
Abrangência excessivamente ampla trouxe para o debate situações que não se relacionam com as controvérsias jurídicas colocadas
Priscila Dibi Schvarcz, Renan Bernardi Kalil no Jota
O reconhecimento do Tema 1389 de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal fará com que ocorra um debate a respeito de três controvérsias relacionadas à contratação de trabalhadores.
Especificamente, uma delas versa a respeito da “licitude da contratação civil/comercial de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, à luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 324, que reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos”.
O ministro relator, Gilmar Mendes, ao tratar do alcance do caso, frisou que o debate não se limita aos contratos de franquia – tema que deu origem ao processo –, mas também abrangerá, dentre outras atividades, o trabalho de motoboys e entregadores.
Apesar de a decisão não mencionar expressamente que engloba a atividade desenvolvida por esses trabalhadores por meio de plataformas digitais, o ministro relator já sinalizou nesse sentido. Contudo, tratar a situação dos entregadores e motoboys no âmbito do Tema 1389 é um equívoco por pelo menos três razões fundamentais.
A primeira é que esse movimento coloca em um único cesto conceitos jurídicos substancialmente distintos cujo tratamento conjunto mais atrapalha do que ajuda. O trabalho via plataformas digitais é um fenômeno recente que desafia paradigmas tradicionais e que, como diversos ministros do STF já reconheceram expressamente em votos anteriores, merece um olhar alinhado com o uso das novas tecnologias no mundo do trabalho.
A pejotização, por outro lado, envolve a simulação fraudulenta na contratação civil/comercial de um trabalhador quando presentes os requisitos da relação de emprego, em flagrante violação ao princípio da primazia da realidade e ao art. 9º da CLT, que considera nulos os atos praticados com o objetivo de desvirtuar a aplicação dos preceitos contidos na legislação trabalhista.
A terceirização, por sua vez, é a prestação de serviços por uma empresa a terceiros, estando regulada pela Lei 6.019/74, alterada pela reforma trabalhista, e com parâmetros constitucionais já claramente estabelecidos pelo STF na ADPF 324 e no Tema 725-RG, configurando matéria jurídica com contornos próprios e específicos.
A segunda razão, de ordem processual e igualmente relevante, é que já existe um caso com repercussão geral reconhecida e que se aproxima muito mais da realidade fática e jurídica desses trabalhadores do que o caso examinado no Tema 1389.
O Tema 1291-RG, de relatoria do ministro Edson Fachin, que trata especificamente do “reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora da plataforma digital”, teve origem em uma reclamação trabalhista apresentada por uma trabalhadora em face da Uber.
Apesar do caso tratar do trabalho de uma motorista, é possível que a tese que será fixada também abranja as atividades de entregadores e motoboys. Um indício robusto e incontestável nesse sentido pode ser encontrado nos participantes da audiência pública convocada pelo ministro Fachin e realizada nos dias 9 e 10 de dezembro de 2024: dentre os 58 expositores, tivemos sete entidades representativas desses trabalhadores e a maior empresa que atua nesse setor, com mais de 80% do mercado brasileiro, a iFood.
Assim, caso se mantenha o entendimento de que entregadores e motoboys que atuam por meio de plataformas digitais estão abrangidos pelo Tema 1389, o processo deveria ser redistribuído ao ministro Fachin, por prevenção: é o que determina imperativamente o art. 325-A do Regimento Interno do STF, norma de observância obrigatória que visa justamente evitar decisões contraditórias sobre a mesma matéria. Caso contrário, estaremos diante de uma situação que violará o princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF) e a economia processual.
A terceira razão remete à proteção material dos direitos fundamentais. Iniciar a análise sobre a forma pela qual ocorre o trabalho de entregadores e motoboys por meio de plataformas digitais a partir da ideia abstrata de “liberdade de organização produtiva dos cidadãos” é fechar os olhos para a realidade concreta e subverter o princípio da primazia da realidade.
Na prática cotidiana, esses homens e mulheres possuem opções de escolha severamente limitadas sobre como desenvolver essa atividade: não podem colocar o preço em seu trabalho, são ranqueados conforme o cumprimento de metas estabelecidas unilateralmente pelas empresas e recebem punições quando não seguem as regras determinadas por elas. Sua liberdade se reduz a aceitar todas as condições impostas nos termos de uso de aplicativos ou ficar impedido de exercer a atividade, não existindo espaços para negociação.
Motoboys e entregadores cruzam as cidades do país em alta velocidade para atender o tempo de entrega imposto pelas empresas e se expõem a riscos altíssimos à sua integridade física (art. 7º, XXII, CF), cujo resultado é o crescente número de acidentes, com vários óbitos documentados, em diversas localidades.
Essa realidade já foi retratada em Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde. São trabalhadores que, por não terem onde satisfazerem as suas necessidades fisiológicas ao longo da jornada, em flagrante violação ao direito à dignidade humana, hidratam-se precariamente e, como consequência, não sangram, sendo cada vez mais comuns, ainda, o relato de doenças renais entre os trabalhadores[1].
Há quem argumente, a partir de uma visão reducionista do fenômeno, que as regras criadas no século 20 para proteger o trabalhador não cabem na realidade do século 21. Entretanto, enquadrar o trabalho via plataformas digitais realizado por entregadores e motoboys sob uma perspectiva de mera liberdade de organização produtiva, sem considerar as assimetrias de poder inerentes a essa relação, terá como resultado lançá-los diretamente ao século 19. Retornaremos à época da pré-regulação trabalhista, marcada por condições degradantes de trabalho e ausência de proteção social, em flagrante retrocesso social vedado pelo ordenamento constitucional brasileiro.
A definição da abrangência do Tema 1389 foi excessivamente ampla, trazendo para o debate situações de trabalhadores que não se relacionam com as controvérsias jurídicas colocadas e que já estão sendo tratadas em outros casos de repercussão geral.
Reconhecer esse cenário, fazendo as devidas distinções técnico-jurídicas, é central para que a fixação da tese pelo STF ocorra da melhor forma possível no Tema 1389, preservando a integridade hermenêutica do sistema constitucional e evitando incongruências jurisprudenciais que poderiam comprometer a própria segurança jurídica das relações trabalhistas no país.
O primeiro passo para isso é retirar formalmente os entregadores e motoboys desse caso, reservando sua análise ao foro processual adequado já estabelecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal.