Arquivos Diários : junho 4th, 2025

Meu encontro com Fromm e o Ministério Público

Fromm elabora tipologia do caráter, combinando uma categoria política (estrutura autoritária) com uma categoria psicológica (a do caráter).

Por Marcelo Pedroso Goulart no GGN

Após trinta e quatro anos de carreira no Ministério Público de São Paulo, recolhi-me aos aposentos, colocando-me a gostosa tarefa de reler livros, ensaios e artigos que foram de especial importância na minha formação e cujas ideias forneceram-me elementos e instrumental teóricos para o exercício da minha função institucional.

Na procura desses escritos, reencontrei e reli recentemente o ensaio O caráter revolucionário, do sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm, pioneiro da chamada Escola de Frankfurt (Instituto para Pesquisa Social), autor de vasta obra, na qual predominam estudos e pesquisas sobre a condição humana em períodos de ascensão e desenvolvimento de regimes totalitários (fascismo e nazismo), da sociedade de consumo, da automatização da produção econômica, da presença permanente do risco de guerras nucleares de grande escala e com potencial destrutivo capaz de provocar colapso social. Das principais obras, destaco as seguintes: Análise do homem, Anatomia da destrutividade humana, O medo à liberdade, Meu encontro com Marx e Freud, Psicanálise da sociedade contemporânea, Ter ou ser?, Conceito marxista do homem, todas publicadas pela antiga e saudosa editora carioca Zahar, na década de 1960, com sucessivas edições que chegam aos dias atuais.

O ensaio que me marcou está na segunda edição da coletânea O dogma de Cristo, publicada em 1965, que li ao final da adolescência, antes de ingressar no curso de Direito. Nesse texto, Fromm elabora uma tipologia do caráter, combinando uma categoria política (estrutura autoritária no Estado e na família) com uma categoria psicológica (a estrutura do caráter). Com base nessa combinação de categorias, faz o confronto e define as duas espécies de caracteres com os quais trabalha no estudo: o autoritário e o revolucionário. Para o autor:

“…a estrutura de caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo senso de força e identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às autoridades, e ao mesmo tempo um domínio simbiótico dos que estão submetidos à sua autoridade. Ou seja, o caráter autoritário sente-se mais forte quando pode submeter-se a uma autoridade e ser parte dela, desde que seja (e até certo ponto apoiado na realidade) exagerada, deificada, e quando ao mesmo tempo pode crescer pelo fato de incorporar os que lhe estão sujeitos à autoridade. É um estado de simbiose sádico-masoquista, que lhe dá uma sensação de força e de identidade” (p. 118).

Adiante, deixa claro que a pessoa dotada de caráter autoritário é:

“… bastante impotente e procura encontrar forças que o protejam e lhe proporcionem sentimento de segurança. O preço pago por esse auxílio é tornar-se dependente dele, perder sua liberdade e reduzir o processo de seu crescimento” (p. 122).

Uma vez definido o que é o caráter autoritário, Fromm passa a descrever os elementos que compõem o caráter revolucionário. Em primeiro lugar, o psicanalista alemão afasta aqueles que, tendo a aparência de revolucionários, não o são. Por exemplo: o participante ativo de uma revolução, pois essa participação não é condição suficiente para caracterizar a pessoa como revolucionária se a ela não se somam outras condições, as quais veremos adiante; o rebelde-ressentido, uma vez que tal pessoa é movida pelo fato de não ser aceita pela autoridade contra quem se rebela; o rebelde-oportunista, ou seja, aquele que se infiltra nas instituições, nas organizações e nos movimentos que objetivam a transformação social com o intuito de obter benefícios pessoais; o fanático, isto é, aquele que atua por idolatria política ou religiosa, apresentando, não raro, confusa percepção da realidade e tendências paranoicas.

Depois dessas observações, Fromm passa a analisar o que, para ele, seria o caráter revolucionário. Como não poderia deixar de ser, o autor apresenta a sua definição de revolução, e o faz em conformidade com sua linha de pensamento, em uma perspectiva político-psicológica. No sentido político, revolução é “a substituição de uma ordem existente por outra historicamente mais progressista”; no sentido psicológico, revolução “é um movimento político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pessoas de caráter revolucionário”. Assim compreendida a revolução, afirma que o “traço fundamental do caráter revolucionário é ser independente – é ser livre”. A independência, por sua vez, “é o oposto da ligação simbiótica aos poderosos, que ocupam posições superiores, e aos impotentes, que ocupam posições inferiores” (p. 121); explicitando que:

“A liberdade e a independência totais só existem quando o indivíduo pensa, sente e decide por si. Só pode fazê-lo autênticamente quando atinge uma relação produtiva com o mundo exterior, que lhe permite reagir de forma autêntica…” (p. 122).

Para a pessoa dotada de caráter revolucionário, “o crescimento da personalidade ocorre no processo de relacionar-se e interessar-se pelos outros e pelo mundo’’; ou ainda, o “caráter revolucionário identifica-se com a humanidade e portanto transcende os estreitos limites de sua própria sociedade e pode, por isso, criticar a sua sociedade, ou qualquer outra, do ponto de vista da razão e humanidade; enfim, o “caráter revolucionário identifica-se com a humanidade” (p. 124).

Acredito que, chegando a esta altura do artigo, o leitor tenda a perguntar o que as lições de Fromm tem a ver com o Ministério Público?

Respondo: tudo a ver.

Explico.

Vamos à Constituição de 1988. Esse primoroso documento político-jurídico constitui-se como verdadeiro projeto societário, antecipando em seu texto o tipo de sociedade que brasileiras e brasileiros decidiram construir após mais de duas décadas de ditadura burguesa-militar. Esse projeto prevê os valores que o fundamentam e o justificam, estabelece os instrumentos para realizá-lo e os objetivos a serem alcançados. Ou seja, por meio dos espaços e instrumentos da democracia semidireta, as cidadãs e cidadãos, as organizações e movimentos sociais, os agentes políticos e econômicos, em responsabilidade compartilhada, têm o compromisso-dever de contribuir para a construção da sociedade livre, justa e solidária, na qual a pobreza e a marginalização sejam erradicadas, as diferenças sociais e regionais sejam reduzidas e o bem comum seja promovido sem preconceito, discriminação e intolerância (art. 3º, incisos I a IV). Trata-se de um projeto de democracia política, econômica e social; de democracia substantiva.

Se concordamos com Fromm que revolução é a substituição de uma ordem existente por outra historicamente mais progressista, e que essa mudança não ocorre apenas pela via de atos de força concentrados no tempo (revolução jacobina), mas, sobretudo, por mudanças estruturais que se acumulam no processo histórico (revolução progressiva, processual), não é difícil concluir que o projeto societário previsto na Constituição é o de uma nova ordem mais progressista se comparada à ordem existente e a ser superada pela sua implementação. Nesses termos, a Constituição brasileira é revolucionária.

No projeto societário constitucional, o Ministério Público foi contemplado com autonomia institucional, novas atribuições e novos instrumentos aptos a levar avante, no seu espaço de atuação, a implementação desse projeto, pela via da promoção e defesa de interesses e direitos, cuja concretização é imprescindível para a consecução dos objetivos estratégicos da República. Nesse sentido, se o projeto tem conteúdo transformador (mudança para uma ordem social superior), o Ministério Público tem, consequentemente, o compromisso-dever de contribuir decisivamente para a mudança da ordem social, como instituição transformadora, revolucionária.

Por sua vez, os agentes políticos que integram o Ministério Público estão vinculados à estratégia constitucional/institucional e têm o compromisso-dever de atuar concretamente, seja pela via direta dos órgãos de execução, seja pela via indireta dos órgãos da Administração Superior, na realização da revolução progressiva, assim como definida na Constituição de 1988. Para tal, a Constituição deferiu garantias ao agente político do Ministério Público, como a independência funcional, a inamovibilidade e a do promotor natural, para que ele possa atuar de forma desembaraçada, imune às pressões do poder político, do poder econômico e dos constrangimentos internos que possa sofrer. Portanto, o comportamento esperado do agente político do Ministério Público é aquele próprio da pessoa independente, livre, que não se submete ao poder dos que conspiram contra os valores da democracia; é daquele que age e usa seus instrumentos, não para oprimir os destinatários do seu trabalho, mas, sim, para emancipá-los, libertá-los de uma ordem social opressora. O que se espera da pessoa que pretende ingressar no Ministério Público é o de que seja independente, livre, que se identifique com a humanidade, tenha caráter revolucionário, nos exatos termos desenvolvidos por Erich Fromm no ensaio que ilumina este texto.

O que se vê no plano concreto, é a ausência de preocupação do Ministério Público realmente existente com questões dessa importância. Deixo para um próximo artigo a apreciação crítica de alguns elementos que impedem o enfrentamento dessa dificuldade.

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Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

Marcelo Pedroso Goulart é Promotor de Justiça aposentado do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP