Autor : Coletivo

Enfrentamento da corrupção: o ocaso não é por acaso

Parece ter faltado às instituições maturidade para frear a criminalização da política

Por Edmundo Antonio Dias Netto Junior, e dos colegas Francisco de Paula Vitor Santos Pereira, Felipe Carvalho Pinto, Julio José Araujo Junior na Folha de São Paulo

O Brasil nunca mais foi o mesmo depois de 2013. A tempestade institucional que se viu após aquelas jornadas de junho teve na bandeira do enfrentamento da corrupção o seu principal motor. A sociedade aplaudia investidas robespierrianas contra políticos e o sistema judicial chancelava incursões nos domínios da política, com atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal até na suspensão da nomeação de ministro de Estado para a chefia da Casa Civil.

No vale-tudo da cruzada anticorrupção, o Ministério Público Federal, em iniciativa institucional pouco ortodoxa, chegou a propor ao Congresso dez medidas contra a corrupção —algumas de conteúdo hoje reconhecidamente tido como questionável—, na mesma crença de milhões de brasileiros de que contribuiram para a construção de um Brasil mais justo e solidário.

Após a tempestade, no entanto, não veio a bonança. Nos escombros da terra arrasada que se tornou a disputa política no país, sobreveio, nos últimos quatro anos, um desmonte de órgãos de controle. Instituições como o MPF, a Controladoria-Geral da União e a Polícia Federal sofreram grandes impactos decorrentes de medidas que atacaram por dentro seu funcionamento. Paralelamente, medidas administrativas e legislativas concorreram para a opacidade governamental e para o desmonte de políticas públicas em variadas áreas, com efeitos devastadores no enfrentamento da corrupção. Em recente nota, a organização Transparência Internacional destacou o “desmanche, sem precedentes, dos arcabouços legais e institucionais anticorrupção que o país levou décadas para construir.”

Da tentativa de emparedamento da política, passou-se à normalização do sigilo de cem anos. A história demonstra, mais uma vez, que não existem governos livres de corrupção, mas governos que respeitam a institucionalidade e permitem o funcionamento do sistema de enfrentamento da corrupção. Parece ter faltado às instituições a maturidade necessária para frear a criminalização da política e zelar por uma persecução penal técnica e politicamente isenta.

É irônico constatar que muitos dos protagonistas do discurso anticorrupção apoiem, hoje, alguns dos responsáveis pela erosão dos mecanismos anticorrupção. Esse quadro, somado ao silêncio eloquente de parcela da sociedade brasileira, permite concluir que o “combate” à corrupção não era o fim, mas um meio, mero instrumento de intervenção antidemocrática no jogo político, o que, aliás, não é inédito na história brasileira.

As mobilizações de 2013 completam dez anos no próximo ano, e um dos muitos aprendizados não pode ser esquecido: quando o enfrentamento da corrupção se transforma em combate à política, debilita-se o organismo social, deixando-o vulnerável à infecção oportunista do radicalismo autoritário.

Para evitar que a história se repita como farsa, é preciso repensar a corrupção como fenômeno estrutural, cujo enfrentamento depende do fortalecimento da democracia, de abordagens institucionais desprovidas de moralismo populista e da compreensão da relação da corrupção com a profunda desigualdade que marca a sociedade brasileira.

Assédio eleitoral: velhacos da democracia

Artigo de Leomar Daroncho no Correio Braziliense

A contrariedade de setores econômicos que temem perder privilégios com o voto livre é histórica e ajuda a entender o assédio contra os trabalhadores no atual processo eleitoral.

No período imperial o voto era restrito ao “cidadão de bem”, da época, em satisfatória situação financeira. Na República, Constituição de 1891, excluía o voto das mulheres, jovens, mendigos, analfabetos, militares de baixo escalão e religiosos. O voto feminino data de 1932. Somente em 1988 o voto se tornou universal, com a temida afirmação de que todo o poder emana do povo.

Mario Amato, que presidiu a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo de 1986 a 1992, período de grande protagonismo político da FIESP com bravatas e acenos à uma possível desobediência civil de empresários insatisfeitos com o Governo, insinuando demissões em massa. A FIESP jogou pesado na Constituinte de 1988 para barrar propostas de estabilidade no emprego e da redução da jornada de trabalho.

Na campanha presidencial 1989, Amato, que hoje talvez fosse considerado moderado, emitia declarações polêmicas. Anunciou que se a “esquerda” vencesse, 800 mil empresários deixariam o país. Como se sabe, ninguém fugiu quando Lula governou, de 2003 a 2010. Ao contrário, as empresas continuaram ganhando muito nos 8 anos em que o PIB teve crescimento expressivo, mesmo crise internacional de 2008. O crescimento dos salários fortaleceu o mercado interno. O IBGE registrou os menores índices históricos de desemprego entre 2013 e 2014, em cenário de baixa informalidade e com vínculos de melhor qualidade que os atuais.

No atual processo eleitoral, circulam mensagens com a ameaça de fechamento de empresas e redução de investimentos, tentando forçar o voto no candidato dos patrões. Há mensagens que escancaram a oferta de dinheiro. O Ministério Público do Trabalho (MPT) já recebeu 572 denúncias. Das denúncias identificáveis, na disputa presidencial, 99,41% têm Bolsonaro como beneficiário do assédio, enquanto Lula representa 0,59% dos casos.

Trata-se de abuso do exercício do poder empresarial, com o objetivo de dominar a vontade política de brasileiros humildes. O terror orquestrado ataca brasileiros mal instruídos e mal remunerados, que sobrevivem do próprio trabalho.

Dentre as centenas de denúncias recebidas, algumas acabaram em acordo para a correção das condutas assediadoras, com o pagamento de compensação pelos danos morais, individuais e coletivos, sofridos pelos trabalhadores e pela sociedade. Há casos de retratação pública, com vídeos ou comunicados de arrependimento do assediador.

Também chegaram ao Judiciário casos como o assédio analisado pela 1ª Vara do Trabalho de João Pessoa – PB que, em decisão liminar, acatou pedidos do MPT e proibiu o empresário, sob pena de multa de R$ 30.000,00 por trabalhador prejudicado: de ameaçar, intimidar, constranger ou orientar trabalhadores a manifestar apoio político, votar ou não votar em determinado candidato ou partido; bem como de demitir como retaliação.

Na decisão, o Juiz alertou que a conduta também é crime punível com prisão e multa. Indicou que a Constituição, a Lei Eleitoral e Tratados Internacionais protegem o trabalhador que – vejam só! – tem direito à liberdade de pensamento e de opinião, de participar de eleições honestas, com voto universal, igual e secreto, e que o pluralismo político é fundamento do nosso Estado Democrático de Direito.

Os abusos fazem lembrar o vexatório “Voto de Cabresto”, que o Glossário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) descreve como cena de um Brasil atrasado em que o eleitor, intimidado e submisso, obedecia ao coronel do “Curral Eleitoral”. O eleitor nem sabia em quem votava. No assédio da atual eleição, a irregularidade é ainda mais grave, a vontade do trabalhador pode ser oposta à do patrão.

Depois do impeachment de Collor, em 1992, Amato fez a autocrítica sobre a frase de 1989: “Acho que fui um velhaco [trapaceiro]. Não velhaco, fui maldoso e não fui leal”. É disso que se trata deslealdade criminosa. A tentativa de impor a vontade do empregador representa assédio e criminoso, que também é ilícito trabalhista.

Assinale-se que, no caso do voto eletrônico no 2º turno, há maior segurança para o eleitor que não se submeter à imposição do patrão assediador, pela dificuldade de identificar o voto – isso talvez também incomode os criminosos. Portanto, o cidadão, trabalhador e eleitor, pode inclusive usar o voto como uma forma de protesto e resistência ao assédio e à humilhação, sem que a rebeldia seja descoberta.

Denúncias de assédio eleitoral podem ser encaminhadas pelo site (mpt.mp.br).

Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

Debatendo a renda mínima: o que restou de Ciro Gomes?

Por Tiago Muniz Cavalcanti no GGN

Derrotado, Ciro Gomes sumiu. Ninguém sabe, ninguém viu. Depois de uma candidatura desastrosa, repleta de ataques pessoais e comparações esdrúxulas, o candidato à presidência da república pelo PDT terminou a corrida em primeiro turno com apenas 3% dos votos válidos, bem abaixo dos seus próprios resultados em pleitos anteriores. Diante do fracasso, optou pelo silêncio: se não viajou, escondeu-se.

Apesar de sua trágica participação nas eleições em curso, Ciro contribuiu para que o tema da renda minima voltasse a ser debatido em larga escala. Ele prometia criar um programa de transferência de renda que pagaria mil reais para todas as famílias em situação de vulnerabilidade. O recurso para financiar o benefício viria de duas fontes distintas: da unificação das dotações orçamentárias de auxílios atualmente existentes e do imposto sobre grandes fortunas, que prometia regulamentar.

Se implementado, o projeto avançaria no sentido de se alcançar a instituição de uma renda universal e incondicionada na forma prevista na Lei nº 10.835/2004, sancionada pelo presidente Lula. A legislação prevê a criação da renda básica de cidadania, um direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica.

Muito embora a Lei preveja a instituição de uma renda universal e incondicionada, não dependendo portanto de quaisquer condições relacionadas à situação financeira do beneficiário, sua abrangência deveria ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população. Foi nesse contexto que o Partido dos Trabalhadores criou o Bolsa Família, um programa de transferência de renda sob condicionalidades, tais como níveis de renda, pré-natal em mulheres grávidas, vacinação e frequência de crianças e jovens na escola.

Histórico defensor da renda mínima, Eduardo Suplicy, em entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos (ed. 333, ano X, 2010), observa no Bolsa Família um passo na direção da Renda Básica de Cidadania. Segundo ele, “o programa teve efeitos muito positivos do ponto de vista de ter contribuído para diminuir a pobreza absoluta e também para diminuir o grau de desigualdade de renda no país”. De fato, o Bolsa Família foi o primeiro passo para que todas as pessoas possam participar efetivamente da riqueza da nação. No entanto, é preciso avançar, e nesse aspecto a proposta de Ciro Gomes cumpre essa função: prometia taxar de grandes fortunas e ampliar a rede de proteção.

São inúmeros os benefícios da renda mínima. Antes de tudo, ela serviria como mecanismo de combate aos mais graves problemas sociais atualmente vigentes – desigualdade, pobreza e exclusão social –, atenuando os efeitos deles decorrentes. Com isso, além de colaborar para a diminuição da violência e dos níveis de criminalidade, em grande medida fomentados pelas condições de miséria e marginalidade, a renda favoreceria ainda a saúde da população brasileira, já que as condições econômicas possuem influência direta no processo de saúde-doença das pessoas.

Ademais, ao proporcionar condições materiais necessárias para uma vida digna, promovendo a inclusão de todos aqueles que são privados de participar da vida social, a renda contribuiria para a elevação dos níveis de felicidade do País. Isto porque as medidas convencionais de felicidade são inversamente proporcionais à desigualdade e estão diretamente relacionadas à segurança econômica, conforme demonstra o estudo Economic security for a better world, realizado pela Organização Internacional do Trabalho. A renda inegavelmente concederia liberdade para que o beneficiário elegesse as prioridades para a sua vida e realizasse suas vontades, aspirações e desejos, estimulando a execução de atividades não-remuneradas essenciais à qualidade de vida da população, tais quais a arte e o desporto, e permitindo um maior estado de autodeterminação.

As mulheres seriam especialmente beneficiadas, sobretudo em uma sociedade patriarcal onde grande parte delas depende economicamente do marido. A garantia de uma renda conceder-lhes-ia maior autonomia e poder de barganha no seio familiar, podendo encorajar uma divisão mais justa do trabalho doméstico. Além do mais, em famílias monoparentais por ausência paterna, a renda serviria para melhorar as condições de vida das mães solteiras, um grupo especialmente vulnera?vel à discriminação no acesso ao mercado de trabalho. É induvidoso, portanto, que a implementação da renda mínima contribuiria para a luta da justiça de gênero como um instrumento das mulheres contra a opressão que lhes é imposta pelo hétero-patriarcado.

Ainda mais relevante, a renda valorizaria trabalhos atualmente indesejáveis e mal remunerados, promovendo, com isso, o aumento dos salários e a melhoria das condições de execução das funções menos atraentes. Seria, portanto, capaz de reverter a vulnerabilidade social que coage os trabalhadores a aceitarem condições de trabalho servis e degradantes, incompatíveis com a dignidade humana. Dessa forma, os trabalhos penosos e aqueles executados em condic?o?es fi?sicas extremas deixariam de ser aceitos com os ni?veis salariais atuais, fomentando a melhoria do padrão de execução e a implementação de incrementos salariais substanciais para torná-los atrativos.

Ciro contribuiu para resgatar o debate em torno da renda mínima, é inegável. Apesar disso,  sai derrotado das eleições. Acusado de trair seus tradicionais eleitores da centro-esquerda política e de não se posicionar diante de opções tão díspares e numa eleição tão acirrada.

Tiago Muniz Cavalcanti

Procurador do Trabalho, Doutor em Direito e integrante do Coletivo Transforma MP.

Se Bolsonaro vencer, como ficam os direitos individuais vilipendiados em nome do “combate ao bolsonarismo”?

Shooting with old type gun and bullet smoke in the black. Shooting with realistic fake gun

Por Gustavo Roberto Costa no GGN

Na época da trágica operação “lava-jato” – um dos períodos mais obscuros da história da justiça brasileira –, direitos dos mais fundamentais foram pisoteados em nome do “combate à corrupção”. Ficou famosa a frase de um desembargador que dizia: “problemas inéditos exigem soluções inéditas”. Denúncias sobre as fraudes, arbitrariedades e ilegalidades cometidas durante a operação foram feitas aos montes, até que ela fosse desmantelada – não sem antes causar males irrecuperáveis a um número enorme de pessoas. Até hoje, muitos integrantes do sistema de justiça demonstram nostalgia do período de inquisição levada a cabo para expurgar o “grande mal” da sociedade brasileira.

Eleito Bolsonaro em meio a uma fraude eleitoral – espantam-me declarações que afirmam terem sido as eleições brasileiras baseadas sempre no livre debate de ideias e na vontade popular – e em meio a inúmeras bravatas golpistas, suas e de seus mais próximos correligionários, durante o mandato presidencial, iniciou-se um estranho movimento daqueles que juram “defender a democracia” clamando por censura, perseguição e violação de elementares liberdades democráticas – com destaque especial ao devido processo legal – para o fim de “combater o bolsonarismo” e “defender a democracia”. Uma espécie de “lava-jato II”.

Um dos exemplos – dentre muitos outros – foi o banimento do apresentador Monark do Youtube, obrigado a sair do programa que ajudou a criar por ter feito uma fala infeliz (e não passou disso) sobre a criação de um “partido nazista” durante uma de suas entrevistas. Uma chuva de histeria tomou conta das redes sociais e da mídia convencional. O apresentador deveria ser calado, cancelado e até preso, diziam, simplesmente por expressar sua opinião. Algo muito estranho para quem se arvora na condição de defensor da democracia.

Outra moda criada em tempos de bolsonarismo é a perseguição e a cassação de deputados, principalmente por suas declarações e manifestações. O deputado estadual Francischini, por exemplo, mais votado em seu Estado, foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE por “espalhar notícia falsa” sobre as urnas brasileiras. O Judiciário brasileiro arvorou-se na condição de autoridade máxima sobre decidir o que é ou não verdade. Às favas os milhares de votos obtidos pelo deputado.

O mesmo aconteceu com o execrável deputado estadual Arthur do Val, flagrado falando asneiras em grupo privado de aplicativo de conversas. Apesar do repúdio ao quanto dito pelo ex-deputado – e a tudo o mais que partia dele –, difícil entender que representa falta de decoro. Engraçado que o ex-deputado ir à Ucrânia, fora dos canais diplomáticos, para apoiar grupos nazistas, não causou repugnância e nem providências legais no Brasil, mas uma fala inofensiva em grupo particular foi o suficiente para um alvoroço totalmente desproporcional. Foi o deputado cassado por “declarações machistas”, algo ausente no ordenamento jurídico.

Por óbvio, a sanha persecutória não demoraria para alcançar o chamado campo progressista. O vereador Renato Freitas foi cassado pela Câmara Municipal de Curitiba por ter organizado manifestação no interior de uma igreja. Toda a esquerda ficou em polvorosa, com razão. Felizmente, a cassação foi anulada por decisão de outro ministro do STF. Uma decisão aparentemente correta, pois ninguém pode ser punido por “se manifestar”, notadamente um parlamentar. Todavia, não se viu qualquer autocrítica da esquerda sobre o apoio aos precedentes sobre cassação de deputados.

Digna de nota foi a decisão do ministro Alexandre de Morais, do STF, o qual determinou, em decisão monocrática e fora do devido processo legal (sem contraditório, ampla defesa, paridade de armas etc.), o banimento do Partido da Causa Operária – PCO de todas as redes sociais. O motivo: o partido, em algumas de suas publicações, chamou o ministro de “Skinhead de toga” e defendeu a “dissolução do STF”. Segundo a decisão, o debate de ideias só está permitido se o assunto contar com a concordância do ministro do STF e da chamada “comunidade jurídica”. Uma limitação indevida e inconstitucional da liberdade de expressão. Não se viram “juristas progressistas” para condenar a medida.

Arbitrariedades até mais graves vêm sendo cometidas em série pelo mesmo STF, notadamente a instauração, de ofício, de inquéritos (das fake news, dos atos antidemocráticos e outros) inexistentes no ordenamento jurídico, os quais violam o sistema acusatório (em que um órgão investiga, outro processa e outro julga) e os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade dos atos públicos, do duplo grau de jurisdição e outros, sem que se tenham meios de questionar as decisões nele emanadas.

Recentemente, oito empresários foram objeto do cumprimento de mandado de busca domiciliar em suas residências, única e exclusivamente por terem supostamente feito comentários sem maior importância em grupo de conversas sobre ditadura. Teria dito um empresário que preferia a ditadura a um terceiro governo Lula. Além do mandado, os empresários tiveram suas contas em redes sociais bloqueadas e seu sigilo bancário quebrado. Uma decisão ilegal, seja pela forma (tomada diretamente por ministro do STF, sem provocação de partes legitimadas), seja pelo conteúdo (em razão de uma conversa em grupo virtual).

Para muitos, o “combate ao bolsonarismo” e uma suposta “defesa da democracia” justificariam tais arbitrariedades. Já que Bolsonaro quer “implantar uma ditadura”, somente ações igualmente fora do ordenamento jurídico seriam aptas a frear o ímpeto golpista do chefe do executivo. Ocorre que tudo vem dando errado, e aparentemente dará errado cada vez mais.

A inesgotável violência contra os princípios fundamentais do Estado de Direito não impediu a vitória avassaladora do bolsonarismo no primeiro turno das eleições. É certo que Bolsonaro ficou em segundo lugar na disputa presidencial. Mas seus aliados têm agora muitas cadeiras na Câmara Federal, no Senado e em governos de importantes Estados, e tudo indica que terão ainda mais após o segundo turno. Mesmo que Bolsonaro perca a eleição presidencial – o que não está garantido nem de longe – seu poder no regime político será ainda maior.

Os bolsonaristas podem agora pautar agendas que modifiquem a composição e o funcionamento do Poder Judiciário (já há declarações nesse sentido), podem vetar indicados aos tribunais superiores e – com a moda criada e fomentada pela esquerda – perseguir e cassar deputados do campo popular.

Caso Bolsonaro vença a eleição, o quadro será ainda mais trágico. Terá ele o direito de indicar pelo menos mais dois ministros para o STF. Com maioria no parlamento e apoiado por uma parte considerável do sistema de justiça, dificilmente o imenso poder para censurar e calar opositores não se voltará de imediato contra a esquerda, a qual ficará sem meios para se defender e não poderá alegar violação a seus direitos, visto que agiu da mesma forma num passado recente.

Seja qual for o resultado – e espero que seja o melhor para a classe trabalhadora –, que fique a lição: não se brincam com direitos fundamentais. A “lava-jato” já comprovou. Não vale tudo para derrotar um inimigo político, principalmente um inimigo que tem uma força muito superior para controlar postos estatais importantes. A história demonstra que aqueles que defendem os direitos humanos e são identificados com as lutas populares são os mais vulneráveis a abusos jurídicos, que invariavelmente virão.

Nesse momento, não haverá Poder Judiciário para recorrer

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Mestre em direito internacional pela Universidade Católica de Santos. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD

Quem mexeu no queijo da revolução?

Por Plínio Gentil no GGN

Para um observador que não tenha chegado agora, ver as pautas do campo progressista, no atual processo eleitoral, causa estranhamento. Explico. O que se propõe é basicamente amor, tolerância, ambiente sustentável, inclusão das minorias, atenção à juventude e vai por aí.

            Não que isso não seja relevante: é e muito. Somente a visibilidade trazida pela denúncia de negligências e preconceitos, quaisquer que sejam, pode conduzir ao debate e produzir saídas para uma infinidade de pessoas que sofrem com a discriminação e o esquecimento. Que são impulsionados por sua identificação com determinado grupo, que, no universo simbólico desenhado pelas forças sociais dominantes, é considerado subalterno.

            Só que o progressismo não deve circunscrever-se a essa pauta. Porque historicamente, desde que alguns acumularam riqueza com exclusão de outros, os avanços dos arranjos sociais da humanidade são aqueles que representam rupturas, alterações, ou pelo menos uma oscilação do eixo que tem numa ponta o capital e na outra o trabalho. Em outras palavras, são as mudanças das relações entre esses dois extremos que demarcam saltos estruturais da sociedade. E esses saltos, aí sim, podem arrastar consigo, transformando-as, outras espécies de relações, como as existentes entre forças dominantes e minorias. E por último: não há registro de qualquer salto dado apenas com amor.

            Significa que, forçosamente, a agenda por relações interpessoais humanizadas precisa levar em conta a formação social dada e, se esta for a de uma sociedade desigual, considerar que a discriminação de minorias estará a serviço da força dominante, que é de base econômica. Em outras palavras, não foi o racismo que inventou o capitalismo; ao contrário, este último serviu-se muito bem da discriminação racial para legitimar sua expansão, pois tudo sempre se justificou – e assim continua a ser – a fim de civilizar, catequisar e democratizar povos ditos primitivos. Essa funcionalidade das minorias vale, é claro, também para o machismo, a homofobia e tantas outras formas de discriminação, todas úteis e, em certa medida, necessárias ao modelo de uma sociedade dividida em classes, onde a régua é a propriedade dos meios produtivos. Nessa lógica, a acumulação de riqueza por alguns precisa da ausência de riqueza pela maioria. É bem simples.

            Por esse motivo é que se estranha, no momento eleitoral – que é quando são mais esperadas -, o silêncio de vozes que, em outros tempos, proporiam redução da jornada de trabalho, aumento real do salário, autogestão, reforma tributária de verdade, coletivização do latifúndio improdutivo e outras intervenções no nervo do sistema, aptas a sacudir seus alicerces. Essa pauta fica restrita a dois ou três partidos de pouca expressão eleitoral e não chega a ganhar visibilidade.

            Isto parece significar, na verdade, duas apropriações, ambas em favor do status quo: uma, que é a da agenda identitária pelo aparato ideológico dominante, que a transforma em uma variedade de ações, apenas na aparência libertadoras, e úteis para pessoas posicionadas nos estratos sociais mais confortáveis. Florescem dessa maneira um feminismo de boutique, um antirracismo gourmet e outros espetáculos visuais que nem por um instante questionam a estrutura de dominação, que é, primeiro que tudo, entre classes.

            A outra apropriação é a do território histórico da esquerda por forças que, assumindo pautas corretas, como a ambiental, a identitária, a da liberalização dos costumes, deixa, contudo, de problematizar as raízes econômicas e patriarcais das dificuldades que se propõem resolver. Essa esquerda foi aos poucos substituindo, na sua visão de mundo, luta de classes por inclusão, imperialismo por globalização, fim da exploração por sustentabilidade. O neoliberalismo agradece. Afanou o queijo dos revolucionários e os domesticou.

            Enfim, toda esta arenga só quer alertar para a possibilidade de que o progressismo esteja se deixando seduzir e assim esquecendo o norte que deve ser sua maior inspiração.  O problema é que não basta às forças progressistas batalhar pelo clima, pelas baleias e outras batalhas também legítimas, porque isto, sozinho, não chega a ser um projeto de sociedade ou de país. Já tivemos por aqui um tal partido dos aposentados, que, como era de esperar, evaporou. Mas claro, a causa dos aposentados, embora justíssima, não é, por si só, um modelo de sociedade. Quando se lamenta a conciliação de classes que marca sucessivas etapas da história brasileira, não deveria haver surpresa: nossas vanguardas podem, imperceptivelmente e de boa-fé, estar se desviando da rota e navegando rumo ao desconhecido. Ainda bem que a Terra é mesmo redonda.

Plínio Gentil é procurador de Justiça no estado de São Paulo, doutor em Direito (PUC-SP) e em Educação (UFSCar) e professor de Direitos Humanos (PUC-SP) e Direito Penal (Unip). Integrante do Coletivo Transforma MP”.

Discriminação por meio de algoritmos nas relações de trabalho: não culpemos as máquinas, elas não sabem o que fazem

Rodrigo de Lacerda Carelli no GGN

O episódio Men Against Fire, da série televisiva Black Mirror, disponível na Netflix, mostra um mundo em que seres com faces monstruosas e corpos humanos vivem segregados e são perseguidos e caçados por uma milícia. Peço desculpa ao leitor pelo spoiler necessário, mas descobre-se na sequência do episódio que a população segregada é humana e que no cérebro dos soldados milicianos são implantados chips que fazem com que eles vejam as faces desfiguradas e não os reconheçam como semelhantes, mas sim como “baratas”, como eram chamados, facilitando assim a perseguição e o extermínio. O episódio é baseado em estudo empírico publicado em livro homônimo do episódio escrito em 1947 por S. L. A. Marshall, em que se demonstrou que somente 25% dos combatentes de guerra estadunidenses disparam suas armas em direção aos inimigos e que uma parte considerável dos soldados nunca chegaram a acionar o mecanismo de disparo.

Men Against Fire pode ser visto como alegoria da construção social do preconceito. O preconceito e a discriminação, aos quais se integra a construção imaginária de inimigos por meio de criação de raças e cores como nos mostra Achille Mbembe, são uma construção social. As categorizações são realizadas para causar distinção, e as distinções geralmente são para separar o nós e o eles, privilegiando o primeiro grupo, ao qual são reservados os melhores lugares da sociedade e relegando os outros grupos a lugares menos privilegiados, ou mesmo à sua exclusão da sociedade – em sentido figura ou real.

Quando falamos de discriminação algorítmica, geralmente temos a impressão de que quem discrimina é o algoritmo. Entretanto, um algoritmo, como um conjunto de instruções para a obtenção de determinado objetivo, mesmo associado a qualquer espécie da chamada “Inteligência Artificial”, até na forma de redes neurais, não tem desejos, vontades, não tem nenhum tipo de interesse em causar distinção. Em verdade, a inteligência artificial nem poderia ser considerado como inteligência, pois não teoriza nem dá explicações e, mais do que isso, não defende pontos de vista ou constrói teses justificadoras de seus atos. Assim, não tem objetivos, e se causa discriminação é pelo fato de reproduzir, e às vezes ampliar, as construções sociais de preconceito e discriminação existentes na sociedade – ou mesmo as próprias daqueles que desenham ou são proprietários do algoritmo. O algoritmo busca somente melhor cumprir os objetivos que lhe são assinalados e se para isso tem que reproduzir o preconceito da sociedade ele o fará, a menos que lhe seja determinado expressamente que não o faça.

Quando analisamos a utilização de algoritmos e inteligência artificial nas relações de trabalho percebemos claramente isso. Um algoritmo utilizado em uma relação trabalhista – ou um conjunto de relações com um empregador – é ao mesmo tempo o gerente, o capataz e o regulamento da empresa. Ele é regulamento da empresa, pois contém o conjunto de regras e instruções para organização da atividade, compreendendo as regras para o trabalho.  Ele é o gerente, pois toma as decisões gerenciais médias, sempre a partir das decisões gerais traçadas pela diretoria da empresa, que sempre é de carne e osso.  E é também o capataz ou encarregado, pois vigia os trabalhadores em relação ao cumprimento do regulamento da empresa, direciona rumo aos objetivos traçados e os pune diretamente (ou indicam isso ao superior hierárquico) caso não cumpram as regras. Tudo sempre, obviamente, sujeito a revisão e à palavra final da direção empresarial.

A Amazon, por exemplo, utiliza em seus centros logísticos um algoritmo com inteligência artificial para coletar e processar dados dos trabalhadores que buscam mercadorias nas longas fileiras de estantes, cronometrando o tempo de cumprimento das funções, calculando as distâncias e determinando as tarefas por eles realizadas. A empresa permite que a tomada de decisão de dispensa de trabalhador que não atinja as metas desejadas pela empresa seja realizada diretamente pelo algoritmo, sem a intervenção do ser humano. Se esse algoritmo dispensar trabalhadoras grávidas ou pessoas acometidas por alguma enfermidade, ou mesmo negros ou mulheres em geral, a discriminação não é realizada pelo algoritmo (nem a dispensa de fato é realizada pelo algoritmo, ele é mero instrumento), que só cumpriu o objetivo (o output) que lhe foi entregue (o input) pela empresa por seu proprietário, por meio de seus diretores (ou por quem tenha o poder de determinar os objetivos do algoritmo). Inclusive se o algoritmo, por meio de aprendizado profundo ou redes neurais, descobrir que mulheres grávidas produzem menos ele indicará a dispensa de todas elas, pois ele faz correlações. Se ele tiver a informação (dado) que a empresa tem essa prática de dispensar grávidas, como se noticia, ele o fará. Se você ensina um cão a atacar para matar e não ensina as exceções, muito provavelmente o cão irá atacar para matar indistintamente. E pelo Código Civil brasileiro o proprietário é responsável pelos atos de seu animal (art.  936).

O tribunal de Bolonha, Itália, condenou por discriminação a empresa Deliveroo, que realiza entrega de alimentação por meio de plataforma digital similar à iFood brasileira. O seu algoritmo Frank foi considerado como instrumento de discriminação. Entendeu a corte que ao realizar sistema de ranqueamento de trabalhadores a partir da sua frequência e produção, destinando aos melhores classificados os melhores horários e ofertas de trabalho, e não prever como exceção a ocorrência de fatores como doença, gravidez ou mesmo participação de greves, a empresa seria responsável pela discriminação desses trabalhadores. Entendeu que a não previsão dessas exceções seria cegueira deliberada, por não considerar as diferenças entre diversos casos e possibilidades, o que comprovaria de pronto a discriminação.

A cidade de Nova Iorque, a partir de janeiro de 2023, colocará em vigor uma lei que trata de ferramentas automatizadas de decisão nas relações de emprego, considerando como tal qualquer “processo computacional, derivado da aprendizagem de máquinas, modelagem estatística, análise de dados ou inteligência artificial” que “emita um resultado simplificado”. A previsão é de que as empresas não poderão utilizar desses instrumentos a menos que haja uma auditoria prévia sobre os vieses de discriminação e os resultados sejam publicados em sua página de Internet. Essa auditoria independente deverá ser refeita a cada ano. Os trabalhadores terão direito a serem informados sobre a utilização do sistema automatizado e o tipo de dados coletados para a ferramenta de decisão de emprego automatizada, a fonte de tais dados e a política de retenção de dados do empregador ou da agência de emprego. Além disso, haverá o direito de pedir um processo alternativo de seleção no lugar do automatizado. E, mesmo assim, os trabalhadores que se sentirem discriminados poderão ajuizar ações para reparação.

No Brasil, não temos norma específica de direito do trabalho, mas pode ser aplicada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoas, conhecida como LGPD, que prevê a revisão de tomada de decisão realizada unicamente pelo sistema automatizado. A norma prevê também é direito receber “informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos procedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os segredos comercial e industrial.”(§ 1º). No caso de não recebimento dessas informações, a autoridade nacional poderá realizar auditoria para verificação de aspectos discriminatórios (§ 2º). Ou seja, os algoritmos de gestão de pessoas devem ser publicizados aos trabalhadores.

O episódio de Black Mirror citado no início deste texto recebeu no Brasil o título de “Engenharia Reversa”. Esse é outro spoiler imprescindível: as pessoas consideradas como “baratas” construíram um equipamento eletrônico que, direcionado para a cabeça dos soldados, ocasionava uma interferência no chip cerebral e os soldados poderiam ver como eles eram realmente – seres humanos como eles -, gerando empatia e impedindo de serem mortos.

O direito, em especial o direito do trabalho, pode ser essa engenharia reversa.

Os juízes podem – e talvez devem – utilizar as auditorias como instrumento de prova em processos para a verificação de vieses discriminatórios. Os algoritmos, como regulamento de empresa, contêm cláusulas contratuais, e segundo o princípio da boa-fé, não pode haver cláusulas contratuais secretas em relação a uma das partes. Os critérios e procedimentos para a decisão automatizada, como nos comanda a LGPD, devem ser informados de maneira clara e adequada aos trabalhadores. Hoje os algoritmos são opacos e as empresas, principalmente aquelas que se autodenominam de plataformas digitais, se negam a abrir os seus critérios aos trabalhadores, em flagrante violação à LGPD.

Mais do que isso: os juízes podem, com base no entendimento de que algoritmos com inteligência artificial são meros instrumentos de organização empresarial, sendo seus atos, portanto, derivados da atividade empresarial e, imputar a responsabilidade nas empresas.

O virtual é mero instrumento de atuação no real. As lesões e discriminações têm seus efeitos aqui, em pessoas de carne e osso com necessidades e sentimentos. Por trás de algoritmos estão sempre pessoas e o algoritmo só está a mando delas. As máquinas só cumprem ordens e realmente não sabem o que fazem. Aqueles que comandam, por outro lado, geralmente sabem o que as máquinas fazem e farão ou simplesmente desejam correr o risco que façam.

Rodrigo de Lacerda Carelli, Procurador do Trabalho na PRT/1, Professor da UFRJ e membro do Coletivo Transforma MP

A democracia em ruínas e o futuro da constituição

Por Cristiano Paixão no GGN

Ao olhar para seu passado recente, o Brasil se depara com ruínas e escombros. A destruição do Museu Nacional, em setembro de 2018, foi um evento traumático, com perdas irreversíveis e irrecuperáveis, e as imagens do palácio em chamas foram depois substituídas pelos registros do acervo carbonizado, transformado em cinzas.

            A partir de 2019, com o início do governo Bolsonaro, incêndios vêm devastando grandes espaços da Floresta Amazônica e do Pantanal. Fotografias com árvores calcinadas, acompanhadas de esqueletos de animais mortos, circularam pelo Brasil e pelo mundo, e são uma pungente e incômoda demonstração da ausência de políticas públicas ligadas ao meio ambiente. O trabalho corajoso de fotojornalistas como Gabriela Biló, Lalo de Almeida e Dida Sampaio foi fundamental para a ampla divulgação do desastre ambiental.

            Como bem ressaltado por Gisele Beiguelman, no incêndio do Museu Nacional “[o] que se perdeu foi muito mais do que o prédio e seu acervo. Subtraiu-se um pedaço do conhecimento que estava reservado também às próximas gerações. Não só do Brasil, mas do mundo”. Segundo a mesma autora, o incêndio do Museu se coloca no plano da produção de escombros. Beiguelman resgata então a diferença, bastante presente na teoria literária contemporânea, entre ruína e escombro. Na ruína há uma ideia de historicidade, há a persistência de uma relação entre passado, presente e futuro. Por outro lado, alguns episódios de destruição vividos em nosso tempo geram apenas escombros e perdem essa capacidade de transmitir uma mínima ordem temporal: “a catástrofe do século XXI é terminal, assertiva. É um momento sem futuro. Não tem um depois” [1].

             Não cabe propor, no presente texto, uma arqueologia da noção de ruína, que surge com destaque na obra de muitos autores ligados aos estudos culturais, como Andreas Huyssen, Peter Fritzsche, Svetlana Boym, entre outros. Mas um aspecto chama a atenção: nosso tempo vive uma “estranha obsessão com as ruínas nos países do Atlântico Norte, como parte de um discurso muito mais amplo sobre a memória e o trauma, o genocídio e a guerra”[2]. Essas palavras foram escritas em 2006, antes, portanto, que as experiências dos governos antidemocráticos se consolidassem em muitos países (como no Brasil contemporâneo) e sem que se pudesse imaginar a experiência da pandemia da Covid-19, que conferiu aos termos “trauma” e “genocídio” uma concretude muito maior.

            A noção de ruína pode compreender, num contexto de crise, uma busca por explicação. Como diz Svetlana Boym, o interesse contemporâneo pelas ruínas não é apenas um sintoma, mas também indica um lugar para novas explorações e produção de sentido[3]. Huyssen afirma que as ruínas podem ser vistas como um ponto crítico, que permitam uma visão (e uma compreensão) “das devastações do tempo e do potencial do futuro, da destrutividade da dominação e das trágicas deficiências do presente”[4].

            As ruínas, como testemunhos da passagem do tempo, evocam um passado, manifestam-se no presente e podem indicar futuros alternativos, já que exigem um olhar condicionado pela história: como se produziram as ruínas? E o que elas nos comunicam?

             As tragédias invocadas no presente texto possuem um elemento comum: são formas de conduta (omissiva ou ativa) que violam princípios fundamentais da Constituição de 1988. Nunca é demasiado lembrar que a cultura e o meio ambiente são expressamente protegidos no texto constitucional, como é possível perceber pelo teor dos artigos 215, 216 e 225, entre vários outros. A destruição do museu e os incêndios na Amazônia e Pantanal decorrem de uma conduta deliberada de esvaziamento do arcabouço institucional previsto na Constituição. É evidente que os órgãos de fiscalização e regulação da cultura e do meio ambiente foram “destruídos por dentro”, como já tivemos oportunidade de observar em artigo publicado neste espaço.

            Estamos, portanto, diante de práticas desconstituintes que possuem imenso potencial lesivo de caráter transgeracional – não apenas no presente, mas também no futuro serão sentidas as consequências das tragédias ligadas ao mundo da cultura e à tutela do meio ambiente. Instituições são essenciais às democracias modernas – nenhuma constituição pode prescindir delas.

            E não são somente as instituições estatais que estão sob ataque. A aversão dos detentores do poder se estende às organizações não governamentais em geral. Segundo o atual ocupante da presidência da república, as organizações não governamentais ligadas à tutela do meio ambiente, especialmente na Amazônia, seriam um tipo de “câncer”. Tal afirmação representa uma clara violação à Constituição, que coloca a proteção do meio ambiente como uma responsabilidade do poder público e da coletividade.

Assim, o que se procura realizar, no contexto contemporâneo de abandono do meio ambiente, é uma desconstrução da ordem constitucional. A mesma conclusão se aplica aos campos da cultura, da educação, do combate ao racismo, dos direitos dos povos originários, da observância dos direitos voltados à verdade e à memória, entre outros.

            O colapso, o enfraquecimento, o esvaziamento das instituições destinadas à execução de políticas públicas em campos temáticos previstos na Constituição denotam um constitucionalismo em ruínas, e também uma democracia em ruínas. Devemos acrescentar um outro elemento a essa observação: a existência de uma expressiva parcela da população, especialmente nas periferias dos centros urbanos brasileiros, que é alcançada apenas marginalmente pela ordem constitucional, e para quem os direitos fundamentais empalidecem diante da violência policial, da falta de oportunidades, da discriminação. Aqui se trata de um constitucionalismo em estado de latência, que produziu ruínas antes mesmo de atuar na vida concreta de pessoas e coletividades.

            Trata-se, portanto, de ruínas sobrepostas. O projeto constitucional de 1988 encontrou resistências, foi esvaziado em algumas das suas partes essenciais e passou a ser expressamente desconstruído nos últimos anos. Reitere-se que o processo se iniciou por volta de 2014, como assinalado em artigo anterior, e se aprofundou a partir de 2019.

            Um dos efeitos nocivos dessas práticas desconstituintes é a disjunção entre constitucionalismo e democracia. O elemento democrático é inseparável da Constituição de 1988, diante da sua própria história inserida num movimento de redemocratização. Atacar a democracia no Brasil significa, assim, investir contra a Constituição.

            Toda narrativa moderna produz ruínas – materiais e textuais. Vivemos um momento em que essas ruínas ganham maior visibilidade. Mas isso não indica a falência ou o fim da ordem constitucional vigente. Algo importante subsiste. Como afirmado, com imensa propriedade, por Menelick de Carvalho Netto em evento comemorativo dos 30 anos da Constituição (realizado às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018), é “precisamente em tempos de negação da Constituição que mais devemos insistir em seu papel contrafático”[5]. A produção de ruínas não retirou a perspectiva de futuro da atual Constituição. Pelo contrário: essa ameaça de destruição tem o importante papel de alertar para as deficiências, as incompletudes, os silêncios envolvidos na produção do texto constitucional em vigor.

            Ainda que remetam a algo que ocorreu, a uma transformação pretérita, as ruínas preservam um potencial voltado ao futuro. Elas revelam o lado obscuro de processos de modernização, e permitem que se estabeleçam novas formas de transformação social. As ruínas do constitucionalismo moderno são um signo de que o projeto constitucional iniciado em 1988 persiste. Só não é possível saber por quanto tempo. Como dito por Vera Karam de Chueiri em relação à Constituição que está próxima de completar 34 anos: “é preciso que a retomemos em nossas próprias mãos, com ela lutemos, pois a democracia só se realiza se determinadas condições jurídicas estiverem presentes, as quais são dadas pela Constituição”[6].

Esse é o desafio do tempo presente[7].

Cristiano Paixão – Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Eixos, planos,ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB).


[1] Gisele Beiguelman. Memória da amnésia – políticas do esquecimento, Edições SESC, São Paulo, 2019, p. 215.

[2] Andreas Huyssen. Nostalgia for Ruins, Grey Room 23 (2006), p. 7.

[3] Svetlana Boym. The Off-Modern, Bloomsbury, New York and London, 2017, p. 45.

[4] Huyssen, Nostalgia for Ruins, p. 9.

[5] A tensão entre memória e esquecimento nos 30 anos da Constituição de 1988, in Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; David F.L. Gomes (org.), 1988-2018: o que constituímos?  Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos da Constituição de 1988, Conhecimento, Belo Horizonte, 2019, p. 387.

[6] A constituição (na) encruzilhada ou a constituição e o ovo da serpente, in Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira; David F.L. Gomes (org.), 1988-2018: o que constituímos?, p. 380.

[7] Registro meus agradecimentos a Irma de Assis, Maria Celina Monteiro Gordilho e Raphael Peixoto de Paula Marques pelas importantes contribuições ao texto.

