O Coletivo Transforma MP e diversas entidades e movimentos sociais assinaram a nota da Coalizão em Defesa da Democracia, que repudia os atos golpistas praticados desde 2022 até os dias atuais.
O documento enfatiza o perigo que as tentativas de golpes representam para o país e para o povo brasileiro, fragilizando a Democracia, a soberania nacional e a Constituição Federal de 1988.
As entidades destacaram que o caso se torna ainda mais grave por apresentar membros do Exército brasileiro que deveriam defender a pátria e obedecer ao povo ao invés de conspirar contra o Estado. Outro fato destacado em relação aos militares é o uso excessivo dos recursos públicos para custear remunerações acima do teto estabelecido e com compras luxuosas que não estão relacionadas com a função do exército.
“A Coalizão em Defesa da Democracia, que congrega autoridades, organizações e intelectuais que acompanharam de perto as eleições para garantir a lisura do processo eleitoral e defender os procedimentos democráticos adotados pela lei e pela justiça eleitoral brasileira, vem agora exigir celeridade das autoridades de investigação, processo e punição dos envolvidos nos atos acima mencionados.”
O Brasil é um país marcado por golpes, mas também carrega muita luta e organização social da sociedade civil e entidades. Precisamos nos fortalecer para barrar os atentados à democracia e garantir uma sociedade segura e sem ameaças.
Os atos golpistas
Na última terça-feira, dia 19 de novembro de 2024, o Brasil acordou estarrecido ao tomar conhecimento da existência de uma quadrilha de pessoas ligadas às forças de segurança brasileira que, segundo o relatório da Polícia Federal encaminhado ao Ministério Público e ao Supremo Tribunal Federal (STF), teria planejado, organizado e encaminhado em 2022 atos para assassinar os então Presidente e Vice-Presidente eleitos e um dos ministros do STF que ocupava a presidência do Tribunal Superior Eleitoral.
O Coletivo Transforma MP enviou ofícios a todas as Procuradorias de Justiça dos Estados e do Distrito Federal requerendo providências no sentido de assegurar que todos os sistemas de informação e bancos de dados utilizados em investigações pelos Órgãos de inteligência e pelo Sistema de Justiça sejam republicanamente auditáveis, controláveis e acessíveis apenas por pessoas com atribuições legais para investigar os casos concretos aos quais estejam vinculadas.
A preocupação surgiu após notícia da Agência Pública sobre possíveis falhas no sistema Córtex, administrado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O Córtex é uma plataforma que concentra imagens e informações sigilosas sobre milhões de brasileiros, centralizando diversos bancos de dados. Segundo apurado pela matéria, estariam ocorrendo acessos por agentes que não estariam ligados a investigações específicas ou que não teriam sequer atribuições de investigar, como guardas municipais, além de acesso irrestrito por militares. A sociedade civil a quem todas estas instituições servem, precisa ter conhecimento sobre esse monitoramento.
Tais informações são “dados sensíveis” e não podem ser disponibilizadas sem que seja legalmente necessário ou sem o consentimento do indivíduo, conforme determina a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). A exceção seria admissível apenas com a existência de inquéritos, ações judiciais ou procedimentos administrativos formalizados legalmente e conforme a estrita necessidade. Caso contrário, desvios de finalidade podem ocorrer, com o monitoramento de adversários políticos de eventuais agentes públicos, o que configuraria abuso de poder inadmissível numa democracia.
Em outubro deste ano o Ministério Público Federal instaurou, de ofício, Inquérito Civil para apurar tais fatos. Todavia, é preciso atentar para o fato de que o Córtex e diversos outros sistemas e bancos de dados são acessados também pelas polícias, pelo poder judiciário e pelos ministérios públicos dos Estados e do DF. É preciso garantir a segurança e a integridade dos mesmos, para que não ocorram as falhas que aparentemente afetaram o Córtex. Os MPs estaduais poderão, inclusive, atuar de forma colaborativa com o MPF.
O Coletivo Transforma MP, preocupado com as garantias democráticas, formalizou as 27 representações, confiando na atuação dos integrantes dos vários ramos do Ministério Público Brasileiro, no cumprimento de seu papel constitucional de garantidores do Estado Democrático de Direito.
“Livre Pensar é só Pensar” foi frase de efeito, artigo e coluna do grande Millor Fernandes no seminal jornal de humor e política O Pasquim1 – chegou a ser tão influente que terroristas de extrema-direita (na última ditadura civil-militar) lançavam bombas em bancas e livrarias que o vendiam. Naquele tempo, só o teu pensar poderia até te matar! Continuou-se pensando e agindo até a ditadura cair de podre e o pensar livrar-se da censura. O agir deste pensar trouxe a democracia e manteve aceso o sonho dum Brasil solidário, humano e descolonizado. Com todos os riscos, pensava-se, escrevia-se, divulgava-se e, principalmente, agia-se: panfletava-se, pixava-se, piqueteava-se, ajudava-se, fugia-se, retornava-se, apedrejava-se, guerrilhava-se, organizava-se, sindicalizava-se, associava-se, greveava-se, lutava-se e (quando voltaram as eleições) votava-se… Duas gerações, uma internet e várias guerras híbridas após a redemocratização tivemos um golpe moderno implementado (2016) e outro tentado (2023). De lá para cá o que mais se fez é “Só pensar”, aliás, cada vez mais livre, inclusive nas formas: textões, memes lacrantes e vídeos lindos. Ou seja: analisa-se, reanalisa-se, retroanalisa-se… O problema é que faz tempo relegamos todos aqueles “agires” para muito depois do “Só pensar”. Aguardamos a análise definitiva, a resposta, o roteiro induvidoso do processo histórico a descer dos céus. A ação passou a ser repostar a última análise e aguardar a próxima – que, talvez, traga consigo os chinelos do destino e o mapa do futuro. Já disseram antes que andamos “cegos de tanta luz”, que o excesso de informação é imobilizante e dissemina mais dúvidas do que certezas. Mas quem disse que é preciso ter certeza para viver? Baixamos das árvores e saímos das cavernas com a certeza do sucesso? Claro que não! Tanto assim que nossos primos2 (tão hominídeos como nós) saíram pelo mundo e foram extintos. Escapamos nós, os violentos e desconfiados homo sapiens, mas também gregários, solidários e sonhadores. Qual o impulso? As necessidades básicas do momento: moradia, alimento, sexo e segurança (aqui incluído não virar comida de um bicho mais forte). Não é preciso refletir muito para ver que, no essencial, os motivos são os mesmos, variam os formatos. Seis milhões de anos de muita ousadia, de riscos assumidos ante a morte. Viemos guiados, no máximo, por algumas vagas ideias em nosso cérebro que começava a processar padrões e projetar abstrações. A trilha para a água (evitando o lobo) chegou ao projeto do satélite (prevendo o furacão). Tanto numa experiência como noutra, houve baixas, mas chegamos até aqui pois aprendemos. E este aprendizado foi de agir-pensar e pensar-agir. Simultâneo e recíproco. As mãos e os pés ensinando ao espírito o que era preciso! A mente convencendo o corpo do que era possível! Uma pessoa puxando a outra e o grupo caminhando. Muitas vezes guerreando, mas principalmente colaborando, assimilando e crescendo3. Em nome de uma ficção qualquer, incorporada num xamã, rei ou filósofo, perseveramos em números vastos, embora as certezas fossem poucas e mudassem conforme lugar e tempo. Os caçadores-coletores que migraram para o desconhecido fiaram-se em pouco mais do que numa esperança: a palavra de um indivíduo que apontou (sem provas) e disse “o jeito é ir por ali”. E fomos, embora muitos tenham ficado. Os soldados em Stalingrado obedeceram5: “Nenhum passo atrás”. E vencemos os nazistas, embora tantos hajam morrido. Sem certezas absolutas. Com muita dúvida mesmo. Fomos. Vencemos. Porque era o jeito! Em pouco4 tempo ocupamos todos os lugares, com muito sofrimento, mas atingimos um patamar onde objetivamente existem soluções para todas aquelas necessidades básicas: é possível que todo mundo more e alimente-se dignamente, viva seguro e namore de vez em quando. É verdade que existem as elites que açambarcaram os recursos, convencendo a maioria a entregar as riquezas de seu tempo, a troco de bem pouco. Mas antes nem recursos existiam, fora paus e pedras! Nem ideias havia sobre riquezas, tempo e revoluções. No imenso curso da história, “esta” humanidade já realizou o mais difícil (começando por também não ser extinta). Em termos muito, muito amplos, há razão para otimismo… se não pararmos! O grande poeta Leonard Cohen6 compôs a canção “On That Day”, na qual um novaiorquino “médio” e até meio bobo, vê o atentado de 11 de Setembro e não entende nada. Não sabia das motivações (religião, ódio, vingança, justiça). Apenas viu que havia perigo e, no mesmo dia, apresentou-se ao serviço (quartel de bombeiros ou do exército). Sem acesso aos grandes planos ou ideologias, na dúvida trouxe o que tinha: seu tempo e suas mãos… Antes das várias orações diárias, os muçulmanos precisam purificar-se, fazendo as abluções. Limpam sequencialmente as mãos (pois estas cuidam do corpo), a boca e as narinas (para delas virem a boa palavra e o bom alento), o rosto e os olhos (bem mostrar-se ao mundo e vê-lo de modo puro), os braços (ligam as mãos ao corpo), as orelhas (ouvir com perfeição) e os pés (conduzem todo o corpo pelo mundo). A oração como ação e prática material além (ou antes) de espiritual. Na canção “A Messe é Grande”, dos freis portugueses Miguel de Negreiros e Acílio Mendes7 entoa-se: “A messe é grande e o pão é abundante: Venham mãos repartir! // Muitos têm fome e sede de justiça: Quem lhes quer acudir? // A messe é grande e falta muita gente! // É preciso rogar Ao Deus da messe // que mande operários Para o mundo salvar. ” Novamente, um canto-convocação; não contemplativo, mas inseparável de um estar-agir no mundo. As grandes religiões ou mitologias ou ideologias, como ficções condutoras (podendo levar à emancipação ou à escravidão), são formalmente8 os grandes chamados para a ação organizada. Sempre o agir do ser humano, que ainda se acostuma a viver em grandes grupos – mas que jamais esteve parado.
