Arquivos Diários : abril 25th, 2023

Punir os fascistas e o dilema da contenção do poder punitivo?

Por Jacson Zilio no Conjur

I

A transformação jurídica dos regimes autoritários em democracias sempre suscitou um interessante questionamento político-criminal: afinal, o que parece mais justo, punir as ações  criminosas gravíssimas do passado ou perdoá-las em nome de uma suposta reconciliação?[1]

Como se sabe, a maioria das democracias ocidentais optou pela punição, em processos criminais desenvolvidos dentro das regras legais tradicionais, sob um fundamento bastante sólido: os sofrimentos, desaparecimentos forçados e mortes do terror estatal exigem punição para reafirmar a importância dos valores sociais violados (prevenção geral positiva) e, ao mesmo tempo, prevenir novas rupturas democráticas, seja pela intimidação (prevenção geral negativa), seja pela neutralização (prevenção especial negativa).[2]

Ao lado dessa importante discussão, que ainda se encontra aberta no Brasil mesmo depois da vergonhosa decisão do STF que confirmou a autoanistia dos militares em descompasso com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, emerge agora também uma outra: o direito penal pode contribuir, com o uso da pena privativa de liberdade e demais sanções previstas, para proteger o regime democrático? Mais ainda: já que os inimigos da democracia não seguem as regras legais para alcançarem os objetivos almejados, pois querem abertamente sua destruição, a resposta das agências penais, dentro da democracia, pode extrapolar os limites do poder punitivo a partir de um direito de exceção? Punir, então, quando, como e por quê?

II

(i) A legitimidade do direito penal democrático na proteção de bens jurídicos coletivos, aí incluído o próprio Estado de Direito, ganha cada vez mais consenso. No mínimo, o direito penal aceita a proteção de bens jurídicos coletivos quando eles são instrumentos de proteção de bens jurídicos individuais.[3] Dado que tais bens só existem porque estão atrelados aos bens de indivíduos concretos, a intervenção do direito penal, ao lado do núcleo duro tradicional, está plenamente legitimada. O direito penal é, portanto, também o meio legal que o Estado democrático dispõe para se proteger das técnicas de manipulação ideológicas e das violências reais contra suas instituições. Na verdade, o direito penal só não está legitimado, na democracia, para proteção de meras abstrações, ideologias ou moralidades. Portanto, na chamada democracia combativa, o momento de intervenção do direito penal está dado pelo próprio CP brasileiro: nas ações de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L), golpe de Estado (art. 359-M), interrupção do processo eleitoral (art. 359-N) e violência política (art. 359-P). Esses tipos penais materializam a opção político-criminal de punição de diversas ações que ofendam as instituições democráticas do Estado de Direito. Naturalmente, em se tratando de delitos comuns, qualquer pessoa imputável, por ação ou omissão, poderá ser autor imediato, mediato, coautor ou mesmo partícipe ou cúmplice.

(ii) A forma como deve funcionar o direito penal, dentro da democracia, é oferecida também pelo ordenamento jurídico: tanto a CR quanto o CP e o CPP apresentam limitações claras de como punir as ações ofensivas aos valores democráticos. A CR detém um catálogo minucioso de direitos individuais fundamentais (liberdade de pensamento, inviolabilidade de domicílio, tempo razoável do processo, presunção de inocência, provas lícitas, devido processo legal, juiz natural, princípio acusatório, proteção da privacidade e da intimidade etc.), o CP estrutura-se em princípios de limitações do direito de punir (princípios de legalidade, lesividade, intervenção mínima e culpabilidade) e o CPP traça as regras do processo e do procedimento (competência, princípio acusatório, princípio da presunção de inocência, da excepcionalidade da prisão cautelar etc.). Tudo isso, evidentemente, deve ser respeitado rigorosamente, entre outras coisas porque a resposta punitiva deve ser produzida em completo respeito ao princípio da superioridade ética do Estado, derivado do republicanismo, que impede que os agentes estatais se equiparem aos delinquentes.[4]