PROBLEMATIZANDO A ESCOLHA DA CHEFIA DO MINISTÉRIO PÚBLI-CO BRASILEIRO

Por Marcelo Pedroso Goulart e Márcio Soares Berclaz no GGN

Materialmente, quem precisa (ria) “chefiar” o Ministério Público é a sociedade. No desafio da vida democrática cotidiana, é para a sociedade que o Ministério Público existe e se justifica como instituição do dito sistema de justiça. Não a partir de qualquer “lugar”, mas tomando como ponto de partida a missão constitucional confiada à instituição.

A evolução histórico-institucional do Ministério Público brasileiro deve ser permanente e constante, acompanhando os problemas da sociedade no seu tempo, com atenção à dialética da história, sempre na direção de avanços e aprimoramentos necessários a qualquer instituição. 

Quando esse tema aparece, ainda que de maneira marginal, na pauta de candidatos a Presidente da República, quando a discussão sobre autonomia, independência e controle do Ministério Público ganha os editoriais dos “jornalões”, quando, numa simples conversa, percebe-se que a sociedade, de modo geral, ainda desconhece não só algumas atribuições constitucionais, mas como se dá o processo de escolha da chefia do Ministério Público, tem-se um indicativo de que a tarefa de democratização do Ministério Público é um desafio urgente.  

Nesse contexto, poucas vezes foi tão oportuno e atual discutir a insuficiência da previsão constitucional para a escolha do Procurador-Geral da República.

É o Procurador-Geral da República quem não só preside o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), colegiado criado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, como também ocupa assento único no Supremo Tribunal Federal, como Corte Constitucional, representando o Ministério Público brasileiro, composto de dois grandes ramos: Ministérios Públicos dos Estados e Ministério Público da União (Federal, do Trabalho e Militar).

No art. 127, a Constituição da República confere ao Ministério Público a missão de promover e defender a ordem jurídica (a Constituição e toda legislação a ela adequada) e a democracia substantiva (o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis), assim como tão bem sintetizada nos seus três primeiros artigos. Dessa missão decorrem inúmeras atribuições, previstas no rol exemplificativo do art. 129, dentre as quais a de fiscalizar, em nome da sociedade, os poderes da República. Pela importância dessas tarefas, os trabalhadores dessa Instituição nela ingressam por meio de concurso público de provas e títulos para integrar uma carreira pública de Estado (Constituição da República, art. 129, § 3º, combinado com o art. 37, inciso II).

A rala previsão normativa constitucional prevê em dois precários parágrafos do artigo 128 a configuração da Procuradoria-Geral da República. No primeiro, determina que ao PGR cabe a chefia do Ministério Público da União. Ainda nesse parágrafo, define que a sua nomeação recaia sobre integrante da carreira, maior de trinta e cinco anos, com nomeação pelo Presidente da República e aprovação do seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal para mandato de dois anos, permitida a recondução. 

De pronto, três problemas chamam atenção: 1) permitir-se que seja justamente a autoridade fiscalizada, no âmbito civil e criminal, pela Procuradoria-Geral da República, no caso, o Presidente da República, a responsável pela indicação e nomeação do seu próprio fiscal;  2) exigir que  apenas a maioria absoluta do Senado (metade do total de membros mais um), e não a qualificada (p. ex., dois terços ou três quintos do total de membros) aprove a nomeação, sem a participação da Câmara de Deputados como Casa do Povo; 3) permitir uma sempre questionável recondução, ao invés de prever mandato um pouco mais estendido sem essa possibilidade sempre polêmica. 

Percebe-se de plano que o Ministério Público, Instituição encarregada da defesa do regime democrático, nos termos do artigo 127 da Constituição, não respeita a melhor dimensão da democracia para a escolha do PGR, nem mesmo na dimensão da representação, quando mais da participação, da deliberação e da radicalidade. 

O máximo que se tem é um mecanismo democrático indireto em que o Presidente da República “da vez” escolhe quem ocupará este cargo, nomeação submetida à aprovação por maioria absoluta por apenas uma das casas do Congresso Nacional.

Essa nomeação sequer prevê uma pré-seleção de interessados por chamamento público ou qualquer outro modo mais democrático de chamamento ou escolha, com possibilidade de diálogo e participação da sociedade, inclusive para impugnar ou questionar, a partir de critérios objetivos ou de requisitos pré-definidos, pretendentes ao cargo. 

A aprovação pelo Legislativo, como regra e fluxo procedimental, não é precedida de audiências públicas e de possibilidade de efetiva participação da sociedade civil e dos movimentos sociais-populares como destinatários da ação do Ministério Público como instituição do sistema de Justiça ou de aplicação do Direito. 

Em outras palavras, aceitar a “normalidade” desse aberrante modelo seria como aceitar, no microcosmo, que fosse o Prefeito Municipal de qualquer município brasileiro o principal responsável pela escolha do Promotor Promotor de Justiça que irá fiscalizá-lo, contanto que houvesse aprovação por maioria absoluta dos membros da Câmara de Vereadores.

Evidente que não é preciso muito esforço para que se perceba uma contradição lógica e ético-republicana nesse modelo, suficiente para, no mínimo, enfraquecer a independência e a necessária autonomia institucional do Ministério Público, atributo essencial que decorre de sua missão e das atribuições que, em regra, têm como objeto o enfrentamento com o poder político ou com o poder econômico, isoladamente considerados ou em combinação.

Mas não é só. Preocupante ainda é que, de modo a complementar esse arrevesado modelo, o parágrafo segundo do artigo 128 da Constituição preveja que a destituição do Procurador-Geral da República não pode ser de iniciativa do Congresso ou mesmo de qualquer outro cidadão, mas unicamente do próprio Presidente da República que o nomeou, o que não faz o menor sentido, posto que se equipara um processo de “destituição” a uma simples exoneração, ainda que essa precise ser autorizada por maioria absoluta, e não qualificada, do mesmo Senado. Afigura-se aqui, a esdrúxula figura do fiscal refém do fiscalizado. 

Ainda que aparentemente menos ruim, a forma de escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça (Chefes dos Ministérios Públicos Estaduais e do Distrito Federal) também não se apresenta como a mais compatível com o regime democrático na amplitude e riqueza da sua dimensão (ver CR, art.128, § 3º).  A formação de lista tríplice dentre integrantes da carreira não é suficiente para dar contornos de legitimidade à escolha dos Procuradores-Gerais de Justiça, pois a decisão final cabe ao Chefe do Executivo, com os mesmos inconvenientes apontados para o caso da nomeação do PGR. Se é certo que o ato complexo permite “primeiro turno” que passe pela eleição interna com participação dos agentes políticos na definição dos três nomes a compor a lista – um inegável avanço ao tempo da sua implementação –, também é certo que os Legislativos Estaduais e do DF ficam afastados do processo, e o “segundo turno” ocorre de forma pouco transparente, tornando os candidatos sobrantes susceptíveis ao jogo político-partidário clientelista e elitista de baixo alcance que se trava entre as quatro paredes dos gabinetes palacianos. Aqui, também, em último grau, o fiscal é escolhido pelo fiscalizado, possibilitando formas de cooptação que igualmente ferem de morte a autonomia do Ministério Público. 

O processo de escolha e de destituição dos Procuradores-Gerais, em todos os níveis, deve garantir-lhes legitimação sociopolítica, como também deve preservar a autonomia institucional dos Ministérios Públicos. Mais: adequando-se esse processo ao princípio constitucional da democracia semidireta, devem ser estabelecidos mecanismos que permitam a participação cidadã, o controle social e a responsabilização (accountability) do escolhido.

Tomando de empréstimo binômio proposto por Paulo Freire, para além da denúncia, apresenta-se para reflexão alguns dos possíveis anúncios desse modelo.

Ainda que seja de se esperar que com a conscientização e reflexão da sociedade possamos alcançar níveis mais avançados e bastante disruptivos com o limitado e insuficiente modelo atualmente vigente, importante chamar atenção de que são bastante factíveis propostas “reformistas” de baixa ou média intensidade, mas capazes de incrementar o formato atualmente vigente.

Enquanto espera-se espaço de abertura para a primeira proposta, apresenta-se algumas hipóteses que servem para amadurecer e estimular o debate a respeito do tema, certo de que o simples fato de o assunto ser problematizado e discutido já cria um ambiente propício para conscientização da sociedade sobre o ponto objeto de análise.

Afinal, sabe-se que a mudança cultural é lenta e enfrenta os limites da dialética da história, desafiando uma linguagem para muito além do universo jurídico e, inclusive, por outros meios de alerta e sensibilização para o problema, na certeza de que o melhor “modelo” não poderá ser construído de maneira “corporativa” ou “por dentro do Ministério Público”, mas por uma qualificada e atenta escuta da sociedade.

Propõe-se, assim:

1)Discutir, em perspectiva crítica, as vantagens e desvantagens adoção da lista tríplice como um dos aspectos integrantes no processo de escolha dos Procuradores-Gerais da República, dos Estados e do Distrito Federal, repensando como se dá a formação da lista e estendendo-se o direito ao voto a todos os integrantes da instituição (agentes políticos e técnico-administrativos), aprimorando o encaminhamento direto da lista tríplice às respectivas casas legislativas objetivando a avaliação das propostas dos membros da lista tríplice em audiências públicas e sabatinas;

2) escolha dos Procuradores-Gerais pelo plenário dos órgãos Legislativos, após audiências públicas com possibilidade de participação da sociedade, com envolvimento de comissão especializada correspondente e por deliberação de maioria qualificada, para mandato de 04 (quatro) anos, vedada a recondução;

3) envio do nome escolhido pelo Legislativo ao Executivo para mera expedição do ato de nomeação, salvo eventual e excepcional hipótese de devolução por descumprimento ou insuficiente observância do fluxo devido;

4) conferir aos respectivos órgãos da administração superior dos Ministérios Públicos, aos Chefes de Executivo, às bancadas dos partidos políticos e, sobretudo, às organizações populares da sociedade civil devidamente reconhecidas como existentes e legítimas, a iniciativa para o pedido de destituição dos Procuradores-Gerais perante os órgãos Legislativos que os escolheram;

5) prestação de contas anual, pelos Procuradores-Gerais, sobre o cumprimento do que, idealmente com a necessária e democrática participação da sociedade,  foi estabelecido no planejamento estratégico e nos planos gerais de atuação dos respectivos Ministérios Públicos, em audiência pública realizada na sede dos respectivos órgãos Legislativos que os escolheram, garantindo-se o direito a voz aos presidentes de todas as comissões legislativas, aos representantes legais das organizações da sociedade civil e a qualquer do povo, mediante prévia inscrição.

Antes que se diga que outros modelos de direito comparado adotarem perspectiva similar a que temos, a autenticidade e singularidade do Ministério Público brasileiro, atuante tanto na titularidade da ação penal como na defesa e promoção dos direitos humanos, não por acaso definido por qualificada doutrinadora como uma “jaboticaba” (Maria Tereza Sadek), impõe que haja um modelo exemplarmente democrático e vigorosamente legítimo para escolha das suas chefias, no caso, as diferentes “Procuradorias-Gerais”.

Um novo (ou no mínimo aprimorado) modelo robustamente democrático que tenha como premissa a preservação da autonomia e da independência da instituição. Um  arejado e mais republicano procedimento de escolha que, diferentemente do que hoje ocorre, permita que haja consciência, organização e politização da sociedade para compreender a importância e o papel desta autoridade jurídica não só para o fortalecimento do Ministério Público brasileiro, mas, sobretudo, para que seja o Ministério Público, cada vez mais, uma essencial à justiça, comprometida com a realização dos objetivos da República e imprescindível para a árdua e cotidiana tarefa de fiscalização dos poderes constituídos para resguardo de direitos fundamentais e coletivos do povo brasileiro.  

Marcelo Pedroso Goulart (marcelogoulart@uol.com.br – membro do MP-SP (aposentado), do Coletivo por um Ministério Público Transformador e do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Ministério Público, Direito e Democracia

Márcio Soares Berclaz (marcioberclaz@gmail.com – membro do MP-PR, do Coletivo por um Ministério Público Transformador e do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Ministério Público, Direito e Democracia

De Florestan Fernandes à Carta de Brasília – O Ministério Público na encruzilhada de suas vocações e responsabilidades

“As colunas da injustiça sei que só vão desabar quando o meu povo, sabendo que existe, souber achar dentro da vida o caminho que leva à libertação. Vai tardar, mas saberá que esse caminho começa na dor que acende uma estrela no centro da servidão. De quem já sabe, o dever (luz repartida) é dizer. Quando a verdade for flama nos olhos da multidão, o que em nós hoje é palavra no povo vai ser ação”.

Quando a verdade for flama. Thiago de Mello.

Por Alessandra Elias de Queiroga, Márcio Soares Berclaz e Marlon Alberto Weichert no GGN.

O singular e autêntico Ministério Público brasileiro, instituição essencial à Justiça e responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais, nasce com a Constituição de 1988. O constituinte se preocupou que o Ministério Público, dentre outras diversas e relevantes funções, exercesse um papel ativo e protagonista na promoção e defesa dos direitos humanos e dos interesses fundamentais da sociedade.

Passadas mais de três décadas da Constituição de 1988, a missão constitucional do Ministério Público de promoção e proteção dos direitos humanos ainda é pouco reconhecida pela sociedade, seja porque a defesa de direitos não merece tanto espaço midiático como as ações de repressão, seja porque a atuação está aquém do necessário ante as enormes demandas existentes nesse campo. Em qualquer caso, o Ministério Público é pouco reconhecido, cobrado e controlado pelo que faz e deixa de fazer nessas searas. Nem mesmo as forças vivas e ativas do tecido social encontram espaço para acompanhar, entender e monitorar a instituição no desempenho desses seus elevados encargos constitucionais.

É indiscutível que nesses 30 anos o Ministério Público produziu um rol extenso de importantíssimas ações judiciais e extrajudiciais na defesa de interesses difusos e coletivos em múltiplos flancos dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. A defesa do direito à saúde, à educação, ao meio-ambiente, das pessoas com deficiência, à cidade, ao desenvolvimento social, dos povos indígenas, dos quilombolas, à sexualidade e muitos outros estiveram no cerne da atividade institucional. Mas, mesmo assim, o cumprimento eficiente dessa missão constitucional segue um desafio a exigir resiliência, dinamismo e adaptação. Mas, sobretudo, a pedir mais presença social.

Nesse período, muitas foram as tentativas tanto de enfraquecimento como de aprimoramento do Ministério Público. Muitas vezes houve a pretensão de se controlar a instituição por conta dos seus acertos. Mas, em outras, o objetivo foi estabelecer maior participação social, para aperfeiçoar o Ministério Público no cumprimento das promessas constitucionais.

Em linha com esse segundo propósito, no conturbado ano de 2016, a Corregedoria Nacional do Ministério Público e as Corregedorias Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União celebraram um pacto buscando a “modernização do controle da atividade extrajurisdicional pelas Corregedorias do Ministério Público bem como o fomento à atuação resolutiva do MP Brasileiro”, com a edição da Carta de Brasília[1].

Esse documento, aprovado durante o 7º Congresso Brasileiro de Gestão, em setembro de 2016, “explicita premissas para a concretização do compromisso institucional de gestão e atuação voltadas à atuação resolutiva, em busca de resultados de transformação social, prevendo diretrizes estruturantes do MP, de atuação funcional de membros e relativas às atividades de avaliação, orientação e fiscalização dos órgãos correicionais”.[2]

Os termos desse posicionamento causaram grande impacto entre os membros dos diversos ramos do Ministério Público, tendo sido recepcionados com bastante desconforto por alguns, ao mesmo tempo em que outros celebravam a retomada do perfil do Ministério Público na sua matriz constitucional.

Não por acaso a denominada Carta de Brasília, verdadeira joia do cerrado produzida pelo Ministério Público brasileiro, apresenta vários itens coincidentes com as reflexões levadas a efeito em dois artigos recentes por nós publicados[3], nos quais, entre outras ponderações, procuramos fazer uma avaliação da necessidade da transformação do sistema de justiça a partir do protagonismo da indispensável participação popular, além de apresentar algumas ideias do que seria necessário para o aperfeiçoamento do Ministério Público Brasileiro no desafio de dar maior efetividade à confiança que a Constituição da República de 1988 depositou na instituição.

Dentre as diretrizes estruturantes da Carta de Brasília está o “desenvolvimento de uma nova teoria do Ministério Público, embasada nos direitos e nas garantias constitucionais fundamentais, que possa produzir práticas institucionais que contribuam para a transformação da realidade social”, a “[c]oncepção do Planejamento Estratégico como garantidor da Unidade do Ministério Público”, a importância do “estabelecimento de Planos, Programas e Projetos que definam, com a participação da sociedade civil, metas claras, precisas, pautadas com o compromisso de efetividade de atuação institucional em áreas prioritárias de atuação, valorizando aquelas que busquem a concretização dos objetivos fundamentais da República e dos direitos fundamentais”, a relevância da “valorização das Escolas Institucionais e capacitação permanente dos Membros e Servidores, estimulando o conhecimento humanista e multidisciplinar”, o “estabelecimento da prática institucional de atuação por meio de projetos executivos e projetos sociais, de maneira regulamentada e com monitoramento para verificar a sua efetividade”, a necessidade da “criação de canais institucionais que possibilitem o diálogo e a interação permanente com as organizações, movimentos sociais e com a comunidade científica” e o “aprimoramento da transparência da atuação institucional e fomento ao controle social”, inclusive o “aprimoramento dos mecanismos de prestação de contas à sociedade acerca das metas estabelecidas e dos resultados alcançados”.

Editada há 6 anos, a Carta de Brasília efetivamente não impactou o modo de atuar do Ministério Público, que segue amarrado à tradição e ao exercício de suas funções sob premissas conservadoras. Mas isso não é motivo para desistir. O norte traçado para o Ministério Público pela Carta de Brasília voltou à tona com o Fórum Social Mundial temático Justiça e Democracia – FMSJD, realizado nos dias 26 a 30 de abril de 2022, em  Porto Alegre-RS. O Fórum teve o papel de propiciar novas reflexões sobre o caminho a ser percorrido para a consolidação de um sistema de justiça que seja capaz de promover uma cidadania efetiva. Um sistema de justiça que democratize o acesso à justiça e aos direitos, e incorpore necessárias inovações institucionais.

Foi  justamente no embalo dialético dos encontros, discussões e proposições do Fórum Social Mundial temático Justiça e Democracia, que ocorreu o seminário nacional  “O Sistema de Justiça que Queremos”, promovido pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), nos dias 28 e 29 de julho de 2022, em Guararema-SP. Talvez um dos aspectos mais simbólicos desse encontro tenha sido a sua realização na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), mantida por um dos mais significativos movimentos sociais do Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, fundado em 1984.

Na verdade, desde a sua criação, o MST organiza cursos para seus militantes e dirigentes: tanto é assim que ao longo do tempo foram construídas diversas escolas para essa finalidade. Porém, na segunda metade da década de 1990, foi iniciada a campanha para a construção da ENFF, justamente em razão da necessidade sentida de se ter um espaço para o fortalecimento da prática de organização social e política em âmbito nacional, articulando as diversas escolas estaduais e regionais do MST.

Segundo PRINCESWAL[4]:

 “a ENFF seria então um: espaço de convivência, de intercâmbio de experiência, de fortalecimento de valores, de cultura, de análise, de estudo (…)” o que só seria possível “com a apropriação dos conhecimentos científicos produzidos para a melhor compreensão da realidade, dos contornos assumidos pela luta e para elaborar estratégias para nela intervir”.

Impulsionada por personalidades da estatura de Sebastião Salgado, José Saramago e Chico Buarque, e uma campanha nacional e internacional de apoio à sua construção, em 2005 a escola virou realidade.

Foi nesse espaço ideal, poeticamente descrito por ROCHA[5] como “um misto de Magia e Encanto”, no qual, “muito além da militância política” ocorre “um encontro de vidas, de simbolismos, signos, uma energia positiva que embala sonhos, lutas e conquistas históricas da classe trabalhadora do campo e da cidade”, é que estivemos para renovar a promessa de construir um sistema democrático de justiça, sob o chamado de Florestan Fernandes: “não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados”.[6]

O Seminário, articulado e organizado pela ABJD, contou com a participação do TRANSFORMA MP – Coletivo por um Ministério Público Transformador (ao qual os signatários pertencem), da AJD – Associação Juízes pela Democracia, das Defensoras e Defensores pela Democracia, da FENED – Federação Nacional dos Estudantes de Direito, da APD – Advogadas e Advogados Públicos pela Democracia e de outros atores do sistema de Justiça.

Como por “magia e encanto” – mas na verdade por compromisso mesmo – , membros do Ministério Público (inclusive estes veteranos), juízes, advogados, professores, defensores públicos, advogados públicos, estudantes de direito e jovens alunos da escola, estavam todos juntos refletindo sobre as mudanças necessárias para a construção de uma justiça substantivamente democrática, longe das discussões contaminadas por interesses corporativos.  Deu-se naquele espaço um encontro entre os diversos operadores do mundo jurídico, todos conversando sob a dialética necessária que advém das argumentações entre integrantes de instituições distintas. E, nos intervalos das reflexões, arregaçaram-se as mangas para empreender os mais diversos trabalhos comunitários.

Aqueles dias nos fizeram lembrar de que, apesar de extremamente privilegiados, somos também trabalhadores e que a nossa natureza humana é a do compartilhamento e não a da disputa neoliberal individualista e autofágica.

E por que narramos essa experiência tão pessoal? Porque ela guarda relação direta com praticamente todos os consensos que obtivemos com referência ao tema que nos movia: o sistema de justiça que queremos é o da inclusão, da fraternidade, da participação popular, da transparência, da formação integral e humanística dos seus operadores. Entre tantas interlocuções possíveis, discutiu-se o papel da justiça e do direito ante a crise, o golpe, as empresas e os Estados nas economias dependentes, a especulação fundiária, a organização dos trabalhadores, a resistência dos povos indígenas e a sua luta por reconhecimento, dentre muitos outros assuntos. Como síntese de tantas boas exposições e discussões, vale ecoar as palavras de Vera Baroni, quem, a partir de seu exemplo de sabedoria e coragem na militância por direitos, alertou que “se a mudança não estiver em todos os âmbitos [inclusive no próprio sistema de justiça], não haverá mudança nenhuma” e, especialmente, que “já passou da hora de o sistema de justiça brasileiro se aproximar da sociedade”.

É justamente a partir daí que reafirmamos a necessidade de aproximação efetiva e real dos aplicadores do direito com os principais temas e necessidades do restante da classe trabalhadora brasileira, esperançosa por um sistema de justiça que assegure um Estado Democrático de Direito preocupado com a efetiva transformação da realidade. Afinal, a percepção de quem participou do FSMJD e desse seminário é que o mundo dos operadores do direito se divorciou da classe trabalhadora, das pessoas mais pobres e dos problemas do cidadão comum. E, para retomarmos a nossa vocação constitucional, precisamos aprofundar as discussões e fazermos uma radical modificação em nossas estruturas.

Quer-se um sistema de justiça que, antes de ser fetichizado e autorreferente aos próprios interesses corporativos daqueles trabalhadores que temporariamente o integram, atenda às reais e cotidianas necessidades do povo brasileiro. Em especial, um sistema comprometido com os objetivos da República, dentre eles a erradicação da pobreza e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. É de uma radical mudança de entendimento sobre o papel do sistema de justiça na democracia que se necessita, não de mudanças cosméticas.

Especificamente no que toca ao “lugar” do Ministério Público, a Carta de Brasília parece ser, ainda, uma excelente bússola. Por mais que a navegação dela propiciada não tenha sido suficientemente assimilada no espaço-tempo e na própria cultura do agir institucional, além de ser uma ilustre desconhecida para a sociedade brasileira, os princípios ali expostos permanecem relevantes e atuais.

É premente repactuar o compromisso com uma nova maneira de pensar o Ministério Público, dando mais transparência à sua atuação, prestando contas à sociedade, ouvindo movimentos sociais e sociedade civil em geral, elaborando projetos de atuação, prestando contas e, principalmente, capacitando seus membros, em escolas que compreendam a dimensão democrática da missão que a Constituição atribuiu à instituição.

A Carta de Brasília foi, sem dúvida, o reflexo de um momento virtuoso das Corregedorias do Ministério Público. Entretanto, ela também padece do defeito de haver sido elaborada sem a participação direta da sociedade. Essa participação seria fundamental, pois, afinal, o destinatário do trabalho do Ministério Público, e do sistema de justiça, são a população e os cidadãos. De qualquer modo, ela é um excelente ponto de partida para se pensar em mudanças. Afinal, sem romper com paradigmas, os membros das instituições do sistema de justiça permanecerão entrincheirados em seus gabinetes, distanciados da realidade social, assistindo à corrosão da democracia, enquanto o corpo social fenece, clamando por empatia e solidariedade.

Sabemos e enaltecemos a importância e os excelentes serviços que nossa instituição, o Ministério Público Brasileiro, presta em inúmeros campos. Mas temos consciência de que há muito a fazer e a modificar. Esse é o cumprimento do verdadeiro dever de lealdade à nossa instituição: repensar sua atuação, forma de ingresso, capacitação de seus membros e humanização de seus quadros, para que possamos ser agentes de transformação social, com vistas ao bem da coletividade e à construção da democracia real, substantiva.

Assumindo a sua feição constitucional, concretizando sua vocação, poderá o Ministério Público, como ensina GOULART, “utilizar os instrumentos jurídico-políticos de que dispõe para enfrentar todos aqueles que, concentrando riqueza e poder, produzindo miséria e marginalização, alargando as desigualdades sociais e regionais, tentam impedir a transformação social.”[7] 


[1]  Vide https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/corregedoria/carta-de-brasilia

[2] Idem.

[3] Vide https://jornalggn.com.br/cidadania/a-crise-do-sistema-de-justica-tres-questoes-fundamentais-por-alessandra-elias-de-queiroga-marcio-soares-berclaz-e-marlon-alberto-weichert/ e https://jornalggn.com.br/cidadania/reforma-do-sistema-de-justica-e-consolidacao-do-perfil-constitucional-no-ministerio-publico/

[4] PRINCESWAL, Marcelo. 2015. As Experiências de Formação Humana dos Movimentos Sociais: as universidades populares educando rigorosamente o Estado? Tese de Doutorado apresentada ao PPFH-UERJ como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 403/404.

[5] Vide http://arnobiorocha.com.br/2021/09/05/escola-nacional-florestan-fernandes-a-hogwarts-de-esquerda/. Acesso em 31 de agosto de 2022.

[6] FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados. Leia, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.

[7]      GOULART, Marcelo Pedroso. 2019. Elementos para uma Teoria Geral do Ministério Público. Belo Ho

“CAMINHOS DO CORAÇÃO” SÃO AQUELES ONDE PULSA A DEMOCRACIA

 Maria Betânia Silva no GGN

Num país sem democracia ou num país que enfrenta empecilhos para vivenciá-la, a independência, no plano internacional se torna algo bastante difícil e questionável, pouco se tendo para festejar. Afinal, em qualquer país, tanto a democracia quanto a independência são processos históricos e devem ser contínuos, não se consumam de uma vez e são condicionados pelo sentido que podem produzir na vida das pessoas, no âmbito domestico e no âmbito das relações com outros países.

Em qualquer país, democracia e independência mantêm entre si alguma simbiose, cumprindo  caminhos intermináveis, mas que medem a pulsação de um povo que recusa  pulsão destrutiva e exibe vontade de se erguer como protagonista de sua própria História.

Ao assumir o protagonismo da História para se libertar de eventuais forasteiros parasitas, se o povo, no âmbito doméstico, se organiza democraticamente são grandes as chances de conquistar uma melhoria de vida com base: na pujança econômica como meio de distribuir equitativamente a riqueza produzida no país, assegurar a realização da justiça e o bem-estar generalizado entre as pessoas. O percurso histórico da construção obstinada da democracia e de afirmação da independência de um país o habilita, também, na ordem internacional, a negociar com outros países, como um exemplo de sucesso civilizatório que espelha a altivez do seu povo e mitiga distinções internas entre classes sociais.

A independência de um país e, portanto, do seu povo implica considerar o lugar de nascimento e o solo onde se pisa como um lar, como espaço de acolhimento no qual se criam possibilidades para o desenvolvimento humano. Independência não é uma data nem uma festa, tampouco um grito ou um dia de batalha como espetáculo sangrento. A independência de um país é a construção de um futuro no plano interno e externo, uma labuta do dia- a- dia e de várias mãos; é um certo orgulho entre os seus nacionais para estar no mundo, desfrutando de vida relativamente estável, em muitos aspectos de sua existência. Uma vida sem muitos perrengues. Uma vida sem fraturas incuráveis.

A independência de um país implica sobretudo adquirir a capacidade de usar mecanismos democráticos para consensuar internamente os objetivos e as prioridades  de vida coletiva e, assim, trabalhar, e muito, para alcançá-los.

Por causa da aproximação do 07 de Setembro, data na qual se considera que o Brasil se tornou independente de Portugal, em 1822, pensar sobre o sentido da democracia e da independência é uma necessidade. Sabe-se que  para parcela do imaginário popular é como se a espada de Dom Pedro I  tivesse operado uma mágica a partir do “grito do Ipiranga” e, desde aí,  o país tivesse passado a um momento completamente diverso daquele que antecedeu o dia 07 de Setembro de 1822  tornando- se independente e, embora mantida a monarquia até 1889, ela se tivesse milagrosamente se democratizado.

Neste ano de 2022, articula-se a celebração dos 200 anos de Independência do Brasil e o que se está assistindo, na  prática, é uma tentativa de reabilitar o personagem de Dom Pedro I cujo reinado se conta de 1822 a 1831, como o grande herói da Independência.  Depois de 1831, instala-se, no país o período de regência em virtude da abdicação to trono por  Pedro I em favor do filho, Pedro II, ainda menor de idade.  Isso significou a governança do país por uma trina de conselheiros até que Pedro II chegasse à maioridade para assumir o trono. Antes disso, porém, quando ele ainda estava com 14 anos, em 1840, foi coroado, mediante a antecipação da sua maioridade, ficando no poder até 1889.

A  História do país, ao longo desse tempo, foi bastante conturbada, tendo sido marcada por insurreições populares contra o reinado, de Norte a Sul do território nacional, as quais foram combatidas com muita opressão. 

A versão que vem à tona quando se estuda a trajetória politico-social do país no período imperial fica centrada na nos “Pedros” num culto à personalidade e com pouca ênfase em cada um dos movimentos de insatisfação que emergiram no seio da população brasileira, cercada de conflitos por todos os lados. São muitos os fatos a serem referidos e analisados para demonstrar tudo o que ocorreu antes do 07 de Setembro de 1822 e subsequentemente a essa data. E são fatos que demonstram como a população resistiu e lutou contra o autoritarismo dos monarcas que por aqui passaram.

A despeito das lutas de resistência que são merecedoras de destaque, neste texto, vou enveredar por outro viés para instigar a reflexão.  Vou me ater a um fato atual e, no mínimo, grotesco:  trata-se da exibição, in vitro, do suposto coração de Dom Pedro I, transportado de Portugal para o Palácio do Itamaraty, em Brasília, num avião da FAB.

Esse fato, aqui classificável como grotesco é também emblemático porque, na verdade, insinua que se está usando o coração, símbolo das emoções, para fundi-lo a um desejo. No caso, o desejo e o prazer de ‘coroação’ de quem se empenhou em fazer essa exibição um grande evento para disso tirar proveito político.

Ora, a palavra coração metaforicamente remete a algo positivo que se identifica ao amor e ao carinho. Concretamente, porém, um coração in vitro, sejamos realistas, é só um músculo paralisado, um órgão do corpo humano que fora dele não é nada. Está morto. Não pulsa e, portanto, não promove a circulação do sangue que nos dá vida. Coroação, por seu turno, é o ato de pôr uma coroa, se colocar no trono, se entronizar, se eternizar e figurativamente quer dizer chegar ao auge. Porém, ironicamente, e em sintonia com o evento grotesco, coroação no contexto brasileiro atual pode ser entendida como um gesto de quem “veste a carapuça”.

O desejo do representante mor do país de se ver ‘coroado’ parece incontrolável e por isso mesmo é algo insano. A espada está empunhada para operar um golpe contra tudo e contra todos. Sucede que numa República não há espaço para coroas embora já tenha havido, no Brasil, espaço para ofendê- la com alguns golpes, sem esquecer que ela própria nasceu de um.

República e monarquia são formas distintas de governo e são  incompatíveis. Qualquer movimento de querer forçar uma sobreposição dessas formas de governo, no contexto brasileiro, implica exercer o poder de maneira ainda mais autoritária do que aquela que está sendo exercida ou que outrora se exerceu.

A despeito da monarquia existir em muitos países europeus e em muitos outros do Oriente,  ela não é a mais moderna forma de governo em nenhum lugar. Muito ao contrário.

Soa, portanto, estranho que em plena República, consagrada desde 1889, realize-se no Brasil um evento que exalte o coração de um monarca. Trata-se de uma manipulação assombrosa de retorno ao passado, através de um recurso semiótico.

Por isso, talvez, não se possa aqui relegar algumas questões que ajudam a melhor compreender traços definidores ou estruturantes da monarquia e do seu anacronismo em comparação com a república.

Por ser uma instituição muito antiga, perpetuada,  aliás,  na mente das pessoas por meio das histórias infantis sobre príncipes e princesas, as monarquias são pouco flexíveis à renovação e o grande fantasma de quem é monarquista é ver o poder de família mudar de mãos. A base da monarquia é a família definida pelos laços sanguíneos entre os seus membros. O poder real/ realeza é herança que passa de pai para filho/ filha. Tudo sempre em família, mesmo que haja brigas espetaculares. O poder sobre o povo é o maior bem familiar. 

Na época atual, a realeza, que designa a classe donde emerge o monarca, parece que está fadada à decadência. A rigor, mesmo que a monarquia ainda subsista em muitos lugares sustentada por um regime parlamentarista no qual se restringem os poderes do monarca ante a ação do parlamento, é abissal a distância entre os membros da realeza, a classe social que em torno dela orbita e as demais classes sociais. É visível a hipocrisia. Também, mesmo que na monarquia se defina como simbólica a permanência do monarca no trono, sob o argumento de que ele não teria muita expressão política, nas monarquias ainda hoje existentes, em especial, no continente europeu e, mais especificamente, no Reino Unido, essa pouca expressão política é algo muito relativo porque depende do desenho parlamentar historicamente construído no país. O que se designa como regime parlamentar tem variações e o traço comum a esse regime,  que lhe confere uma identidade é que, uma vez escolhidos os membros do parlamento por meio do voto popular, o partido que ganha a maioria dos assentos, escolhe aquele/a que será o/a chefe de governo, chamado/a de Primeiro/a-Ministro/a (trata-se de um cargo para desempenhar funções executivas) de  modo que cabe ao monarca, em geral, apenas a chefia do Estado, deixando os atos de gestão, a governança, por assim dizer, para o cargo de primeiro-ministro, que assume responsabilidades perante o parlamento e é cobrado pelos seus atos.

Nessa esteira, a afirmação de que o monarca detém um poder meramente simbólico nas monarquias parlamentaristas pode induzir a erro, como se o simbólico não interferisse na realidade de vida das pessoas. Em geral, pelo menos, no Reino Unido, o nome escolhido para o cargo de primeiro-ministro precisa ser convalidado pela rainha que teoricamente poderia recusá-lo. E ela não o faz porque a aparência democrática da escolha precisa ser preservada, tornando-se assim uma tradição para sua própria manutenção.  Portanto, nada mais enganoso do que desmerecer o poder simbólico quando se sabe que o ser humano diferentemente dos animais ditos irracionais, é um ser criador de simbolismos e por isso mesmo um preso ao simbólico. Nesse sentido, não foi mero por acaso, que, agora, no Brasil, se deu a grotesca exibição do coração de um monarca.

A diferença essencial que se traça entre monarquia e república, definindo esta última como a forma de governo cujo poder político do governante está centrado na eleição para o exercício de um mandato por tempo determinado e não depende da linha sucessória familiar, é algo da maior relevância. Isto porque a república aponta para o cuidado com as coisas do povo, com aquilo que é público e não àquilo que pertence a uma família. Por isso, mais uma vez, torna-se preocupante a adoração à monarquia que ora se faz no seio da República Brasileira.

Chama a atenção o fato de que proclamada a República, no Brasil, em 1889, com todos os defeitos que ela ainda apresente, não se tenha abandonado – e não só no Brasil – o uso de expressões que remetem aos títulos da realeza. É fácil perceber que na esquina de qualquer cidade do Brasil há sempre uma tabuleta pendurada numa fachada de um prédio que traz como nome de fantasia de uma firma prestadora de serviços, por exemplo, a expressão: ” O rei das bolsas…, o rei das canetas, o rei disso ou daquilo”… são costumes linguajeiros e nenhum problema que continuem, desde que persistam em ter o rei como prestador de um serviço e, nesse sentido, subvertam a lógica que orienta as obrigações dos membros da realeza, em geral, voltadas, basicamente,  a tomar chá e, quando muito, para disfarçar o “bem bom” da vida, comparecer a um bazar beneficente. 

É, contudo, a primeira vez desde a proclamação da República que o Brasil vivencia uma ameaça capaz de enfraquecer a importância dela e torna a Independência o fato histórico mais expressivo. E  isso é falsear a História porque essencialmente a dita independência, na realidade, não mudou em nada o tipo de poder exercido no país à época em que ocorreu. Enquanto Pedro I foi pra Portugal, ele próprio filho do Rei de Portugal, o filho dele, Pedro II, ficou no Brasil. A família real mesmo dividida entre os dois continentes manteve unido o seu poder sobre o Brasil. Já, quando proclamada a República, não obstante o legado monarquista que nos primeiros anos contaminava o exercício do poder político republicano, com o passar do tempo viu esse legado se diluir e isso somente ocorreu porque a república é justamente a forma de governo que mais propicia o soerguimento da democracia num país.

Foi a `Proclamação da República que abriu os caminhos da democracia no Brasil porque é sob o republicanismo que se privilegia a eleição e a coisa pública. É no processo eleitoral que o povo faz valer sua vontade e a sua diversidade sem espelhar- se em uma família apartada do cotidiano da vida concreta. Quem se candidata seja ao cargo do executivo ou do legislativo, na República, se orienta pelo princípio de trabalhar para o povo indistintamente sem priorizar os negócios de e/ou em família. Sem priorizar bens de família para o mal dos outros.

Nada mais grosseiro, repita-se,  do que imaginar que um coração “in vitro” possa trazer vida política saudável ao país e possa ser inspiração para viver a vida de quem o trazia no próprio corpo. Isso representa a adoração pelas coisas mortas e para cultuá-las, como se está fazendo com o coração de Pedro I, a destruição de tudo é o caminho que se quer trilhar.

A ideia de culto ao coração imóvel, morto, é ainda mais fora de lugar do que a Constituição de 1824, para usar aqui a feliz expressão do texto “As Ideias Fora do Lugar”, escrito por Roberto Schwarz sobre as contradições entre a Constituição de 1824 que preconizava  a liberdade como valor e vigorava numa ordem escravocrata.

O projeto de destruição é ousado e vem sendo exposto de várias maneiras com vistas a: a) manter o Brasil submisso a uma ordem jurídico-política que está fora do seu território, sequestrando-lhe a soberania; b)  exaltar a figura do Imperador e assim fortalecer a noção de Império que é sinônimo de força, dominação e de opressão através dos pilares da tradição, da família e da propriedade.  Uma só tradição, um só tipo de família e a proteção da propriedade adquirida no berço e/ou por usurpação.

É como implantar um Império da morte que atinge todos os sentidos de uma república e de uma democracia! É como se não houvesse ou nunca tivesse existido sobre o solo deste país, variadas tradições, várias configurações de família e propriedades adquiridas coletivamente e mantidas para o bem-estar de muitos, cumprindo, desse modo, uma função social de servir ao todo, a todos e não apenas a poucos.

O aspirante a Imperador que se empenhou em dar concretude à ideia de expor o coração daquele que já morreu, parece não ter no peito um coração como símbolo de amor à vida e, nesse sentido, sequer um cérebro que pense algo menos mórbido e mais verdadeiro sobre o país no qual, semanalmente, ele percorre montado em motos, como se elas assumissem o papel do cavalo tão usual no século XIX.

Muito tem se repetido que o Brasil está entre a barbárie e a civilização. A afirmação envolve alguma nuance porque assusta saber que algo pior já foi pensado. Refiro-me à conhecida frase de Claude Lévi-Strauss  nos “Tristes Trópicos”  segundo a qual o  Brasil “vai da barbárie à decadência, sem conhecer a civilização”.

Das duas, uma: ou bem nunca saímos da barbárie e o vaticínio de Claude Levi-Strauss não se realizou ou, então,  vamos conhecer a civilização. Talvez, melhor do que conhecer a civilização, possamos  instaurar uma bem  diferente daquilo que o mundo nos oferece, considerando que a decadência já bateu à nossa porta e isso não nos interessa. Nessa hipótese, o vaticínio de Claude Lévi-Strauss[1] também não se realiza.

Como a História nem é linear nem contínua e as lutas são persistentes para tornar a História sempre melhor, nada nos impede de pensar que o número 13 é como o amuleto de futuro. Não nos trará uma repetição do passado que nos pareceu por duas décadas um encontro com a civilização, mas será a civilização brasileira para o mundo. Será o orgulho de ser feliz porque esse é o caminho desejado por um coração pulsante, vermelho, cheio de vida, como o de Lula. Como um “Coração de Estudante”  ele tem no seu peito um “Coração Civil” que chega a brilhar através da pele. Sabemos bem que ele carrega um coração assim porque se ele entoar os versos de Gonzaguinha “Caminhos do Coração” é como se tivesse composto a canção:

Há muito tempo que eu caí na estrada

Há muito tempo que eu estou na vida

Foi assim que eu quis, e assim eu sou feliz

Principalmente por poder voltar

A todos os lugares onde já cheguei

Pois lá deixei um prato de comida

Um abraço amigo, um canto pra dormir e sonhar

E aprendi que se depende sempre

De tanta, muita, diferente gente

Toda pessoa sempre é as marcas

Das lições diárias de outras tantas pessoas

E é tão bonito quando a gente entende

Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá

É tão bonito quando a gente sente

Que nunca está sozinho por mais que pense estar

É tão bonito quando a gente pisa firme

Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos

É tão bonito quando a gente vai à vida

Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração

E é tão bonito quando a gente pisa firme

Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos

É tão bonito quando a gente vai à vida

Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração

O coração

O coração

 Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça aposentada do MPPE  e membra do Coletivo  Transforma MP


[1] Registre- se que a frase aqui citada é uma interpretação simplificadíssima do que aparece no texto dos “Tristes Trópicos”,  posto que Levi- Strauss teria afirmado: ” um espirito malicioso definiu a América como uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização”, algo que depois o próprio autor temperou para arrefecer a noção eurocentrista.