O Projeto de Lei Complementar para regular o trabalho dos motoristas impossibilita a autonomia dos trabalhadores e nega-lhes direitos
Painéis luminosos anunciam o lema “autonomia com direitos”. Na frente dos painéis, representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores sorriem para as fotos. Ao centro, o Presidente Lula satisfeito comemora o nascimento de “uma nova modalidade no mundo do trabalho.”. Acontecia o festim de lançamento, com pompa e circunstância, do projeto de lei complementar que pretende regular a relação entre motoristas e empresas que se autodenominam plataformas digitais.
O Presidente da República acertou em dizer que está sendo gestada uma nova figura legal de trabalhador, mas, por parte dos trabalhadores brasileiros, não há nada que se comemorar.
O projeto de lei cria uma figura híbrida, algo como um minotauro, só que com cabeça de empresa e corpo de trabalhador, ou melhor, cabeça de autônomo, corpo de empregado. É legítimo “nem-nem”: nem é autônomo, pois o próprio projeto expressamente impede a autonomia de fato; nem é empregado, pois essa situação jurídica lhe é negada pelo projeto. A figura nem-nem está longe de ser um autônomo com direitos, pois não há autonomia, e, para se falar a verdade, quase não se vê direitos no projeto. A nova modalidade criada pode ser vista como um subordinado sem direitos.
A primeira coisa que se percebe no texto é que parece uma cópia desidratada da Prop 22, a proposta legislativa escrita e financiada pelas empresas na Califórnia, levada a plebiscito após campanha para aprovação que custou para as plataformas mais de um bilhão de reais. Os conceitos e termos usados são os mesmos. O conteúdo também, tanto os que definem o que é autonomia, quanto os que não são considerados subordinação. Só que o projeto assumido pelo governo brasileiro como seu vem desidratado de detalhes e também de garantias aos trabalhadores, como veremos mais à frente.
O segundo ponto de destaque é a distância da realidade. As empresas são chamadas de “empresa operadora de aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas”. Como é que se opera um aplicativo, que é apenas um programa instalado em celulares que faz a interface com uma plataforma digital? Quem opera o aplicativo, no único sentido possível, que é acessá-lo e utilizá-lo, de fato, é o motorista. A empresa, por meio do aplicativo, como porta de entrada e saída de dados, controla o trabalhador e captura as informações que vão ser processadas na sua plataforma digital. Percebe-se não somente o distanciamento com a realidade, mas também o desconhecimento de como funciona a atividade econômica que pretende regular.
O terceiro ponto a ser trazido é justamente a ausência de autonomia, ou melhor, a criação de condições que vão impossibilitar completamente a prestação de serviços de forma autônoma. O projeto restringe a autonomia à “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos que se conectará ao aplicativo” (caput do art. 3º), inexistência de exclusividade (art. 3º, § 1º, I) e inexistência de exigência de tempo mínimo ou habitualidade (art. 3º, § 1º, I). Bom, ninguém se conecta a um aplicativo: o trabalhador abre o programa para se conectar à empresa por meio de acesso do aplicativo à plataforma digital da empresa. Tirando esse “detalhe”, nenhuma dessas características são próprias ou exclusivas de trabalhadores autônomos: os trabalhadores em teletrabalho, por exemplo, não têm horários fíxos. Nenhum trabalhador tem exigência legal de exclusividade. A habitualidade, por sua vez, não é característica de falta de autonomia, mas sim da presença de requisito específico da relação de emprego que é a não-eventualidade.
Algumas ausências também são sentidas como forma de silêncio eloquente e constrangedor, como o argumento muito utilizado pelas empresas para dizerem que seus trabalhadores são autônomos: a possibilidade do trabalhador recusar chamadas ou pedidos, que é uma exigência prevista lei californiana. A precificação do serviço e a remuneração dos trabalhadores também não são tratados pelo projeto, podendo significar que se pretende que continuem totalmente na mão das empresas.
O art. 5º do projeto de lei complementar é surreal. Ele autoriza a subordinação dos trabalhadores às empresas “sem que isso configure relação de emprego”. O dispositivo permite: adoção de normas e medidas para garantir a segurança do serviço; suspensões, bloqueios e exclusões; sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados; sistema de avaliação de trabalhadores e oferta de cursos e treinamentos e benefícios e incentivos aos trabalhadores, ainda que de caráter continuado.
O projeto simplesmente pega todas as características que, segundo a doutrina e a jurisprudência, nacional e internacional, identificam como formas de subordinação e libera seu exercício pelas empresas, impedindo legalmente a formação de vínculo. Com isso, nega a possibilidade de realização do trabalho com verdadeira autonomia.
Mas os absurdos não param por aí. Há um caminho de volta ao século XIX: o projeto dispõe de jornada máxima de 12 horas e nada prevê acerca de descanso. A prova de que não estamos no século XXI é que as palavras “dados”, “algoritmo” e “inteligência artificial” em relação ao trabalho simplesmente não são usadas em todo o texto. Em uma atividade que é baseada nesses três elementos, a sua ausência no projeto é patente confissão de anacronismo e desconexão com a realidade.
Os defensores do projeto poderão dizer que há sim direitos garantidos aos trabalhadores. Alguns deles seriam os listados no art. 7º. Não acredito em coincidências, ainda mais que essa estratégia, ou sarcasmo, já foi usada antes, na lei de cooperativas de trabalho. Creio que os projetistas pensaram mesmo em substituir o art. 7º da Constituição pelo disposto no artigo de mesmo número do projeto, que prevê “princípios” pelos quais as empresas devem pautar sua atuação: transparência, redução dos riscos inerentes ao trabalho, eliminação de todas as formas de discriminação, violência e assédio no trabalho, direito à organização sindical, à sindicalização e à negociação coletiva, aboliação do trabalho infantil e eliminação do trabalho análogo ao de escravo.
Bem, a transparência já é imediatamente reduzida no artigo seguinte a mero acesso às informações sobre os critérios de oferta de viagens, pontuação, bloqueio, suspensão e exclusão e critérios de composição da remuneração, por meio de relatório mensal. Não há, como se disse, nem mesmo menção a acesso do sindicato ao algoritmo, como por exemplo prevê a legislação espanhola.
Os demais direitos (incluindo o inacreditável “abolição ao trabalho infantil” em uma atividade de transporte de passageiros, cuja habilitação se dá com 18 anos) são tratados como meros princípios, sem nenhuma densidade jurídica, quase como um panfleto. Muito embora o endividamento que se realiza com trabalhadores pode até identificar a situação de condições análogas à de escravo.
Também pode-se dizer que os trabalhadores passam a ter direito ao salário mínimo. Inicialmente, verificamos que não é isso que garante o projeto. Subvertendo o direito do trabalho em todo o mundo, o tempo de trabalho, pelo projeto, somente é considerado t para a remuneração “o período entre a aceitação da viagem pelo trabalhador e a chegada do usuário ao destino” (art. 9º, § 2º). Ou seja, deve ser verificado quantas horas efetivas de trabalho o trabalhador tem que fazer para conseguir o montante de horas fictícias criadas pelo projeto.
Outro ponto pode ser levantado pelos defensores do nem-nem: há previsão do direito de negociação coletiva. A CLT traz desde 1943 a possibilidade não só de sindicalização como de negociação coletiva para trabalhadores autônomos (art. 511 e seguintes). A previsão, portanto, não inova no mundo jurídico.
A parte previdenciária é a única em que há realmente algum pequeno ganho, que é a contribuição pelas empresas. Mas é uma migalha perto de tantos ganhos auferidos pelas empresas com o projeto. Só que a lei californiana, que serviu de “inspiração”, traz previsão que as empresas assumam integralmente seguro saúde e seguro para acidentes dos trabalhadores, o que não acontece no projeto tropical.
Outro silêncio ensurdecedor do projeto é sobre a justiça competente. A Justiça do Trabalho não é citada em nenhum momento. Somente a figura do dissídio coletivo aparece, mas não se refere ao órgão que terá a jurisdição.
Em suma, é um projeto que, conforme já referido em outro lugar, se assemelha ao Código Negro francês: sob o pretexto de trazer alguns direitos, legitima e legaliza a exploração e, como disse Voltaire, os juristas consultados provam não entender nada de direitos humanos, muito menos de direito do trabalho, diria eu. Traz ao mundo jurídico uma figura nova, o nem-nem, ou o subordinado sem direitos: uma subcategoria para subcidadãos, sem direito a acesso aos direitos fundamentais previstos na Constituição e sem os direitos humanos previstos nos tratados assinados pelo Brasil. Um minotauro, autônomo por definição legal, empregado de fato, que se encontra em um labirinto subterrâneo bem escuro. É um precedente perigoso, que pode tragar todo e qualquer trabalhador para esse local escuro, sem vida e sem direitos.
*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP