Por Gustavo Roberto Costa no Conjur
A promulgação da Lei n. 14.532/2023, pelo Presidente Lula, durante a posse de novas ministras, foi encarada por alguns como um passo à frente no combate ao racismo.
Uma das principais inovações da lei foi tipificar como “crime de racismo” a chamada “injúria racial”, agora presente na lei que “define os crimes de preconceito de raça ou cor” (Lei n. 7.716/1989). Com a alteração, para a conduta de injuriar alguém, “em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”, é prevista pena de 2 a 5 anos de reclusão, aumentando-se a pena de metade se o crime for praticado em concurso de pessoas (art. 2º e parágrafo 1º).
As penas previstas na Lei n. 7.716/1989 serão de reclusão de 2 a 5 anos se os crimes forem cometidos em “contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público” (art. 20, parágrafo 2º-A, I). Devem ser “aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade” se os crimes “ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação” (art. 20-A) e de “um terço à metade” quando praticados por funcionário público (art. 20-B). Houve outras alterações, as quais, pela brevidade desta reflexão, ficarão para outra oportunidade.
Chama a atenção, inicialmente, a desproporção das penas cominadas pela nova lei com relação àquelas dos demais crimes contra a honra. Para a calúnia, a pena é de detenção, de seis meses a dois anos, para a difamação, detenção de três meses a um ano, e para a injúria comum, detenção de um a seis meses (artigos 138, 139 e 140 do Código Penal).
Veja-se que tendo o crime de injúria racial pena mínima de dois anos – podendo ser aumentada quando praticada em concurso de pessoas, em locais públicos ou por funcionário público –, a pena ao caso concreto poderá ser superior àquela aplicada para casos de lesão corporal gravíssima (art. 129, parágrafo 2º, CP). A mensagem que o legislador passa é a seguinte: se você não gosta de um negro, arranque a perna dele (lesão corporal gravíssima – art. 129, parágrafo 2º, III, do CP) ao invés de injuriá-lo, que sua pena será inferior. Não espere coerência da legislação penal.
Caso o juiz tenha dúvidas na interpretação da lei, deverá “considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência” (art. 20-C).
O que “pode causar constrangimento, humilhação, vergonha ou exposição indevida”? O que é que “não se dispensaria a outros grupos em razão de cor, etnia, religião ou procedência”? É impossível se ter uma resposta minimante coerente. Provavelmente, haverá uma miríade de interpretações, não raro díspares umas das outras, sobre o que esse dispositivo quer dizer. Como esperar segurança jurídica de expressões tão subjetivas?
A meu ver, trata-se de uma violação ao princípio da legalidade, em sua vertente da taxatividade penal. Para o professor Juarez Cirino dos Santos, “o princípio da legalidade pressupõe um mínimo de determinação das proibições ou comandos da lei penal – em geral conhecido como princípio da taxatividade, mas indissociável do princípio da legalidade, como exigência da certeza da lei”[1]. Dar poder em demasia ao intérprete é abrir caminho para arbitrariedades – algo nada incomum para o judiciário brasileiro.
Mas o que chama mesmo a atenção é a euforia de grupos que se colocam no chamado “campo progressista”, que comemoram uma lei que vem para “endurecer o sistema penal”. A promulgação da lei na posse das ministras da “igualdade racial” e dos “povos originários” dá bem a dimensão da crença que (infelizmente) ainda se tem na efetividade do sistema penal para a solução de problemas sociais.
Já tive a oportunidade de manifestar, neste espaço, a incoerência de se defenderem pautas populares e, ao mesmo, defender o endurecimento penal[2]. No interior de uma sociedade capitalista (de dominação de classes), o sistema penal atua como uma engrenagem da superestrutura que assegura o funcionamento das relações sociais. É tão somente um instrumento de controle das classes subalternas, notadamente dos mais desfavorecidos (aqueles que nem para a reprodução do capital servem)[3]. Não há como esperar outra função do direito penal.
Lamentavelmente, não foram levadas a sério as preciosas lições da professora Maria Lúcia Karam, juíza aposentada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual, mais de vinte e cinco anos atrás, publicou memorável artigo intitulado “A esquerda punitiva”[4], escrito que deve ser eternamente lembrado por aqueles que se colocam como defensores das causas populares e dizem lutar por diretos de grupos desfavorecidos.
A professora, no trabalho, conceitua como ingenuidade a pretensão de que mecanismos extremamente opressores da classe trabalhadora sejam dirigidas a outro tipo de criminalidade (como a de colarinho branco, por exemplo). Critica ela a posição de setores da esquerda (talvez órfãos do stalinismo e de suas incontáveis arbitrariedades) que, abandonando sua visão garantista, passam a construir a imagem de “bons magistrados” àqueles que impõem “rigorosas penas” a determinados tipos de crimes, e que passam a apropriar-se de um “generalizado e inconsequente clamor persecutório”.
Destaca a digna jurista que a pena é pura e simples “manifestação de poder” (no caso do capitalismo, poder de classe), razão pela qual será sempre dirigida aos excluídos, àqueles que recebem o status de criminoso. A imposição de pena criminal para um ou outro membro das camadas superiores da sociedade serve “tão somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar seu papel de instrumento de manutenção e reprodução dos mecanismos de dominação”. A defesa dos direitos das mulheres, dos negros e do público LGBT, nesta seara, servirá para mascarar ainda mais a opressão operada pelo sistema penal.
Maria Lúcia Karam relembra que a reação punitiva, ao identificar o inimigo, o mau, o perigoso, sempre de forma arbitrária e com viés classista, acaba por dispensar a investigação das verdadeiras razões dos problemas sociais e de condutas consideradas negativas; torna invisíveis as fontes geradoras da criminalidade, além de fomentar e incentivar a crença em “desvios pessoais”, encobrindo e deixando “intocados os desvios estruturais que os alimentam”. Racista, portanto, seria o indivíduo, e não o sistema.
Como é que forças políticas voltadas (ao menos no discurso) à luta por transformações sociais podem fornecer sua completa adesão a um instrumento tão eficaz de manutenção de interesses e valores dominantes da sociedade que pretendem “transformar”, é a indagação principal da professora Maria Lúcia. Fortalecer o sistema penal é fortalecer o sistema capitalista neoliberal, excludente, individualista, concentrador e insensível. Nada mais que isso.
A causa da exclusão da maioria do povo negro no Brasil é a pobreza. O dinheiro que poderia ser investido em inclusão social é desviado para a rolagem e amortização da dívida pública. O sistema penal, então, aparece como instância apta a controlar a enorme população excluída do mercado de trabalho e de consumo (os negros são a grande maioria nos estabelecimentos prisionais e dos mortos pelas forças policiais).
É exatamente assim que funciona a “guerra às drogas”: a fim de combater a população pobre, criou-se a ideologia de que o “traficante” (invariavelmente negro e morador de favelas) é o maior inimigo da sociedade, a quem devem ser negados os mais elementares direitos fundamentais. A fim de “combater as drogas”, o Estado é dotado de um poder supremo sobre a vida dos cidadãos. O resultado: as drogas estão mais disponíveis que nunca, mas, ao mesmo tempo, a população pobre sofre um verdadeiro estado de exceção.
O poder continuará nas mãos daqueles que sempre o detiveram. Não é porque se promulgou uma lei que o poder de decisão passará aos desfavorecidos. Conceder mais poder aos responsáveis pela repressão da população não é conquistar direitos; é fortalecer mecanismos que impedem a população de se emancipar. O sistema penal não funcionará como querem os ativistas pelas causas populares; funcionará como sempre funcionou e como continuará funcionando enquanto o modelo social e econômico for o que vivemos neste momento.
Crer que esse sistema “combaterá o racismo” é uma ilusão total e completa. Difícil acreditar que a esquerda do espectro político, alimentada há tantos anos com as importantes reflexões da criminologia crítica, ainda comemore a expansão da tutela penal pelo Estado. O direito penal não entregou nenhuma de suas promessas. Em regra, só causou injustiças, encarceramento massivo, exclusão social, mortes e violência. Como acreditar que será capaz de “avançar” na luta contra o racismo?
