Em 2023, a greve geral contra a reforma da previdência na França foi amplamente noticiada pela mídia nacional. Não é a primeira vez que os franceses usam esse instrumento para protestar contra políticas econômicas e sociais do Governo, sendo comum a paralisação do transporte público, até para evitar que as demais pessoas cheguem ao trabalho. Esse movimento, no entanto, poderia ser esvaziado pelo home office, que se expandiu consideravelmente com a pandemia do novo coronavírus. Surgiu, então, a ideia de bloquear as plataformas e redes digitais indispensáveis ao trabalho e, no dia 09 de fevereiro de 2023, a confederação sindical CGT reivindicou o corte de eletricidade que alimenta três servidores (data centers) em Seine-Saint-Denis, próximo a Paris.
Na França, o direito de greve é assegurado pela Constituição e pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 28), as quais não o definem. Para a jurisprudência da Corte de Cassação, a greve é a cessação coletiva total do trabalho, o que acaba por privar categorias de obreiros desse direito fundamental. Em razão da mecanização e robotização, a cessação do trabalho humano pode não implicar a interrupção da produção empresarial. Um exemplo são as linhas automatizadas do metrô de Paris que circulam sem condutor. Para que ocorra a paralisação do metrô, não basta que os condutores cessem o seu trabalho; é necessária a parada dos veículos a partir do centro de controle que os opera à distância.
Para cumprir as normas constitucionais e internacionais que garantem o direito de greve, é imprescindível ampliar o seu conceito. Emmanuel Dockès, inspirando-se na Corte Europeia de Direitos Humanos, propõe que a cessação do trabalho, na greve, não é a interrupção de toda atividade, mas sim da subordinação; é a cessação coletiva da obediência em apoio às reivindicações dos trabalhadores.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, conferiu grande amplitude ao direito de greve, prevendo que cabe “aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. A greve é reconhecida como um direito em diversos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA (art. 45.c), o Protocolo de San Salvador (art. 8.1.b) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC (art. 8.d).
Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, há três categorias de greves: as trabalhistas, que buscam melhorar as condições laborais ou de vida dos trabalhadores; as sindicais, que veiculam as reivindicações coletivas dos sindicatos; e as que contestam políticas públicas. A mesma Corte adverte que a legalidade é um elemento central para o exercício do direito de greve, de modo que as condições e requisitos para considerá-la lícita não devem ser complexos a ponto de inviabilizá-la.
Todavia, a greve é conceituada legalmente no Brasil como “a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador” (artigo 2º da Lei n. 7.783/89).
O conceito de greve, no entanto, deve ser ampliado para abranger as ações realizadas pelos sindicatos ou pelos trabalhadores para a tutela de seus interesses, inclusive com comportamentos ativos. Nesse contexto, destaca-se a greve digital, que abarca a ação coletiva de trabalhadores que ocupam ou obstruem espaços virtuais utilizados pelo empregador para as suas atividades, práticas comerciais e comunicações, podendo diminuir ou impedir temporariamente a produção empresarial e, inclusive, a prestação laborativa daqueles que não aderiram ao protesto (piquete digital). Essa greve é especialmente eficaz contra empresas que utilizam tecnologias informáticas para a gestão, produção, distribuição, venda e relações com trabalhadores, fornecedores, clientes etc. Um exemplo seriam múltiplas conexões ao site do empregador, para torná-lo mais lento ou impedir o seu acesso durante o período da mobilização, ou o “entupimento” da caixa de e-mails da empresa.
Tais ações podem ter objetivos trabalhistas, sindicais ou de contestação de políticas públicas, na linha da amplitude do direito de greve assegurada pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A necessidade de observância desses tratados e da jurisprudência da Corte Interamericana, bem como do controle de convencionalidade das normas internas -, entre as quais, a Lei de Greve -, foi reafirmada na Recomendação n. 123/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e na Recomendação n. 96/2023, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
A greve foi e tem sido a grande arma dos trabalhadores e dos sindicatos para criar direitos e torná-los mais eficazes, e não apenas para fins trabalhistas, mas para a promoção das classes oprimidas em geral. Por isso, as leis estão sempre tentando capturá-la, e ela sempre buscando fugir. É, portanto, necessária a adoção de um conceito dinâmico, e não anacrônico, o que abrangeria a greve digital.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Há um dito popular segundo o qual “o melhor da festa são os preparativos” .
Espero que os dois prêmios sejam apenas os preparativos da festa a favor de um mundo equilibrado, mais equânime no reconhecimento de direitos, na distribuição da riqueza e menos opressor.
Na sede do país cuja indústria cultural usando os estúdios de Hollywood como um braço firme do imperialismo, uma brisa começa a soprar para o resto do mundo. O recado de ontem à noite foi bastante simbólico e como tal tem um importante significado: o de que a festa da emancipação e da afirmação de direitos por um mundo melhor está sendo preparada!
Acho que é assim que devemos ler os eventos, fiquemos atentos.
Os prêmios concedidos não são o fim da linha, eles podem ser o começo de uma outra História. Cabe a cada um de nós tirar proveito disso para realizar uma grande festa, numa mudança a favor dos que foram e são cotidianamente desumanizados e objetificados.
Amedronta- me a ideia de que a celebração fique refém da festa glamourosa sem que ela se estenda nos espaços culturais e, nos espaços habituais de existência das pessoas como inauguração de uma outra forma de vida.
Amedronta- me que o glamour da festa se encerre no brilho da estatueta.
WMS, por exemplo, para falar da premiação do filme brasileiro, com a elegância que lhe é peculiar, e sendo demonizado por muitos por ser milionário, tem o mérito de buscar os meios para dizer algo de muito positivo e de mandar recados valiosos. Nesse caso, a fortuna dele é mais um instrumento de transformação do que de manutenção de privilégios. É preciso ter olhos para ver e sensibilidade para pensar diferente.
Embora eu não o conheça, creio que ele não esteja sendo falso em suas produções cinematográficas. Ao contrário!
Talvez fazer filmes seja o escape que ele encontrou para ser diferente. Ele expõe usa a fortuna para expor a sua veia artística e, assim, se aproximar daquilo que talvez ele quisesse apenas ser: um cineasta: um cara que conta histórias sensíveis e pretende com isso sensibilizar as pessoas.
Ele foi correto e comedido ao exaltar Eunice Paiva, oferecendo- lhe in memorian, o prêmio, ao dizer iria para uma mulher que resistiu e não desistiu no enfrentamento a um regime autoritário.
Evitou usar a palavra patriarcado, evitou usar a palavra militares, o setor mais autoritário dentre os autoritários e assim agindo não enjaulou a resistência ao período do filme. A liberou para outros tempos.
A narrativa do filme vai para além desse período, quando foca nos destroços de uma família feliz e abastada, quase sem enfatizar a ditadura. Se não estiver enganada, talvez essa palavra nem seja pronunciada nos diálogos do filme. Tudo chega como uma sombra ou como um voo de helicópteros militares diante do olhar de estranhamento de Eunice enquanto nada no mar. O cerco se aperta, revoltando a filha mais velha da família numa blitz policial, as conversas entre Rubens Paiva e amigos contrários ao regime tem um tom quase cifrado, são breves e despistam. Tudo no filme se avoluma, se agiganta e desaba sobre as cabeças. Somente Eunice cria a couraça de levar os destroços do seu mundo para colar os caquinhos numa luta sem precedentes e quase na escuridão.
Com essas narrativas, a do filme e da fala ao receber o prêmio, WMS traz a mensagem subliminar de que se o regime autoritário chega nos privilegiados e nos historicamente excluídos, ele fez e faz pó.
Entre privilegiados afetados pelo arbítrio, os eventualmente oprimidos e os historicamente excluídos só tem uma via de escape: não desistir dos sonhos de um mundo melhor, o sonho de ultrapassar os momentos de chumbo e conquistar a paz desejada.
Em outras palavras sem dizer muito WMS assim como Fernanda Torres nos disse muito, senão tudo: todos nós temos que ter e nutrir a nossa consciência para dizer que ‘Ainda Estamos Aqui’ com um único objetivo: sair desse lugar de festa onde a alegria pulsa forte e, usar essa energia para transformar o salão de festa na avenida da cidadania, esparramando nela os direitos que nos vestem como gente ativa, altiva e emancipada.
Nessa avenida deixamos de ser plateia para assumir a condição de protagonistas do nosso próprio enredo.
Ainda estamos aqui pra isso! E, precisamos impedir que gente autoritária não se aproprie dos preparativos da nossa festa para, mais adiante, se passarem por convidados.
SEM ANISTIA, portanto! O INOMINÁVEL E TODOS OS SEUS COMPANHEIROS E FAMILÍCIA DEVEM IR PRA CADEIA! EIS O OBJETIVO!
Pode até faltar espaço para aprisionar todos eles, mas o que não pode faltar é a nossa vontade de mudar o padrão da História brasileira que o filme nos revelou.
Eu me sinto em êxtase com os preparativos da festa democrática, acreditando que ela não é utopia. Ela é uma possibilidade real. E você?
Maria Betânia Silva- Procuradora de Justiça aposentada do MPPE e integrante do Coletivo Transforma MP.
Antes, muito antes, do sonho de carnaval ser uma estatueta do Oscar, minha mãe, leitora quase exclusiva de livros espíritas, apareceu com aquele livro azul: leia, você vai gostar.
Só muitos meses depois daquele dia eu saberia que Walter Salles havia feito um filme sobre o tal livro azul que minha mãe comprou e leu, e que nove entre dez postagens que meu algoritmo de rede social me mostraria, em 2025, seriam sobre um Brasil inteligente e sensível se redescobrindo através dos olhos do mundo, com a história daquele livro.
Quando o letreiro do filme “ainda estou aqui” começou e a voz de Erasmo Carlos, que não está mais aqui, entoou que descansar não adianta, eu me sentia exausta, imersa em uma plateia também cansada, que não sabia mais onde colocar tanto silêncio acumulado.
Reverberava em mim em um tamanho sem medida o olhar desviado de Eunice no tanque de guerra destoando do dia solar na praia carioca, na sorveteria, no corpo do cachorro morto, no sorriso do marido que nunca mais voltaria, na casa vazia, nos filhos que crescem com seus próprios destinos e dores, na família que se agiganta para além de nós, mesmo que nunca mais se dance na sala, e no tempo que leva tudo, até nós de nós mesmos.
O letreiro passava e eu não sabia que olhar me atravessava: era Fernanda Torres? Fernanda Montenegro? Da filha? Da mãe? De Eunice Paiva? Ou era o de minha própria mãe, uma mulher que cumpriu o script das mulheres da geração de Eunice e de Montenegro e que foi, “apenas”, a mãe de família cumpridora de suas tarefas? A mãe que, um dia, me estendia o livro azul e, no outro, me perguntava onde estava sua própria mãe?
Minha mãe não foi uma visionária do sucesso de um filme que ela nunca quis ver. Minha mãe não gosta de cinema e, muito menos, de sair de casa. Minha mãe também está longe do perfil politizado que está depositando nesse filme a grande chance de desforra contra a força bruta, a ignorância, a crise ética e estética que mergulhamos ciclicamente com governos que discursam e praticam a política da morte. Essa sou eu, nos meus devaneios diários de arte – redenção.
Minha mãe é somente mais uma senhora de classe média, de 91 anos, viúva, que trava sua luta pessoal para ainda estar aqui, o que inclui respirar, comer, ir ao banheiro todos os dias e não esquecer de sua história.
Não perder a dimensão de suas próprias perdas tem sido o desafio de um país e de minha mãe.
Meu amigo Eduardo Ferreira Valério, Procurador de Justiça do MPSP, que deveria estar escrevendo esse artigo no meu lugar, sabe bem disso.
Durante décadas dedicou-se no Ministério Público do Estado de São Paulo a narrar a história das perdas e dores dos mais lascados desse país, na esperança de que elas não se repetissem.
Em uma das ações civis públicas que marcam sua trajetória, Valerio postula pela transformação de um antigo espaço de tortura da ditadura civil-militar (DOI-CODI SP) em um espaço de memória e cultura (museu), com a aplicação dos princípios da Justiça de Transição.
A Justiça de Transição, como se sabe, enquanto conjunto de princípios destinados a garantir a reconstrução democrática de um país após experiências autoritárias ou ditatoriais, se fundamenta em três conceitos: justiça, memória e verdade.
Não há Justiça de Transição sem a) atribuição de responsabilidades; b) garantia efetiva do direito à memória e à verdade; c) reparação em favor das vítimas; d) e fortalecimento das instituições com valores democráticos de modo a se garantir a não repetição das situações de violência.
Na ação, Valerio diz que matar e infligir dores inimagináveis e covardes entrou para o cotidiano de agentes públicos que cumpriam o “dever de vencer um inimigo”. Falar do Estado brasileiro em seu regime ditatorial entre 1964 e 1985 é falar de tortura, a mesma tortura que ainda resiste no aparato do Estado, sobretudo contra a população periférica e negra que meu amigo Valerio, também bravamente, já narrou em outra ação judicial, fazendo 38 pedidos para melhoria da política de segurança pública no Estado de São Paulo, inclusive aos próprios policiais, também vítimas da engrenagem da necropolítica.
Ao que parece, meu amigo Valerio quer e sabe dar um jeito, apostando que o direito, sob as bençãos da Constituição Federal, é capaz de transformar dor em cultura e amor pela humanidade.
Volto para o letreiro do cinema, que ainda passa enquanto Erasmo canta. Penso nas instituições cada vez menos democráticas e mais clientelistas e patrimonialistas, servindo aos poderosos de sempre. Elas parecem surdas. Seguem bastante eficientes no apagamento sem escrúpulos de Valérios e de Promotoras Passarinhas, submetidos à exaustão de falar sozinhos sobre o tal do jeito que a gente até poderia dar, não fossem as paredes de arrogância e narcisismo sem qualquer disponibilidade de escuta.
Penso na política da morte que o Brasil suportou recentemente, elegendo um Presidente da República que homenageou um torturador de mulheres e crianças e da dificuldade de que isso fosse, apenas, o gigantesco absurdo que é.
Estou na sala do cinema. Ninguém se mexe ou respira no cinema abarrotado. O letreiro vai acabando, Erasmo segue cantando… mas precisa chegar na parte que ele diz como é que a gente dá o jeito que a gente tem que dar quando ninguém nos escuta. Essa parte não chega nunca. O letreiro vai acabando. E descansar também não adianta.
Estranho falar em uma Justiça que seja de transição quando imaginamos a Justiça como o lugar de chegada. Mas é que a história é mar agitado, e não processo linear, e também não se chega a lugar algum sem que a gente se lembre de onde a gente parte, ainda que para fazer isso seja necessário nos partir um pouco, ou muito.
Eu parto de uma vila de paralelepípedos, com uma pracinha ao fundo, onde eu aprendi a andar devagar, por prazer, quando criança, e depressa, por medo, quando menina adolescente. Em algum momento, enquanto crescia atravessando a pracinha do final da minha rua, entendi que a única travessia que me seria possível, na vida, era a de tentar ser uma decifradora de silêncios, sobretudo daqueles que vem do cálice da força bruta.
O letreiro está no fim e penso que minha mãe tem os olhos azuis iguais o azul do livro que ela me deu.
Ninguém, absolutamente ninguém, se mexe no cinema. Parece insuportável… eu queria muito dançar na sala de casa também, em uma história de amor sem esquecimento e apagamento. Queria ver as amigas passarinhas brilhando e meus amigos dando o jeito que eles bem sabem dar para a gente construir um mundo sem mortes, descartes e violência, onde todas as pessoas lembrassem e pudessem contar suas histórias, de onde partem e o que as parte em pedaços quando são caladas e esquecidas.
Queria chorar, mas nem isso cabia. Eunice não chorou.
Daqui a pouco a luz da sala de cinema vai acender…e o tal jeito… alguém grita.
É uma voz de mulher trazendo o grito que nos redime e nos devolve o ar.
SEM ANISTIA!
A plateia do cinema vem abaixo ecoando a vergonha que é a defesa de uma Lei de 1979, que perdoa tortura, assassinatos e desaparecimentos políticos ferindo princípios constitucionais basilares e os tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Interamericana, o Pacto de São José da Costa Rica e o Tratado de Roma.
Sem anistia é o jeito que temos que dar se não quisermos viver assombrados pelo retorno do recalcado e os fantasmas golpistas que, recentemente, colocaram, graças à magistral peça acusatória do Procurador Geral da República, Paulo Gonet, 34 pessoas no banco dos réus perante o Supremo Tribunal Federal, dentre os quais, 23 militares e o ex-Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, o senhor adorador de torturador. Todos acusados de formação de organização criminosa armada, tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, deterioração de patrimônio tombado e golpe de Estado que se consolidaria em 08 de janeiro de 2023, com a invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Está chegando o carnaval. Chico Buarque e João Bosco lembraram recentemente, na quadra da Mangueira que, em 1969, Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira cantaram “Heróis da liberdade”, pela Império Serrano, meses após a decretação do AI 5. O samba falava da brisa que a juventude afaga e de uma chama que o ódio não apaga. A censura não suportou a parte em que se falava de “revolução em sua legítima razão”, e revolução foi substituída por “evolução”. Os canalhas sempre foram apavorados com a força transformadora da beleza e da vida.
Domingo teremos Oscar e faremos nosso samba no tapete vermelho dos gringos e nas ruas do Brasil, em forma de desforra pública e internacional.
Afirmaremos a política do amor e da reparação contra a covardia e a força bruta. Será um domingo para as mulheres de todas as gerações passarinharem e festejarem que, apesar de tudo, de tudo mesmo, ainda estamos aqui.
Minha mãe, a Lourdes, também está, está lá na vila de paralelepípedos dela, que termina em uma praça bem verde e florida onde gentes coloridas brincam sob um céu azul, esse azul que é da cor do amor.
CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL é Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.
REFERÊNCIAS:
Ação judicial SAJ 1034665-31.2021.8.26.0053 que tramita na 14ª Vara da Fazenda Pública Estadual – Estado de São Paulo, assinada por Eduardo Ferreira Valério, Anna Trotta Yaryd e Lucas Martins Bergamini.
Ainda Estou Aqui – Marcelo Rubens Paiva. Editora Alfaguara. RJ. 1ª edição.
Samba Enredo 1969, Império Serrano. Heróis da Liberdade.
A que se presta o resgate histórico das mulheres em espaços de poder? Por que dar espaço à narrativa desta trajetória, hoje, aparentemente, tão bem consolidada? Essas foram algumas das questões que me pus ao longo do processo de coordenação editorial da Breve História das Mulheres do Ministério Público do Paraná. Permaneço, ainda, num processo de investigação: não porque não tenha encontrado suficientes respostas, mas porque elas parecem multiplicar-se à medida que as investigo, e conforme entro em contato com outras experiências de resgate histórico.
A história das mulheres. Independentemente do recorte que se faça, ao fim e ao cabo, escrever a história sob uma perspectiva feminina é mais do que um meio de robustecer os registros históricos. Significa, por vezes, contraditá-los, confrontar a narrativa estabelecida e combater os simplismos. E, pensando a história como também meio de luta, sob uma perspectiva contemporânea, dar protagonismo às vozes que, por séculos, foram relegadas ao lugar de “vocal de apoio”. Assim, tomar nas mãos esta tarefa se presta a múltiplos fins: entre eles, fortalecer o papel da história – que passa a ser enriquecida com a coleta de dados antes esquecidos –, mas também, fortalecer as mulheres – de sorte que o conhecimento e a ciência de sua luta por direitos (em permanente ameaça) continuem a impulsioná-las a novas conquistas.
Ao falar sobre a invisibilidade das mulheres, Michelle Perrot esclarece que a história, muitas vezes, optou por apagá-las porque se dirigia a narrar fatos da vida pública – ao passo que as mulheres pertenciam à vida privada. Esclarece que “em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a garantia de uma cidade tranquila. Sua aparição em grupo causa medo. Entre os gregos, é stasis, a desordem” (PERROT, 2007). A ideia de pertencimento das mulheres à vida pública, assim, era vista com temor, com ressaibo. Embora a ideia de falta de participação das mulheres na sociedade possa parecer distante, inúmeros são os obstáculos enfrentados no processo de acesso a este ambiente público, no acesso ao poder, ainda nos dias de hoje.
Conquanto se trate de um ideal sempre ameaçado – em vista dos recentes acontecimentos políticos no Brasil e no mundo – permaneço uma entusiasta do Estado Democrático de Direito. Penso que a participação das mulheres, a partir da ocupação dos espaços de poder de maneira legítima, é um dos meios mais eficazes para a transformação social. Nesse contexto, é preciso ter em vista que a invisibilização das mulheres é reflexo de estruturas sociais e históricas que excluíram mulheres dos espaços de decisão. Assim, proceder a um resgate histórico – dentro de qualquer instituição – é mais que um meio de reconhecimento de contribuição das mulheres para a construção de tais instituições. É, também, uma forma de, a partir da memória, permanecer abrindo caminhos para a equidade plena que desejamos.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Valéria Teixeira de Meiroz Grilo– Procuradora de Justiça aposentada do MPPR. Membra do MP Transforma. Membra do Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público.
A Costa do Descobrimento, por todo o seu simbolismo, diversidade étnica e riqueza natural, talvez seja o marco mais adequado para mobilizar e reclamar a necessária atenção para o destino do Brasil nessa quadra tão complexa da nossa história.
Possui 111.930 hectares onde se concentram 23 áreas de proteção ambiental, distribuídas entre 12 municípios do sul da Bahia e quatro do norte do Espírito Santo.
Enquanto reserva da Mata Atlântica, recebeu o título de Patrimônio Mundial concedido pela Unesco em razão do seu elevado valor para as ciências e para a preservação do ecossistema de interesse universal.
São tantas paisagens, praias paradisíacas, patrimônio arquitetônico, vilas históricas entrelaçadas com importantes reservas indígenas, que fica difícil não se apaixonar pela simplicidade e pelo charme local.
Além dos cenários naturais, a região é dotada de aeroporto, boa estrutura rodoviária, considerável rede hoteleira, rica gastronomia e muita agitação, tornando-se a preferida, verão a verão, de milhares de turistas que a elegem como o local perfeito para fugir do stress e repor as energias.
Contudo, nessa estação de 2025, em que se completa o primeiro quarto de século após os 500 anos do descobrimento, impossível não se refletir sobre o processo histórico que desaguou na CR/88 e o rumo que o país tomará ante os riscos para a democracia impostos pelos desafios de hoje.
A exploração predatória do meio ambiente, largamente empregada em diversas atividades econômicas desde os tempos do Brasil Colônia, passou a ser efetivamente enfrentada somente a partir dos anos 70 por meio da paulatina mobilização de pequenos grupos ecológicos, das advertências advindas da ciência e do crescente envolvimento da classe artística, trabalhadora e estudantil.
O movimento foi ganhando corpo a cada agravamento das condições ambientais decorrente do desenvolvimento econômico acelerado, da intensificação do processo de urbanização, da construção das grandes usinas hidrelétricas, da crescente exploração mineral e outros fatores de risco.
A formação dessa “consciência ambiental”, ainda que tardia (especialmente para a Mata Atlântica), contribuiu para incluir a temática no círculo político, favoreceu a criação de órgãos governamentais para o controle e a regulamentação das atividades nocivas ao meio ambiente e, mais adiante, motivou o debate na Assembleia Constituinte que levou à formação de uma frente ambientalista suprapartidária e obteve como resultado a inserção de um capítulo especial sobre o meio ambiente na CR/88.
Para a proteção do meio ambiente, o legislador constituinte permitiu a adoção de competências concorrentes, a instituição da responsabilidade objetiva, a criação da ação civil pública e outros princípios que determinaram significativo avanço legislativo nas esferas administrativa, cível e penal.
O operoso trabalho desenvolvido a partir de então por organizações governamentais, não-governamentais e instituições do sistema de justiça, a par de ter alcançado importantes objetivos em favor da preservação do meio-ambiente, da defesa do patrimônio histórico-urbanístico e de proteção da população indígena, ainda não conseguiu consolidar a ideia da imprescindibilidade de tais propósitos.
O avanço da extrema-direita, a frágil regulamentação das big techs, o uso e o abuso de mentiras como poderosa tática política empregada nas redes sociais, a revisão da história, a desconstrução do conceito de democracia e os discursos de ódio contra as minorias, tendo os indígenas como um dos grupos mais afetados, colocam em risco o longo caminho trilhado pela sociedade brasileira em favor da vivência harmônica entre suas etnias e da preservação do meio ambiente.
Em artigo intitulado “Não basta defender a democracia”, publicado em sua coluna na Folha de São Paulo, o Professor Oscar Vilhena Vieira adverte para o esboroamento do conceito de democracia:
“Enquanto para o campo liberal a democracia é uma forma de governo em que o exercício do poder pela maioria só será legítimo quando balizado pela constituição e em conformidade com os direitos humanos, inclusive direitos de minorias, para populistas muitos desses direitos e balizas constitucionais são descritos como obstáculos espúrios à plena realização da vontade do povo, devendo, portanto, ser abandonados”.
A débil educação, o ressentimento e a cobiça, somados a outros sentimentos menores, engrossam o caldo de violência e ódio que animam desmatadores, grileiros, garimpeiros e aventureiros de toda ordem a enxergarem como inimigos os povos indígenas e os protetores do meio ambiente.
O pior é que boa parcela da população – talvez a sua ampla maioria – aceita ou se cala frente a tais agressões.
A tragédia que assola a TI Yanomami, exponencialmente mais drástica no governo Jair Bolsonaro (2018-2022), é um exemplo claro de quão vulneráveis ainda se encontram os indígenas brasileiros.
A Bahia é o estado brasileiro com a segunda maior população indígena recenseada, conforme apurado pelo IBGE no Censo de 2022, ocasião em que 191.950 pessoas se autodeclararam indígenas. O número corresponde a aproximadamente 12,9% de toda a população indígena do país que, no último balanço, era de mais de 1,4 milhão de pessoas.
A maior parte vive no sul do Estado, na região da Costa do Descobrimento, onde estão localizadas as aldeias dos povos Pataxó, Truká, Tuxá, Atikun, Xucuru-Kariri, Pankararé, Tumbalalá, Kantaruré, Kaimbé, Tupinambá, Payayá, Kiriri, Pankaru e Pataxó Hã Hã Hãe.
Apesar das demarcações e regularizações, casos de exploração e violência ainda fazem parte do cotidiano dos indígenas que vivem nesses territórios, com o registro de diversos homicídios ocorridos nos últimos anos.
O processo de demarcação de um território indígena (TI) é composto por cinco etapas: estudo do território, delimitação, declaração, homologação e regularização.
A declaração e a homologação são competências atribuídas ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Presidente da República, mas a regularização somente é concluída com o registro cartorário da área em nome da União com usufruto indígena.
Os municípios de Santa Cruz de Cabrália, Porto Seguro, Prado e Pau Brasil, localizados no sul da Bahia, possuem TI’s regularizadas. Pelo menos outros 11 territórios já foram reconhecidos pelo Ministério dos Povos Indígenas e três já se encontram em processo de regularização.
Enquanto se aguarda o julgamento final do Tema 1.031 com a confirmação do STF pela rejeição da tese do marco temporal, não se pode perder de vista que a regularização das terras é apenas um passo para a proteção e o efetivo respeito ao povo indígena, à sua autonomia e à sua pluralidade étnica.
É inaceitável que, passados 525 anos do descobrimento, ainda hoje seja preciso combater o preconceito e a discriminação contra os indígenas ao invés de se explorar o conhecimento tradicional, a diversidade cultural e os rituais de cada etnia, tão fundamentais para a preservação do meio ambiente e da cultura brasileira.
Revisitar a Costa do Descobrimento é revisitar a história do Brasil, processo indispensável para a necessária reflexão sobre que país desejamos ser.
Optar por um Estado populista, que busca contornar os princípios constitucionais de garantia, driblar os mecanismos de proteção das minorias e limitar os inadiáveis cuidados com o meio ambiente em favor de uma “liberdade” (nada mais irritante do que a ardilosa cooptação do vocábulo pela extrema-direita para se alcançar exatamente o oposto) para, ao fim e ao cabo, favorecer os interesses da elite financeira que dita as regras da economia mundial equivale a recrudescer e a aceitar a permanência da exploração das riquezas nacionais.
O Brasil não pode voltar a ser colônia.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Antônio de Padova Marchi Júnior é Procurador de Justiça MPMG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do Curso de Direito do IBMEC. Membro do coletivo “Transforma MP”.
O Ministério Público Federal (MPF) obteve a condenação do deputado federal Eliéser Girão (PL) e da União por danos morais coletivos ao incentivarem os atos antidemocráticos que ocorreram após as eleições em 2022.
A 4° Vara da Justiça Federal condenou os réus ao pagamento de R$5 milhões em indenizações e a exclusão de conteúdos de ódio e antidemocráticos propagados nas redes sociais do deputado federal Girão. De acordo com a investigação, o deputado divulgou conteúdos que ferem o Estado Democrático de Direito, além de motivar a participação em atos golpistas, que segundo a sentença “afronta o Estado de Direito, a ordem jurídica e o regime democrático, pondo em ameaça a legitimidade do processo eleitoral e a atuação do Poder Judiciário, além de configurar discurso de ódio contra as instituições democráticas com divulgação de notícias falsas (fake news) acerca do resultado das eleições, confundindo e incitando o povo e as Forças Armadas à subversão contra a ordem democrática”.
Também foi comprovado que comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, integrantes da União, repercutiram o conteúdo antidemocrático encorajando a formação de acampamentos. A Justiça determinou que a União deve pagar R$ 2 milhões e promover uma cerimônia com pedido de desculpas dos comandantes envolvidos em até 60 dias. Outro fato importante determinado pela sentença, é que a União deverá promover um curso de formação para integrantes das Forças Armadas, cuja finalidade é conscientização sobre os atos antidemocráticos.
A União, o estado do Rio Grande do Norte e o município de Natal também foram condenados por omissão na proteção à democracia ao permitirem a manutenção dos acampamentos e obstrução irregular da via em frente ao 16º Batalhão de Infantaria Motorizado (Batalhão Itapiru), na capital potiguar. Em conjunto, os entes deverão pagar mais R$ 1 milhão em danos morais coletivos.
É importante que a defesa da Democracia brasileira seja realizada em todas as esferas governamentais, incluindo MPs estaduais em colaboração com movimentos sociais e que todos os envolvidos em atos golpistas sejam investigados e devidamente responsabilizados.
O Coletivo Transforma MP divulga para os movimentos sociais e todas as pessoas preocupadas com a democracia brasileira a Petição Inicial e a Sentença, para homenagear o primoroso trabalho e inspirar a continuação e a expansão de investigações semelhantes.
A ACP é na 4a Vara Federal do RN (e ainda cabe recurso): 0803686-05.2023.4.05.8400
Lindo Fernanda Torres premiada com o Globo de Ouro. Merecidíssimo por sua atuação em Ainda estou aqui e por fazer parte de um filme que resgata ponto importante da história brasileira, que gerações mais novas já não enxergam com nitidez.
Insana, como esperado, a pancadaria da direita, que, na falta de argumentos, reclama da situação do país – como se seus governos obscuros não tivessem contribuído para o alto custo de vida, a deterioração do sistema de saúde, o desemprego, a financeirização dos preços dos combustíveis, usados para pagar o parasitismo rentista. Só para lembrar mesmo como esse chororô não ofusca, nem poderia, um milímetro do brilho da atriz, dos outros protagonistas e de todos que trabalharam para que o filme acontecesse. Sem recursos da Lei Rouanet, diga-se de passagem, mas com financiadores de peso e trazendo créditos a nomes conhecidos da produção cinematográfico-televisiva desse porte.
Pois então, trata-se de uma hiperprodução, em quase todos os sentidos. Na recriação da época, no colorido dos cenários, nos figurinos, nos penteados. E também ao retratar a subjetividade de famílias de classe média alta, com seus hábitos e sutilezas. Pois é aí que o conjunto da obra imprime sua marca inconfundível, de um lado denunciando a violência da ditadura, de outro sugerindo padrões de comportamento. Só que estes, de tão perfeitos, perdem realidade. Naquela família todos são inteiramente felizes, embora o mundo em volta fosse um pesadelo. Ninguém briga com ninguém, love is in the air, há um casal exemplar e uma vida de platitudes. Ao perder verossimilhança, o filme projeta um perfil humano agradável ao padrão de sociedade do capitalismo brasileiro, que, se condena o terrorismo de estado, não se escandaliza com a desigualdade social, parece não percebê-la e jamais a denuncia. Deixa nas entrelinhas que é fruto das diferenças individuais, da inteligência e do esforço de cada qual – como nas novelas. Não devia ser este o caso da verdadeira família Paiva. O deputado Rubens não foi cassado, depois morto, por seu amor ao sistema. Mas a produção cinematográfica cuida de apagar esse traço daquela família que foi perseguida, viveu no exílio e decerto não pensava que um intercâmbio estudantil na Europa fosse a coisa mais importante a fazer.