Na prática, resguardados os direitos e as garantias legais e constitucionais fundamentais, a pergunta sobre como punir esvazia-se. Por óbvio, não se punem os velhos e novos fascistas pelo mero fato de acreditarem e propagarem uma ideologia historicamente geradora de catástrofe social. Absolutamente, não. Punem-se os integrantes de movimentos de massa de estilo fascista não porque acreditam em sistemas delirantes, senão porque disseminam o ódio, a violência, a discriminação de classe e de raça, a mentira e a manipulação. Por isso, importam mais as ações humanas concretas realizadas ou tentadas do que as características pessoais de eventual autor, ainda que possam ser relevantes no momento da determinação da pena, notadamente quando se está diante de alguém que ocupa espaços de poder econômico, social e estatal. Assim, por exemplo, se alguém reproduz o discurso dessa ideologia de extrema direita, em redes sociais ou em outros espaços de fala, deverá responder pelo processo penal decorrente de tal delito. A razão da punição aí escapa o âmbito individual dos delitos contra a honra e se localiza na necessidade de evitar os efeitos perversos que o discurso de ódio tem na configuração de uma sociedade democrática e na dignidade dos indivíduos que integram as coletividades vítimas. O traço definidor dos delitos de discurso de ódio está, portanto, na capacidade de atentar contra a dignidade humana, não apenas no sentido kantiano, mas também na reputação básica que permite ser tratado como igual no interior da sociedade.[5] Do ponto de vista do bem jurídico defendido, o objeto da proteção legal é a dignidade humana e não o sentimento das vítimas. Como afirmou JEREMY WALDRON, “proteger as pessoas de serem ofendidas equivale a protegê-las de certa classe de efeitos nos seus sentimentos, mas isso é distinto do fato de se proteger sua dignidade e assegurar um tratamento descente na sociedade”.[6] Claro, a punição pelo discurso de ódio exige alguns requisitos como: 1. Abuso de direito oriundo da posição de poder hegemônico do falante; 2. Espaço amplo de difusão de ideias aptas ao enfraquecimento ou destruição de grupos historicamente vitimizados; 3. Existência de um “sobredireito” não igualado pela somatória de outros direitos fundamentais (por exemplo, quando o direito de liberdade de expressão vem alimentado pelo direito de liberdade religiosa, não se pode dizer que exista um sobredireito que os anulem completamente); 4. Aproveitamento da fragilidade da audiência para disseminação das ideias de ódio.[7]  Cumpridos esses requisitos, o discurso de ódio e o abuso da verdade pela inverdade, por atacarem a dignidade humana e as bases democráticas, devem ser contidos com o emprego do direito penal.

Por outro lado, também não há dúvidas de que a escalada autoritária que redundou na intentona de 8 de janeiro de 2023 merece punição exemplar, sejam daqueles que insuflaram as massas fascistas, sejam daqueles que planificaram e executaram os delitos cometidos. Daí aparecem autores imediatos, mediatos, coletivos, cúmplices e partícipes. Autores imediatos e coletivos são todas aquelas pessoas que estiveram fisicamente dentro de prédios públicos invadidos e depredados. A mera presença física, por si só, é suficiente. No roubo em concurso de pessoas, por exemplo, não é preciso que todos os autores transmitam por palavras ou gestos o elemento normativo do tipo consistente na grave ameaça. A presença física no momento do delito, que serve de apoio e intimidação, é suficiente. Igualmente na tentativa de furto em concurso de pessoas não é imprescindível que todos os autores toquem no objeto subtraído. Também cometem furto tanto aquele que foge com a res furtiva quanto aqueles que são presos no interior da residência, sem nada tocarem. Basta que ingressem juntos na residência ou que auxiliem na fuga imediata do local do delito.

Autores mediados são todos aqueles (homens detrás) que se utilizaram de outros (instrumentos) em situação de erro (de proibição evitável, que recai sobre a existência ou extensão de uma causa de justificação, por parte de quem tem pouca capacidade de crítica) ou coação (nos casos de consequências por se recusar a cumprir ordens ilegais). Ainda que a ideologia fascista não se reduza a um problema psicológico e ideológico, mas provavelmente atrelado ao que se sabe da síndrome de personalidade autoritária fixada na autoridade, podem as massas fungíveis, portadoras de crenças irreais, fantasiosas, manipuladas e irracionais, ser dominadas por aparatos organizados de poder. Assim, quem controla o aparato organizado de poder, à margem da legalidade e valendo-se de sujeitos fungíveis e em situação de erro ou coação, é autor mediato dos delitos realizados.[8]

Os partícipes por instigação são aqueles que determinaram dolosamente os referidos delitos e por cumplicidade quem ajudou ou auxiliou materialmente os autores imediatos (transportes, alojamentos etc.). Ainda que baseado na antiga teoria subjetiva, o Tribunal alemão (BGHSt 32, 165-183) já decidiu que quem dá ordens, organiza os fatos ou é a cabeça intelectual, ainda que ausente no lugar do fato, é sim autor “das violências ou ameaças realizadas pela multidão que coincidem com sua vontade e que a cometem sob seu domínio de fato, isto é, são imputados de acordo com os princípios gerais como fato próprio”. Contudo, hoje, nos termos da teoria do domínio do fato, quem tem o spiritus rector da execução do delito é partícipe por instigação. Aí se encontram os financiadores da invasão do dia 8 de janeiro de 2023, os mantenedores e alimentadores dos acampamentos ilegais e também aqueles que, de uma forma ou outra, prestaram contribuições aos bloqueios de rodovias.

Por fim, a omissão é, também, uma categoria importante nas imputações dos delitos cometidos. A omissão imprópria, destinada aos agentes públicos que deveriam evitar, como garantidores dos bens jurídicos ameaçados, os danos materiais, os acampamentos ilegais e as tentativas de ruptura democrática, tem plena aplicação em virtude do parágrafo segundo do artigo 13 do CP. As fortes imagens de militares do GSI tratando os delinquentes como hóspedes do Palácio do Planalto, por si só, possibilita a imputação por omissão imprópria dos resultados naturalísticos ocorridos, já que, por lei, possuíam o dever de cuidado, proteção e vigilância. Do mesmo modo, tudo indica que Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro do governo Jair Bolsonaro e preso no Inquérito 4923/DF (STF), quando à frente da Secretaria de Segurança do DF, descumpriu os deveres de garante dos bens jurídicos ameaçados, seja porque nada fez para desmanchar os acampamentos e barreiras ilegais, seja porque viajou ao exterior na antevéspera dos delitos praticados, apesar dos sérios indícios objetivos anteriores (por exemplo, a tentativa de explosão de uma bomba na área do Aeroporto Internacional de Brasília, por um bolsonarista que se encontrava acampado em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília). Isso não exclui, contudo, a eventual imputação por delitos comissivos por autoria ou participação relacionados ao encontro de uma minuta de decreto que serviria ao golpe.

(iii) O dilema, portanto, restringe-se ao fundamento do direito de punir, isto é, punir por quê? É verdade que, mesmo dentro das democracias ocidentais consolidadas, nem sempre o direito penal apresenta-se, na prática, como igualitário e justo. Provavelmente é o contrário: o direito penal é o direito desigual por excelência e a culpa desse mal funcionamento não é da democracia em si, porque, no geral, o direito penal é o reflexo fiel da desigualdade social que impera no sistema capitalista. Na atual fase do capitalismo, dominado pela razão neoliberal, a democracia foi sequestrada. Libertá-la é, hoje, a tarefa política primordial. De qualquer modo, se existe algum espaço de legitimidade hoje de intervenção do direito penal, é justamente quando ele pretende preservar o que resta de instituições democráticas voltadas ao indivíduo. Não há dúvida que o princípio de liberdade humana não se respeita nos regimes autoritários. Nas ditaduras os indivíduos são servos, meros objetos do poder absoluto, que tudo pode e tudo realiza: totaliza a liberdade de pensar, de andar, de ser diferente, do corpo, da sexualidade, em pró de valores conservadores e classistas (família tradicional, religião cristão, heterossexualidade etc.). Nas democracias, ao contrário, os indivíduos são sujeitos de direitos, portadores de dignidade e livres de pensamento. As ofensas devem ser prevenidas, reparadas e punidas de forma justa. Logo, retirar o direito penal da proteção da democracia, antes mesmo de livrar os cidadãos dos males da pena por delitos da criminalidade de rua, quase sempre motivados por situações sociais adversas, é potencializar o mal maior da desigualdade de funcionamento do aparato penal. Afinal, não são as massas populares ou movimentos de massa espontâneos as responsáveis pela tentativa de destruição das instituições democráticas. São os movimentos capturados pela ideologia fascista em situações objetivas concretas. Há, por certo, autores mediatos que dominam as vontades de sujeitos fungíveis. Há empresários imorais que, como cúmplices ou instigadores, representaram e ainda representam riscos ao funcionamento regular das instituições democrática. Há agentes estatais que, do cerne das instituições democráticas, inclusive das agências penais e militares, serviram e ainda poderão servir, por ação ou omissão, aos planos de destruição da democracia brasileira. Portanto, o horror não pode ser esquecido.

A estratégia de usar técnica de neutralização consistente na depreciação do julgador, por considerá-lo antidemocrático, é alteração de comportamento típico do extremismo de direita. Conforme já alertou ADORNO em relação ao radicalismo de direita do pós-guerra, à adequação às regras do jogo democrático significa também uma certa alteração nos modos de comportamento: desaparece o que é abertamente antidemocrático, evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de antidemocráticos.[9] Mas sem muito esforço a contradição e o elemento demagógico ficam desnudadas. Aliás, já mostram ADEMAR BORGES e ALAOR LEITE que esse criticismo sobre a atuação do Poder Judiciário é contraproducente, limitado e prematuro.[10]

III

O assombroso dia 8 de janeiro de 2023, televisionado ao mundo, não retratou só um delito grave dos novos fascistas brasileiros, mas também representou um alerta em forma de grito: se o direito penal não punir as ações dos fascistas do bolsonarismo, que executaram a tentativa de golpe de estado, destruíram materialmente as instituições democráticas e instigaram atos violentos por meio de discursos de ódio, então não poderá punir mais ninguém. Seria um carimbo de seletividade penal de classe imunizar grupos sociais hegemônicos por delitos graves e manter uma massa de miseráveis submetidos aos males do cumprimento real da pena. Essa desigualdade nas democracias nunca pode ser naturalizada. Não se trata de simples “punitiveness” ou “alegria da punição”. Apenas é mais razoável punir os delitos dos fascistas antes que eles destruam o pouco que nos resta de democracia.

Por Jacson Zilio é Doutor em Direito Penal e Criminologia/Universidad Pablo de Olavide/Espanha e membro do Coletivo Transforma MP


[1] Essa temática foi debatida profundamente, em fevereiro de 2008, no Colóquio patrocinado pela Fundação Alexander von Humboldt na Universidade Pablo de Olavide. Confira-se em MUÑOZ CONDE, Francisco, VORMBAUM, Thomas, Humboldt-Kolleg. La transformación jurídica de las dictaduras em democracias y la elaboración jurídica del pasado”. Valencia, Tirant lo Blanch, 2009.

[2] HASSEMER reconhecia apenas a prevenção geral positiva como função da pena para evitar, pelo direito penal, o retorno do nazismo: “Sólo la teoría de la “prevención general positiva”, que pretende que el Derecho penal assegure, fortalezca y fundamente la confianza de los ciudadanos en las normas, con un respuesta continuada y justa a las violaciones del Derecho abrió más tarde una puerta para darle sentido a la reacción penal a la criminalidad cometida desde el sistema” (HASSEMER, Winfried. El Derecho penal tras el cambio de sistema político. El ejemplo de la República Federal de Alemania. In: Humboldt-Kolleg. La transformación jurídica de las dictaduras em democracias y la elaboración jurídica del pasado”. Valencia, Tirant lo Blanch, 2009, p. 41).

[3] Um panorama dessa discussão pode ser visto em GRECO, Luís. Modernização do Direito Penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

[4] ZAFFARONI, Raùl Eugenio. Estructura básica del derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2009, p. 48.

[5] WALDROM, Jeremy, The harm in hate speech, London: Harvard University Press, 2012, p. 5. 

[6] WALDROM, Jeremy, op. cit., p. 104.

[7] ZILIO, Jacson. Direito Penal e discurso de ódio. In: Revista Justiça e Sistema Penal, v. 9, n. 16, p. 181-204, jan./jun., 2017.

[8] ROXIN, Claus. Autoría y dominio del hecho en Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2000, pp. 269-303. Veja-se também, por exemplo, DOS SANTOS, Juarez Cirino. Jair Bolsonaro – participação em associação criminosa e domínio do fato por comando de aparelho de poder. In: Brasil 247, de 20 de janeiro de 2023.

[9] ADORNO, Theodor W. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Editora Unesp, 2020, p. 64.

[10] BORGES, Ademar, LEITE, Alaor. Entre o perdão e a vingança, a sanção. In: O Estado de S. Paulo, 17 de abril de 2023.

Integrantes do Coletivo Transforma MP entregam livro para ministra Rosa Weber

Os integrantes do Coletivo Transforma MP, Ronaldo Fleury (Procurador-geral do Trabalho aposentado) e Leomar Daroncho (Procurador do Trabalho), entregaram na última semana uma cópia da obra coletiva Democracia e Justiça em Pedaços, vol. 1 e 2, à ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber.

Os livros reúnem centenas de artigos críticos escritos pelos integrantes do Coletivo Transforma MP, que refletem sobre a situação política, racial e de gênero no país.

‘Ah, mas tem mulher que mente!’ – O Mito da Eva traiçoeira que embala o Patriarcado ou ainda: A falsa dicotomia entre o Sistema Acusatório e perspectiva de gênero

É possível analisar o processo com perspectiva de gênero e, ao mesmo tempo, manter a presunção de inocência do réu até que haja prova suficiente em contrário

Por Érika Puppim no Le Monde Diplomatique

É só sair na mídia notícias de acusações de abusos sexuais ou violência doméstica contra homens de renome e poder para imediatamente se ouvir falas como: “Ah, temos que tomar cuidado, tem muita mulher que mente por aí!”.

Vivemos uma sociedade patriarcal que violenta sistematicamente meninas e mulheres das mais diversas formas: estupro de vulnerável de crianças dentro de casa, ofensas e agressões no lar conjugal, importunações no caminho do trabalho, assédios quando chega no trabalho, abusos sexuais nos diversos ambientes, desde a rua no carnaval ao meio acadêmico: nenhuma mulher está a salvo das mais variadas violências de gênero que perpassam todas as idades e fases da vida, ambientes dos mais descontraídos aos mais formais, dos mais simplórios aos mais suntuosos.

Parece ser desnecessário trazer dados sobre violência contra a mulher neste artigo, mas ainda se ouve: “Os homens sofrem muito mais violência, morrem muito mais pela violência urbana em números absolutos do que as mulheres!”

De fato, os números absolutos de homicídios são maiores e são um grave problema que decorre outras questões estruturais, como o racismo e da malfadada guerra às drogas, mas ainda é preciso lembrar que o feminicídio é praticado por um homem que dividiu a cama com aquela mulher por meses ou anos… Será que dá para comparar numericamente os feminicídios quando esses são praticados justamente por quem até pouco tempo antes possuía uma relação íntima de afeto e até possui filhos com aquela mulher? Mas o machismo estrutural faz o homem enxergar a mulher como um objeto de sua posse e à sua disposição, e então este se sente no direito de ceifar sua vida caso o decepcione ou simplesmente não seja mais “sua”.

Não bastasse tudo isso, ainda precisamos lembrar o porquê do tratamento jurídico diferenciado para os casos de violência doméstica e familiar e de feminicídio, mesmo para quem é da área jurídica e já deveria há muito conhecer o princípio da isonomia. Ainda precisamos ficar ouvindo histórias de que “Fulano” e “Beltrano” já foram falsamente acusados por suas ex-mulheres “ressentidas e recalcadas” – reforçando um dos maiores mitos do patriarcado: o da “Eva traiçoeira”, que está o tempo todo armando contra o homem, seja porque quer lhe dar um “golpe”, seja porque quer se vingar por ter sido preterida por outra (claro, mais nova e mais bonita, para alegria do patriarcado!).

É justamente esse mito que embasa a presunção de que as mulheres estão sempre mentindo ou ao menos, merecem boa dose de desconfiança, consistindo assim no principal alicerce para que as violências e abusos continuem ocorrendo, já que encontram grande dificuldade de serem reconhecidos judicialmente, principalmente nos casos em que a violência não deixa vestígios materiais.

É preciso ainda analisar que casos são esses em que – dizem, que a mulher “mentiu”. Os casos em que simplesmente há absolvição por insuficiência de provas estão sendo incluídos nessa conta?

Ademais, como se sabe, o STF definiu que o crime de lesão corporal como de ação pública incondicionada (numa tutela patriarcal sobre a autonomia da mulher) fazendo com que muitas cheguem em Juízo dizendo que não foi bem assim, que na verdade, ela mesma provocou, ele apenas a empurrou e sem querer bateu a cabeça na quina, porque afinal, aquele homem é seu companheiro há 10 anos e pai de seus filhos. Esses casos também são contabilizados como casos que a “a mulher mentiu”?

Há ainda os casos de estupros praticados por familiares contra crianças e adolescentes, que quando vem à tona causam uma ruptura tão grande na família, que as vítimas passam a se sentir culpadas pelo afastamento de entes queridos e para tentar apagar a história, preferem dizer que foi tudo uma “grande mentira”.

Fora ainda os casos em que a ofendida sofre tantas humilhações e revitimizações na via crucis judicial que resolve simplesmente “abandonar o processo”.

Afinal, onde está “a verdade” nesses casos?

Como feminista garantista afirmo que é plenamente possível compatibilizar um Sistema Acusatório com perspectiva de gênero.

Não se quer que a palavra da vítima tenha uma presunção absoluta, tal como a palavra dos policiais em casos de tráfico contra réus negros e pobres – o que qualquer pessoa que defenda a Constituição deve questionar – mas não vemos esses mesmos que duvidam da vítima mulher, questionar.

É ainda interessante notar que a vítima de roubo tem seu depoimento hipervalorizado até mesmo num falho reconhecimento fotográfico, servindo para prisões preventivas que duram todo o processo, muitas vezes mais de 1 (um) ano e até mesmo condenações, mesmo sabendo da falibilidade da memória humana e os diversos fatores que fragilizam esse reconhecimento.

No entanto, quando a vítima é mulher num crime sexual ou de violência doméstica, a desconfiança é latente. Afinal, se para o réu no processo penal existe o princípio do “in dubio pro reo”, na nossa sociedade machista ainda existe para a mulher vítima o “in dubio pro stereotipo”,[1] na dúvida, se pré-julga seu caráter como uma mulher falsa e interesseira que quer se vingar de seu ex-companheiro ou tirar vantagem daquele homem que detém dinheiro e poder.

O que se espera – numa evolução de uma sociedade mais justa e igualitária, é que a vítima mulher não seja vista com extrema desconfiança o tempo inteiro, partindo da presunção negativa de que está mentindo o tempo todo.

Conclui-se ser plenamente possível analisar o processo com perspectiva de gênero e ao mesmo tempo, manter a presunção de inocência do réu até que haja prova suficiente em contrário, valorando-se devidamente o depoimento da vítima no cotejo com os demais elementos, levando-se em conta que tais crimes ocorrem muitas vezes sem deixar vestígios e sem testemunhas, seja no recôndito do lar, num banheiro de uma boate, num quarto de motel, em salas de portas fechadas de escritórios ou mesmo de Universidades.


[1] PANDJIARJIAN, Valéria Os Estereótipos de Gênero nos Processos Judiciais e a Violência contra a Mulher na Legislação. 2018. Disponível em: www.tjmt.jus.br/INTRANET.ARQ/CMS/GrupoPaginas/59/459/file/estereotipos_Genero_Valeria_Pandjiarjian.doc