Arquivos Diários : abril 10th, 2023

É Páscoa. E agora, quem vai ressuscitar a Escola?

Recife – Alunos da Escola Municipal Abílio Gomes, na capital pernambucana, usam livros didáticos que podem ser proibidos pela Câmara de Vereadores (Sumaia Vilela / Agência Brasil)

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN

Era páscoa de 1993. As crianças que moravam na favela São Remo, na Zona Oeste de São Paulo, estavam ansiosas pela festa. Ia ter coelho, chocolate, cantoria, balões e cachorro quente.

   Maralívia tinha 3 anos. Vinha toda semana com seus olhinhos saborosos de jabuticaba e cuidava de garantir local privilegiado no meu colo. Ali ficava, quietinha, observando como eu brincava de ser “tia” por três horas, de 20 crianças entre 02 e 04 anos, enquanto suas mães ouviam palestras e faziam consultas médicas e odontológicas no projeto social que acontecia quase dentro da comunidade. 

Com CD dos Saltimbancos, livros infantis e muito lápis de cor eu fui infinitamente feliz nas tardes de sábado de quase toda minha adolescência, limpando nariz, contando histórias e impedindo (ou tentando impedir) puxões de cabelo de mini pessoinhas tão saltitantes quanto abraçadeiras.

Naquela tarde especial, Maralívia chegou sem palavras, como sempre, e ficou me esperando elogiar o laço azul gigante do seu cabelo. Era do tipo que observava e esperava. Sabida. Aguardou que eu acomodasse uma a uma das crianças para assistir ao teatro da páscoa e, então, certeira, me fisgou com seus olhinhos de menina coleira.

A cantoria da criançada mais velha enchia a festa de esperança eufórica: o Célio, ou melhor, o coelho gigante de pelúcia, podia aparecer a qualquer momento, tímido e atrapalhado com suas orelhas encardidas, distribuindo ovinhos de chocolate coloridos.

Em dado momento, um estouro.

– “Matou!”

A palavra.

Maralívia nunca tinha falado comigo antes. Não precisava. Sabia usar todas as outras gramáticas do corpo, olhar, riso e choro, para se comunicar. Mas naquele momento fez-se palavra falada. Sílabas. A literalidade da violência que percebia cotidianamente no seu corpinho de três anos precisava ser dita e entendida.

Era uma bexiga que estourava, mas quase não fazia sentido explicar isso a ela. Mesmo assim, expliquei.

O anúncio de morte matada, como rotina na vida de uma criança, marcaria para sempre quem eu seria.

2023. 30 anos se passam e a Páscoa chega em mim sem a ressurreição prometida. Há cerca de 20 anos sou Promotora de Justiça e o tempo segue, cada vez mais, sendo de morte matada e anunciada.

Da Zona Oeste de SP reverbera a notícia de que um menino de 13 anos esfaqueou e matou a sua professora dentro da sala de aula. Uma semana depois, um rapaz de 25 anos pulou os muros de uma escola em Blumenau e, com uma machadinha, matou quatro crianças entre 04 e 07 anos que brincavam no parquinho da escola.

Vemos o inferno se rasgar diante de nós quando a morte atravessa o corpo de uma criança que está distraída na balança de um parquinho, com a faca na mão, ou com o laço azul na cabeça. Se ela é a testemunha, a vítima ou a assassina no cenário de horror, é só de dor que se trata. Dor em estado bruto e brutal. Dor colossal, fracasso, derrota máxima.

Não é mais possível dizer que é apenas uma bexiga furada. É nossa humanidade estourando inteira com a ideia de que escolas passam a ser locais em que crianças podem matar e serem mortas. 

A morte matada de uma professora e dos pedacinhos de gente abraçadeiros, coleiros, saltitantes, de nariz escorrendo e olhos saborosos dentro do espaço escolar nos convoca para o anúncio de outra morte: a morte da ideia de que a educação só vale a pena enquanto afirmação da liberdade.

Os corpos ainda nem foram suficientemente sepultados e o medo, esse afeto político reacionário por excelência, berra aos quatro cantos: as escolas precisam de muros mais altos, cercas elétricas, detector de metais, policiais em ronda. Ronda dentro da escola? Fora da escola? Essa é a discussão.

Tratemos, pois, crianças, como criminosos em potencial. Professores como sujeitos em perigo. O parquinho não é mais o espaço lúdico, do encontro e da partilha, do tênis cheio de areia, do baldinho que o amiguinho não quer dividir. Ensinemos nossas crianças que, agora, é onde podem morrer. Nos grupos de rede social viralizam dicas de como ensinar crianças a fugir e a se defender de assassinos enquanto estão ocupadas fazendo castelos de areia.

Há cerca de um mês, em escuta social feita pelo Ministério Público, na região de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, os microfones foram quase monopolizados por adolescentes da idade do menino que esfaqueou a professora na capital de São Paulo: “pensem na nossa saúde mental”, eles pediram. 

– Eles chegam na escola com dor de cabeça, dor de barriga e uma tristeza infinita -, emendou uma professora.

É preciso escutar a agonia dos estudantes, dos professores, das escolas e dessa palavra em morte: educação!

Não há quem não defenda “a educação”, palavra fácil e sonora, que cabe na boca de qualquer um.  Mas é preciso entender de que educação cada um fala.

Estamos, todas e todos defendendo a educação freiriana, libertária em essência, que enxerga o homem como ser de relação (posição reflexiva), e não apenas ser de contatos (posição reflexa), que não apenas está NO mundo, mas está COM o mundo, potente, desejante e implicado em seu contínuo movimento histórico e cultural, herdando experiências e, a partir delas, criando e recriando realidades, discernindo e transcendendo para além do que é posto? (1)

Ou estamos apenas enxergando a escola como espaço de domesticação e normatização. Espaço de padronização de sujeitos e desejos, em que todos aprendem a obedecer e são eficientemente treinados para comporem um gado cumpridor de metas de mercado às custas de muita solidão e antidepressivo?

Estamos, todas e todos, falando da escola antirracista que abandona a lógica colonial e deixa de domesticar corpos? Como ensina genialmente o historiador Simas, estamos na defesa da escola que liberta, transgride e permite a invenção de novas formas de (re)existência, ou estamos bradando pela escola que domestica os corpos, vistos ora como “corpo pecado” (na lógica da moral judaico-cristã), ora como o “corpo ferramenta” (na lógica do trabalho), ora como o “corpo da mulher colonial” (na lógica do estupro), ou “corpo do homem reprodutor” (na lógica da virilidade)? (2)

Estamos desconstruindo maneiras de ensinar eurocêntricas que, como ensinou Frantz Fanon, enxergam os saberes africanos como inferiores, destituídos de valor e beleza sendo, na melhor das hipóteses, saberes folclorizados e pitorescos?

Desde sempre se disputou o que é educação e, nos últimos anos, o jogo extrapolou os limites do tosco e perverso. 

A educação libertária de Paulo Freire sempre foi luta, furos e frestas mas, infelizmente, nunca foi uma realidade hegemônica nas escolas.

Nos últimos anos, para piorar, e extrema direita foi competente em ocupar a rede social e achou terreno fértil em mentes tristes e acostumadas com a repressão dos corpos. O medo imposto com os “kit gays” imaginários, os banheiros unissex em que crianças virariam trans, a ideia disseminada de que os professores, comunistas, estavam a postos nas escolas bradando pela ruína das famílias e que Paulo Freire era um sujeito execrável, responsável por todas as mazelas da educação pública, levou manadas de cristãos, em nome do slogan fascista “Deus, pátria e família”, a defender o projeto de educação – morte.

E, aí, a cartada final: se a padronização e a normatização sufocam, se o individualismo neoliberal asfixiou as singularidades e matou os laços sociais, se não temos mais vontade de acordar, todos os dias, nessa sociedade do cansaço, em vez de lutarmos por novas formas de estar no mundo e em relação com os outros, criemos comunidades baseadas no ódio. Façamos, dele, o motor da diferença. Sejamos bons em alguma coisa, ainda que seja na tarefa de matar. Matemos! Em vez de destruir a sociedade que massifica, sejamos alguém nela. Se a escola sufoca, se não escuta ou acolhe, se a escola é o espaço do medo e padronagem, existamos, ao menos, pela dor, pelo sangue, pelo impensável do horror.  Se não podemos matar a dor, sejamos a dor em estado bruto. Sejamos.

Pasmos, impotentes e patéticos, diante do jovem que mata a professora e da criança de 04 anos que vai ao velório do amigo com o desenho de dinossauro que lhe fez, o Ministério Público, os governos e a sociedade em geral podem mais que ceder à ilusão de que há muros de concreto, detector de metais ou policiais que podem nos salvar deste imenso vazio subjetivo e social a que nos condenam há tempos.

 É tempo de ressurreição bradam os cristãos. Pois, então, vamos ressuscitar a escola que nunca nasceu de verdade e que, mesmo assim, não cansam de matar no seu sonho. A escola descolonizadora dos corpos, espaço de libertação e criação de novas possibilidades de vida. Aquela que não é escola se não está escancarada em portas e ouvidos para as ruas da cidade e para cada sujeito singular que por ela passe. Vamos ressuscitar todas as professoras que morreram com Elizabeth, todas as mães que perderam seus filhos abraçadeiros, todos os jovens que estão solitários, em profundezas virtuais de comunidades de desalento, apostando na dor para serem alguém.

Ressuscitemos a criança que conhece mais a morte que a bexiga estourada. A criança que nunca mais seremos para, ressuscitando em  Maralívia, Bernardos e Elizabeth, possamos reverter o curso da morte. Vamos em ressurreição, transgressivos, amorosos e enlaçados, esperançarmos incansavelmente uma educação viva e libertária.

CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL

Promotora de Justiça do MPSP.

Integrante do Coletivo Transforma Ministério Público.

BIBLIOGRAFIA: 

(1) Educação como prática da liberdade – Paulo Freire – editora Paz e Terra. 46ª edição (2) O encontro entre Walter Benjamin e o Caboclo da Pedra Preta: o espaço escolar a contrapelo. Aula dada na FGV – Fundação Getúlio Vargas. L.A. Simas.https://profqui.iq.ufrj.br/walter-benjamin-e-o-caboclo-da-pedra-preta-sobre-o-espaco-escolar-por-luiz-antonio-simas/