Por Élder Ximenes Filho no GGN
Um passou a vida praticando o comedimento planejado e a organização extrema como caminhos para vitórias militares e diplomáticas. Apenas combatia quando estritamente necessário e estudava sem parar. Decaptou duas concubinas do rei para forçar às demais a prestarem atenção aos exercícios militares (assim provou à Corte que até as mulheres poderiam lutar numa guerra, seguindo seus princípios). Afirmava nada querer para si, apenas bem servir ao reino. Dizia amar a paz.
O outro buscou o risco e obteve a fama: como não pôde servir na 1ª Guerra, juntou-se à Cruz Vermelha (ferido e condecorado); correspondente jornalístico na Guerra Civil Espanhola e na 2ª Grande (adoecido e condecorado); simpatizante do socialismo; vigia voluntário contra submarinos alemães na costa de Cuba; toureiro amador; dois acidentes de avião em dois dias seguidos; esmurrou Orson Wells; quatro casamentos e inúmeras amantes; brigas em bares; alcoolismo; suicídio com a espingarda favorita.
Um mítico general chinês do séc. VI antes da era comum. Talvez alguém apenas tenha compilado outros escritos de estratégia misturados com a filosofia taoista. Sua única “A Arte da Guerra” pode ser ouvido em duas ou oito horas, dependendo da versão do audiolivro.
Um laureado do Nobel e do Pulitzer, com vida amplamente documentada. Sete romances, seis coletâneas de contos, dois livros documentais e inúmeras reportagens. Seu “Por Quem Os Sinos Dobram” dura umas vinte horas nos fones.
O que têm em comum? Normalmente, nada. Mas além dos textos e da vida, há o contexto e o mercado! Tudodevidamente enredado na internet, cada obra tanto desvirtua-se como customiza-se (140 ou 280 toques, tanto faz!) – ao sabor dos teclados e algoritmos.Ambos reviram-se nas covas.
Sun Tzu virou clássico dos coaches em administração de empresas e, de apostila a cartoon, suas frases viraram mantras para quem faz apresentações de projetos e disputa cargos: “Se você conhece o inimigo e a si mesmo, não precisa temer cem batalhas”; “Governar muitos ou poucos é igual: organização é a questão”; “Nunca a guerra longa beneficia qualquer dos povos”; “Um exército preparado ganha primeiro e luta depois, um despreparado luta primeiro e tenta a vitória depois”; “Ordem ou caos dependem da organização, covardia ou coragem da vontade, força ou fraqueza da preparação”; “O bom guerreiro atrai o inimigo e não inicia o combate”; “Examinar o favorável torna o plano executável, analisar o desfavorável previne os imprevistos”; “Seja diplomático nas fronteiras, faça aliados”; “Trate bem os adversários do inimigo, pois serão aliados”; “O uso de espiões é essencial na guerra e os exércitos dependem disto”… Uma das bíblias dos meritocratas e individualistas.
Hemingway tem público mais seleto e, teoricamente, melhor leitor. Pululam as citações nos vlogs e webinários: “A maneira de tornar as pessoas dignas de confiança é confiar nelas”; “Quando as pessoas falarem, ouça completamente. Não fique pensando no que você vai dizer.”; “o homem não foi feito para a derrota… Um homem pode ser destruído, mas não derrotado.”; “Coragem é graça sob pressão.”; “O mundo quebra a todos e depois muitos ficam fortes nos lugares quebrados.”; “Esqueça sua tragédia pessoal. Somos todos putos desde o início e você especialmente tem que se machucar pra caramba antes de poder escrever a sério. Mas quando você se machucar, use-o – não engane com isso. Seja tão fiel a isso quanto um cientista – mas não pense que nada tem importância porque acontece com você ou alguém que pertença a você.”; “Sempre faça sóbrio o que você disse que faria bêbado”; “Para escrever sobre a vida, primeiro você deve vivê-la.”…
Todavia, nos últimos anos, a mais famosa citação tem sido: “– Quem está na trincheira ao teu lado? – E isto importa? – Mais do que a própria guerra”. É exatamente aqui que chegamos aos problemas, pois Hemingway fez literatura, não ciência política! Ele também fez jornalismo sério e ativamente enfrentou franquistas e nazifascistas.
PROBLEMA 1 (literário): isto não existe no original do romance “Adeus às Armas” e é discutível se caberia mesmo numa adaptação livre. Tudo bem, vamos pesquisar – pois é lindo, seja de quem for…
PROBLEMA 2 (político): as pessoas do campo da esquerda vivem introjetando o raciocínio assim lavrado “em fios de ouro na menina dos olhos”, como dizem nas “Mil e Uma Noites”. A citação virou um mantra tal como os dos coaches. Exigem-se certificados de coerência imutável desde os cueiros. É preciso passar por algum ideal “medidor de democratas” ou “comunistômetro” para aceitar aquele ou aquela no grupo ou na aliança partidária. Ora, se o caráter de quem se dispõe a lutar conosco é mais importante do que a luta em comum, é porque devemos valorar as pessoas agora mais do que os objetivos depois. É claro que este exagero tende a produzir duas coisas: um imediatismo míope e seguidos “rachas” sucessivos em possíveis alianças.
A isto chamo “Estratégia Scooby-Doo”: quando em perigo, vamos nos dividir. Assim o monstro consegue apanhar um a um. Nos filmes de terror os primeiros mutilados são personagens jovens descartáveis, muitas vezes negros (reparem!). Lembremos dos movimentos clandestinos contra a última ditadura civil-militar, que se tornaram violentos após o alastramento da repressão e das torturas. Foram brutalmente reprimidos de fora para dentro e também (mesmo compartilhando as mesmas trincheiras-aparelhos) acabavam desentendendo-se e dividindo-se em outros menores até a desaparição.
Ora, indago a quem lê: quando estiver se afogando e o Demônio jogar-lhe uma bóia, você recusará? Notem bem que não recomendo, depois de salvar-se, que alguém vá abraçar-se com o Capeta. Falo do instinto de autopreservação, seguido do bom senso, alimentando a lógica e produzindo a história…. TUDO aconselha que, estando sob risco existencial, é necessário aceitar a ajuda. Por mais incômoda e triste que seja. Por mais nojenta até…. Manter-se vivo e na luta é mais importante do que sucumbir (real ou metaforicamente) e ainda por cima deixar o inimigo triunfar. Isto não significa fugir nem tornar-se outra pessoa, abandonando princípios. Houve alianças iniciais entre Bolcheviques e Mencheviques; entre Mao Zedong e Chiang Kai-shek…
É óbvio que num país de histórico golpista (de Deodoro a Lacerda a Castelo Branco a Temer) é até provável que haja traições entre pessoas de uma mesma “chapa”. Os Vices para o Brasil são os idos de março para César: é preciso tomar cuidado, senão.…
Mas o desastre mesmo ocorre exatamente onde realmente movimenta-se a história. Não nos palácios ou sedes partidárias – mas nas ruas, locais de trabalho, sindicatos, associações e igrejas… Em quaisquer coletivos onde pessoas conversem sobre como agir para evitar a barbárie neofascista e presevar o mínimo de garantias aos Direitos Humanos. Nestes lugares também impera a interminável problematização sobre o agora imediato somado às desconfianças divisionistas. Até mesmo eventuais projetos pessoais de quem almeje a fama são menos danosos do que a ausência de projetos coletivos. O que vemos são bolhas dentro de bolhas, cada qual tratando de seu microcosmo e de suas lutas isoladas – cada vez mais incomunicáveis e mais frágeis ante o inimigo maior.
Estamos enfrentando uma onda mundial que vai além do conservadorismo. Eis que a pessoa conservadora não admite perder privilégios, mas consegue refletir sobre a sociedade e trabalhar por algum projeto que não lhe pareça necessariamente destrutivo. O conservador consegue aceitar os ditames da ciência. O alarmante é a onda de regressismo totalitário, ético e teocrático. É a movimentação consertada em prol da volta do passado idealizado por mentes que almejam a destruição dos diferentes. Tudo com foco na manipulação técnica das emoções, a golpes de fake news e propagandas de ódio direcionadas por algoritmos para os alvos exatos jamais verem-se como o que são: pessoas irmanadas pela classe e pela condição humana de trabalhadores e trabalhadoras.
O modo de produção capitalista, como sempre, continua produzindo duas crises cíclicas. Continua produzindo acumulações de riquezas infinitas nas mãos de cada vez menos, enquanto espalha a miséria para o resto. Vejam as estatísticas. Vejam que na recessão da pandemia os bilionários enriqueceram. Neste mesmo mundo, o último relatório da ONU sobre Segurança Alimentar (meados de 2021) mostrou que mais pessoas caíram ao nível da pobreza estrema em 2020 do que nos cinco anos anteriores juntos. Neste ano foram 810 milhões de seres humanos passando fome!
Temos Prêmios Nobéis e magnatas defendendo a renda mínima universal como forma de garantir a vida das multidões de miseráveis e inimpregáveis – além de manter, talvez, esta parte inferior do mercado consumidor funcionando. Isto sequer seria “entregar os anéis”, pois não mais se vislumbra a ameaça contra “os dedos” dos poderosos proprietários. São migalhas apenas, embora com respeitável embalagem de solidariedade. Todavia, não nos enganemos: a caridade acabará no instante em que a contabilidade demonstrar que dá mais lucro cortar a renda universal e gastar com a manutenção de guetos e a guarda de fronteiras. A indústria bélica jamais descansa. É a real ameaça da distopia de uma sociedade globalizada do controle, primeiro mediante celulares e aplicativos e depois mediante identificações faciais compulsórias e drones armados (a imaginação é o limite).
Ao alcance dos dedos está a literatura mundial. Os livros que fazem a crítica radical da economia política e da formação social – cuidando do “macro”. Os manuais de estratégia (como Sun Tzu, Guevara ou Mariguella) – versando o “micro”. Por dentro de tudo e entre uma coisa e outra, a experiência concreta das relações sociais, nossos medos, afetos e sonhos – que são instrumentos para a busca da possível verdade e também a massa do futuro em construção (pois o movimento nunca cessa).
E então? Vamos aceitar que um cachorro de fantasia, falando uma citação suspeita, saiba mais do que um general chinês?
*Élder Ximenes Filho é mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP