Por Sandra Lia Simón, no GGN.
Se você ainda não viu, vá correndo.
Bacurau, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é imperdível!
Para mim, teve um efeito avassalador, porque fui assistir sem saber de nada. Apenas no decorrer da primeira parte do filme, lembrei que sabia de duas coisas: que uma mulher muito importante na cidade morria e que Bacurau sumia do mapa.
Mas isso é apenas a partida de uma estória incrível, que pode ter um paralelo com várias situações reais e atuais.
Obviamente, fiz um paralelo com o Ministério Público. E já vou explicar o porquê.
Daria para dizer que Bacurau é um misto de Black Mirror com Years and years, com toques de Tarantino. Mas não. Bacurau é a essência do cinema brasileiro. Me remeteu à estética de Glauber Rocha. Personagens absolutamente brasileiros. Brasileiros, mesmo. E geniais. No entanto nenhum desses personagens se sobressai, porque a estrela absoluta do filme é Bacurau, cidade como muitas por este Brasil afora, com suas gentes, suas estórias, suas vidas, suas rotinas, seus problemas, suas comemorações, suas alegrias…
Senti isso. Senti o Brasil profundo. Senti a essência do povo brasileiro, que reconhece sua identidade enquanto tal. Tanto que a minha grande gargalhada no filme foi quando dois personagens maus, bastante maus, conversando com uns estrangeiros, também bastante maus, explicavam que, mesmo sendo brasileiros, não tinham nada a ver com aquelas pessoas de Bacurau, pois eram do sul (englobe Sudeste, já que um destes personagens disse ser do Rio de Janeiro), lugar com muito dinheiro, colônias italianas e alemãs, que eles, que explicavam, eram parecidos portanto com os estrangeiros, que os ouviam… hahahahahahahahahahahaha… Mas é muita pretensão, distanciar-se do seu povo e enxergar-se como aquele a quem considera “superior”… e os tais estrangeiros, obviamente, deixaram muito claro, de uma maneira bastante contundente, que não concordavam com essa patética comparação.
No filme, Bacurau começa a ser atacada. Ao perceber, Bacurau prepara sua reação. E que reação!
Daria para dizer que foi uma reação exagerada, que violência não deve ser combatida com violência.
Um detalhe: as pessoas que estavam na mesma sessão que eu, simplesmente deliraram, quando Bacurau respondeu na mesma moeda. Me incluo, aliás, e parece que essa reação tem acontecido em todas as salas de cinema que exibem esse filme.
Pois bem. As gentes de Bacurau foram percebendo, com o passar dos minutos, com o passar das horas, que algo muito grave ia acontecer. Mas muito grave e irreversível. O que poderiam fazer? Como reagir, para evitar que esse “algo muito grave” acontecesse? Como resistir?
A atrocidade (sim… era uma atrocidade) que iam cometer contra Bacurau justificava o uso da violência? Havia outra forma de defesa? Pela maneira como o enredo do filme foi conduzido, não. Não havia outra forma de defesa. A tática utilizada por Bacurau era a única possível.
Então significa que todo mundo que assistiu ao filme e vibrou com a reação de Bacurau entende que a violência, em determinados momentos e situações, se justifica?
Para tentar compreender a reação do público e, em especial a minha, é que faço um paralelo com o Ministério Público.
A Constituição Federal de 1988 deu um papel importantíssimo ao MP, de guardião do regime democrático. Para que pudesse desempenhar esse papel, deu grandes poderes às pessoas que o integram. Mas a Constituição sempre deixou claro que os poderes eram da Instituição e, não, das pessoas. A Constituição determinou, portanto, que a “estrela” deste sistema de controle fosse “O” Ministério Público.
Entretanto, com o decorrer do tempo, algumas pessoas que integram o Ministério Público começaram simplesmente a ignorar o papel que o constituinte reservou para a “estrela” e também começaram a usurpar o seu protagonismo. Essas pessoas tinham a mais absoluta certeza que eram superiores a todas as outras pessoas, inclusive as de outras instituições do Estado. Em decorrência desta pretensa superioridade, decidiram que poderiam flexibilizar garantias processuais clássicas, constitucionais, oriundas de preceitos vindos das Revoluções Americana e Francesa, do século XVIII e que são parte imprescindível dos alicerces do sistema democrático de qualquer país do mundo ocidental.
Outras pessoas, dentro e fora do Ministério Público, perceberam que essa postura poderia colocar em perigo o próprio sistema democrático. Com o passar dos dias, dos meses, dos anos, isso foi ficando cada vez mais claro. Essa percepção se confirmou e está escancarada nos jornais, nas mídias sociais.
Por que, ao longo dos dias, meses e anos, com uma situação estarrecedora se desenvolvendo perante os olhos dessas outras pessoas, não houve resistência? Por que não houve a defesa dos primados que alicerçam o Estado Democrático de Direito?
É isso que Bacurau nos joga na cara: a força de suas gentes, que compreenderam a necessidade de defender o que era delas, o que definia a sua própria existência, a sua identidade. Foi essa constatação que me levou – e creio que leva o público, nas salas de cinema – a vibrar com a reação de Bacurau. Não é a violência utilizada, mas a resposta à agressão. A ação e a constatação da existência de possibilidade e de concretização da defesa, da resistência.
Bacurau utilizou a sua memória para se defender e resistir, memória essa bem concreta, tirada das peças de seu Museu (aliás, referência absolutamente espetacular e pertinente ao Museu Histórico de Canudos).
Para a retomada do verdadeiro Ministério Público, aquele da Constituição Federal, responsável por zelar pelo regime democrático – e não empenhado em destruí-lo, criando um poder paralelo –, sequer é necessário recorrer à memória, pois basta fazer valer a conformação que o criou, que o colocou ao lado da sociedade, ao lado dos excluídos.
Que Bacurau nos inspire, ao Ministério Público, às demais Instituições de Estado, a todos e a todas, a sairmos da apatia, do conformismo e do derrotismo.
Que a garra, a perseverança, a coragem, a inteligência e a força das gentes de Bacurau nos guie no caminho que temos para percorrer.
Que esse percurso se faça a cada dia.
E que quem for, que vá na paz.
Brasília, setembro 2019.
Sandra Lia Simón é Subprocuradora-Geral do Trabalho e diretora e sócia-fundadora do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP.