Arquivos Diários : fevereiro 24th, 2025

Que sabe dar um jeito, meu amigo?

Antes, muito antes, do sonho de carnaval ser uma estatueta do Oscar, minha mãe, leitora quase exclusiva de livros espíritas, apareceu com aquele livro azul: leia, você vai gostar.

Só muitos meses depois daquele dia eu saberia que Walter Salles havia feito um filme sobre o tal livro azul que minha mãe comprou e leu, e que nove entre dez postagens que meu algoritmo de rede social me mostraria, em 2025, seriam sobre um Brasil inteligente e sensível se redescobrindo através dos olhos do mundo, com a história daquele livro.

Quando o letreiro do filme “ainda estou aqui” começou e a voz de Erasmo Carlos, que não está mais aqui, entoou que descansar não adianta, eu me sentia exausta, imersa em uma plateia também cansada, que não sabia mais onde colocar tanto silêncio acumulado.

Reverberava em mim em um tamanho sem medida o olhar desviado de Eunice no tanque de guerra destoando do dia solar na praia carioca, na sorveteria, no corpo do cachorro morto, no sorriso do marido que nunca mais voltaria, na casa vazia, nos filhos que crescem com seus próprios destinos e dores, na família que se agiganta para além de nós, mesmo que nunca mais se dance na sala, e no tempo que leva tudo, até nós de nós mesmos.

O letreiro passava e eu não sabia que olhar me atravessava: era Fernanda Torres? Fernanda Montenegro? Da filha? Da mãe? De Eunice Paiva? Ou era o de minha própria mãe, uma mulher que cumpriu o script das mulheres da geração de Eunice e de Montenegro e que foi, “apenas”, a mãe de família cumpridora de suas tarefas? A mãe que, um dia, me estendia o livro azul e, no outro, me perguntava onde estava sua própria mãe?

Minha mãe não foi uma visionária do sucesso de um filme que ela nunca quis ver. Minha mãe não gosta de cinema e, muito menos, de sair de casa. Minha mãe também está longe do perfil politizado que está depositando nesse filme a grande chance de desforra contra a força bruta, a ignorância, a crise ética e estética que mergulhamos ciclicamente com governos que discursam e praticam a política da morte. Essa sou eu, nos meus devaneios diários de arte – redenção.

Minha mãe é somente mais uma senhora de classe média, de 91 anos, viúva, que trava sua luta pessoal para ainda estar aqui, o que inclui respirar, comer, ir ao banheiro todos os dias e não esquecer de sua história.

Não perder a dimensão de suas próprias perdas tem sido o desafio de um país e de minha mãe.

Meu amigo Eduardo Ferreira Valério, Procurador de Justiça do MPSP, que deveria estar escrevendo esse artigo no meu lugar, sabe bem disso.

Durante décadas dedicou-se no Ministério Público do Estado de São Paulo a narrar a história das perdas e dores dos mais lascados desse país, na esperança de que elas não se repetissem.

Em uma das ações civis públicas que marcam sua trajetória, Valerio postula pela transformação de um antigo espaço de tortura da ditadura civil-militar (DOI-CODI SP) em um espaço de memória e cultura (museu), com a aplicação dos princípios da Justiça de Transição.

A Justiça de Transição, como se sabe, enquanto conjunto de princípios destinados a garantir a reconstrução democrática de um país após experiências autoritárias ou ditatoriais, se fundamenta em três conceitos: justiça, memória e verdade.

Não há Justiça de Transição sem a) atribuição de responsabilidades; b) garantia efetiva do direito à memória e à verdade; c) reparação em favor das vítimas; d) e fortalecimento das instituições com valores democráticos de modo a se garantir a não repetição das situações de violência.

Na ação, Valerio diz que matar e infligir dores inimagináveis e covardes entrou para o cotidiano de agentes públicos que cumpriam o “dever de vencer um inimigo”. Falar do Estado brasileiro em seu regime ditatorial entre 1964 e 1985 é falar de tortura, a mesma tortura que ainda resiste no aparato do Estado, sobretudo contra a população periférica e negra que meu amigo Valerio, também bravamente, já narrou em outra ação judicial, fazendo 38 pedidos para melhoria da política de segurança pública no Estado de São Paulo, inclusive aos próprios policiais, também vítimas da engrenagem da necropolítica.

Ao que parece, meu amigo Valerio quer e sabe dar um jeito, apostando que o direito, sob as bençãos da Constituição Federal, é capaz de transformar dor em cultura e amor pela humanidade.

Volto para o letreiro do cinema, que ainda passa enquanto Erasmo canta. Penso nas instituições cada vez menos democráticas e mais clientelistas e patrimonialistas, servindo aos poderosos de sempre. Elas parecem surdas. Seguem bastante eficientes no apagamento sem escrúpulos de Valérios e de Promotoras Passarinhas, submetidos à exaustão de falar sozinhos sobre o tal do jeito que a gente até poderia dar, não fossem as paredes de arrogância e narcisismo sem qualquer disponibilidade de escuta.

Penso na política da morte que o Brasil suportou recentemente, elegendo um Presidente da República que homenageou um torturador de mulheres e crianças e da dificuldade de que isso fosse, apenas, o gigantesco absurdo que é.

Estou na sala do cinema. Ninguém se mexe ou respira no cinema abarrotado. O letreiro vai acabando, Erasmo segue cantando… mas precisa chegar na parte que ele diz como é que a gente dá o jeito que a gente tem que dar quando ninguém nos escuta. Essa parte não chega nunca. O letreiro vai acabando. E descansar também não adianta.

Estranho falar em uma Justiça que seja de transição quando imaginamos a Justiça como o lugar de chegada. Mas é que a história é mar agitado, e não processo linear, e também não se chega a lugar algum sem que a gente se lembre de onde a gente parte, ainda que para fazer isso seja necessário nos partir um pouco, ou muito.

Eu parto de uma vila de paralelepípedos, com uma pracinha ao fundo, onde eu aprendi a andar devagar, por prazer, quando criança, e depressa, por medo, quando menina adolescente. Em algum momento, enquanto crescia atravessando a pracinha do final da minha rua, entendi que a única travessia que me seria possível, na vida, era a de tentar ser uma decifradora de silêncios, sobretudo daqueles que vem do cálice da força bruta.

O letreiro está no fim e penso que minha mãe tem os olhos azuis iguais o azul do livro que ela me deu.

Ninguém, absolutamente ninguém, se mexe no cinema. Parece insuportável… eu queria muito dançar na sala de casa também, em uma história de amor sem esquecimento e apagamento. Queria ver as amigas passarinhas brilhando e meus amigos dando o jeito que eles bem sabem dar para a gente construir um mundo sem mortes, descartes e violência, onde todas as pessoas lembrassem e pudessem contar suas histórias, de onde partem e o que as parte em pedaços quando são caladas e esquecidas.

Queria chorar, mas nem isso cabia. Eunice não chorou.

Daqui a pouco a luz da sala de cinema vai acender…e o tal jeito… alguém grita.

É uma voz de mulher trazendo o grito que nos redime e nos devolve o ar.

SEM ANISTIA!

A plateia do cinema vem abaixo ecoando a vergonha que é a defesa de uma Lei de 1979, que perdoa tortura, assassinatos e desaparecimentos políticos ferindo princípios constitucionais basilares e os tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Interamericana, o Pacto de São José da Costa Rica e o Tratado de Roma.

Sem anistia é o jeito que temos que dar se não quisermos viver assombrados pelo retorno do recalcado e os fantasmas golpistas que, recentemente, colocaram, graças à magistral peça acusatória do Procurador Geral da República, Paulo Gonet, 34 pessoas no banco dos réus perante o Supremo Tribunal Federal, dentre os quais, 23 militares e o ex-Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, o senhor adorador de torturador. Todos acusados de formação de organização criminosa armada, tentativa violenta de abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, deterioração de patrimônio tombado e golpe de Estado que se consolidaria em 08 de janeiro de 2023, com a invasão da Praça dos Três Poderes, em Brasília.

Está chegando o carnaval. Chico Buarque e João Bosco lembraram recentemente, na quadra da Mangueira que, em 1969, Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira cantaram “Heróis da liberdade”, pela Império Serrano, meses após a decretação do AI 5. O samba falava da brisa que a juventude afaga e de uma chama que o ódio não apaga.  A censura não suportou a parte em que se falava de “revolução em sua legítima razão”, e revolução foi substituída por “evolução”. Os canalhas sempre foram apavorados com a força transformadora da beleza e da vida.

Domingo teremos Oscar e faremos nosso samba no tapete vermelho dos gringos e nas ruas do Brasil, em forma de desforra pública e internacional.

Afirmaremos a política do amor e da reparação contra a covardia e a força bruta. Será um domingo para as mulheres de todas as gerações passarinharem e festejarem que, apesar de tudo, de tudo mesmo, ainda estamos aqui.

Minha mãe, a Lourdes, também está, está lá na vila de paralelepípedos dela, que termina em uma praça bem verde e florida onde gentes coloridas brincam sob um céu azul, esse azul que é da cor do amor.

CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL é Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP.

REFERÊNCIAS:

  1. Ação judicial SAJ 1034665-31.2021.8.26.0053 que tramita na 14ª Vara da Fazenda Pública Estadual – Estado de São Paulo, assinada por Eduardo Ferreira Valério, Anna Trotta Yaryd e Lucas Martins Bergamini.
  2. Ainda Estou Aqui – Marcelo Rubens Paiva. Editora Alfaguara. RJ. 1ª edição.
  3. Samba Enredo 1969, Império Serrano. Heróis da Liberdade.