Por Rômulo de Andrade Moreira, no Empório do Direito.
No dia 28 de dezembro do ano passado, a Presidenta do Supremo Tribunal Federal, Ministra Cármen Lúcia, deferiu medida cautelar para suspender os efeitos de dispositivos do Decreto nº. 9.246/2017 que reduziram o tempo de cumprimento da pena para fins de concessão do chamado indulto de Natal. A liminar foi concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 5874, ajuizada pela Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge.
Após o período de férias forenses, mais exatamente no dia 1º. de fevereiro deste ano, o Ministro Roberto Barroso, relator da referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, manteve a liminar concedida pela Presidenta da Corte, por entender que “o decreto violava o princípio da separação dos Poderes, diante da impossibilidade de o Poder Executivo dispor sobre matéria penal, à efetividade mínima do Direito Penal.”
Agora, no último dia 12 de março, o Ministro Luís Roberto Barroso proferiu nova decisão liminar alterando pontos da decisão anterior, “permitindo a aplicação em parte do decreto nas hipóteses em que não se verifica desvirtuamento na concessão do benefício e mediante os critérios nela fixados.”
A nova “canetada”, rascunhando o decreto presidencial (cujo mérito – se certo ou errado – não está aqui em discussão) e usurpando atribuição privativa do Presidente da República, ampliou o tempo mínimo de cumprimento da pena para obtenção do indulto, além de estabelecer a sua aplicação aos casos em que a condenação não for superior a oito anos, como se uma decisão judicial – meramente monocrática, ainda mais! – pudesse alterar ou aditar um decreto presidencial.
Ademais, manteve suspensos os dispositivos que incluíam no indulto os chamados “crimes do colarinho branco”, o que perdoava penas de multa, o que concedia o benefício aos que tiveram pena de prisão substituída por restritiva de direitos e aos beneficiados pela suspensão condicional do processo.
Outrossim, suspendeu o artigo relativo à possibilidade de indulto na pendência de recurso judicial, olvidando-se, neste aspecto, do princípio da presunção de inocência, aliás, já mandado às favas pelo Supremo Tribunal Federal há tempos, desde o julgamento do Habeas Corpus nº. 126292.
O Ministro destacou “que o elastecimento imotivado do indulto para abranger essas hipóteses viola o princípio da moralidade e descumpre os deveres de proteção do Estado a valores e bens jurídicos constitucionais que dependem da efetividade mínima do sistema penal.” Para ele, “o excesso de leniência em casos que envolvem corrupção privou o direito penal no Brasil de uma de suas principais funções, que é a de prevenção geral. O baixo risco de punição, sobretudo da criminalidade de colarinho branco, funcionou como um incentivo à prática generalizada desses delitos.”
Aliás, antes de mais nada, abaixo à corrupção!
Pois bem.
Como se sabe, no final do ano passado, o Presidente da República, por meio do Decreto nº. 9.246/2017, exercendo competência privativa conferida pelo art. 84, caput, XII da Constituição Federal, por ocasião das festividades comemorativas do Natal, como é da tradição católico-brasileira, concedeu indulto às pessoas condenadas ou submetidas a medida de segurança e comutou penas de pessoas já condenadas.
Desde logo, é importante relembrar – por que não? – que art. 2º. da Constituição Federal estabelece serem Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, consagrando-se “um princípio geral do Direito Constitucional que a Constituição inscreve como um dos princípios fundamentais que ela adota.” Importa aqui, conforme ensinamento de José Afonso da Silva, “não confundir distinção de funções do poder com divisão ou separação de poderes, embora entre ambas haja uma conexão necessária.”
Como anota Afonso da Silva, essa separação de poderes admite, na própria Constituição Federal, determinadas exceções como “a permissão de que Deputados e Senadores exerçam funções de Ministro de Estado, que é agente auxiliar do Presidente da República, Chefe do Executivo, bem como de Secretário de Estado, do Distrito Federal, de Prefeitura de Capital ou de missão diplomática temporária (art. 56); também o é a regra do art. 50 que autoriza a convocação de Ministros de Estado perante o plenário das Casas do Congresso ou de suas comissões, bem como o seu comparecimento espontâneo para expor assunto relevante do seu Ministério. As exceções mais marcantes, contudo, se acham na possibilidade de adoção pelo Presidente da República de medidas provisórias, com força de lei (art. 62), e na autorização de delegação de atribuições legislativas ao Presidente da República (art. 68).”[1]
Ora, o já referido art. 84 da nossa Constituição estabelece expressamente competir privativamente ao Presidente da República, dentre outras atribuições, conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei (inciso XII). Trata-se de uma prerrogativa dada pelo constituinte originário ao chefe do Poder Executivo, sendo uma “tradição mundial o apelo ao Chefe da Nação. Cabe a ele, qualquer que seja o sistema, examinar se é ou não o caso de indulto.” Revela-se, como se vê, um “gesto de magnanimidade do Chefe da Nação”, sendo conhecido “de priscas eras, tendo a Constituição de 1988 incorporado regra que não é novidade no direito pátrio e no comparado.”[2]
É importante destacar, ainda que seja uma obviedade, que, ao conceder o indulto, o Presidente na República não está aplicando pena, tampouco executando-a, muito menos julgando o condenado que, aliás, já foi processado, julgado e, muita vez, condenado definitivamente pelo Poder Judiciário.