Nisto é que entra Zezé. Para refrescar a memória, ela é, no filme, a empregada doméstica da família. Uma personagem apagada, discreta, silente, que habita um canto da casa. Ninguém sabe de onde veio, que história tem ou como foi parar ali. Nenhum relevo parece ter o trabalho que faz para que os moradores toquem suas vidas levemente. Estereótipo de doméstica, com um inevitável lenço à cabeça, que em 1971 já andava em desuso, Zezé definitivamente não importa. Em uma palavra, é a imagem que a produção narra como deve ser vista uma funcionária doméstica. Só faltou dizer que era uma “colaboradora”. Zezé assiste a tudo sem importar ao enredo se entende a engrenagem que torna possível o sequestro do patrão. Como se fosse naturalmente incapaz de compreender coisas – que ali eram básicas – como repressão política e conflito de classes. Zezé é invisível. E isto se dá com naturalidade. A naturalidade do modo que o mercado produtor desse nível de arte vê uma empregada doméstica. A mesma normalidade com que é tratada sua demissão quando a família começa a ter dificuldade financeira. O que houve com Zezé depois de perder o emprego? Conseguiu arranjar outro? Pôde continuar alimentando seus filhos? Zezé tinha filhos?
Como dito, para não deixar dúvida, o filme é excelente. Consegue empatia com o público, principalmente porque ele se reconhece naquela família de classe média. Mais por isto, talvez, do que por horror à ditadura. E são esses setores, mais ou menos intelectualizados da classe média, que vão ao cinema e formam opiniões. Mesmo que tais opiniões sejam em parte guiadas pelo viés ideológico da produção, é ótimo que se formem opiniões críticas ao arbítrio da ditadura brasileira, agora que tantos aloprados procuram reescrever a história e negá-la. Mas seria perfeito se o povo mesmo, aqueles 70 ou 80 por cento do Brasil que só fazem trabalhar, também tivesse personagens míticas com quem se identificar, ligadas, direta ou indiretamente, à luta democrática ou vitimadas pela repressão de um regime controlado pelo poder econômico.
Zezé é, sim, vítima da violência sofrida pela família Paiva. Mas a Zezé do filme nada diz, nada pensa. Zezé não conta. E ela não é vítima apenas por estar ali, naquele lugar e naquela hora. É vítima porque, tudo somado, foi sobre as classes populares e sobre outras Zezés que despencou a parte mais pesada da violência da ditadura. Foi sobre os sindicatos de trabalhadores, as organizações de camponeses, os funcionários públicos, as associações e os partidos que condenavam a exploração do trabalho. Porém relatos sobre o horror da ditadura contra o povo trabalhador quase não ganham visibilidade. Parece não ter havido violência contra ele. Parece que a ditadura empresarial-militar não veio para frear a conquista de direitos da população despossuída. Ou para assegurar o lucro privado na educação e nos transportes. E para impedir a reforma agrária, a reforma urbana. Para garantir a especulação imobiliária, que expulsa o pobre do centro das cidades. É como se, no cenário do filme, Zezé nunca tivesse existido… Na verdade, Zezé nunca esteve ali, nem em lugar nenhum.
Em países irmãos, também vítimas de ditaduras passadas, são mais frequentes e mais conhecidas produções artísticas que mostram a violência praticada contra o povo em geral, talvez por sua maior politização, que cria demanda por mitos populares, socialmente situados aquém da classe média, que já tem os seus. O filme é ótimo, principalmente por retornar a um tema que nossa Lei de Anistia, cuidadosamente mal interpretada, vai ajudando a ficar desbotado. Mas ao colocar Zezé em seu lugar e ao propor o perfil de uma classe média que não questiona nossas relações sociais, tão excludentes, perde a oportunidade de denunciar a estrutura opressiva do modelo vigente. Para o qual os acontecimentos reais, retratados no filme, são consequências naturais, encaixadas na engrenagem de um sistema que se nutre da superexploração do trabalho e da repartição quase nula de seu produto. Sim, OK, esta não era sua proposta mesmo, como não é a de produções desse porte. Ai de quem falar em luta de classes. Viva Zezé!
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Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
O Supremo Tribunal Federal está em vias de julgar o RE 1.446.336, no qual se discute a possibilidade de reconhecimento de vínculo de emprego dos trabalhadores com as empresas criadoras e administradoras de plataformas. O caso foi admitido como Tema de Repercussão Geral 1.291, cujo verbete está assim redigido:
Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, IV; 5º, II, XIII; e 170, IV, da Constituição Federal, a possibilidade do reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa criadora e administradora da plataforma digital intermediadora.
O recurso extraordinário foi interposto em face de decisão proferida pela 8ª Turma do TST, da lavra do relator Alexandre Agra Belmonte, que reconheceu o vínculo de emprego entre a trabalhadora Viviane Pacheco Câmara e a empresa Uber Tecnologia do Brasil.
A tese da recorrente Uber, como se vê do verbete do Tema 1.291, é o de que a aplicação da CLT a seus trabalhadores violaria os princípios da livre iniciativa, da legalidade e da liberdade de trabalho.
A premissa de que o reconhecimento de regime trabalhista aos trabalhadores contratados via plataforma violaria a livre iniciativa adveio do Tema de Repercussão Geral 725, em que o STF entendeu que restrições à terceirização violariam aquele princípio constitucional.
Primeiramente, é preciso observar que não estamos diante de terceirização e por isso parece altamente inadequado trazer a premissa do Tema 725 para o debate. Não existe terceira empresa entre o trabalhador recrutado via aplicativos e as plataformas digitais operadas por empresas de transporte.
Segundo, por que fazer valer a legislação trabalhista ordinária, no caso o art. 3º da CLT, que estabelece os requisitos da relação de emprego, implicaria em violação a livre iniciativa? A Justiça do Trabalho aplica os arts. da 3º e 9º da CLT (este último impondo o princípio da primazia da realidade) a relações de trabalho controversas há mais de 80 anos e nunca se alegou que isso pudesse representar violação à livre iniciativa.
A argumentação de que as relações laborais uberizadas seriam um fenômeno diferente de tudo que havia antes não justifica a situação como uma nova questão constitucional. Sim, efetivamente, é um modelo novo de forma de contrato, mas seu conteúdo não difere, em sua essência, de um conflito trabalhista típico.
Estamos diante de empresas que exercem atividade econômica (no caso setor de transporte) e que para esse fim precisam recrutar e contratar mão de obra permanente, remunerando essa prestação laboral por hora trabalhada ou por tarefa.
Sim, a questão é a de se saber a exata natureza jurídica desta relação. Mas por que a decisão sobre essa questão violaria a livre iniciativa? A livre iniciativa está, no mínimo, equiparada, na Constituição, ao valor social do trabalho, então obviamente não se trata de óbice intransponível ao reconhecimento do vínculo, como nunca foi.
Inclusive, este debate, que vem sendo feito em todo mundo, apenas no Brasil tem suscitado o argumento sobre suposta lesão à “livre iniciativa”. Várias cortes superiores da Europa reconheceram o regime trabalhista para os trabalhadores uberizados: França, Suíça, Inglaterra, Espanha, Alemanha, dentre outros.
Qualquer um que leia a íntegra dessas decisões perceberá que em nenhuma delas o argumento da livre iniciativa sequer foi cogitado. E são países onde, induvidosamente, a livre iniciativa está plenamente assegurada.
Aliás, essa matéria, nos tribunais da Europa, sequer foi decidida como questão constitucional. Os tribunais simplesmente aplicaram a legislação trabalhista ordinária. Não houve invocação de tese constitucional para resolver esses conflitos na Europa.
Além disso, a ideia de que a legislação trabalhista é incompatível com a livre iniciativa foi robustamente derrotada no século 20. Lembremos do famoso caso Lochner vs New York, de 1905, da Suprema Corte dos Estados Unidos. A Assembleia Legislativa do Estado de Nova York limitou a jornada de trabalho dos padeiros daquele estado.
A Suprema Corte, com uma composição que era então conservadora e ativista, cujos juízes haviam sido formados no laissez faire do século 19, baseou-se exatamente no argumento de que a lei violava a livre iniciativa. Os Justices sustentavam que a limitação de jornada laboral pelo poder público constituía intervenção indevida do Estado porque estaria ferindo a liberdade de contrato e de trabalho.
Ora, era literal e exatamente a mesma tese patronal apresentada hoje pela empresa Uber no Brasil. Como é sabido, a retrógrada Era Lochner foi superada na administração Franklin D. Roosevelt, com o New Deal, que impôs a legislação trabalhista federal para todas as empresas dos EUA.
Chega a ser espantoso que em pleno século 21 as empresas estão trazendo ao STF uma tese jurídica que era popular no século 19, uma tese reacionária defendida pelos ricos e poderosos contra a classe trabalhadora, e que foi superada pelo Estado Social.
Sim, há uma questão constitucional subjacente ao caso, mas qual é? A verdadeira questão constitucional do RE 1.446.336 é a de se saber se os trabalhadores uberizados têm direitos sociais e previdenciários, e não se a livre iniciativa está sendo restringida – porque de forma alguma o estaria.
Para citar apenas alguns paradoxos da atual situação dos trabalhadores contratados via aplicativos, vê-se a realidade de que muitos, a duras penas, criaram sindicatos representativos da categoria, sendo admitidos pelos poderes Executivo e Legislativo como legítimos atores sociais nos debates sobre o tema. Porém, tais sindicatos não podem fazer negociação coletiva com as empresas do setor, que não reconhecem a relação de trabalho que com eles mantêm. Tampouco se lhes reconhece a legitimidade para suscitar dissídio coletivo.
A alegação de que as plataformas digitais são incompatíveis com a legislação trabalhista tradicional é contraditada pelas práticas das próprias plataformas na Europa e nos EUA.
O pressuposto-base da argumentação das empresas que se valem de plataformas digitais é de que se trata de uma nova forma de relação, bem distinta da tradicional, por se tratar de modelo de negócios incompatível com a “antiquada” relação de emprego. Desta forma, seria impossível para as plataformas digitais continuarem atuando no mercado brasileiro se fossem obrigadas a cumprir a legislação trabalhista.
Esse pressuposto é claramente falso. A sua insustentabilidade é demonstrada pela realidade, pois em vários lugares do mundo as chamadas plataformas de transporte atuam com trabalhadores com vínculo de emprego e com direitos trabalhistas garantidos.
Comecemos pela própria Uber. Na Alemanha, os seus motoristas são e sempre foram empregados, contratados por meio de empresas terceirizadas de transporte. Para o cliente-consumidor o serviço funciona de maneira idêntica a qualquer outro lugar do mundo, bem como a gestão algorítmica realizada pela Uber sobre os trabalhadores. No entanto, os trabalhadores recebem todos os direitos trabalhistas alemães.
Da mesma forma, na Espanha, os motoristas são empregados de empresas de transporte terceirizadas. Em Genebra, na Suíça, depois de derrota judicial no país que reconheceu os motoristas da Uber como empregados, a empresa partiu para a mesma estratégia que havia adotado na Alemanha e na Espanha e terceirizou o serviço, em que os empregados são contratados pelas terceirizadas, com todos os direitos trabalhistas.
A sua operação de entregas, denominada UberEats, desde 2020 já atuava com trabalhadores empregados contratados por terceirizadas, com todos os direitos trabalhistas garantidos. A Uber, em comentário sobre a diretiva europeia com presunção da existência de vínculo de emprego, disse que a obrigação de reconhecer os direitos trabalhistas não atingiria a lucratividade da empresa, afirmando que já haviam provado a “capacidade de crescer em locais como Alemanha e Espanha utilizando o modelo da terceirização”.
Mas não são casos isolados. Na Alemanha, a maior parte das plataformas digitais classifica seus trabalhadores como empregados. A Just Eat, atuante em boa parte da Europa, mesmo sofrendo dumping social das concorrentes que não cumprem com suas obrigações trabalhistas e tributárias, contrata dezenas de milhares de entregadores como empregados. Na Espanha, a maior empresa de entrega no país, a Glovo, informou na semana passada que abandonará o modelo de falsos autônomos e passará a atuar com 100% de empregados, afirmando que nada mudará para o usuário.
E não é só na Europa que as plataformas digitais desmentem o pressuposto de que não conseguem funcionar com o modelo de emprego. Nos Estados Unidos, a plataforma de transporte de pessoas Alto contrata todos os seus motoristas como empregados. Da mesma forma, a plataforma de serviços gerais Blue Crew somente contrata empregados para prestar seus serviços. A plataforma Upshift, também de serviços gerais, oferece a mesma flexibilidade de horários reconhecendo as condições de empregados de seus trabalhadores.
No Brasil também temos exemplos. A plataforma de transporte de passageiros V-1 desde a sua fundação contrata seus motoristas como empregados. A Rappi, plataforma de entregas, contrata os “shoppers”, ou seja, os trabalhadores que fazem as compras nos supermercados, como empregados.
A iFood atua com dois modelos diferentes: contrata entregadores como se fossem autônomos diretamente, mas garante o serviço por meio de contratação de empresas de entrega que arregimentam, organizam e controlam os trabalhadores, chamados de operadores logísticos, em um modelo muito similar ao da Uber na Alemanha, Espanha e Suíça.
Dentro dessa lógica está embutida outra falácia: a de que as empresas não suportariam arcar com os custos derivados da relação de emprego. Ora, aqui no Brasil, se empresas em negócios tão simples como padarias, mercadinhos, oficinas mecânicas e botequins contratam seus trabalhadores como empregados, por que empresas com fundos bilionários, que detêm até bancos com receitas de até R$ 1 bilhão por ano, como a iFood, não conseguiriam arcar com as obrigações trabalhistas?
Assim, verifica-que não há qualquer incompatibilidade entre o modelo de plataformas digitais de serviços e a relação de emprego. Conforme a circunstância, seja por constrição judicial ou mesmo administrativa, seja por decisões de negócio, as empresas passam normalmente a contratar pelo modelo de emprego, o que não afeta seu modelo de negócio ou a experiência do consumidor.
As empresas que contratam empregados sofrem com a concorrência de outras que descumprem o padrão mínimo estipulado em seus países. O Direito do Trabalho é inseparável do direito regulatório da concorrência, como se dá desde o seu surgimento, em 1802, na Inglaterra, e por isso deve ser abrangente para que o mercado funcione corretamente. O Direito do Trabalho não impede a livre iniciativa. É o não cumprimento de direitos trabalhistas por parte de empresas que pode comprometer a livre concorrência em todo um setor econômico.
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Este texto foi apresentado na audiência pública realizada no STF nos dias 9 e 10/12/2024, convocada pelo ministro Edson Fachin para debater o Tema de Repercussão Geral 1.291.
Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022).
Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.
Em 2023, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) marcou posição contra as práticas de uso de agrotóxicos, ressaltando os riscos à saúde, em especial nas causas do câncer.
Na quarta década da maior catástrofe da indústria química, o Supremo Tribunal Federal (STF) está por decidir uma das mais importantes questões ambientais. Da decisão depende a efetiva proteção dos brasileiros expostos aos agrotóxicos.
Em 3 de dezembro de 1984, a cidade de Bhopal, na região central da Índia, registrou o maior acidente industrial da história. A explosão da fábrica de agrotóxicos deixou entre 4 e 10 mil pessoas mortas imediatamente. A fabricante negou-se a fornecer informações, dificultando o socorro de 200 mil pessoas intoxicadas pela nuvem de veneno. Estimam-se 25 mil casos de cegueira e 50 mil incapacitados para o trabalho. A data emblemática marca o Dia Mundial de Luta Contra os Agrotóxicos.
A desoneração tributária de agrotóxicos é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.553. A ação questiona regras de convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária que reduzem em 60% a base do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços sobre agrotóxicos, além de dispositivos que zeram o Imposto sobre Produtos Industrializados.
Em 5 de novembro, foi realizada audiência pública no STF, conduzida pelo relator, ministro Edson Fachin. Foram dezenas de manifestações de representantes do setor econômico, trabalhadores, governo, cientistas e entidades, além da sociedade civil.
O setor econômico buscou demonstrar a relevância da atividade econômica que desfruta dos benefícios fiscais há quase 30 anos. Muitos dos representantes de entidades e da sociedade civil demonstraram a iniquidade das vantagens tributárias concedidas a um setor que se anuncia com grande pujança econômica e usa insumos químicos especialmente na produção de commodities de exportação. Foram apresentados dados impactantes do comprometimento do meio ambiente e da saúde de trabalhadores e da população exposta a produtos tóxicos. Chamou a atenção a falta de representante do Ministério da Saúde, área diretamente impactada pelo estímulo ao uso de agrotóxicos.
No Brasil, a tragédia silenciosa e subnotificada é sentida pelas vítimas do espalhamento do veneno na forma de enfermidades crônicas, dado reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde (MS).
No mesmo 5 de novembro, o Ministério da Saúde publicou a Lista atualizada de Doenças Relacionadas ao Trabalho, com o objetivo de orientar as ações de vigilância e promoção da saúde. São mais de 40 enfermidades decorrentes da exposição dos trabalhadores aos agrotóxicos, com várias modalidades de câncer, linfomas, leucemia, hipotireoidismo, Parkinson e depressão.
Em 2023, o Instituto Nacional de Câncer (Inca) marcou posição contra as práticas de uso de agrotóxicos, ressaltando os riscos à saúde, em especial nas causas do câncer. Indicou que o intensivo uso de agrotóxicos gera grandes malefícios, como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população. O documento aponta o fato de o Brasil permitir o uso de agrotóxicos proibidos em outros países.
A isenção de impostos concedida à indústria de agrotóxicos é apontada pelo Inca como um grande incentivo ao uso que vai na contramão das medidas protetoras, decorrentes do princípio da precaução, que recomenda ações que reduzam progressiva e sustentadamente o uso de agrotóxicos. Causou surpresa a manifestação da Advocacia Geral da União, favorável à renúncia de receitas, em pauta contrária ao interesse do erário, justamente quando o governo se debate com a crise orçamentária ou colapso fiscal.
Quanto à manifestação dos representantes do Ministério da Agricultura, favorável à continuidade da desoneração e indiferente aos dados que apontam os danos à saúde dos trabalhadores, proprietários ou empregados, chamou a atenção a resistência ao uso da expressão adotada pela lei e pela Constituição: “agrotóxico”, escolhendo usar o eufemismo “defensivos”, que compõe a estratégia de marketing do setor beneficiado pela desoneração.
Essa estudada cautela demonstra um alinhamento com a indústria química que traz preocupação adicional, pois a recente alteração na legislação dos agrotóxicos (Lei nº 14.785 / 2023) concentrou no Ministério da Agricultura a competência exclusiva para o registro de pesticidas. As áreas da Saúde e do Meio Ambiente ficaram com função secundária.
A grave decisão do STF, felizmente, dá-se no contexto em que tem havido compromisso com a Agenda 2030 — Pacto do mundo civilizado com o desenvolvimento sustentável. Há esperanças de que não seja perpetuada a silenciosa tragédia de Bhopal em nossas fronteiras agrícolas.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.
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