Arquivos Diários : março 22nd, 2022

DEVEMOS CONDENAR A RÚSSIA PELA INVASÃO DA UCRÂNIA?

Voltemos um pouco no tempo para tentar entender a gênese do conflito.

Por Régis Richael Primo da Silva no GGN

1. Compreender, antes de julgar

A guerra é o maior fracasso da humanidade e ninguém em sã consciência pode deixar de condená-la. Não há como apoiar a destruição de vidas humanas, a separação de famílias e os dramas dos refugiados que a guerra acarreta. A operação militar russa que deu início a mais uma guerra neste século ainda tem um agravante. Ela nos traz de volta a ameaça nuclear e a sensação de impotência diante das grandes disputas geopolíticas pelo poder. E nos traz também uma pergunta incômoda: quem devemos condenar pela guerra?

Todas as ações humanas que atingem outros seres vivos estão sujeitas a julgamento moral. É impossível fugir da dimensão moral que acompanha a condição humana. E isso vale também para as ações dos países e de seus líderes. Não conseguimos escapar às noções de certo e errado, de justo e injusto, de culpado e inocente. O filósofo italiano Norberto Bobbio advertia, contudo, que primeiro é preciso compreender para só depois julgar: não podemos julgar as pessoas (e as nações) a partir do que elas deveriam ter feito se não sabemos exatamente o que elas fizeram e por que fizeram. A mídia hegemônica ocidental já elegeu, porém, seu vilão da história: a culpada é a Rússia, e o motivo da guerra é a aventura expansionista de Vladimir Putin, cujo objetivo é o de recuperar os territórios perdidos com a dissolução da União Soviética em 1991 para instituir um novo império russo. Mas será que essa afirmação é verdadeira mesmo? Voltemos um pouco no tempo para tentar entender a gênese do conflito.

2. Alguns fatos que não podem ser ignorados

Mal terminada a segunda guerra, vencida pelos aliados e com um papel fundamental da URSS nessa vitória, a Alemanha foi separada ao meio e o mundo dividido em dois blocos políticos e geográficos. Simplificando bastante, pode-se dizer que a Alemanha Oriental e o leste da Europa passaram a constituir a zona de influência soviética, e a Alemanha Ocidental e o oeste da Europa a zona de influência estadunidense. Iniciava-se então a guerra fria e já em 1949 foi fundada a OTAN, aliança militar criada com o objetivo de defesa contra a União Soviética e o bloco socialista. Inicialmente, integravam a OTAN 12 países: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Itália, Dinamarca, Noruega, Luxemburgo, Islândia, Bélgica, Holanda e Portugal. Em 1955, após a derrota na guerra da Coreia, os EUA promovem o rearmamento massivo e a remilitarização da Alemanha Ocidental e a incorporam à OTAN[1]. Em resposta, nesse mesmo ano a URSS institui o Pacto de Varsóvia, aliança militar do bloco soviético, do qual faziam parte a União Soviética, a Alemanha Oriental, a Bulgária, a Hungria, a Polônia, a Tchecoslováquia, a Romênia e a Albânia (que saiu do pacto em 1968). Durante a guerra fria foram ainda incorporadas à OTAN a Grécia, a Turquia e a Espanha.

Saltemos no tempo agora para o ano de 1989. Cai o muro de Berlim. Os países do Leste Europeu abandonam o socialismo e transformam-se em países capitalistas. Em 25 de fevereiro de 1991, é assinado o acordo de dissolução do Pacto de Varsóvia. E em 31/12/1991, dissolve-se, por fim, a União Soviética e seu regime socialista, e ganham independência a Rússia, a Ucrânia, a Lituânia, a Letônia, a Estônia, a Bielorrússia, a Geórgia, a Moldávia, a Armênia, o Azerbaijão, o Cazaquistão, o Turcomenistão, o Tajiquistão, o Uzbequistão e o Quirguistão. A partir dessa sucessão de eventos, o leitor já pode começar sua primeira reflexão: a OTAN nasceu como uma aliança militar cuja finalidade era a defesa contra o bloco soviético e o avanço do socialismo. Com o fim da União Soviética e diante do colapso do socialismo nos países do leste europeu e do nascimento de uma Rússia capitalista, a OTAN não perdera sua razão de existir e deveria, assim, ser extinta?

Não foi isso, porém, o que aconteceu. Já nas discussões diplomáticas durante o processo de reunificação da Alemanha, iniciado a partir de 1989, um sistema de segurança eurasiano de Lisboa a Vladivostok, sem blocos militares, foi rejeitado. E depois de muitas conversas e promessas, Gorbachev, então líder da URSS, foi convencido a aceitar a permanência da OTAN na Alemanha reunificada, desde que não houvesse expansão para o leste. Muitos líderes mundiais participaram dessas conversas diplomáticas e garantiram que a OTAN não se expandiria para o leste. Como lembra Richard Sakwa, professor de política russa e europeia, “todos os documentos do Arquivo de Segurança Nacional publicados em 2017 mostram que dezenas de líderes ocidentais disseram que a OTAN não se expandiria além da Alemanha unificada”[2]. O então Secretário de Estado dos EUA James Baker resumiu assim essa promessa: “não apenas para a União Soviética, mas também para outros países europeus, é importante ter garantias de que, se os Estados Unidos mantiverem sua presença na Alemanha no âmbito da OTAN, nem um centímetro da jurisdição militar atual da OTAN se expandirá na direção oriental”[3].

No entanto, em 1997, quando Boris Iéltsin exercia a Presidência da Rússia, é promulgado o Ato Fundador das Relações de Cooperação entre a Otan e a Rússia. Esse Ato previu a incorporação de novos membros à OTAN e ao mesmo tempo proibiu a implantação de armas nucleares no território dos novos membros, além da construção de estruturas militares permanentes no leste. A Rússia, na verdade, sonhava em fazer parte do grupo das nações do ocidente. Porém, em 1999, quem ingressam na OTAN são Hungria, Polônia e República Tcheca. Nesse mesmo ano, a OTAN comete sua primeira violação ao direito internacional no pós-guerra fria: sem o aval da ONU, a OTAN entra em guerra contra a Iugoslávia, impedindo a Rússia de usar seu direito de veto no Conselho de Segurança. Aos poucos a Rússia começa a desconfiar de que sofrera um duplo golpe: a perda de sua influência na Europa Central e Oriental e sua exclusão do grupo de nações do ocidente. Julga-se tratada não como uma parceira leal do ocidente por sua contribuição para o fim do sistema comunista, mas como a grande perdedora da guerra fria. Percebe-se em Moscou que “a OTAN, longe de existir em parceria com a Rússia ou mesmo apesar da Rússia, parecia existir contra ela”[4].

Apesar disso, ao subir ao poder em 2000, Vladimir Putin acena aos EUA com vários gestos de boa vontade. Aceita a instalação provisória de bases norte-americanas na Ásia Central, ordena o fechamento de bases herdadas da URSS em Cuba e a retirada de soldados russos do Kosovo. Os EUA, em contrapartida, anunciam sua intenção de instalar partes de seu escudo antimíssil na Europa Ocidental (contrariando o Ato Fundador Rússia-OTAN); em 2001, retiram-se do tratado de mísseis antibalísticos; e em 2004, invadem o Iraque, também sem a autorização da ONU, e com a oposição da Rússia, da Alemanha e da França. Ainda em 2004 acontece a segunda expansão da OTAN em direção às fronteiras russas. Nela ingressam três ex-repúblicas soviéticas, Lituânia, Letônia e Estônia, além da Bulgária, Eslováquia e Eslovênia. Por fim, em 2006, começam as negociações para a entrada da Geórgia e da Ucrânia na OTAN.