O indulto, como já ensinava Basileu Garcia, objetiva “simplesmente – ou a correção de erros ou demasias do rigor da Justiça, ou premiar o sentenciado exemplar, para quem a pena, antes do livramento condicional, já se mostrou manifestamente desnecessária (…) ou acomodar situações que normas penais inadequadas tornaram iniquamente gravosas.”[3]
Constitui o indulto, como bem salientou, por sua vez, Aníbal Bruno, “instrumento de moderação e equilíbrio à atuação do Poder judicante, que, estritamente sujeito aos termos da lei, não pode atender as circunstâncias que singularizam o fato e reclamam para ele tratamento diverso do normal.“[4]
A decisão – monocraticamente tomada pelo Ministro Barroso – foi, evidentemente, equivocada, pois desautorizou um ato constitucionalmente deferido ao Presidente da República, sem que se apontasse, concretamente, qualquer inconstitucionalidade. Referir-se, genericamente, à “violação aos deveres de proteção do Estado quanto à segurança, justiça, probidade administrativa e direitos fundamentais dos cidadãos, e também violação ao princípio da moralidade administrativa por desvio de finalidade”, não basta, ainda mais se tratando da gravidade da matéria objeto da liminar.
Repita-se: não se questiona o conteúdo do decreto, mas a legitimidade privativa do Presidente da República, afinal de contas, Ministro do Supremo Tribunal Federal não é chefe do Poder Executivo, ainda…
Ademais, achar que o sistema jurídico é a panaceia para a corrupção no Brasil é de uma ingenuidade gritante. Pior, ainda mais!, quando assim se pensa e se faz rasgando todas as regras do jogo (democrático, processual e constitucional), em nome do combate aos corruptos, estes que só se multiplicam na mesma razão em que se propagam as mazelas do sistema político e do sistema econômico (especialmente no seu aspecto neoliberal).
O grande, e preocupante problema, como anota Boaventura Santos, é que o Poder Judiciário passou a se assumir “como poder político, colocando-se em confronto com os outros poderes do Estado, em especial com o executivo.” Assim, “o combate à corrupção que, em regra, surge devido a uma certa conjuntura política, leva a que muitos dos conflitos políticos acabem por ser resolvidos em tribunal. É esse o momento em que se verifica uma das faces da judicialização da política. Defendo que há judicialização da política sempre que os tribunais, no desempenho normal das suas funções, afetam de modo significativo as condições da ação política”, atingindo, por conseguinte, “o desempenho dos próprios tribunais, conduzindo à politização do judiciário. (…) Neste contexto, temos mesmo vindo a assistir, em alguns países, a um deslocamento da legitimidade do Estado: do poder executivo e do poder legislativo para o poder judiciário.”[5]
É, sem dúvidas, o caso brasileiro. Óbvio que os arautos da moralidade continuarão bradando a bandeira brasileira, como surtados, em busca da salvação. Vejam, por exemplo, a Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, apoplética, agitando uma bandeira do Brasil, ou o Procurador da República pregando em templos para conseguir assinaturas em favor das medidas anticorrupção propostas pelo Ministério Público Federal – em grande parte inconstitucionais. A questão é: quem quer mesmo a ajuda deles? E eles são mesmo capazes disso ou não passam de “(mais) uns idiotas úteis da mercadoria?”[6]
Obviamente que não pregamos a impunidade. O que repudiamos com veemência – e sempre o faremos – é o uso que hoje se faz do sistema jurídico como estratégia de controle social e político, fato que se iniciou com a Ação Penal nº. 470, o chamado “processo do mensalão”, continuou com a conhecida “Operação Lava-Jato” e culminando com o processo vergonhoso do impeachment, um verdadeiro golpe parlamentar dado às custas, exatamente, de dinheiro oriundo da corrupção.
Ademais, é preciso, destacando-lhes a importância para o Estado Democrático de Direito, realçar a urgente necessidade de democratização do Poder Judiciário e do Ministério Público, este, nos termos do art. 127, da Constituição Federal, defensor da ordem jurídica e do regime democrático, evitando-se que o sistema jurídico torne-se alvo “e, por vezes, refém dos meios de comunicação social.”
De toda maneira, “o alcance e o sentido de uma refundação democrática do judiciário irão, contudo, depender da orientação local das reformas judiciais em cada país e da intensidade da influência exercida pela globalização hegemônica do direito e da justiça.”[7]
Em definitivo, é o fim dos tempos! Como diria Cícero: “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? (…) Ó tempos, ó costumes!”[8]
Rômulo de Andrade Moreira é membro do Transforma MP. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
[1] SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros Editores, 1995, 10ª. edição, páginas 107, 109, 112 e 113.
[2] MARTINS, Ives Gandra, Comentários à Constituição do Brasil, Volume IV, Tomo II, São Paulo: Saraiva, 1997, 1ª. edição, página 315.
[3] GARCIA, Basileu, Instituições de Direito Penal, Volume I, Tomo II, São Paulo: Max Limonad, 1962, 4ª. edição, página 672.
[4] BRUNO, Aníbal, Direito Penal, Parte Geral, Tomo III, Rio de Janeiro: Forense, 1967, 3ª. edição, páginas 204 e 205.
[5] SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma revolução democrática da Justiça, São Paulo: Cortez Editora, 2010: 3ª. edição, páginas 22, 29 e 30.
[6] MARTINS, Rui Cunha, A hora dos cadáveres adiados – Corrupção, expectativa e processo penal, São Paulo: Editora Atlas S.A, 2013, página 77.
[7] SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma revolução democrática da Justiça, São Paulo: Cortez Editora, 2010: 3ª. edição, páginas 30 e 32.
[8] Palavras que Marco Túlio Cícero, filósofo e orador romano, dirigiu ao seu grande rival na disputa pela mais alta posição da Magistratura de Roma, Lúcio Sergio Catilina. Certo dia, Cícero foi ao Senado e disse em frente a Catilina e aos presentes, para que todos ouvissem, o seguinte: “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas. Ó tempos, ó costumes!”