Até agora só disse obviedades, não é? Pois então compartilhemos este mistério, cá entre nós: – Se a coisa deu certo há tanto tempo e em tantos lugares, porque diabos não conseguimos sair do grupo do Zap? Humildemente creio que nunca, jamais precisamos da utópica certeza, do caminho limpo, do líder imaculado, da luz maravilhosa… noutras palavras, da mais-que-perfeita análise político-econômico-ético-religiosa em versos alexandrinos ou ritmo de funk. As necessidades são as mesmas… é preciso decidir pela ação. Se quiser, baixe o PDF. Vamos ler um pouco sobre práxis em Marx9 ou em Paulo Freire10: a estreita relação entre uma interpretação da realidade e da vida e a consequente prática que decorre daí, levando a uma ação transformadora. Sem separar teoria/reflexão de ação/transformação do mundo. Sem esperar uma pela outra. Retroalimentam-se e melhoram uma à outra. Mas baixe para o celular e vai lendo no caminho, viu! Caminhar é o que interessa. Melhor ainda (pois “é o jeito”): vamos adotar por hoje uma ideia/análise dentre tantas dos grupinhos – e nem precisa ser bonita. Mas de qualquer jeito vá para a rua, para a passeata, para o comício. Compareça e discuta na reunião do condomínio ou da associação ou do clube. Aborde gente na rua, no transporte, no comércio. Leve mais alguém. Convença uma pessoa por dia, basta uma – pois caminhar é o que interessa. Primeiro, permita que sua ação ensine ao seu pensar… depois você pode mudar de análise, uai! Ah, mas e a “militância digital” não tem importância? Tem, mas isto você faz com uma das mãos, enquanto a outra segura a bandeira!
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, promotor de Justiça e membro do TRANSFORMA MP.
Tudo digitalizado e acessível na Biblioteca Nacional – aproveite: https://bndigital.bn.gov.br/acervodigital
Pelo menos 21 espécies, segundo o Smithsonian: https://humanorigins.si.edu/evidence/human-fossils/species
Os primos champanzés combatem grupos rivais, preparam emboscadas… mas os europeus possuem uns 3% de DNA neandertal (ou seja, entre as brigas, amor se fez).
Da revolução agrícola até agora são uns 12 mil anos – num planetinha onde a vida surgiu há 4 bilhões de anos e que já passou por cinco extinções massivas.
A ordem nº 227, do Comissariado de Defesa do Povo, a partir de 1942: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_n%C3%BAmero_227
Antes que alguém reclame, digo logo que ele simpatizava com o sionismo conservador, sim – o que não muda em nada a maravilha de seus versos. Aprendamos a separar pessoa de obra.
Além das investidas individuais predatórias contra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, tem havido iniciativas legislativas que ignoram a Constituição e os compromissos do Brasil com a Agenda 2030 da ONU
O cavalo subiu no telhado. Não foi um gatinho, foi um equino. Um cavalo zaino, de pelagem castanho-escura, foi resgatado de cima do telhado em que esteve ilhado por quatro dias durante a trágica enchente que abateu o Rio Grande do Sul. As aflitivas imagens do resgate tornaram o animal um símbolo da tragédia ambiental e da resistência do povo gaúcho.
Enquanto isso, a Constituição Federal está completando 36 anos. Promulgada em 5 de outubro de 1988, a Carta é celebrada por reconhecer vários direitos e garantias, essenciais para o cidadão e para a sociedade. Mas há um em especial que deve ser destacado pela clareza e contundência com que foi enunciado.
A Constituição proclama que temos, todos, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225). A sadia qualidade de vida, de todos os seres humanos, é um direito que impõe ao Poder Público e à coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
A primeira referência à legislação ambiental no país deu-se, no interesse da Coroa, com o Regimento do Pau-Brasil, em 1605. As duras punições, que iam do confisco à pena de morte, não foram suficientes para proteger as florestas da sanha predatória.
Em 2024, a escalada de eventos extremos — secas, enxurradas, inundações, deslizamentos, assoreamentos de cursos d’água, nuvens de poeira, incêndios florestais, desmatamentos, pulverização de produtos extremamente tóxicos sobre povoados, campos e florestas, recordes de temperaturas e baixa umidade — demonstra as consequências da deliberada ação humana contra o meio ambiente. Por vezes, a catalogação do direito como fundamental não se mostra suficiente para impor a proteção ambiental em face de interesses imediatos concretos.
Além das investidas individuais predatórias contra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, tem havido iniciativas legislativas que ignoram a Constituição e os compromissos do Brasil com a pauta civilizatória global representada pela Agenda 2030 da ONU.
Em 2021, a Lei nº 14.285 alterou o Código Florestal, permitindo a redução de áreas de proteção permanente nas margens de rios urbanos. A medida ameaça o meio ambiente e as pessoas, agravando os efeitos de enchentes. A lei é questionada no Supremo Tribunal Federal (ADI 7146) por ferir o regime constitucional de repartição de competências. Leis ambientais de municípios e estados somente poderiam aumentar o rigor das normas nacionais, jamais reduzi-lo.
Em 2022, a Lei nº 14.515/22 autoriza que empresas do setor agropecuário criem o próprio programa de defesa sanitária, atividade em que o Brasil era referência mundial. A lei investe contra o Estado e o poder de polícia nos temas ambientais e de saúde pública, jogando contra a credibilidade da produção brasileira na disputa por mercados mais exigentes. Por atribuir aos trabalhadores das indústrias e estabelecimentos agropecuários a responsabilidade de fiscalizar, aferir e certificar a salubridade de produtos e procedimentos do processo produtivo, reduzindo a participação do Estado, a lei está sendo questionada no STF (ADI 7351).
Em 2023, a Lei nº 14.785 alterou a regulação para aprovação, comercialização e uso de agrotóxicos. A lei que facilita o uso de produtos extremamente tóxicos, ignorando o alerta de cientistas e de instituições, nacionais e internacionais, para as consequências arrasadoras na saúde e no meio ambiente está sendo questionada no STF (ADI 7701). O tema do estímulo aos agrotóxicos, por meio da concessão de isenções tributárias, também é objeto de questionamento no STF (ADI 5553).
Em meio à fumaça, o inusitado pedido de ministros do governo brasileiro à União Europeia de adiamento da norma que exige commodities livres de desmatamento expõe a preocupação com as consequências do descaso com os compromissos ambientais. Certamente, depõe contra a pretensão brasileira de ser reconhecido como líder na pauta climática.
A anedota do gato no telhado retrata o raciocínio que ameniza a péssima notícia, homeopaticamente dosada: subiu, escorregou, caiu e, infelizmente, morreu. No Brasil de 2024, quem subiu foi um cavalo.
O histórico recente do STF é de sintonia com a pauta que envolve a adoção de medidas ousadas, abrangentes e essenciais para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsividade das instituições políticas. Assim, tem freado as investidas predatórias. A Corte está sendo convocada a concretizar o compromisso do Estado brasileiro com a Agenda 2030.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.
Em choque. Foi assim que saí do cinema após assistir “A Substância”, filme em que a diretora francesa Coralie Fargeat nos coloca frente a frente com a violência sanguinária da desumanização do corpo feminino, cindido, roubado de seus impulsos de vida, colapsado como ovo quebrado em busca de metas infindáveis para atingir uma “melhor versão de si mesma”, versão que jamais foi de si, ou de mesma, mas de um mundo cujas regras são ditadas por homens.
Enquanto o corpo feminino se descaracterizava na ânsia de ser enxergado, escutado e amado, até virar uma gosma varrida do chão, eu pensava nos movimentos de silenciamento e adequação a que nós, mulheres, somos submetidas, de forma às vezes óbvia, às vezes insidiosa, por esse mundo estruturado na masculinidade. Pensava na mulher, nas mulheres, nessa que sou eu e nas outras, e que aprendem a se cindir e se destruir competindo pelo olhar de aprovação do homem.
“Os homens aprendem a amar muitas coisas. As mulheres aprendem a amar os homens” resume, certeira, a professora e pesquisadora de psicologia Valeska Zanello, que traz também a metáfora da prateleira do amor. Somos todas nós, mulheres, ensinadas a competir pelo desejo do homem em prateleiras de um grande supermercado. Quanto mais velhas, gordas ou fora dos padrões estéticos ditados pela indústria masculina que nos objetifica, mais alta é a prateleira que nossos corpos invisibilizados estarão, diz ela.
No livro feminismo branco Koa Beck também não poupa verdades ao criticar o feminismo que engole as políticas de poder sem questioná-las, replicando padrões de supremacia branca, ganância capitalista, ascensão corporativa e práticas de trabalho hierarquizadas e elitistas, como se empoderamento feminino significasse, apenas, colocar uma mulher no lugar antes ocupado pelos homens para que elas façam exatamente o que eles sempre fizeram.
O feminismo criticado por Beck, branco, heteronormativo e despolitizado, enxerga a igualdade de gênero como acumulação de poder individual em vez de vê-la como luta coletiva que tem como objetivo subverter padrões e visões de mundo obsoletas que nos levaram a esse triste lugar em que nos encontramos: passivos expectadores das desigualdades de oportunidades.
De nada adianta a colocação de uma mulher em um posto de poder se ela for um adorno sem voz e sem opinião, ali colocada para figurar sorrindo em fotos com outras autoridades, perdida no deslumbramento dos tapetes vermelhos, das bajulações cheias de inveja e mentira e das repetições dos padrões éticos e estéticos de sempre, tímida e comportada, sem qualquer risco de surpreender ou inovar. Sem lugar de fala e, sobretudo, de escuta.
Não é fácil ser disruptiva em um mundo que apesar de anunciar seu fim, com florestas queimando à luz do sol, aparentemente funciona para muitos, sobretudo aos homens que falam alto.
Eles seguem praticando violências sutis ou explícitas, sem qualquer receio de criar narrativas distorcidas para manter uma aparência de firmeza, macheza, controle de tudo e todos, sobretudo de mulheres que falam, e falam muito, e falam bem… e opinam e querem … isso, aquilo… querem voar … e em bando.
Ser homem, branco, e estar em um posto de autoridade aparentemente lhe confere a autorização da braveza. O homem branco nunca envelhece ou fica gordo. Ele fica bravo. Ele dá a última palavra, seja ela qual for (e não importa se faça, ou não, algum nexo). É do homem branco a narrativa e o julgamento.
Muito avançamos no enfrentamento da violência doméstica, é verdade, graças, inclusive, ao feminismo branco e sua passabilidade em espaços elitizados e formadores de opinião.
Mas, agora, precisamos avançar no enfrentamento da violência política. A lógica patriarcal é a mesma: o homem violento também não é 24 horas tosco e agressivo. Pelo contrário, goza de excelente reputação, pode ser gentil, sorridente, fazer coisas bacanas, mas, quando sente que não está no controle absoluto, reage. Se é um corpo masculino que dele discorda, a política vigente recomenda a aproximação e a bajulação. Se é um corpo feminino que ousa argumentar, questionar ou propor caminhos diferentes a reação é a braveza, humilhação e desqualificação. A política, afinal, não é o espaço natural de uma mulher. Quem, raios, elas pensam que são… se sequer como adultas conseguem falar. Precisam, com firmeza, serem colocadas em seus devidos lugares de recato e obediência. Como a exclusão dos espaços de poder é secular, as mulheres tendem a aceitar oportunidades, agrados e alguma visibilidade pagando preço alto por isso. Muitas vezes emprestam sua competência para homens brilharem em troca de pequenos reconhecimentos, pois é o amor do homem que importa. Para piorar, o feminismo branco despolitizado, ao pregar o “chegar por chegar” não favorece que mulheres reconheçam e saiam do ciclo da violência. Ao contrário. O mundo masculino ensina mulheres a competirem por qualquer minúsculo espaço de poder.
A tal da sororidade vira raridade. No enfrentamento da violência política só tem sobrado, mesmo, a dororidade, termo cunhado por Vilma Piedade que, como mulher negra, sabe o que é ser barrada na festa das mulheres brancas feministas, todas jovens, magras e bem sucedidas: 12 horas por dia lendo mensagens de trabalho em seus smartphones e sorrindo docemente aos homens, com cuidado para que eles não se sintam inseguros diante de sua competência.
Mas nem tudo são gaiolas.
Nem todas são a gosma varrida do chão.
Há mulheres que falam, escrevem e voam.
Helene Cixous é dessas mulheres: “Quando você não cala a boca, sempre há uma gramática para censurá-la, mas eu cresci com leite de palavras. As línguas me alimentaram. Eu detestava comer o que cabia num prato. Cenouras salgadas, sopas ruins, garfos e colheres agressivos. Um acordo foi feito: só engoliria se me dessem o que ouvir. Sede de meus ouvidos. Chantagem deliciosa.”
Eis a chantagem e a vingança deliciosa das mulheres passarinhas: a aposta infinita na palavra.
Se silenciam é porque estão gestando as melhores palavras, que usarão para maternar novos mundos.
“Escreve! O que?
Pegue o vento, pegue a escrita, faça corpo com a letra. Viva! Arrisque: quem não arrisca nada, não tem nada, quem arrisca, não arrisca mais nada.
“Meu único tormento, meu único medo, é o de não escrever tão alto quanto o outro, meu único pesar é de não escrever tão belo quanto o Amor”.
Esse texto foi escrito sob a “doce coação do amor”e é dedicado a todas as mulheres passarinhas, em especial a 07 delas que seguem voando alto buscando mundos menos injustos, silenciadores e bravos, bem longe das gaiolas extras.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP
REFERÊNCIAS:
A chegada da escrita. Hélène Cixous. Bazar do Tempo, 2024.
O Ministério do Desenvolvimento Social emitiu a Nota Técnica 25 (1) destacando o crescimento acentuado do número de benefícios de prestação continuada (BPC) a partir de 2022. O documento anuncia o crescimento de 12.4% de despesas reais em 2023, em parte devido à política de valorização do salário-mínimo (re)inaugurada pela Lei 14.664\23 (que prevê o reajuste do salário-mínimo indexado à inflação (INPC) mais um índice correspondente ao crescimento real do PIB de 2 anos anteriores), em parte em razão da expansão do número de beneficiários.
Tudo isso é ótimo, não? Expandir os gastos com o BPC significa garantir dignidade econômica básica a um grupo de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade ao mesmo tempo em que se injeta na economia um boom de demanda que será revertido quase integralmente em consumo. Entretanto, o que vemos como “coisa boa”, o Ministério do Desenvolvimento Social e a mídia tradicional veem como “coisa ruim”. A razão? Esse aumento impacta a santidade das “contas públicas” e “preocupa os especialistas”. A Nota Técnica do MDS afirma que “o crescimento real de 12,4% nas despesas com o BPC em 2023 tem implicações significativas para a economia, com a despesa aproximando-se de 1% do PIB. Esse aumento coloca pressão sobre o orçamento federal, especialmente considerando o novo arcabouço fiscal que limita o crescimento das despesas governamentais”.
Destaque para o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que, como afirmei em outra oportunidade, não passa de um Teto de Gastos 2.0 (2). As pessoas insistem que, “tal como dona Lindu”, o Estado não pode gastar mais do que arrecada. Essa é uma falácia que, embora muito pegajosa, é facilmente desmontável. Entretanto, fato é que fizemos uma (péssima) escolha política, uma escolha pela implementação de um Novo Teto de Gastos. Desde sua implementação, era previsível que o governo precisaria cortar gastos que tivessem crescimento real para que as despesas pudessem permanecer dentro dos estreitos limites do teto.
E aqui entra a política. São escolhas: o governo tinha inúmeras alternativas para encaixar suas contas dentro da bizarrice do Arcabouço Fiscal, mas decidiu que vai passar um “pente fino” no BPC. Para quem não sabe, o BPC garante o pagamento de 1 salário-mínimo às pessoas com deficiência e aos idosos com mais de 65 anos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. Ou seja, estamos falando de um benefício que garante o mínimo existencial a um grupo de pessoas em grave situação de vulnerabilidade social.
O governo tenta convencer o público de que é necessário passar um pente fino no BPC para “evitar fraudes” (3). “Evitar fraudes” é um argumento de grande apelo popular, e o governo sabe disso. O problema é que os critérios de elegibilidade do BPC já são muito restritos e, a depender da instrução da chefia do INSS, os benefícios podem ser cancelados de forma um tanto discricionária. Por exemplo, o artigo 20, §3º da Lei 8.743\93 prevê que, para fazer jus ao benefício, o idoso com mais de 65 anos ou a pessoa com deficiência deve ter renda familiar mensal per capita igual ou inferior a 1/4 do salário-mínimo. Ou seja, uma família com 4 pessoas deve conviver mensalmente com o valor de 1 salário-mínimo! Como se não bastasse, o §1º do mesmo artigo considera “família” para fins legais o “requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto”. É muita gente! A depender da avaliação subjetiva mais ou menos permissiva da rede burocrática do INSS, valores que superem um pouco 1\4 do salário-mínimo per capita podem ou não ser contemplados, e do mesmo modo podem ser feitas análises mais ou menos rigorosas sobre o conceito de família. Nada disso é propriamente “fraude”, mas pura e simples política!
O gráfico a seguir demonstra variação anual do número de benefícios ano a ano.
O governo, que deveria comemorar o aumento de 11.6% novos beneficiários do BPC em 2023 como parte de uma política mais ampla de eliminação da fome e da miséria, agora procura recuar para obedecer ao evangelho da austeridade fiscal e manter a santidade das contas públicas. Nos próximos anos, o governo pretende cortar 6.4 bilhões de reais do BPC, o que equivale a eliminar 11% dos beneficiários segundo os cálculos divulgados (4). São aproximadamente 600 mil idosos e pessoas com deficiência que, do dia para noite, terão seus benefícios cancelados!
O Brasil vem apresentando boas taxas de crescimento econômico (1.4% no último trimestre) se considerarmos o padrão de crescimento mundial. Parcela da mídia externou surpresa com os resultados da economia brasileira. O jornalista da Folha Vinicius Torres Freire disse em sua coluna que os “especialistas” não sabiam a razão da elevada taxa de crescimento (5): “Nada disso estava nos prognósticos dos economistas. O crescimento do segundo trimestre deste 2024 foi muito maior do que o previsto. O crescimento de 2022 (3%) e 2023 (2,9%) foi escandalosamente maior do que o previsto (0,36% e 0,8%, respectivamente, ao final do ano anterior)”, afirmou. O colunista ainda diz que talvez “algo esteja acontecendo no miolo mais opaco da economia. Francamente, sabe-se lá o quê”.
Bem, de fato há algo acontecendo no “miolo da economia”. Mas esse miolo não é nada opaco. O PIB está crescendo fundamentalmente em função do aumento do consumo interno. O consumo das famílias e do governo cresceu 1.3% em relação ao trimestre anterior. A formação bruta de capital fixo (índice para medirmos o aumento dos investimentos) aumentou 2.1%. O setor externo atrapalhou o crescimento: as importações avançaram mais que as exportações. Ou seja, temos um crescimento econômico puxado exclusivamente pela demanda interna: redução do desemprego, aumento dos investimentos e dos gastos do governo. Rebeca Pallis, coordenadora de Contas Nacionais do IBGE, afirma que “o mercado de trabalho aquecido e as transferências governamentais estariam por trás do movimento” (6). E ela tem toda razão.
Parece claro que o aumento real do salário-mínimo, a expansão do programa bolsa-família e o aumento do número de beneficiários do BPC têm muito a contribuir com o crescimento acelerado do PIB. E não há nada “opaco” nisso. Afinal, pessoas de baixa renda possuem alta propensão a consumir, termo keynesiano que significa que quanto menor o salário, maior a taxa de consumo e menor a taxa de poupança. Ou seja, a quase integralidade do BPC é revertida em consumo, fato que gera efeitos multiplicadores que aquecem a economia, incentivando novos investimentos, que por sua vez incentivam novas contratações (redução do desemprego) e por assim em diante.
O BPC é, a um só tempo, elemento essencial para redução da miséria e da fome e mecanismos de aquecimento da economia pela via da demanda interna. Mas o que vemos com bons olhos a Nota Técnica do MDS vê como problema para as “contas públicas”. Ao final, a nota sugere a desvinculação do BPC ao salário-mínimo, a revisão dos critérios de elegibilidade e o “combate à fraude e revisão cadastral”. A desvinculação do BPC ao salário-mínimo é uma recomendação particularmente asquerosa que criaria um grupo de sub-humanos que poderiam receber menos que o salário-mínimo! A medida criaria uma dicotomia que merece os piores adjetivos imagináveis: de um lado, a salário-mínimo teria reajuste pelo INPC + Um índice de crescimento do PIB; de outro, o BPC manteria apenas o reajuste inflacionário, perdendo valor real em relação ao salário-mínimo (que, como seu nome diz, já é “mínimo”). Trata-se de nítida medida discriminatória contra os mais miseráveis dentre os idosos e pessoas com deficiência. Tudo em nome das “contas públicas”. Essas são as vítimas da austeridade fiscal. Se a ideia era “colocar o pobre no orçamento”, os cortes no BPC farão o exato oposto.
Se quisesse tanto manter o resultado fiscal dentro do limite do Novo Teto de Gastos, o governo teria uma porção de alternativas. Poderia atacar tanto o lado das despesas quanto o lado das receitas. Pelo lado das despesas, poderia propor mudanças nas aposentadorias militares ou trabalhar pelo fim de isenções fiscais, muitas delas perniciosas. Pelo lado das receitas, que de fato implementar impostos sobre grandes fortunas, cujos cálculos estimam a arrecadação anual de 40 bilhões de reais (e não me venham com o falacioso argumento da fuga de capitais, pois a tributação se dá sobre o patrimônio, não sobre a renda) (7)?
A verdade é que a histórica “vista grossa” sobre as benesses tributárias da burguesia brasileira tem levado aos “pentes finos” nos gastos públicos destinados às camadas mais pobres. Os cortes sempre se direcionam aos de baixo enquanto aos opulentos patrimônios da burguesia é feita vista grossa. Tem sido assim desde que a preocupação insana com as contas públicas se tornou a ideologia oficial. “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”, já disseram Marx e Engels n’A Ideologia Alemã (8). A passagem é tão famosa que se tornou clichê, mas às vezes é preciso relembrar: a austeridade fiscal é um conjunto de ideias (com enorme força material) a serviço das classes dominantes que introduz um artifício mental falso (a “necessidade” de equilíbrio das contas públicas) para evitar incursões tributárias do Estado no patrimônio e na renda dos mais ricos. Quando as “contas apertam”, o pente fino é direcionado as camadas mais pobres. A elevação da taxa básica de juros continua garantindo ao capital o poder de regular seu próprio rendimento, fato que alimenta uma bolha financeira que há muito perdeu contato com a economia real. As vítimas da vez são os beneficiários do BPC, e o que espanta é que a tesoura vem de um governo cuja promessa de campanha foi “colocar o pobre no orçamento”.
“Cada dia me torno mais cega, porque não tenho quem me veja” (9), disse a personagem de Saramago. As lutas de classes produzem uma dupla invisibilidade: de um lado, a invisibilidade materializada como um desprezo olímpico pelos milhares de destinatários invisíveis do BPC, próximas vítimas do “pente fino” da austeridade. De outro, a invisibilidade proposital da “vista grossa”, daqueles cuja riqueza é grande demais para ser alcançada pelos “pentes finos”. E é assim, com a naturalização da austeridade fiscal e do sistema capitalista, que seguimos sem enxergar nada.
2 – Sobre esse ponto, escrevi uma crítica ao Novo Arcabouço Fiscal disponível em: https://jornalggn.com.br/opiniao/austeridade-fiscal-versus-direitos-humanos-por-gustavo-livio/
3 – Disponível em: https://oglobo.globo.com/patrocinado/dino/noticia/2024/08/22/inss-da-inicio-ao-chamado-pente-fino-do-bpc.ghtml. Acesso em 20.09.2024.
4 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/08/governo-lula-preve-cortar-11-a-cada-100-beneficios-em-pente-fino-do-bpc.shtml. Acesso em 22.09.2024.
8 – MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 44.
9 – SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 301.
[1] Mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia. Promotor de Justiça do MPRJ. Integrante do Coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.
O Policiais Antifascismo e o Coletivo por Um Ministério Público Transformador são entidades sem fins lucrativos, de âmbito nacional, que reúnem profissionais das duas carreiras com preocupações humanistas, progressistas e alinhadas aos valores e garantias da Constituição Federal. São antipunitivistas e garantistas dos Direitos Humanos. Buscam, em suas atuações políticas e técnicas, mostrar rumos e alternativas aos discursos e práticas violentas e meramente reativas nas políticas de segurança – as quais mantém o status quo em nossa sociedade amedrontada e manipulada.
Com isto em mente, juntamo-nos para fazer um breve comentário1 sobre o novo Estatuto da Segurança Privada – com destaque para alguns riscos para os quais devem atentar a sociedade e os agentes públicos.
A nova Lei 14.967, publicada em 09 de setembro deste ano vem regular muito amplamente a atividade econômica da Segurança Privada, passados quase quarenta anos da anterior Lei 7.102/1983. Vale lembrar que o inicial Projeto cuidava apenas do piso salarial da categoria dos trabalhadores em segurança privada, sendo, ao final das discussões, substituído pela atual versão, que obteve ampla maioria na votação congressual. Há um interesse político claro em tratar de uma vasta categoria profissional em crescimento, bem como da multibilionária atividade empresarial. Conforme a Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte (Fenavist) o setor movimentou em 2021 o montante de R$ 171 bilhões. Em 2022 as despesas chegaram a 1,7% do PIB, contando apenas o que pessoas jurídicas gastam diretamente com segurança, segundo reportagem do Estadão2. Segundo o Anuário Brasileiro em Segurança Pública3, em 2022 eram 1.096.398 seguranças e vigilantes – quase uma vez e meia o número de trabalhadores na segurança pública (policiais) e cinco vezes o número de militares da ativa no exército4.
O gigantismo econômico precisa ser analisado sob uma correta óptica. Por mais relevante que seja, a atividade de segurança não redunda em aumento da produção nacional. As riquezas são protegidas, não criadas. Se por um lado já compromete uma fatia importante do orçamento das famílias e das empresas, também emprega outros tantos brasileiros e brasileiras. Ocorre que, estrategicamente, a luta da sociedade organizada, em médio-longo prazo, deve ser pela melhoria da segurança pública. Isto causará a diminuição da importância deste setor e o deslocamento da respectiva mão de obra para setores mais condizentes com o nosso desenvolvimento nacional e social. Obviamente isto vai contra os interesses econômicos imediatos do empresariado que expandem seus negócios ao passo que o país vá se tornando mais inseguro.
O novo texto unifica parcialmente diversos dispositivos que já dispunham indiretamente sobre a atividade e altera outras normas independentes, por exemplo: o Estatuto do Desarmamento, as Leis do Cofins e do PIS/PASEP, normas trabalhistas, a Lei para repressão uniforme aos crimes de repercussão interestadual e internacional (atribuição da Polícia Federal investigar os casos que envolverem firmas de segurança e transporte de valores). Foi alterado também o próprio Código Penal, com aumento de penas para os crimes contra o patrimônio que envolvam serviços de segurança privada, como furtos ou roubos contra transportadoras ou bancos e contra as próprias empresas de segurança, por exemplo (art. 183-A). Chama a atenção que as elevações de penas chegam até o dobro, o que deve ser visto com atenção, para não incentivar o punitivismo populista descolado das constatações científicas e da prática jurídica: o principal não é o tamanho da pena, mas a eficiência nas investigações e a prevenção em geral, pela integração de todas as políticas públicas que conduzem a uma sociedade mais solidária e com alternativas de futuro para a juventude.
Como na Lei anterior, além da vigilância, a principal ênfase está na proteção de empresas de transporte de valores e de instituições financeiras (bancos) – cuja segurança passa a ser “matéria de interesse nacional” (art. 1º, parágrafo único). Aparentemente foi um exagero do legislador, com laivos moralistas e alarmistas. Identifica-se aqui uma possível composição entre uma política securitária e uma tendência ao direito penal máximo. De todo modo, serve para ressaltar a importância de uma atividade que é visada pelas organizações criminosas em âmbito nacional – cujo enfrentamento precisa ocorrer com coordenação a partir do plano federal.
No caso da vigilância, ampliam-se os campos de atuação autorizados, especificando novos nichos de mercado (tipos diferentes de vigilância conforme a atividade, inclusive eventos públicos) ou simplesmente regulando atividades exercidas clandestinamente. Neste último ponto, teoricamente pode incentivar a criação de novas empresas de segurança de menor porte, por exemplo, em municípios menores ou em grandes condomínios (art 2º), em lugar da contratação informal de “vigias” ou “inspetores de quarteirão”.
Uma omissão gravíssima da Lei foi não buscar enfrentar o problema da notória e maciça presença de policiais da ativa como empregados ou proprietários de fato. Mecanismos específicos de controle, inclusive com cruzamento de dados seriam muito úteis.
O já citado Anuário Brasileiro de Segurança Pública5 reconhece que:
A complacência histórica com o bico policial acabou por convertê-lo em uma política informal de compensação aos baixos salários pagos a muitos profissionais de segurança pública. A reversão desta situação depende de políticas de valorização das carreiras dos agentes de segurança pública; da alteração das escalas de trabalho que criam condições propícias para o segundo emprego.
Some-se a também notória constatação de que milícias infiltradas de policiais da ativa habitualmente praticam extorsões de comerciantes nas comunidades brasileiras – exatamente o mesmo nicho econômico da atividade da segurança privada lícita. A fiscalização precisa ser constante e eficiente para evitar a fraudulenta “legalização” de atividades do crime organizado.
Um ponto positivo foi que a norma atual não apenas elevou as sanções (multas) às empresas que descumpram os requisitos de funcionamento, mas fortalece a fiscalização, que continua a cargo da Polícia Federal. Foram criados novos mecanismos e formalidades para fiscalização e, principalmente, supervisão. Isto incentiva a profissionalização do setor e sua credibilidade. Um dos requisitos necessários é a comprovação da origem lícita do capital investido (art. 19, inc. V). Este último ponto atende à legislação que combate o crime organizado, terrorismo e tráfico de entorpecentes buscando-lhes o que mais importa: os ativos financeiros.
O art. 3º, de modo louvável, fala que a atividade deverá obedecer os “princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e do interesse público e as disposições que regulam as relações de trabalho.”
Também positiva foi a previsão de garantias para os profissionais trabalhadores no setor, no âmbito trabalhista. Foram melhor regulados pontos como: carga horária e descansos entre turnos, treinamento e reciclagens, infraestrutura necessária e equipamentos (inclusive com uso de tecnologia), trabalho em áreas de risco e número mínimo de profissionais nos blindados e nas agências bancárias, além de planos viáveis de segurança (arts. 6º, 33 e 35).
A formação dos profissionais deve obedecer um currículo básico nos cursos de formação, aperfeiçoamento e atualização dos profissionais de segurança privada, necessariamente contemplando princípios éticos, técnicos e legais (art. 40, XIII). Deve prever, entre outros, conteúdos sobre: uso progressivo da força e do armamento, noções de Direitos Humanos e preservação da vida e da integridade. A educação específica e a constante reciclagem profissional é básica para evitar a repetição de episódios lamentáveis em nosso passado recente, como o ocorrido num supermercado de Porto Alegre em 19 de novembro de 2020, quando um segurança matou um cliente em frente às câmeras.
Mas nem tudo é positivo ou claro, sendo necessário exame mais aprofundado e, principalmente, o acompanhamento de sua execução – com o especial protagonismo da Polícia Federal.
A redução na informalidade do setor depende de outros fatores, como a fiscalização efetiva – pois a experiência demonstra que as empresas não aderem facilmente a tais regulamentos, sendo seus lobbies exatamente pela redução dos direitos trabalhistas. Vale lembrar como a atividade de monitoramento remoto por sistemas de segurança já é utilizada em milhares de condomínios residenciais brasileiros.
A nova lei é mais técnica e moderna em sua redação formal. Passou a abordar temas antes inexistentes, como sistemas de monitoramento eletrônico (câmeras, sensores, alarmes) e segurança cibernética. Todavia, a tecnologia abriu espaço para um possível retrocesso: a Lei previu a possibilidade de empresas privadas realizarem transporte e monitoramento de presos atornozelados. Isto foi corretamente vetado pela Presidência da República, por dificultar o controle pelo Judiciário e pelas Secretarias de Estado, além de obviamente conflitar com os princípios da execução penal como Política essencialmente Pública. Igualmente, embora não veiculado na mensagem de veto, previne-se o conflito de interesses de empresários que ganhariam mais dinheiro quanto maior fosse o encarceramento ou a aplicação de medidas alternativas como as “tornozeleiras eletrônicas”. Um conflito de interesses, mesmo que indireto e um prato cheio para o punitivismo de plantão.
Seria uma situação indesejada, pelos malefícios constatados em países como os Estados Unidos da América do Norte, onde abundam os presídios privados. Por fim, forneceria dados sensíveis sobre a população carcerária e egressa, que só devem interessar ao Estado. Este e outros vetos podem ser derrubados pelo Congresso – devendo haver mobilização da sociedade organizada e dos partidos políticos para sua manutenção e também do veto que garante a participação de capital estrangeiro, como comentaremos adiante.
A nova Lei também previu (art. 5º, V) a atuação na “segurança em unidades de conservação”. Aqui é importante atentar para a diferença entre fiscalização (exercida pelos Órgãos ambientais, com auxílio das polícias) para a segurança privada. A nova lei não traz proteção adicional ao meio ambiente, mas trata da proteção da propriedade privada submetida a restrições de ordem ambiental. Na prática, é possível um grande latifundiário contratar ou criar sua empresa de segurança armada com a finalidade precípua de enfrentar possíveis ocupações de terras (produtivas ou não, passíveis de reforma agrária ou não). Aqui vale a preocupação da repetição do fenômeno constatado no governo anterior: a proliferação de “Clubes de Tiro” em áreas rurais com histórico de conflitos fundiários6 – servindo de fachada para paióis de munição e armamentos por parte das equipes de “jagunços modernos” a serviço dos grandes proprietários.
Uma constatação alarmante, que lança sombra sobre a capacidade atual de fiscalização de tais firmas é o exemplo exatamente dos CACs. Cabe ao Exército Brasileiro o “registro e a concessão de porte de trânsito de arma de fogo para Colecionadores, Atiradores e Caçadores”, conforme o Estatuto do Desarmamento. Todavia, o Tribunal de Contas da União (TCU) constatou uma série de fragilidades e inconsistências no desempenho desta missão7, inclusive faltando “dados confiáveis relacionados à quantidade de vistorias e fiscalizações de CACs e de entidades de tiro”. Esta atividade está em vias de ser repassada para a Polícia Federal. Acontece que, em recente entrevista para a Veja8, o atual Diretor-Geral da Polícia Federal advertiu que, sem recursos, não será possível desempenhar a tarefa – pedindo incremento orçamentário na ordem de 500 milhões. Ora, ante esta sobrecarga, o que será então da missão de fiscalizar as firmas de segurança?
No geral, as discussões no Congresso, inclusive Pareceres, demonstram que a preocupação principal foi atender ao mercado crescente, muito mais do que preconizar alguma integração com a Política de Segurança Pública – que precisa ser tratada com ampla prioridade. A razão de ser da crescente demanda por segurança privada é a insegurança crescente da população e das empresas, denotando a falta de investimento ou o mau direcionamento das Políticas Públicas voltadas a reprimir a criminalidade organizada e prevenir a renovação de seus quadros. Sobre este último ponto, apenas investimentos contínuos na melhoria da qualidade de vida (segurança alimentar, habitação digna, educação e transporte) pode garantir que a juventude não veja na adesão ao crime uma alternativa de vida.
Logo, são campos aparentemente complementares, mas ideologicamente opostos: o setor empresarial da segurança privada lucra mais quanto pior for a atuação estatal. A experiência secular do Capitalismo demonstra a tendência à concentração da riqueza. Quando um grupo econômico cresce em demasia, seu poder econômico traduz-se em poder de pressão política e acaba moldando a legislação para beneficiar-se e até a facilitar a concentração de mercado, até chegar ao monopólio, em detrimento da população. Assim, foi acertado o veto presidencial ao artigo que impedia a participação de capital estrangeiro, o que tenderia a aumentar aquela concentração nas mãos das grandes empresas.
Um ponto negativo é que o art. 46 previu valores máximos de multas às empresas de segurança ou às instituições financeiras em valores de, respectivamente, 45 mil e 90 mil reais – o que é irrisório se comparado aos capitais das grandes firmas de segurança ou de qualquer banco. Louvável, diga-se, é a agravante no caso da infração conter elementos de preconceito de raça, cor, sexo ou qualquer tipo de discriminação – o que se integra ao subsistema de combate ao racismo e preconceitos que garantem efetividade ao art. 3º da Constituição: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:… IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Fica, ao final, a advertência: apesar dos avanços formais e do incentivo à atividade econômica regular, é preciso atenção e mobilização da sociedade civil organizada. Como no caso dos presídios, que são vistos como “minas de ouro” pelo empresariado, na área da Segurança preventiva também pode ocorrer uma progressiva substituição do público pelo privado, sob o argumento falacioso (ou provocado) do sucateamento de um para benefício do outro. Neste caso, todos perdemos e não importa que lei esteja em vigor.
Este artigo não manifesta necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Notas————————
1. Existem diversos vídeos de cursinhos e coaches de concursos listando formalmente cada alteração alterações, ponto a ponto, mas sem qualquer análise sistêmica.
A Judicialização da política e das relações sociais e o ativismo judicial continuam a ser temas de primeira grandeza no debate teórico nacional, com importantes reflexos práticos, sobretudo em razão da explosão de litigiosidade verificada a partir da Constituição cidadã de 1988, um fenômeno que está longe de encontrar sua exaustão.
Tal explosão pode ser explicada, dentre outras razões, pela internacionalização e multiplicação dos direitos humanos, pela crescente ampliação do acesso à justiça, pela adoção do regime democrático e a separação dos poderes e pelo reconhecimento de direitos políticos pelas Constituições (TATE e VALINDER, 1995).[1] Também o atual ambiente neoconstitucionalista, que aposta fortemente na efetivação dos direitos fundamentais por juízes e tribunais, contribui decisivamente ao aumento do fluxo de conflitos sociais e políticos ao Judiciário. Além disso, o texto de 1988 fortalece substancialmente o Poder Judiciário brasileiro, que passa a contar com autonomia administrativa e financeira (art. 99 da CRB/88), além de ampliar a legitimidade para o controle de constitucionalidade (art. 103) e destacar a relevância dos direitos sociais (arts. 6º e 7º) e dos remédios constitucionais de proteção dos direitos fundamentais (habeas corpus, mandado de segurança, habeas data, ação civil pública etc), o que ocorre em paralelo ao fortalecimento de instituições jurídicas de controle e de defesa de tais direitos fundamentais (especialmente, o Ministério Público e a Defensoria Pública).
Entende-se por judicialização da política o fenômeno de expansão da esfera decisória do Poder Judiciário sobre assuntos normalmente afetos ao Legislativo e ao Executivo, ou seja, o processo de transferência das decisões sobre políticas públicas e direitos fundamentais dos parlamentos e gestores públicos para os juízes (TATE e VALINDER, 1995).[2] Já o ativismo judicial consiste no exercício expansivo de poderes por parte de juízes e Tribunais em face dos demais atores políticos e judiciais, a partir de determinado design constitucional, sobretudo o papel da jurisdição constitucional, e de arranjos institucionais específicos (CAMPOS, 2011).
A rigor, saber se a judicialização e o ativismo judicial são movimentos deliberados da magistratura ou apenas resultados de um determinado desenho constitucional demanda uma reflexão histórica e geograficamente situada, a exigir análises que passam pela compreensão do modelo constitucional adotado (BARROSO, 2012), mas também pela compreensão dos jogos estratégicos de elites políticas, econômicas e judiciais dispostas a assegurar os seus interesses e influência política por intermédio dos Tribunais (HIRSCHL, 2007). A pergunta é relevante e sua resposta depende da análise dos desenhos constitucionais construídos politicamente. No Brasil, por exemplo, a judicialização da política e das relações sociais é uma das apostas da CF/88, justificada pelo longo e duro período de ditadura-civil-militar, em que o Judiciário foi comprimido pela autocracia, mas também pela forte tradição judiciarista brasileira (Rui Barbosa, Francisco Campos, Oliveira Vianna etc) e pelo lobby exercido por juízes e ministros do STF durante os debates constituintes, o que garantiu a manutenção de interesses corporativos do sistema de justiça (KOERNER e FREITAS, 2013; LIMA, 2018).
Embora distintos, há uma certa relação de circularidade entre os dois fenômenos, na medida em que a judicialização da política e das relações sociais ganha terreno e se desenvolve com o ativismo judicial, sendo o ativismo judicial um dos possíveis resultados de um processo crescente de transferência de temas normalmente afetos aos poderes majoritários aos juízes e Tribunais (judicialização).
Cabe aqui um breve parêntesis: há nos dias correntes certo consenso, fruto de uma visão de senso comum que é compartilhada por boa parte da literatura, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem uma postura ativista (CAMPOS, 2011; VALLE, 2012; BARROSO, 2012; DA ROS, 2017; CASSIMIRO e LYNCH, 2022; SPRICIGO, 2023), a começar do momento em que sua composição passa por profundas mudanças.[3] CAMPOS (2011), por exemplo, a partir da análise da postura e de decisões do Ministro Gilmar Mendes, o extremo oposto do autocontido Ministro Moreira Alves, chama a atenção para duas dimensões do ativismo judicial no STF, que o autor vai denominar de dimensões (i) metodológica e (ii) processual, isto é, (i) a atitude interpretativa expansiva ou redutora de significados para muito além, ou aquém, do sentido literal e a aplicação direta de dispositivos constitucionais a situações não expressamente previstas na CF, sem a intermediação do legislador ordinário; e (ii) a ampliação, pela corte, de ações e recursos constitucionais postos à sua disposição, ou seja, a amplificação de instrumentos processuais.
As reações ao ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal vêm de todos os lados e das mais variadas fontes. O campo político, contudo, vem se mostrando especialmente contundente nas críticas um comportamento de não-contenção de nossa corte suprema. Por exemplo, em 2019, a Deputada Federal Chris Tonietto (PSL-RJ) encaminhou, com o apoio de muitos de seus pares, a PEC n. 88/2019 com o objetivo de permitir o controle pelo parlamento das decisões do STF que violem a competência exclusiva do Poder Legislativo.[4] Para a Deputada, o STF tem assumido um protagonismo que não lhe cabe[5] e a justificativa da PEC n. 88/2019[6] invoca a cláusula constitucional da separação de poderes e a necessidade de independência e harmonia entre eles, o que estaria sendo violado pela postura ativista do Supremo. De acordo com a parlamentar, “o Poder Judiciário tem invadido (…) a competência do Poder Legislativo, passando então a legislar, contrariando também a vontade popular e (…) ferindo a democracia norteadora do Estado de Direito”,[7] o que teria ocorrido, por exemplo, por ocasião do julgamento da ADPF n. 54, em que o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o aborto no caso de fetos anencéfalos.[8]
Vai na mesma linha o Projeto de Lei n. 4754/2016, que torna crime de responsabilidade a interferência na competência do Poder Legislativo pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.[9] No caso, a justificativa também indica a ocorrência de usurpação das competências legislativas do Congresso pelo STF, o que não se verificava na década de 1950, época em que foi promulgada a lei que define os crimes de responsabilidade, e estaria sendo incentivada pela recente doutrina jurídica que “tem realizado diversas tentativas para justificar o ativismo judiciário”.[10]
As reações ao ativismo judicial do Supremo não param por aqui. Além de propostas legislativas que visam a alterar o texto constitucional ou a legislação infraconstitucional, há também pedidos de impeachment formulados contra ministros do STF, especialmente contra o Ministro Alexandre de Moraes,[11] em razão da instauração do inquérito policial das fake news e da condenação do Deputado Federal Daniel Silveira por crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo.
Os exemplos do que a literatura norte-americana vem denominando de efeito backlash são muitos e demonstram a tensão entre a esfera política e o Judiciário, o que vem se agravando num país cada vez mais dividido e polarizado. De todo modo, não é desprezível a contribuição da política para a ocorrência de tais fenômenos, ou seja, é pertiennete pensar em que medida a judicialização e o ativismo judicial partem ou são incentivados pelo próprio campo político através de ferramentas processuais previstas na Constituição (ADI’s, ADPF’s, MI’s etc). De fato, é relevante perceber que os partidos políticos no Brasil fazem uma severa crítica à judicialização e ao ativismo judicial, mas, por exemplo, foram responsáveis pelo ajuizamento de mais de 300 ações no STF no primeiro ano da pandemia do Coronavírus: o PDT foi o partido que mais judicializou, com 49 processos, seguido da Rede Sustentabilidade, com 44, do PSB, com 43, do PT, com 42, e do PSOL, com 30. PSL e Novo ajuizaram 5 e 2, respectivamente, e PSDB e MDB propuseram 11 e 4 processos, respectivamente.[12]
O problema não passa despercebido do próprio Poder Judiciário, que se defende: o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, durante participação virtual em seminário jurídico realizado em Lisboa, em novembro de 2022, criticou o processo de judicialização da política provocado pelo Congresso brasileiro que, em sua visão, resulta de os partidos políticos não resolverem questões relevantes “na arena própria”, por não desejarem “pagar o preço social” de suas decisões.[13] Para Fux o Supremo exerce “protagonismo judicial desnecessário” e “o Poder Legislativo coloca “no colo” do Supremo a solução de várias questões que dizem respeito ao Parlamento, porque muitas vezes o Parlamento não quer pagar o preço social de uma deliberação”.[14] Parte do campo político também está consciente do problema e tem atuado no sentido de demover a transferência de questões políticas ao Judiciário.[15]
A crítica do Ministro Fux não é destituída de base empírica, pois, de fato, como visto, os partidos foram os maiores demandantes no ano de 2019, superando a Procuradoria Geral da República,[16] o que, em certa medida, decorre da ampliação da legitimidade para a provocação do controle direto de constitucionalidade (art.103 da Constituição).
Não parece ser um problema que as possibilidades de vitória judicial sejam remotas em alguns casos, mas soa contraintuitivo que um poder (ou seus integrantes) delegue a outro poder a decisão sobre temas relativos ao desenho de políticas públicas e direitos fundamentais, ou, mais grave, à sua própria e peculiar institucionalidade (estruturação, funcionamento, limites das discricionariedades etc).
O uso das vias judiciais pelo campo político vai encontrar variadas razões (DA ROS e TAYLOR, 2008; SANTOS, ALBUQUERQUE e ZUCCOLOTTO, 2017), dentre as quais destacam-se a defesa dos direitos das minorias, a pretensão de alterar a legislação ou conferir-lhe interpretação diversa, a busca de atenção pública para determinados temas, a criação de obstáculos à implementação de políticas públicas pelo governo, a exposição midiática atualmente proporcionada pela judicialização ou, simplesmente, pretensões eleitorais como a reeleição. Tal uso do Judiciário encontra incentivos nos baixos custos das ações e na facilidade de acesso ao STF, cuja porta de entrada é bastante larga em razão das amplas competências da corte (art. 102 CRB/88).
A história recente da judicialização da política no Brasil está repleta de exemplos de transferência aos tribunais de temas próprios do campo político pela própria política, a indicar que o Judiciário é “descoberto” como uma arena de disputa que, contraditoriamente, ajuda no incremento da legitimidade social de juízes e tribunais, dado o crescente repúdio da política por parte da sociedade e da mídia. A análise de alguns casos concretos que podem ser considerados paradigmáticos do modo de intervenção do Judiciário sobre a competição eleitoral e sobre questões interna corporis dos demais poderes confirmam o incentivo do próprio campo político ao empoderamento do Poder Judiciário e a seu ativismo, não obstante as reações hostis que este último poder recebe do Legislativo e do Executivo. Vejamos alguns desses casos.
No campo da competição eleitoral, o primeiro caso paradigmático sob a égide da Constituição de 1988, se não estamos enganados, diz respeito ao julgamento, em 2006, das ADIN’s 1.351-3/DF e 1.354-8, ajuizadas pelo PC do B, PDT e PSB, em que referidos partidos questionavam a constitucionalidade da denominada “cláusula de barreira” ou de “desempenho”, ou seja, a exigência de que o funcionamento parlamentar das agremiações fosse lastreado pelo apoio de, no mínimo, 5% (cinco por cento) dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de 2% (dois por cento) do total de cada um deles. Os partidos-autores alegavam que tais exigências violariam o art. 17 da Constituição,[17] argumento que foi acolhido pelo Supremo, de forma unânime. O curioso é que mais de dez anos depois, o Ministro Gilmar Mendes diria que o STF errou na decisão sobre a cláusula de barreira: “Hoje muitos de nós fazemos um mea culpa, reconhecendo que esta foi uma intervenção indevida, inclusive pela multiplicação dos partidos”.[18]
No ano seguinte, o STF julgaria outra questão delicada e com imenso impacto sobre o funcionamento do parlamento e dos partidos políticos, a polêmica tese da “infidelidade partidária” (Mandados de Segurança n. 26.602, 26.603 e 26.604). As ações foram ajuizadas pelo DEM, pelo PPS e pelo PSDB, e aqui a Corte, por maioria, acolheu o argumento de que a mudança de partido pelo parlamentar, no curso do mandato, acarreta a perda do direito de continuar a exercer o mandato político, com a consequente recomposiçao do número de cadeiras originais em favor da agremiação. Tal hipótese de perda de mandato não está prevista no art. 55 da CF,[19] mas o Supremo entendeu ser a fidelidade partidária um “corolário lógico-jurídico necessário do sistema constitucional vigente, sem necessidade de sua expressão literal”.
Ainda no campo da disputa política, talvez o caso mais polêmico e com maiores potencialidades de desgaste entre o STF e a política seja o sigiloso inquérito das fake news, instaurado em 2019 e cujo objeto, atualmente, é indeterminado. Como já tivemos a oportunidade argumentar em outro momento,[20] dá-se aqui um “namoro” entre a esquerda e o ativismo judicial, que havia sido interrompido pelo lawfare lavajatista e seus heróis de ocasião: o Presidente da República agradece publicamente ao Ministro Alexandre de Moraes pelos relevantes serviços prestados à democracia; o Ministro Gilmar Mendes, decano da Corte Suprema, dá as cartas novamente nos bastidores dos processos de nomeação de personagens centrais do sistema de justiça (o PGR, por exemplo). Ocorre que o inquérito das fake news, para usar a expressão de um ilustre jurista que defendeu habilmente sua juridicidade, gera um imenso “constrangimento epistemológico”, pois reúne na figura do juiz, escolhido a dedo, também a do investigador e a do acusador, em atropelo ao sistema acusatório. O Supremo Tribunal Federal, em uníssono, defende a constitucionalidade das investigações sigilosas, num movimento de sobrevivência política bastante compreensível, mas que, como dito, gera profundos atritos com o campo político, sobretudo o campo da extrema-direita.
Sobre a intervenção em assuntos interna corporis há também casos emblemáticos de ativismo judicial STF deflagrados pelos próprios partidos políticos.
Em 2005, o Supremo, provocado pelos então Senadores Pedro Simon (PMDB-RS), Jefferson Péres (PDT-AM), Demostenes Torres (PFL-GO), Efraim Morais (PFL-PB), Jorge Bornhausen (PFL-SC), José Jorge (PFL-PE) e José Agripino Maia (PFL-RN), determina à Presidência do Senado que designe parlamentares do grupo minoritário (minoria legislativa) a comporem a denominada “CPI dos Bingos” (v. MS n. 24.849), entendendo a Corte, por maioria, que o tema extrpolaria os limites interna corporis do parlamento. Na prática, a Comissão somente foi instalada por determinação do Supremo, não obstante ser a criação de CPI’s uma das funções mais caracterísitcas do parlamento, e não do Judiciário.
Em dezembro de 2016, ainda sob a influência de um dos momentos mais tensos da história recente do país, o impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, o Ministro Marco Aurélio, atendendo a pedido feito pela Rede Sustentatibilidade, determina o afastamento do Senador Renan Calheiros da Presidência do Senado, sob o argumento de que réus em processos criminais em curso no STF não poderiam ocupar a presidência das mesas congressuais. A decisão liminar foi olimpicamente descumprida pela mesa diretora do Senado e gerou severas críticas do parlamento ao Supremo, que, posteriormente, revogaria a liminar (MC na ADPF n. 402/DF).
O STF também teve papel decisivo no processo de eleição das mesas diretoras da Câmara de Deputados e do Senado, proibindo a reeleição (ADIN n. 6.524, julgada em 2020 e proposta pelo PTB)[21] e impondo, num primeiro momento, publicidade à referida votação (MS n. 36.169, impetrado pelo Senador Lasier Costa Martins – PSD/RS).[22]
Embora a tensão tenha lugar, sobretudo, na relação entre o Supremo e o Congresso, há um caso recente e emblemático de embate com o Executivo relativamente ao poder discricionário do Presidente da República de nomear seus ministros de Estado, uma prerrogativa constitucional (art. 84, I): em 2016, também sob os influxos do golpe parlamentar que levaria ao impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, o Ministro Gilmar Mendes defere liminar requerida pelo PSDB e pelo PPS para impedir a nomeação de Lula ao cargo Ministro Chefe da Casa Civil, sob o argumento de que a nomeação visaria a deslocar o foro criminal competente para o STF e salvaguardar eventual ação penal em curso na primeira instância (13ª Vara Federal de Curitiba). Em sua decisão, invocando os princípios da impessoalidade e da moralidade e a controversa tese de “desvio de finalidade” e apoiando-se em divulgação ilícita de interceptação telefônica de conversas travadas entre a Presidenta da República e Lula,[23] o relator suspendeu a eficácia da nomeação e determinou a manutenção da competência da justiça de primeira instância para o processamento dos procedimentos criminais. O mesmo entendimento, agora em atendimento a requerimento formulado pelo PDT, seria invocado para impedir, em abril de 2020, a nomeação do Delegado Alexandre Ramagem ao cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal.[24]
O breve percurso que fizemos até aqui não é exaustivo e o seu único objetivo foi o de relembrar, com alguns saltos e simplificações, um pouco da história recente das tensões entre o STF e o campo político, o que está longe de cessar. Naturalmente, futuras pesquisas poderão aprofundar o exame das causas de tal fenômeno (forte fragmentação partidária; imaturidade democrática e falta de fairplay político; a tradição judiciarista brasileira; o ambiente cultural do neoconstitucionalismo instalado a partir da década de 1990; a reengenharia produzida no STF por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes etc).
De todo modo, é induvidoso que os fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial são potencialmente produtores de tensões entre o Poder Judiciário e os demais poderes e muitas vezes catalisam reações sociais inflamadas, algumas passionais e até violentas, com reflexos sobre o equilíbrio da democracia e do próprio tabuleiro político.
Num momento em que o país vive intensa polarização social e política, o que se soma a uma complexidade social crescente, marcas do contemporâneo num país forjado sob o signo das desigualdades sociais, a judicialização da política e das relações sociais parece ser um caminho natural e inevitável, dada a crença difundida – e diuturnamente negada pela praxis– de que o Judiciário seria um poder neutro e que decidiria a partir de critérios técnicos. Tal movimento, contudo, não deixa de ser contraditório, uma vez que a judicialização é um processo de simplificação dos conflitos sociais e políticos à linguagem e ao método judiciais, que comprimem a participação social, dado que o seu objeto não é o conflito em si, mas a pretensão que o legitimado veicula ao Judiciário.
Retomando o fio de nossa exposição, o breve inventário de casos que fizemos acima parece demonstrar que as reações hostis do parlamento ao ativismo judicial do Supremo soam contraditórias, pois em algumas ocasiões a intervenção do Judiciário, provocada pelo próprio campo político, garantiu a sobrevivência de legendas e o equilíbrio da disputa eleitoral. Por outro lado, a defesa do Judiciário no sentido de que agiria nos limites do texto constitucional e apenas quando provocado também não se sustenta plenamente, uma vez que a transferência do debate político aos tribunais não encontra no ativismo judicial um resultado natural ou inarredável. De fato, a história do STF antes da Carta Política de 1988 é marcada mais pela autocontenção do que pelo ativismo. A rigor, o ativismo judicial aumenta o capital político da corte, seu prestígio social e visibilidade, garantindo à magistratura a manutenção e a reivindicação de prerrogativas, vantagens funcionais etc.
Um risco nada desprezível da judicialização provocada pelo próprio campo político é promover o deslocamento do valor democracia para o valor justiça, esvaziando a própria importância da política na construção da democracia e na fabricação de direitos, apagando, enfim, a história social dos direitos fundamentais e dos arranjos democráticos. Outro risco é a excessiva politização do Poder Judiciário, que é um poder político, mas que pode se transformar, no limite, numa bancada partidária de oposição ou de sustentação do governo.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Rogério Pacheco Alves é Promotor de Justiça do MPRJ, professor da UFF e integrante do Coletivo Transforma MP.
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[1] Referidos autores apontam também, ao lado de tais fatores, a inefetividade das instituições majoritárias, o uso dos Tribunais pelos grupos de interesse, o uso do Poder Judiciário pelos partidos de oposição e a hipóteses em que a formulação da política é claramente delegada ao Judiciário, o que se dá relativamente a temas difíceis ou polêmicos (TATE e VALINDER, 1995).
[2] DA ROS (2017) prefere falar não em transferência, mas antes em sobreposição, pois os conflitos não são inteiramente transferidos do campo da política para o Judiciário, havendo apenas a sua expansão ao Judiciário.
[3] A partir de 2003, com as nomeações dos novos ministros, sobretudo pelos governos Lula e Dilma.
[4] A proposta visa a alterar o art. 49 da CF, que trata da competência exclusiva do Congresso Nacional, nos seguintes termos: “Art. 1º. O inciso V do art. 49 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 49 (…) V – sustar os atos do Poder Executivo ou do Poder Judiciário que exorbitem seu poder regulamentar, os limites de delegação legislativa, ou violem a competência exclusiva do Poder Legislativo.”
[8] ADPF n. 54, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, maioria, j. 12.04.12. A justificativa da PEC n. 88/2019 também menciona as discussões travadas na ADPF n. 442 (descriminalização do aborto), na ADO n. 26 (criminalização da homofobia) e no MI n. 4733 (equiparação da homofobia ao racismo).
[9] Acrescenta o inciso VI ao art. 39 da nº 1.079, de 10 de abril de 1950: “Art. 2º O art. 39, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso 6º: “Art. 39 (…) 6. usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.”
[17] “Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: (…)”.
[19]“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
I – que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;
II – cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;
III – que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;
IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;
VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”.
[21] O pedido foi julgado parcialmente procedente para vedar a recondução de membro da Mesa para o mesmo cargo, na eleição imediatamente subsequente, que ocorre no início do terceiro ano da legislatura, reafirmando-se a jurisprudência no sentido de que a vedação não tem lugar em caso de nova legislatura, situação em que se constitui Congresso novo.
[22] A decisão foi suspensa pela Presidência do STF e posteriormente o mandado de segurança perdeu seu objeto.
[23] “Antes de progredir, é indispensável avaliar a possibilidade de o diálogo entre a Presidente da República e Luiz Inácio Lula da Silva travado na tarde do dia 16.3, 13h32, poder ser invocado para demonstração dos fatos. A validade da interceptação é publicamente contestada, por ter sido realizada após ordem judicial para a suspensão dos procedimentos. De fato, houve decisão determinando a interrupção das interceptações em 16.3.2016, às 11h13. A ordem não foi imediatamente cumprida, o que levou ao desvio e gravação do áudio mencionado. No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato” (trecho da decisão do Min. Gilmar Mendes na MC em MS n. 34.071).
Você vai lembrar quando eu te olhar lá de cima Vai reconhecer e vai respeitar minhas cinzas
Mulamba
São meados de agosto e, embora o mês tenha sido especialmente escolhido para nos recordarmos do nosso compromisso com a luta contra a violência à mulher, é importante relembrar que os ataques de gênero não escolhem mês, dia, ou horário. Estima-se que, a cada vinte e quatro horas, uma mulher é vítima de violência doméstica no Brasil, segundo o Boletim Elas Vivem, com base apenas em dados registrados. Sabemos, no entanto, que a violência contra a mulher não cabe em estatísticas, seja quando consideramos a figura oculta do crime decorrente do temor pela denúncia ou pelo desconhecimento de direitos, seja porque há inúmeras formas de violência ainda não reconhecidas ou registradas como tal.
A palavra “violência” tem origem no latim, violentia, ato de violação através da força (vis). Na contemporaneidade, o conceito se expande para abarcar não apenas a força física, mas potências de dominação e controle diversas, na seara individual ou coletiva (inclusive institucional/estrutural), e em nível social e político. Quando se fala em combate à violência, portanto, deve-se pensar não apenas na repressão aos atos individuais e determinados de violação de direitos, mas em uma reestruturação de valores sociais em que a mulher possa ser reconhecida em sua inteira humanidade, de maneira que não mais sejam tolerados o controle sobre seus corpos e o aprisionamento de seus pensamentos.
Em última análise, penso que a ideia que se contrapõe à da violência é a liberdade – liberdade de ser, sem medo da punição que, hoje, nos é imposta apenas por existirmos. Quando falo em liberdade, porém, não tenho o intento de banalizar um ideal que se mostra tão complexo e difícil de ser atingido. É preciso lembrar que, quando pensamos em níveis de restrição ao pleno exercício da existência, referimo-nos também ao corrimão que o salvaguarda apenas até certos degraus da escada.
A violência contra a mulher não é uma circunstância que atinge a todas nós com a mesma intensidade, apartada de outros fatores sociais. Pelo contrário, ela se mostra mais presente e complexa quando agregamos a ela os fatores raciais, de renda, de orientação sexual. Arrisco dizer, é somente no reconhecimento dos diferentes níveis de violência e formas com que ela atinge determinados grupos que se poderá criar o ambiente adequado para um combate interdisciplinar e efetivo.
Neste agosto lilás, portanto, lembremo-nos, primeiro, das mulheres invisibilizadas: das mulheres pretas, lésbicas, pobres, transexuais. Lembremo-nos, ainda, das mulheres a quem a violência atinge diariamente, não apenas na forma de agressões físicas, mas também como ausência de condições dignas de existência, como barreiras para a sua efetiva integração e participação na sociedade. Lembremo-nos, também, daquelas que, a despeito de suas condições desfavoráveis, transpuseram os inúmeros obstáculos no caminho e deram voz a todas as outras que não puderam fazê-lo. Lembremo-nos de Marielle, de Elza Soares, de Julieta Hernandez. Lembremo-nos que não basta falar em mérito, em empoderamento. É preciso que a luta seja inclusiva para que seja efetiva. Unamo-nos, portanto, não somente em prol das pautas que ofereçam soluções simbólicas e paliativas, mas também para aquelas que, à primeira vista, podem parecer secundárias a quem goza de privilégios.
Que, neste mês de agosto e sempre, a nossa luta seja por todas, e que possamos rememorar e trazer à vida as palavras de Audre Lorde: “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.
Valéria Teixeira de Meiroz Grilo – Procuradora de Justiça aposentada do MPPR. Integrante do Coletivo Transforma MP. Membra do Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público. Ex-conselheira do Memorial do MPPR.