Em suma, a criação de novos crimes e o aumento das penas surge como uma cortina de fumaça para as verdadeiras causas do racismo. O Estado dá uma suposta satisfação e fica autorizado a não investir em políticas públicas verdadeiramente eficazes de enfrentamento a essa mazela social. Entrementes, os principais atingidos pela ação do sistema penal serão os mesmos de sempre: os pobres, os negros, os favelados, os descartáveis.
O professor Juarez Cirino dos Santos comenta:
“(…) direito penal simbólico não teria função instrumental – ou seja, não existiria para ser efetivo –, mas teria função meramente política, através da criação de imagens ou de símbolos que atuariam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis. O crescente uso simbólico do direito penal teria por objetivo produzir uma dupla legitimação: a) legitimação do poder político, facilmente conversível em votos – o que explica, por exemplo, o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil; b) legitimação do direito penal, cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado, com as vantagens da redução ou, mesmo, da exclusão de garantias constitucionais como a liberdade, a igualdade, a presunção de inocência etc., cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de Direito em estado policial. O conceito de integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político do Estado”[5]
Enquanto a luta pela afirmação de direitos for a luta pelo aumento da repressão penal contra o povo, estaremos cada vez mais longe de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preconiza a Constituição Federal (art. 3º, I). A pauta dos setores populares deve ser o enfraquecimento do sistema penal, a diminuição do número de crimes e do tamanho das penas. E nunca o contrário.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Mestre em direito internacional pela Universidade Católica de Santos. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
[1] SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. 6. ed. – Curitiba: ICPC, 2014, p. 23-24.
[2] A defesa da democracia como justificativa para o estado de exceção. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-ago-24/gustavo-costa-defesa-democracia-estado-excecao Acesso em 27 jan. 2023.
Na oportunidade, defendemos:
“Por fim, questão que sempre retorna à pauta é sobre a chamada “esquerda punitiva” — aquela que acredita no Direito Penal como instrumento para a luta por liberdades democráticas. É assim com parte do movimento feminista, que crê no Direito Penal e na supressão de direitos para combater a violência contra a mulher, com alguns antirracistas e defensores da causa LGBT, que creem que processando criminalmente e prendendo pessoas por atos racistas e homofóbicos se pode avançar na conquista de direitos.
O Direito Penal, desde sua fundação como o conhecemos hoje, jamais cumpriu qualquer função para a qual se propôs. Prometeu acabar com a violência, mas só fomentou a violência. Prometeu acabar com as drogas, mas as drogas estão mais disponíveis que nunca. Prometeu acabar com a corrupção, e nem é preciso dizer em que estágio se encontra a corrupção no país e no mundo. Por que acreditar que ele é capaz de “defender a democracia”?
A única coisa que o Direito Penal é capaz de trazer são injustiças. Mais e mais pobres e negros sendo presos, acusados e condenados injustamente. O Direito Penal foi “inventado” para a perseguição das classes subalternas e de inimigos políticos. É incapaz, portanto, de exercer qualquer outra finalidade. É triste ver, até hoje, pessoas que se dizem progressistas que não tenham enxergado essa realidade. Para um Roberto Jefferson que é preso, milhares de desvalidos são jogados em masmorras muito piores.”
[3] Os abusos judiciais estão ficando cada vez piores: os casos da boate Kiss e de Ciro Gomes. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-dez-30/gustavo-costa-abusos-judiciais-cada-vez-piores Acesso em 27 jan. 2023.
“Engels e Kautsky, na obra “O socialismo jurídico”, expuseram meticulosamente a impossibilidade de emancipação da população trabalhadora, na sociedade capitalista, por meio do Direito. Para os grandes teóricos, o Direito, fruto da forma social da qual faz parte, só pode mantê-la tal como é — para isso existe —, e jamais poderá contrariar seus principais interesses. O Direito é, em última análise, a forma jurídica da sociedade capitalista.
Ilusões no Direito para a busca de uma sociedade justa e igualitária devem ser prontamente abandonadas.”
[4] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In Discursos sediciosos: crime direito e sociedade. Ano 1. Número 1. 1996, p. 79/81.
[5] SANTOS, Juarez Cirino. Política Criminal. Instituto de Criminologia e Política Criminal. Acesso em 27 jan. 2023.