Paris inspira, especialmente em abril. O diálogo final do filme Casablanca, de 1942, “Nós sempre teremos paris”, é uma das referências mais lembradas. Monumentos parisienses povoam o imaginário dos viajantes, reais ou virtuais, até porque como observou Fernando Pessoa, “Para viajar basta existir”.
Por ocasião do aniversário da Torre Eiffel, no dia 31 de março, o streming da Amazon Prime lançou um belo filme: Eiffel (França, 2020). Anunciada como drama, biografia e comédia, a produção francesa celebra os 133 anos do ícone parisiense.
O enredo de 20 milhões de euros, apimentado pela retomada de um antigo romance, é apresentado como “livremente inspirado em fatos reais”, apresentando uma bela caracterização da Paris do final do século XIX, em meio a conflitos econômicos, sociais e culturais. Na saga, o engenheiro Eiffel, que participara da obra da Estátua da Liberdade, é desafiado a produzir uma obra de destaque para a Exposição Mundial de Paris de 1889, que celebrava o centenário da Revolução Francesa.
O projeto da torre atraiu a ferrenha oposição da imprensa e de ícones culturais. Foi taxado de “monstro”, “ridícula torre” que mais parecia uma “chaminé de fábrica”, atribuído à “força criativa mercantil de um engenheiro mecânico” que pretendia tornar a cidade “irrevogavelmente feia”. O Vaticano teria protestado da humilhação diante da Catedral de Notre-Dame.
Relatos da construção apresentam números impressionantes: 10 mil toneladas de aço; 50 engenheiros; e 450 operários divididos entre a fábrica de estruturas e o canteiro de obras da torre de 300 metros de altura que conta com 1.665 degraus.
O filme aborda, de forma didática, as dificuldades e as soluções inovadoras para questões complexas de engenharia, como andaimes guindastes a vapor, numa região em que a presença d’água é um desafio. Interessante, também, a forma de protesto dos operários, em greve por melhores salários e por condições mais seguras de trabalho.
Numa das passagens, o então jovem engenheiro, exímio nadador, resgata um operário que despencara no rio Garona na obra da ponte em Bordeaux. Em seguida, protesta exigindo mais madeira para melhorar a segurança dos andaimes.
Enquanto isso, no Brasil, dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, iniciativa conjunta do MPT e da OIT, apontam números vergonhosos: 1 notificação de acidente a cada 50 segundos, com 1 morto no trabalho a cada 3h51. São mais de 6 milhões de notificações de acidentes de trabalho desde 2012, com mais de 23 mil mortos, considerando apenas trabalhadores com carteira assinada. Em 2021, foram mais de 571 mil acidentes, com 2.487 mortes no trabalho.
A proliferação das formas precárias de contratação, em especial depois da Reforma Trabalhista de 2017 – dado do TST e do DIEESE indicam que 80% dos acidentes de trabalho nos setores de maior risco atingem terceirizados – e a fragilização das normas de segurança, inclusive dos setores problemáticos como os frigoríficos indicam o agravamento do quadro.
A Reforma de 2017, embalada pelo falacioso argumento de que a “modernização” e a “flexibilização” das regras de proteção gerariam empregos, trouxe um dispositivo que sintetiza o estranhamento com o conjunto do ordenamento. A CLT incorporou a afirmação de que as regras sobre duração do trabalho e intervalos não deveriam ser consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho. O parágrafo, desconectado da realidade, da ciência e da epidemiologia, é incompatível com a Constituição e com a definição de saúde da OMS e da Lei Orgânica da Saúde.
Bem antes de Eiffel, a preocupação com a segurança dos trabalhadores foi estudada pelo italiano Bernardino Ramazzini que, em 1700, publicou livro abordando os riscos do meio ambiente do trabalho para a saúde e a vida dos operários. O alerta segue sendo atual. Um francês dos nossos dias, Christophe Dejours – especialista em medicina do trabalho – indica que o trabalho é regido por relações essencialmente desiguais que “pode tornar-se um verdadeiro laboratório de experimentação e aprendizado da injustiça e da iniquidade”, para os seus beneficiários e/ou vítimas.
O dia 28 de abril é dedicado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT à Memória das Vítimas de Trabalho e de Doenças Ocupacionais (no Brasil, a data é considerada o dia nacional do tema pela Lei nº 11.121/2005). Há alguns anos articula-se a campanha “Abril Verde”, visando à conscientização massiva a respeito da necessidade de termos ambientes de trabalho mais protegidos. O Ministério Público do Trabalho participa ativamente deste movimento, junto com parceiros e atores sociais para propagar a mensagem quanto à importância da prevenção dos acidentes de trabalho.
O tempo deu razão ao cuidadoso engenheiro Eiffel, responsável pela obra que em 2 nos de construção não teria registrado nenhuma morte. A defesa do projeto junto às autoridades e aos financiadores concretizou a obra que “deveria ser útil, democrática e duradoura”, resultando na torre que já recebeu mais de 300 milhões de visitantes e está entre os monumentos mais visitados do mundo.
*Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP