cátaros e Católicos numa aldeia Occitana, 1294 à 1324. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 10. Esta obra-prima relata a vida em uma pequena aldeia medieval de camponeses e de pastores, chamada Montaillou, situada em um território hoje pertencente à França, e que foi objeto de um processo inquisitivo “extraordinariamente minucioso e exaustivo”, tornando-se, exatamente por isso, “a aldeia europeia e mesmo mundial mais conhecida de toda a Idade Média!”

[4] BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatório. Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.

[5] SENDRA, Gimeno. Derecho Procesal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.

[6] BARREIROS. José António Barreiros. Processo Penal-1. Coimbra: Almedina, 1981, p. 13.

[7] CONDE, Muñoz. Búsqueda de la Verdad en el Proceso Penal. Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Editorial Trotta, 1998, pp. 44 e 45.

[9] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-26/limite-penal-quando-verdade-processo-penal. Acesso em 26 de junho de 2020.

[10] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 604.

[11] Afinal, como diz Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186).

[12] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 51.

[13] LOPES JR., Aury. Direito Processo Penal. São Paulo: Saraiva: 2014, p. 850.

 

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Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Membro do Coletivo Transforma MP, Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.