A “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, por seus instrumentos tecnológicos, permite identificar o exato momento do rompimento das barragens da empresa Vale S/A, que dominava um sistema privado de controle, em Brumadinho/MG, no dia 25/01/2019.
As imagens da maior tragédia socioambiental brasileira permitem rever o assombroso movimento de milhões de m³ de rejeitos que atingiram fatalmente 272 pessoas, inclusive 2 bebês e 2 grávidas, na Zona de Autossalvamento da barragem (local onde é impossível prestar socorro em emergências). Passados 4 anos, ainda são feitas buscas pelas “joias”, termo utilizado pelos familiares em referência aos corpos das vítimas do maior acidente de trabalho do Brasil. Minas Gerais já havia sofrido outro grande acidente de barragem, em 2015, em Mariana. Nos dois casos, apesar do impacto e dimensão do dano, as investigações e os processos judiciais espelham a dificuldade em punir os responsáveis, em tempo razoável, de forma pedagógica, assim como de prevenir e corrigir condutas irregulares e temerárias.
A força devastadora das cenas de destruição influenciou no compromisso do STF, como um dos poderes da República, com a Agenda 2030 da ONU. Ao firmá-lo, o Brasil comprometeu-se perante a comunidade internacional em efetivar os objetivos do Desenvolvimento Sustentável, segundo o qual o alcance dos direitos humanos depende da consecução das três dimensões: econômica, social e ambiental.
O STF e o MPU anunciaram, em 2019, a criação do observatório para monitorar a atuação da Justiça em desastres de grande impacto, com o objetivo de promover a integração institucional, elaborar estudos e propor medidas efetivas de enfrentamento das situações de alta complexidade, judicial e extrajudicialmente.
Porém, persiste a dificuldade de concluir os processos e punir os responsáveis. Em 18/01/2023 a presidente do STF, ministra Rosa Weber, identificou o risco da prescrição, com a proximidade do decurso de 4 anos, que poderia impedir a condenação pelos crimes cometidos em Brumadinho. Determinou que a Justiça Federal promova imediatamente o andamento do processo.
A impunidade contribui para que as irregularidades e negligências persistam nos empreendimentos em operação. Em Carajás, no final de 2021, o Ministério Público do Trabalho identificou a presença irregular de 2.000 operários nas Zonas de Autossalvamento, abaixo de duas grandes barragens da mesma empresa, Vale S/A, que apresentou parâmetros internos de controle. Acionada, a Justiça do Trabalho determinou a remoção imediata dos trabalhadores dos locais de risco e impôs medidas de cautela, que foram acatadas.
Os acidentes de trabalho, imediatos ou de lenta manifestação, também são causados pela influência político-econômica que marca a desregulamentação e o desmonte da fiscalização. São iniciativas que atentam contra os princípios ambientais da precaução e da prevenção, reconhecidos como práticas civilizatórias desde 1992, na Declaração da ONU do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, o recente o projeto político de revisão das normas regulamentadoras – NR do Ministério do Trabalho, oficialmente instituído com o propósito de simplificar, desburocratizar e harmonizar a normas de segurança e saúde do trabalhador. Trata-se de um processo abertamente guiado pelo ideário da liberdade econômica, que procura concentrar no empregador a responsabilidade pela identificação dos riscos e definição das medidas de prevenção, esvaziando a participação dos trabalhadores e sindicatos e restringindo a atuação da inspeção do trabalho.
São exemplos desse movimento a nova NR1 (Gerenciamento dos Riscos Ocupacionais) e a NR3 (Embargo e Interdição) além da Lei do Autocontrole da Produção Agropecuária (Lei nº 14.515/2022) e do PL dos Agrotóxicos, que usa o conceito de “risco aceitável”.
As práticas, autorizadas pela impunidade, e as inovações normativas, resultantes de uma equivocada opção pela autorregulamentação, ajustadas ao interesse econômico imediato de empregadores, afastam o Brasil dos compromissos assumidos perante o mundo civilizado e sinalizam a provável ocorrência de novas tragédias, em prejuízo da saúde e da vida dos trabalhadores. A data emblemática é propícia para o alerta de que a proteção ao meio ambiente e aos trabalhadores brasileiros demanda regulação pública e fiscalização efetiva, na defesa do interesse coletivo e independente dos interesses econômicos privados imediatos.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP Luciano Lima Leivas é Procurador do Trabalho
Na última semana, aposentou-se no Ministério Público Federal a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko Volkmer de Castilho. Tendo ingressado no MPF em 1975, Ela Wiecko ocupou todos os cargos importantes naquela instituição, menos o de Procuradora-Geral da República. Integrou por seis vezes a lista elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República e, não obstante, foi preterida, em todas elas, pela chefia do Poder Executivo, em quadro revelador do patriarcado estrutural que permeia as instituições brasileiras e da falta de confiança nos quadros mais progressistas do Ministério Público.
É significativo, ainda, que Ela Wiecko tenha deixado de ocupar o cargo de vice-procuradora-geral da República, durante a gestão do então PGR Rodrigo Janot, após ter sido divulgada foto em que aparecia, juntamente com um grupo de alunos do eminente Professor Boaventura de Sousa Santos, com uma faixa de denúncia no contexto do golpe parlamentar cometido em 2016 contra a então presidenta Dilma Rousseff. Mais uma vez, Ela Wiecko esteve do lado certo da história.
A aposentadoria de Ela Wiecko é um convite à reflexão sobre o Ministério Público que defendemos: um Ministério Público que cumpra integralmente as funções que a Constituição de 1988 lhe outorgou, de defesa dos direitos humanos e do regime democrático, assim como da ordem jurídica como um todo, e que, portanto, não pode dissociar a função de promover privativamente a ação penal pública da irrestrita observância das garantias constitucionais. Somente assim o Ministério Público exercerá de maneira satisfatória o elevado papel de ombudsman que lhe reserva nossa Constituição. Ela Wiecko exerceu, entre 2004 e 2008, a função de Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), quando se notabilizou pela defesa das pessoas mais vulnerabilizadas e dos direitos sexuais e reprodutivos.
Além de PFDC, Ela Wiecko foi coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, órgão responsável por coordenar a atuação da instituição na temática dos direitos indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais. Ela também foi a primeira ouvidora-geral do MPF, bem como coordenadora do Comitê de Gênero e Raça do MPF e da Comissão Nacional de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação, tendo sido pioneira na inserção das questões de gênero na agenda de todo o Ministério Público.
Mais do que nunca, no período da aguda crise que o Ministério Público atravessa, as lições e o exemplo de Ela Wiecko precisam ser revisitados, de modo a que a instituição exerça em sua plenitude as funções que a Constituição de 1988 lhe incumbiu. O exercício pleno da vasta gama de funções do Ministério Público por todos os seus membros é a melhor forma de honrar o exemplo de uma de suas mais destacadas membras.
O coletivo Transforma MP celebra a carreira de Ela Wiecko e lhe deseja, em sua aposentadoria, novos êxitos na sua permanente luta por um Brasil justo e solidário, inclusive em sua vastíssima atuação acadêmica como Professora da Faculdade de Direito da UnB, onde possui pesquisas nas áreas de Direitos Humanos, Direito Penal e Criminologia, nas quais é detentora de uma visão crítica acerca do punitivismo na persecução criminal e em que exerce reconhecido magistério para a efetivação dos direitos fundamentais.
A posse de Lula para exercer o seu terceiro mandato como Presidente do Brasil se impõe como o fato histórico mais relevante do mundo, dessas duas primeiras décadas do século XXI.
O que se viu e se vivenciou em Brasília ontem, dia 1° de Janeiro de 2023, não tem precedentes em nenhum outro país. Não foi apenas a festa da posse, explosão de alegria. É o que ela representa diante do cenário mundial de avanço de um espectro político de extrema- direita, destrutiva da convivência humana em todos os seus aspectos.
Em linguagem popular, pode- se afirmar que a volta de Lula ao poder é a mostra de alguém que ‘dá nó em pingo d’água’ e o faz no melhor sentido, que fique bem claro! É um nó como se fosse um laço de presente, para trazer o futuro. Ele, no passado, já nos tinha ofertado o melhor futuro e é, ainda, doloroso pensar que retrocedemos ao nosso passado mais sombrio com os governos que se seguiram após o golpe de 2016.
Sob a perspectiva dos historiadores, de filósofos e sociólogos, a vitória eleitoral de Lula, em 30 de outubro de 2022, afastando do poder um chefe de governo fascista constitui um fato inédito.
Até então, de acordo com as teorias políticas que emergiram das experiências históricas concretas ocorridas na Europa, se acreditava que somente através da guerra, como se deu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e não pela via eleitoral, seria possível vencer o fascismo.
O Brasil flertou com o fascismo e estava em vias de selar um pacto com ele, o qual foi interrompido graças à existência de Lula: um ser humano transbordante de virtudes e um líder político inspirador, inteligente, sensível, resolutivo e hábil.
Simbolicamente, a caminhada de Lula até aqui, criando o arco de alianças, funcionou como uma estratégia de guerra. Nada foi fácil e nem será. Ele, porém, conseguiu poupar o Brasil do mergulho num embate mortal de proporções inimagináveis para um país com 215 milhões de habitantes, de grande extensão territorial e abrigo da maior floresta tropical do mundo da qual depende a sobrevivência da humanidade.
Ele é um guerreiro que nutre bons afetos, sabe fazer política usando da palavra, algo que é próprio do ser humano evoluído na sua e existência, e é de importância fundamental para o Brasil e para o mundo; para o povo brasileiro e para a humanidade.
Com o perfil humanizado e humanizante que tem, Lula dispensa as armas automáticas de tiros em série. Ele sabe bem que as armas e os seus projéteis não são instrumentos da política de vida civil, são projéteis pérfuro contundentes, destrutivos dos corpos que aniquilam projetos de vida.
Lula não enxerga inimigos, mas adversários com pontos de vista diferentes do seu e, nesse sentido, age e provou que “as flores vencem o canhão”. Ele quebrou parte dos espinhos fascistas e demonstra disposição para continuar na luta até que eles murchem.
Logicamente nem todos desapareceram, muitos se retraíram e, ainda, podem voltar a eclodir. Portanto, cuidemos do nosso jardim. Estejamos atentos ao florescimento das nossas políticas públicas, da nossa primavera cujas flores Lula polenizou no país ao longo dos seus dois mandatos anteriores, como nunca se tinha feito na História do Brasil, como nunca se tinha visto. Foram muitas políticas de inclusão das parcelas vulnerabilizadas do povo e o povo brasileiro demonstrou que não esqueceu.
Os governos de Lula e Dilma foram governos honrados e empenhados em seguir os princípios fundadores do Partido dos Trabalhadores, fundado há 40 anos pelo próprio Lula, quando era líder sindical. O povo brasileiro, por seu turno, ao votar em Lula em 2022 também deixou claro para o mundo que tem uma honra inabalável e soberana, atento às necessidades reais de vida da classe trabalhadora e preocupado em como compatibilizar isso com outras questões de grande envergadura para a estabilidade social e econômica do país, dentre elas, a preservação ambiental e proteção dos povos originários. A democracia que, desde 1988, no Brasil, era tratada como projeto, floresceu, brotando do chão, como um sonho impossível, tornado possível.
O cenário político de compromisso com a democracia, hoje, porém é bem distinto daquele de 1988.
Há, como já salientado, um arco de alianças e isso torna o cotidiano da prática democrática muito mais complexo, porém, não se pode esquecer que esse arco somente foi possível porque: a) Lula respeitoso das instituições do país, nelas acreditou e recuperou os seus direitos políticos, que lhe foram absurdamente subtraídos pela leviana operação Lava Jato, e b) o Partido dos Trabalhadores, criminalizado pela lógica rasteira de alguns integrantes das mesmas instituições nas quais Lula acreditou, resistiu à tempestade revelando- se como o mais consistente partido político criado no Brasil e, por conseguinte, um guardião da democracia representativa, a despeito dos problemas internos que vez ou outra lhe atravessam.
Esses dois fatores aqui ressaltados – embora não sejam os únicos a serem considerados – são relevantes para extrair a lição de que não se pode brincar com a institucionalidade no país.
As instituições, e os partidos políticos são uma instituição, junto com o povo funcionam como pólos de atração de vida democrática, através de um processo contínuo de interação.
Não é possível falar em democracia sem povo atuante e envolvido com as práticas da vida política e sem instituições capazes de acolher as demandas de organização e de proteção de direitos desse povo. Trata- se de uma equação com muitas variáveis, de valores diversos e que precisam manter equilíbrio em seus termos. Quebrar essa equação, oprimindo o povo, dizimando- o e desvirtuando as instituições do papel que lhes cabe cumprir implica destruir a atividade política do país e, por conseguinte, as possibilidades de convivência social.
Lula com resiliência, paciência e sabedoria, se coloca à frente do tempo para restabelecer a normalidade no Brasil, reconstruindo-o a partir dos escombros deixados pelo seu antecessor: um homem Inominável pelo tanto de defeitos que carrega e pelo tanto de maldades que foi e é capaz de fazer.
Está mais do que claro pra todo mundo que Lula é orgulho e honra do povo brasileiro e que, portanto, o sucesso do governo que ele ora inicia depende mais de nós do que dele. Se quisermos manter o orgulho e a nossa honra como povo devemos nos esforcar para ter Lula como a nossa grande inspiração e isso significa sermos: pacientes, perseverantes, combativos e resilientes.
Estejamos atentos a fazer do nosso discurso e a nossa prática, afinal a fala é ação, para o bem e para o mal. Isso já ficou demonstrado. Mas ainda cabe enfatizar que o governo derrotado nas urnas foi aquele que maior mal fez ao país tornando a fala odiosa e violenta a sua ação e realizando concretamente várias ações que cumpriram a promessa destrutiva anunciada.
Agora, com Lula, estamos em um patamar de decência existencial.
No discurso que ele proferiu na cerimônia de posse, quando subiu no parlatório, após receber a faixa presidencial das mãos de representantes da diversidade do povo brasileiro, num gesto magnânime e cheio de significados, disse: “a esperança venceu o medo e o amor derrotou o ódio”.
Ninguém em sã consciência rejeita essa mensagem, mas se o fizer: ou não tem qualquer consciência da vida ou é insano mesmo.
Maria Betânia Silva – Procuradora de Justiça Aposentada e Membra do Coletivo Transforma.
Feliz ano novo! Se é certo que quem lança mão do arado não deveria olhar para trás, é fato que as duras lições e os crimes não podem ser esquecidos. Adeus ano velho! Vigoroso grito de adeus a ideias e práticas atrasadas!
O Brasil venceu, nas urnas, o plebiscito contra a estupidez. O encerramento da infame jornada protagonizada por ativistas da barbárie, sob o comando de inconsequentes desajustados, nocivos à meta de convivência civilizada, deve ser celebrado, sem esquecer o que fizeram. O excelente filme “Argentina, 1985” relembra artisticamente a resposta necessária da civilização ordeira à truculência criminosa.
O anti-intelectualismo e a negação da ciência são marcas de governos de viés autoritário. Medíocres, desprezam o conhecimento e sufocam o pluralismo das universidades, tachadas de antros de balbúrdia. O desdém pela erudição e pela arte embalaram o “dirigismo cultural” do Nazismo, empenhado na paranoica “Guerra Cultural”. Aos reiterados ataques ao jornalismo que não se curva ao soberano somam-se a perseguição a sindicatos e defensores de direitos humanos e ambientais, combinado com o favorecimento (dinheiro público) a bajuladores. Modo de agir da trupe que se diz patriótica, anticorrupção e anticomunista.
A censura a museus, cinema, música, poesia e literatura indica ser a arte um caminho estranho e temido por toscos que se vangloriam da própria ignorância. As insinuações e a simplificação de ideias naturalizam a violência presente no racismo, nos preconceitos e na intolerância. A resposta ao que ignoram veio na forma na desconfiança infantil e na simplória acusação de “Comunismo”. Nem a ciência e as vacinas escaparam!
Na retomada da marcha civilizatória, o Brasil festeja as 4 décadas do álbum de Milton Nascimento que marcou gerações sobreviventes a outro truculento período da história brasileira. “Coração de Estudante” é referência obrigatória do disco “Ao Vivo”, do final de 1983, driblando poeticamente a estupidez da censura. O nome da música também é homenagem a uma flor mineira.
A letra de Milton para a música de Wagner Tiso, com referências à ditadura, exalta a esperança e a força da juventude, o anseio de liberdade, que não deve ser confundida com a inconsequência. A canção caiu no gosto dos jovens e embalou o anseio por democracia. Transformou-se em hino das Diretas e da retomada da normalidade institucional.
Mais do que uma canção disponível em modernas plataformas, a música ainda emociona um jovem universitário de então, que portava um sorriso de menino. A lembrança de momentos podados e destinos desviados apertam dentro do peito a cada sinal de truculência. Ainda estão aqui do lado, bem mais perto que pensamos, ou caminham pelo ar, o receio e a esperança.
Ameaças que se supunham sepultadas reaparecem. O medo e os anseios do poeta vicejam em nova aurora. É atual a exortação ao cuidado com o mundo, com a vida, com o broto, para que a vida nos dê flor e frutos. Manejo hábil de metáforas para emocionar e intrigar.
Antes, em “Clube da Esquina II”, Milton já cantava a resistência de homens, que também se chamavam sonhos, em meio a gases lacrimogênios e ao aço, aço. Canta, mineiramente, com força tranquila, a esperança e a determinação da luta por melhores dias, que se vão em meio à truculência da ditadura. O moço, que também se chama estrada, nem lembra se olhou para trás, porque os sonhos não envelhecem. E a chama, sem pavio, não se apaga. No coração, a esperança, na curva de um rio, uma esquina com gente, gente – mais de um milhão.
A democracia e os objetivos constitucionais não são um dado. Indicam o rumo e a progressiva construção. O descalabro dos últimos anos impôs interditou o diálogo e impôs retrocessos à educação, segurança, previdência, cultura, trabalho, ciência, meio ambiente e saúde. Retomar o modelo de participação da sociedade sobre as políticas públicas criadas e executadas pelo governo é uma urgência. A repulsa ao diálogo é um modo de externar a negação ao pluralismo e ao entendimento, que dão muito trabalho, mas são inafastáveis da convivência democrática. Adeus ano velho!
Feliz 2023! Precisamos falar de uma aurora, que renova a esperança: liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça, que surgem, como quer a Constituição, valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP
Os escritórios de acusação do Ministério Público sempre foram ávidos por devorar o “prato feito” trazido pela polícia judiciária. Antes, o PF, denominação dada ao inquérito policial neste pequeno texto, chegava encadernado; hoje, chega em formato digital. Em comum aos formatos – um do “tempo do Ronca”; o outro, do “tempo do Tik Tok” -, na quase totalidade das vezes a peça principal do feito é o auto de prisão em flagrante (claro que isso é uma opção do estado brasileiro na gerência do sistema punitivo, o que poderá ser objeto de assunto para o dia de Tiradentes).
Então, com essa avidez, sempre se primou pelo recrutamento de membros do Ministério Público a partir da aplicação, nas provas práticas, de questão consistente na elaboração de denúncia. Uma boa narrativa, um juízo perfeito de tipicidade, a argúcia ao escapar de “pegadinhas” – como a menção a um crime prescrito na questão – etc., e a suposta – e inexistente – neutralidade na aplicação do direito positivo, são o carimbo no passaporte para a aprovação no disputadíssimo concurso para ingresso na carreira do MP (que paga bem, apesar de alguns acharem o subsídio um “miserê”!).
Feita a peça a partir do PF, no conforto do gabinete, estando em perfeita – ou quase perfeita – ordem a conjugação verbal e outras perfumarias, ualá!, tem-se o exercício da titularidade da ação penal! Mas… não é bem assim que as coisas se movem, caríssimo e diligente titular da ação penal! Quem de fato diz o fato é a polícia e, na quase totalidade das vezes, a PM.
Se a autorização para ingresso em domicílio, na quebrada, foi dada pelo coturno 44, basta constar no papel que foi a gentil avó do acusado quem a deu; se da intervenção policial adveio a morte do “meliante”, a hipótese certa é de legítima defesa. Infelizmente, essa é a regra.
Pode até ser que os fatos se passaram conforme consta no PF! Mas, e se a coisa não aconteceu assim, é possível contrastar a narrativa asfixiante trazida unilateralmente pelos agentes do Estado, mormente quando por eles há notícia de violação de direitos fundamentais? Para a maioria dos casos, maciça maioria, a resposta é não, lamentavelmente! E o MP nessa, como é que fica?
Em um sistema que naturaliza a violência contra pessoas pretas, pobres e da periferia (a regra), as tratando como peças descartáveis e sobressalentes; em que a legalidade é mero detalhe, é mesmo muito difícil não engolir o PF tal qual chegou! É o sistema, não é?
Mas é justamente aí que nasce a relevância do Ministério Público enquanto titular da ação penal e responsável pelo controle externo da atividade policial! Desfazer o PF, “descozinhar” os ingredientes. Para tanto, tentar entender, minimamente, a complexidade de nossa matéria prima, assumindo que o Brasil é racista, preconceituoso, perverso e violento é um primeiro passo. Outro passo muito importante é assumir que a tortura e a política de extermínio são estruturais e que elas fazem parte, desde o nascimento, da vida de muitos escolhidos pela “má sorte”. Colocando essas duas lentes já nos veremos, primeiro, como parte do problema; e, depois, como agentes de transformação.
Assim, no plano das ações concretas, o agir do MP deve se voltar à eficiência do agir policial, que deve se pautar não na eliminação do “inimigo”, mas sim na proteção de direitos e garantias fundamentais. Só há eficiência do agir policial se os direitos individuais foram respeitados! Nessa linha, dentre as ações possíveis, a implantação de câmaras na lapela das fardas, a educação para o respeito aos direitos humanos nas academias, o aperfeiçoamento e fortalecimento dos órgãos de controle interno (corregedorias e ouvidorias), uma verdadeira preocupação com as condições de trabalho a que são submetidos os policiais, uma rígida verificação da legalidade e da legitimidade do agir policial narrado no PF, são ações concretas, tendentes ao efetivo exercício do controle externo da atividade policial, para o legítimo exercício da titularidade da ação penal.
Esse o papel do MP!
Se nos bastamos com o PF, como ainda estamos teimando em fazer, há muito azedo e tóxico e que tem trazido péssimos resultados, logo a instituição, com missões tão relevantes, cara e onerosa à sociedade, será prato indesejado na ceia de Natal da democracia brasileira.
Mário Henrique Cardoso Caixeta, promotor de justiça no Ministério Público do Estado de Goiás desde agosto de 2000. Membro do Coletivo Transforma MP desde 2022.
Bacharel em Direito pela UFU – 2000
Mestre em História pela PUC – Goiás na linha de pesquisa Cultura e Poder (2009).
Especialista em Criminologia e Política Criminal pela Anhaguera-Uniderp (2015).
Especialista em Direito Processual Civil: O Novo CPC em Perspectiva e as Tutelas Coletivas como Instrumentos de Defesa da Cidadania – Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (2018).
A ideia de que os sistemas de punição, nas sociedades ocidentais capitalistas, têm uma propensão natural a escolher sempre os seus clientes dos setores mais vulneráveis da sociedade talvez seja o maior achado e a maior expressão do pensamento crítico em ciências criminais, desde a sua origem, entre as décadas de 1960 e 1970, até os dias atuais.
Isso porque, a partir da descoberta dessa seletividade estrutural e sistêmica da punição, tem-se o mais duro golpe já desferido contra o discurso que acompanha o direito penal moderno desde sua origem e que legitima a pena (princípio de legitimidade) como instrumento para defender a sociedade daqueles que ameaçam a sua própria sobrevivência, com suas ações criminosas (ideologia da defesa social)[1].
Desde o momento em que irrompe nos Estados Unidos e de lá se espalha para o resto do ocidente, essa crítica deslegitimante da pena, de inspiração claramente marxiana, levou a discussão dos temas de política criminal para um outro patamar e demarcou o campo do debate em torno da questão penal, inspirando, por um lado, inúmeras correntes abolicionistas minimalistas e de justiça restaurativa, mas também, por outro lado, respostas virulentas do pensamento conservador e reacionário[2]. Como consequência, as propostas de modificação da legislação penal e processual penal e a criação de novos institutos jurídicos neste campo estão sempre pautadas por questões relacionadas à eficiência do combate ao crime, de um lado, e à redução da violência punitiva seletiva, do outro.
O chamado acordo de não persecução penal, recentemente introduzido pela chamada Lei Anticrime (lei n°13.964), é um desses institutos que, assim como outros tantos (transação penal e suspensão condicional do processo), parece atendera ambas as perspectivas, na medida em que possibilita uma forma de solução do caso penal supostamente mais benéfica para o acusado, mais rápida e menos custosa para o Estado. Além disso, oferece às vítimas a possibilidade de uma antecipação da reparação de dano (art. 28-A, I, do CPP), como condição para o acordo, e à sociedade uma fonte de financiamento de políticas públicas, custeadas por penas de prestação pecuniária (art. 28-A, IV, do CPP).
Em outro lugar já tivemos a oportunidade de denunciar o que há de enganoso na apresentação do instituto (assim como a transação penal) como esse excelente jogo de ganha-ganha, chamando atenção sobre questões extremamente problemáticas no seu operar concreto, que acabam solapando o sistema de garantias penais e processuais penais, renovando estruturas inquisitoriais que se pretendiam superadas e aprofundando justamente seletividade do sistema[3].
Evidentemente, os limites deste trabalho não comportam uma revisão geral dos argumentos nesse sentido. Mossa pretensão consiste apenas em examinar algumas nuances relacionadas às pretensas vantagens do instituto, para a sociedade, pela possibilidade de lançar de recursos oriundas de prestação pecuniária, como dito acima.
Para tanto, convém retomar o tema da seletividade do sistema penal, para mencionar os desdobramentos do pensamento crítico estadunidense dos anos 1970, especialmente na América Latina e no Brasil, como produto de uma criminologia nativa e autêntica, que, embora influenciada historicamente por uma matriz de viés marxista, centrada na perspectiva da luta de classes, traz para o debate também o conceito de raça, com igual importância, como elemento determinante da desigualdade punitiva. Trata-se, como se sabe, de uma tendência relativamente nova e que reúne uma gama considerável de autores, dos mais variados matizes e áreas da filosofia e das ciências sociais, mas que estão todos de acordo em denunciar a modernidade ocidental e capitalista como um discurso de legitimação do que na realidade aconteceu: um processo de conquista, extermínio e escravização de pessoas, liderado pelo homem branco, europeu, cristão e proprietário[4].
Neste processo de conquista, ademais, o extermínio não é apenas dos seres humanos de carne e osso elegidos como inimigos ou obstáculos, mas alcançaram também, como sabemos, idiomas, práticas sociais, saberes, enfim todo o patrimônio cultural e vínculos ancestrais dos povos vítimas (etnocídio), tudo em nome da ciência, como sistema de crenças que não admite concorrência[5].
Justo por isso, de todas as correntes e tendências do pensamento decolonial (feminista, antirracista, como queiram) que se constitui, paradoxalmente, desde dentro da academia e sob padrões com pretensões científicas, as que tem alguma chance de realmente decolonizar são aquelas que apontam para fora dos campos científico e filosófico, para transcendê-los na direção dos mitos e arquétipos que condicionam até mesmo a produção filosófica e científica do ocidente, como observado com extrema felicidade por GÓES[6].
Numa palavra, o enfrentamento crítico (decolonial) de temas das ciências criminais e mesmo de dogmática processual penal, como o próprio acordo de não persecução penal, deve partir das seguintes premissas (que extraio, a partir da livre interpretação do texto de GÓES, acima citado): a) o sistema de justiça onde o instituto deve operar está determinado, antes de tudo, por Zeus e Themis; b) Zeus e Themis julgam desde o Olimpo, o lugar mais elevado, e sempre com aquela pretensão de um acerto cirúrgico (cientificamente determinado) do dizer o direito; c) Zeus e Themis determinam toda a estrutura do sistema, mas têm também seus limites; d) É nestes limites e fragilidades que podem atuar Xangô e Oyá, sua mentora; e) Xangô, ensina GÓES, julga em roda. Seus filhos aprenderam, por gerações, o que significa ter jogo de cintura para negociar soluções não necessariamente justas, mas com potencial para reduzir danos[7].
Mas o que significa isso, exatamente? Quais as conexões entre esse confronto de deuses e o que se pode fazer com os valores recolhidos de ANPPs?
Desde um ponto de vista crítico (no sentido de uma criminologia crítica de matiz marxista) e garantista, a questão da destinação dos valores recolhidos como prestação pecuniária parece sempre secundária, uma vez que a própria possibilidade de aplicar pena (de qualquer espécie) sem processo (contraditório e ampla defesa) já é fortemente contestada. De igual modo, a introdução de mecanismos de tutela reparadora no processo penal tem sido também denunciada como problemática, na medida em que ofusca e enfraquece, inevitavelmente, a função garantidora que o sistema de justiça penal deve desempenhar em relação aos direitos fundamentais da pessoa acusada de delito. Denuncia-se, assim, o processo de relegitimação do sistema de punição que esses institutos acabam produzindo, para que o sistema continue a realizar a sua vocação natural e sistêmica de punir os miseráveis. Mormente quando se pretende utilizar esses valores no próprio aparato de segurança pública. E a partir daqui, Zeus e Themis não avançam.
É justamente a partir desse ponto, segundo pensamos, que entra em cena a mandinga de um Xangô, que aceita, eventualmente, negociar o dano, os limites e, portanto o alcance da sua redução. Xangô tem plena consciência, por exemplo, de que impedir o manejo do ANPP nos crimes de racismo terá como efeito, na prática, impedir que a vítima goze de alguma reparação de caráter indenizatório, em nome de uma punição criminal futura que dificilmente ocorrerá, como bem demonstrado por VAZ[8], e terá, portanto, um sentido meramente simbólico, que, de novo e de novo, relegitima um sistema penal racialmente seletivo.
Xangô está prevenido de que, se o sistema penal é estruturalmente racista, permitir que o acusado negocie seu direito ao processo para aceitar uma medida que tem natureza de pena significa aprofundar ainda mais a seletividade, como o risco adicional de transformar a justiça criminal num balcão de cobranças. Mas Xangô também sabe que, a partir de uma compreensão minimamente realista do operar do sistema penal, não se pode imaginar, no curto e médio prazo, que o art. 28-A do CPP venha a ser declarado inconstitucional, seja por autorizar a aplicação de pena sem ampla defesa e contraditório.
O dano, portanto, não pode ser eliminado, mas pode ser reduzido, pelo menos para que os valores provenientes de acordos não sejam utilizados para comprar mais armas e balas para serem utilizadas no genocídio diário da população negra, mas possam ser aplicados em iniciativas, públicas ou do terceiro setor, especificamente vocacionadas ao estudo e/ou ao enfrentamento do racismo estrutural, especialmente nas questões de segurança pública.
A teor do que dispõe o art. 28-A, IV, a destinação da prestação pecuniária deve contemplar a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito. Ao contrário do que seria esperado de Themis (e Hermes), em face desse texto Xangô (e Exu), que sabe da seletividade racial (e do racismo estrutural), que caracteriza o sistema de punição, permite-lhe incluir, entre os bens jurídicos lesados pelo delito, também (e preferencialmente)aqueles cujos titulares são, historicamente, os clientes preferenciais do sistema penal e que precisam, com absoluta prioridade, de reparação histórica também nesse aspecto. Assim, as instituições destinatárias devem ser justamente aquelas identificadas com a redução da seletividade penal e das desigualdades raciais em todos os sentidos.
Elmir Duclerc é Promotor de Justiça na Bahia e associado ao coletivo TRANSFORMA MP, mestre e Doutor em Direito, Professor de Processo Penal da UFBA, ex-Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP.
[1] Sobre a ideologia da defesa social, e seu princípio de legitimidade, por todos cita-se BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 42.
[2] Sobre os desdobramentos e a crise da criminologia crítica, ver ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de janeiro: Revan, 2008, p. 657 e sgs.
[3] Sobre as problematizações do ANPP, consultar: RAMALHO JR, Elmir Duclerc e MATOS, Lucas Vianna. A lei anticrime e a nova disciplina jurídica da persecução pública em juízo: pistas para uma interpretação crítica dos arts. 28 e 28-a do CPP. Revista dos Tribunais Online. Acesso em: 18/12/2022. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1-abq044p7HczXMhyYj5LzAr7Fa374xV2/view?usp=share_link.
[4] Em torno dessa temática, como se sabe, há toda a tradição de pensamento decolonial, que se constitui em torno de Aníbal QUIJANO, mas também uma produção, dos mais variados matizes, mais especificamente preocupada com essas imbricações entre racismo e capitalismo. Cita-se, por todos, o já consagradíssimo trabalho de ALMEIDA (ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018)
[5] CORREIA, G. J. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos
humanos. Lex Humana, Petrópolis, v. 3, n. 1, p. 36-49, jul. 2011. ISSN 2175-0947. Acesso em: 18/12/2022.
[6] GÓES, Luciano. Direito penal antirracista. Casa do Direito: Belo Horizonte, 2022, p. 230 e segs.
[7] É sempre difícil rastrear uma expressão ou conceito, em busca de sua aplicação original, mas a expressão “redução de danos”, em termos de política criminal, aparece muito fortemente ligada ao pensamento de Angela DAVIS (DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018).
[8] VAZ, Lívia Sant´Anna. Entrevista da promotora de justiça do Ministério Público do estado da Bahia Lívia Sant´Anna Vaz. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Brasil, Vol. 191, p. 377-390. jul/ago 2022, p 383.
Nos dias 15 e 16 desse mês, o Transforma MP, entidade integrante da Coalizão em Defesa da Democracia, participou do seminário “O Sistema de Justiça que Queremos”. Na ocasião, os associados Vanessa Patriota, Alessandra Queiroga e Marlon Weichert apresentaram o documento elaborado pelo Transforma MP “Propostas para Alteração do Sistema de Justiça”, que foi debatido juntamente com as propostas apresentadas por outros coletivos integrantes da Coalizão. Ao final das discussões, foi elaborado um documento consensuado que será apresentado ao futuro Ministro da Justiça Flávio Dino.
A Coalizão em Defesa da Democracia é integrada por quase 200 entidades humanistas, progressistas, de esquerda, que se uniram para lutar contra a lawfare, garantir a lisura do processo eleitoral e resgatar a democracia amplamente abalada nos últimos anos.
O dia 14 de dezembro é o dia do Ministério Público brasileiro. A instituição teve as suas missões delineadas pela Constituição Federal de 1988, tendo como finalidade defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.
O Dia Nacional do Ministério Público foi instituído em fevereiro de 1993 por meio da Lei nº 8.625, também conhecida como a Lei Orgânica do Ministério Público.
Apesar de toda a estrutura institucional, o Ministério Público ainda precisa evoluir para que continue sendo um instrumento para a garantia dos direitos fundamentais de todas as pessoas, conforme determina a Constituição Federal.
Desde sua fundação, em 2016, o Coletivo Transforma MP tem lançado um olhar crítico sobre o papel e a atuação do Ministério Público brasileiro, sempre com foco no irrestrito respeito aos direitos humanos e na defesa dos direitos das pessoas vulnerabilizadas, com vistas à efetivação de um ideal de igualdade material e de respeito à diversidade, em constante interlocução com a sociedade.
Nesse período, diversas notas técnicas e manifestações foram emitidas, revelando o posicionamento da entidade, denunciando os desmontes sociais ocorridos no país e questionando a atuação do sistema de justiça. Ações foram propostas na defesa da democracia e dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal.
O Coletivo Transforma MP parabeniza e agradece a todes servidores, membres e juristas que lutam diariamente para promover uma transformação necessária na entidade. Que possamos continuar juntos e firmes para enfrentar o ano de 2023 em prol de uma sociedade mais justa e solidária.
Os avanços tecnológicos fizeram emergir e se proliferar, especialmente na última década, empresas que, por meio de aplicativos conectados a plataformas digitais, prestam serviços tradicionais contratando de forma precária trabalhadores por demanda e remunerando-os por tarefa. Tais empresas prestam os mais diversos serviços, entre os quais transporte (Uber etc.), entrega (Ifood etc.), manicure (Make You etc.), cuidador de cães (Dog Hero etc.), professor (Colmeia etc.), babá (Sitly etc.), entre tantos outros. Tais empresas, via de regra, negam os vínculos de emprego aos trabalhadores ao argumento de que, supostamente, trata-se de profissionais autônomos. No entanto, como já reconhecido por diversas pesquisas científicas realizadas por pesquisadores das mais diversas universidades, todos os requisitos da relação de emprego se fazem presentes.
A subordinação clássica é evidenciada pelo fato de as ordens serem emanadas diretamente das empresas para os trabalhadores por meio de sistemas informatizados devidamente programados para que reajam, em tempo real, aos sinais que lhes são emitidos para a observância do passo-a-passo estabelecido pelas empresas – o que é feito por programação algorítmica. Os termos de uso dessas empresas, que devem ser aceitos pelos trabalhadores como condição para o início das atividades laborais, estabelecem que o preço do serviço é fixado unilateralmente por elas e explicitam todo o processo de controle do trabalho. A avaliação dos trabalhadores é onipresente, uma vez que, àquela realizada pelas próprias empresas, somam-se as avaliações dos seus milhares de clientes, que têm repercussão no contrato, inclusive por poderem levar à suspensão do cadastro ou ao próprio desligamento dos trabalhadores. A pessoalidade também se faz presente posto que os trabalhadores não podem se substituir por outros ainda que cadastrados nas plataformas, como revelam os próprios termos de uso das empresas. Presentes ainda a onerosidade, pois não se trata de trabalho voluntário, e a não-eventualidade, como demonstram os relatórios extraídos dos sistemas das empresas e as pesquisas realizadas. Esses trabalhadores não estão fazendo “bico”, mas, sim, laborando de forma não-eventual, com extensas jornadas de trabalho, sem intervalo mínimo de uma hora para descanso, sem descanso semanal e férias.
Suas jornadas de trabalho não são fixas, mas isso nunca foi requisito da relação de emprego, muito menos em uma sociedade como a nossa que tem a possibilidade de realização do trabalho virtualmente de qualquer lugar. O trabalhador em home office é um exemplo forte, e que não se deixa considerar como empregado.
No entanto, com a baixa remuneração e os impulsos (“nudges”) que enviam para os trabalhadores, além da gamificação realizada pelas chamadas “promoções” ou “bônus” para que completem um ou dois turnos inteiros, as empresas os levam a laborar por muitas horas, dia e noite, todos os dias da semana, para conseguirem o mínimo para subsistência, como mostram, com frequência, matérias jornalísticas relacionadas ao setor de entrega. Fotos que chocam a todos de entregadores dormindo nas calçadas, percorrendo de bicicleta 50 km por dia em ritmo frenético, esquivando-se dos carros no meio da rua. As jornadas, embora não sejam fixas – fato que nunca afastou a relação de emprego, repita-se –, são absolutamente controladas pelas empresas, como podem mostrar os relatórios de inputs e outputs dos seus sistemas. Esse fato é ainda mais claro nas empresas que se utilizam de interposta pessoa para realizar esse controle, como é o caso dos chamados operadores logísticos.
O instrumento de dar os comandos aos trabalhadores foi alterado, como já fora outrora quando se passaram a dar ordens por e-mail, computador de bordo, palmtop, ou celular. Mas o controle e a frequência das ordens foram intensificados e são facilmente aferidos porque todos os dados estão nas plataformas digitais. A CLT alberga a figura do “comando por meio telemático”, no parágrafo único do art. 6º da CLT, segundo o qual “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
No entanto, o discurso empresarial, talhado por profissionais de marketing e psicologia, é propagado a custo de muito dinheiro, a exemplo do que ocorreu na Califórnia, EUA, onde as empresas de “transporte por aplicativo” desembolsaram mais de um bilhão de reais para a campanha de plebiscito que criou uma exceção para ela na configuração da relação de emprego trazido pela AB5, resultando em perdas de direitos a esse tipo de trabalhador. Tal discurso encontra eco, inclusive, entre parte dos próprios trabalhadores que se veem atraídos pela ideia de empreendedorismo e autonomia, que só existem no discurso. Como mostram diversas pesquisas, ao serem questionados sobre suas condições de trabalho, os trabalhadores afirmam que gostam da ideia de poderem fazer seu horário, motivo pelo qual a contratação como autônomos lhes soa interessante (desconhecendo que fixação de jornada não é condição para vínculo de emprego e que o trabalho sob demanda tem regulamentação e previsão de direitos no Brasil), mas, contraditoriamente, informam almejar direitos trabalhistas, como férias, salário-mínimo, descanso semanal remunerado, EPIs e contribuição previdenciária.
Além das campanhas de marketing, algumas dessas empresas utilizam largamente da manipulação jurimétrica para levar à consolidação de uma jurisprudência trabalhista que negue os vínculos de emprego. Com a aplicação da jurimetria, pode-se, entre outros, avaliar, a partir dos cenários jurisprudenciais, a probabilidade de sucesso ao se ingressar com uma ação. Ao se analisar a atuação judicial da Uber, é possível verificar que a empresa vem empregando largamente métodos jurimétricos no mapeamento das decisões de magistrados. Sabendo a tendência de cada juiz, desembargador ou ministro na apreciação de ações que buscam o reconhecimento do vínculo de emprego, a empresa propõe acordo judicial quando está diante de um julgador mais suscetível ao reconhecimento do vínculo empregatício e manifesta recusa ao acordo quando está diante de um magistrado mais conservador. Do acordo, faz constar a obrigação de pagar diversos créditos trabalhistas, desde que não seja reconhecido o vínculo de emprego. Desse modo, por meio de uma litigância manipulativa, as decisões favoráveis à empresa formam jurisprudência, e as que possivelmente lhe seriam desfavoráveis são evitadas, pois são substituídas, em alguma fase processual, em qualquer instância, por acordos homologados judicialmente.
A estratégia adotada pela Uber não fugiu aos olhos do Ministério Público do Trabalho, que já apresentou um relatório sobre o tema. Tomando consciência da manipulação, vários magistrados têm se recusado a homologar acordo proposto pela Uber, como mostram decisões do TRT3, TRT 15, TRT11, entre outros. Ressalte-se que não há direito líquido e certo das partes à homologação do acordo, pois, para tal, é preciso que se façam presentes os requisitos para a conciliação e que o acordo não infrinja as normas de proteção ao trabalho, não prejudique o empregado ou implique em fraude trabalhista – como é o caso.
Hoje, no Brasil, a maior parte da jurisprudência não reconhece o vínculo de emprego com as empresas que operam no trabalho sob demanda por plataforma digital. Entretanto, se somadas as procedências com os acordos judiciais, esses são em número maior do que as improcedências. Recentemente, os ventos parecem começar a mudar, principalmente em função da decisão da 3ª Turma do TST, nos autos do RR-100353-02.2017.5.01.0066, que reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista e a Uber. Espera-se que o Judiciário brasileiro siga o caminho trilhado por outros países, onde a relação empregatícia vem sendo reconhecida, a exemplo de França, Suíça, Espanha, Alemanha, Holanda e Nova Zelândia. Ressalta-se que a União Europeia está em vias de editar uma diretiva com requisitos para reconhecimento do vínculo de emprego nos países membros.
Importa ressaltar que o afastamento da relação de emprego ou o estabelecimento de um outro diploma legal específico para reger a relação entre as empresas detentoras de plataformas digitais e seus trabalhadores levará, inevitavelmente, a uma concorrência desleal com as empresas que atuam nos mesmos ramos de atividade contando com empregados formalizados. Ademais, levará, como sói acontecer com todo tipo de fraude trabalhista, à consolidação de um padrão de relações trabalhistas precário, pois se hoje chamam a atenção os setores de transporte e entrega, amanhã serão todos os setores da economia afetados por tal forma de contratação, ocasionando a implosão dos direitos trabalhistas consolidados, mormente considerando que todos os tipos de serviço podem vir a ser contratados por aplicativo.
A correlação de forças foi tão desfavorável nos últimos anos que se abriu espaço para que empresas tivessem à sua disposição força de trabalho sem custos, em que até parte principal dos custos com instrumentos de produção fosse transferida aos trabalhadores. Consequentemente, tem-se um avanço ainda mais profundo no processo de desorganização do mercado de trabalho brasileiro, que joga as pessoas à concorrência vil em uma atividade que lhes possa garantir renda. E mais, as empresas, que atuam de forma quase oligopolizadas, se inserem na lógica contemporânea da financeirização e da venda de dados. Referendar essa perspectiva, não contribui para a tarefa enorme que existe de organizar o mercado de trabalho e ampliar a inclusão social.
Um regime precário de contratação é o que almejam as empresas, como pode ser visto nos discursos dos seus CEOs. Acatar um modelo de relação de trabalho que afaste o vínculo empregatício ou restrinja direitos trabalhistas é ferir de morte o art. 7º da Constituição da República – o que não foi conseguido sequer pelo Governo Bolsonaro com a carteira verde e amarela. De fato, o caput do art. 7º da carta maior afirma que os direitos relacionados em seus vários incisos têm como destinatários os “trabalhadores” e não empregados. Deve ser lembrado que esse artigo está no capítulo dos direitos fundamentais, ou seja, têm a pretensão de universalidade. A criação de uma terceira categoria com menos direitos fundamentais, ou seja, formada por cidadãos de segunda categoria, não passa pelo crivo constitucional.
O fetichismo tecnológico, impulsionado pela retórica de marketing dessas empresas, faz crer que estamos frente a um novo tipo de relação de trabalho, criando “novidades” como “trabalhador por aplicativo”, “algoritmo patrão” e “trabalhadores digitais”. Entretanto, se olharmos de maneira técnica e desencantada, nada disso é característica do trabalho realizados nessas empresas, pois a tecnologia sempre esteve presente no trabalho humano e nunca alterou sua essência. O tear a vapor é instrumento de trabalho, assim como a esteira da linha de produção, as peças robóticas nas fábricas. Seja qual instrumento utilizar, em todos os casos se trata de um operário. Em uma sociedade em processo acelerado de digitalização de todas as esferas da vida, chamar alguém de “trabalhador digital”, ou “trabalhador por plataforma digital” ou “trabalhador por aplicativo” além de incorreto é completamente inespecífico, pois todos os trabalhadores exercem suas atividades em alguma parte por meio do digital. Chamar um entregador ou um juiz ou um advogado de trabalhador digital tem o mesmo sentido, pois todos esses executam seus serviços por meio de plataforma digital.
A característica predominante do chamado “trabalho em plataforma” nada mais é do que a contratação sob demanda e pagamento por tarefa. Essas são suas notas distintivas, e não o fato da utilização de tecnologia digital, mero instrumento de organização do trabalho, totalmente expandido em todas as atividades econômicas atualmente. O trabalho sob demanda, com pagamento por tarefa, não é nenhuma novidade. Karl Marx traz n’O Capital que o trabalho por peça, do qual o trabalho por tarefa é uma de suas espécies, é a forma mais perversa de organização laboral para os trabalhadores, fazendo-os entender que é de seu interesse intensificar o seu trabalho e prolongar sua jornada, sendo que, na realidade, faz rebaixar o preço do trabalho, dado que quem precifica a tarefa ou peça é o empregador.
O trabalho sob demanda e remunerado por tarefa são previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Um primeiro exemplo é o trabalhador avulso, previsto na Constituição com garantia de todos os direitos dos empregados. Temos dois exemplos de trabalhadores avulsos: os portuários e os desenvolvidos nos chamados “portos secos”. Tal qual um entregador ou um motorista, ao trabalhador avulso é ofertado trabalho, com possibilidade de negativa, que pode ser executado para empresas diversas, recebendo por tarefa realizada. Esse trabalho é controlado e remunerado pelo Órgão Gestor de Mão de Obra, no caso do portuário avulso, e o sindicato, no caso do trabalhador avulso dos chamados portos secos.
A segunda forma de trabalho sob demanda é o trabalho intermitente, forma precária de emprego trazida na legislação pátria pela Reforma Trabalhista de 2017 e tão criticada por não ter conseguido incluir trabalhadores e sim excluir aqueles com maior proteção. Não trazendo na lei qualquer restrição expressa de utilização, essa forma contratual passou a ser utilizada por empresas como alternativa de uso geral ao contrato de emprego tradicional, tomando seu lugar sem qualquer proteção aos trabalhadores e trazendo a previsão inconstitucional de salário-mínimo por hora.
Ou seja, seja de uma forma de trabalho específica que muito se assemelha ao chamado trabalho em plataforma como é o trabalho avulso, seja como a genérica forma contratual do trabalho intermitente, já há regulamentação do trabalho sob demanda no país. O que desejam as empresas é ir além da conquista de precarização que obtiveram em 2017, pois se recusam a utilizar até o precário contrato que conseguiram emplacar em nossa legislação. De toda sorte, entende-se que a forma de contratação aqui discutida se enquadra no parágrafo único do art. 6º da CLT e, via de regra, sequer se trata de intermitência de trabalho, vez que os trabalhadores estão trabalhando de forma contínua para as empresas.
De toda sorte, seria necessária uma discussão conjunta do chamado “trabalho em plataforma” com o contrato de trabalho intermitente e a correção da regulamentação do contrato intermitente, para uma maior proteção dos trabalhadores e para alcançar expressamente os chamados trabalhadores em plataforma, que em verdade são entregadores, motoristas, domésticos, montadores de móveis por demanda. Para tanto, sugere-se a retirada de pauta de todos os projetos de lei que se relacionem com o tema e a rediscussão do assunto com amparo no art. 7º da CR e nos artigos 2º, 3º e 6º da CLT.