Diante desses desdobramentos, Putin faz um duro discurso na Conferência sobre Segurança, realizada em Munique em 2007[5]. Lembra o caráter indivisível da segurança global, citando a afirmação do Presidente americano Franklin D. Roosevelt, segundo a qual “a segurança para um é a segurança para todos”. Critica o mundo unipolar sob a hegemonia dos EUA e suas ações militares unilaterais e violadoras do direito internacional. Diz que é preciso pensar seriamente sobre um novo desenho para a arquitetura da segurança global e chama a atenção para a necessidade de buscar um equilíbrio entre os interesses de todos os participantes do diálogo internacional. Putin critica ainda os planos dos EUA de expandir certos componentes de seus sistemas antimísseis para a Europa, alertando que isso pode gerar uma nova corrida armamentista. E, por fim, denuncia que a expansão da OTAN não se relaciona com a modernização da aliança ocidental e nem com a segurança da Europa. Para ele, essa expansão representa uma grave provocação que reduz o nível de confiança mútua entre a Rússia e os EUA.

Retórico ou não, o fato é que o discurso de Putin não foi levado a sério e, em 2008, a OTAN convida formalmente a Geórgia e a Ucrânia para fazer parte da aliança do Atlântico Norte. Ao mesmo tempo, os EUA praticam nova violação ao direito internacional, insistindo no reconhecimento da independência do Kosovo, que era agora uma província sérvia. O ressentimento russo gerado por tudo isso fez com que a Rússia interviesse militarmente no conflito na Geórgia em 2008, e reconhecesse, em seguida, a independência das repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia. A resposta dos EUA foi anunciar, em 2009, um novo modelo de defesa antimíssil na Europa, mais inteligente e rápido, e incorporar à OTAN mais 2 países: Croácia e Albânia. É a terceira expansão da OTAN em direção às fronteiras russas.

O agravamento da crise OTAN-Rússia acontece, porém, com o golpe dado na Ucrânia em 2014, quando um Presidente amigável à Rússia foi deposto e colocado em seu lugar um Primeiro-Ministro favorável aos EUA e à entrada da Ucrânia na OTAN. A região da Crimeia, porém, resiste ao golpe. De maioria russa, ela declara sua independência e manifesta o desejo de juntar-se à Rússia. Após um referendo amplamente favorável à incorporação (embora contestado pela Ucrânia), a Rússia envia tropas à Crimeia e a anexa. Na região do Donbass, no leste da Ucrânia, há também resistência ao golpe, e as províncias de Donestk e Lugansk, de origem russa, também declaram sua independência. Uma guerra civil começa e o exército ucraniano bombardeia as duas repúblicas separatistas. Em setembro de 2014, decreta-se uma trégua e iniciam-se as negociações que culminarão nos Acordos de Minsk. O segundo desses acordos, firmado entre Ucrânia e Rússia e referendado pela resolução 2022 do Conselho de Segurança da ONU em 17 de fevereiro de 2015, estabeleceu que as repúblicas de Donestsk e Lugansk continuariam a pertencer à Ucrânia, tendo, porém, direito a certa autonomia cultural e político-administrativa. Os acordos, contudo, não são cumpridos pela Ucrânia e, até o dia da intervenção militar russa, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos constatou que mais de 14 mil pessoas tinham sido mortas nas ações militares da Ucrânia contra Donestsk e Lugansk. Muitos denunciam a violência dos ultranacionalistas e dos grupos paramilitares ucranianos de extrema-direita contra a população de origem russa. Enquanto isso, a expansão da OTAN para o leste prossegue e, em 2017, Montenegro é integrado à OTAN.

Passam-se os anos. Em 2019, a Rand Corporation, ligada às agências de informações estadunidenses, publica o relatório Extending Russia[6], no qual orienta como os EUA poderiam explorar certas vulnerabilidades da Rússia a partir de provocações em vários campos da geopolítica. Trecho do prefácio do documento é revelador: “Analisamos uma série de medidas não violentas capazes de explorar as reais vulnerabilidades e ansiedades da Rússia como meio de pressionar o Exército e a economia da Rússia e o estatuto político do regime no país e no estrangeiro. Os passos que analisamos não teriam a defesa ou a dissuasão como objetivo principal, embora pudessem contribuir para ambas. Pelo contrário, tais passos são pensados como elementos de uma campanha concebida para desestabilizar o adversário, que forçariam a Rússia a competir em campos ou regiões onde os Estados Unidos têm vantagem competitiva, levando a Rússia a expandir-se militar ou economicamente, ou levando o regime a perder prestígio e influência nacional e/ou internacionalmente”. O documento deixa claro que as recomendações do relatório cobrem uma ampla gama de opções nos campos militar, econômico e político, indo desde modernização, poder e estratégia militar a sanções econômicas e diplomacia. Coincidência ou não, alegando violações russas, os EUA abandonam o Tratado de Armas Nucleares de Alcance Intermediário em 2019: abria-se então a porta para a OTAN instalar mísseis nucleares em vários pontos do continente europeu. Por fim, em 2020 acontece a quinta expansão da OTAN para o leste: a Macedônia do Norte (país situado na ex-Iugoslávia) é incorporada à aliança militar do Atlântico Norte.

Chegamos, enfim, a 2021. Joe Biden toma posse como Presidente dos EUA e o ingresso da Ucrânia na OTAN retorna à pauta estadunidense. A escalada do conflito avança. Em 17 de março, Biden faz uma declaração afirmando que Putin é um assassino. Em 24 de março, o Presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky declara que a Ucrânia vai recuperar a Crimeia. No dia seguinte, tropas russas são enviadas à zona da fronteira com a Ucrânia. Em entrevista coletiva, Putin volta a falar no princípio da indivisibilidade da segurança e diz que é inaceitável a ampliação da OTAN em direção às fronteiras russas. Na entrevista, ele lembra que não há armas russas perto das fronteiras estadunidenses e que são as armas da OTAN que avançam rumo às fronteiras russas. Em dezembro de 2021, a Rússia exige que os Acordos de Minsk voltem a ser cumpridos e que a Ucrânia renuncie a entrar na OTAN. O ocidente desconversa. Já em fevereiro de 2022, Zelensky reforça o pedido de ingresso da Ucrânia na OTAN e, na Conferência de Munique, menciona a possibilidade de a Ucrânia voltar a fabricar armas nucleares. Logo em seguida, a Rússia reconhece a independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk. E sob a justificativa de proteção das duas repúblicas contra os ataques contínuos do exército e das milícias neonazistas ucranianas, no dia 24 de fevereiro dá início à invasão russa.

3. Compreender, antes de julgar: uma análise a partir de estudiosos estadunidenses da política internacional

Antes de nos perguntarmos se a Rússia tinha justificativa para invadir a Ucrânia, convém examinar uma indagação normalmente feita em relação à incorporação da Ucrânia à OTAN: se a Ucrânia é uma nação soberana, ela não teria o direito de entrar na OTAN? Ela não teria o direito de decidir quem são seus aliados? John Mearsheimer, cientista político americano e estudioso da geopolítica das grandes potências[7], adverte, contudo, que, na política internacional, os países só levam em conta o direito internacional na medida em que isso sirva aos seus interesses estratégicos. Havendo conflito entre esses interesses e o direito internacional, os países privilegiam seus interesses estratégicos contra o direito internacional. Gostemos ou não, é assim que funciona a realpolik internacional. Por isso, segundo Mearsheimer, não faz muito sentido perguntar se a Rússia tem o direito a que a Ucrânia permaneça um Estado neutro, ou se a Ucrânia tem o direito a escolher os EUA e a OTAN como aliados. Para ele, o que importa perguntar é o que uma grande potência militar (como a Rússia) pode fazer quando se sente ameaçada: quando ameaçadas, grandes potências reagem. Essa é uma afirmação verdadeira, empiricamente comprovada. E um exemplo nos basta aqui. Quando, em novembro de 1961, os EUA instalaram mísseis nucleares na Turquia e na Itália, e no ano seguinte a União Soviética, em resposta, começou a construir bases e a instalar ogivas nucleares em Cuba, a Marinha americana fez um bloqueio naval a Cuba e por pouco não começa a terceira guerra mundial. Esse é o mundo real: o mundo do poder e não do direito. É por isso que na geopolítica dos poderosos, as ações baseadas na prudência importam mais do que as ações baseadas nos direitos. E quando estão em jogo conflitos contra potências nucleares, a paz só pode ser garantida pela prudência e pelo bom senso.

Indaguemo-nos então: os EUA agiram com prudência e bom senso ao insistirem na expansão da OTAN e, em especial, na entrada da Ucrânia nessa aliança militar? A Rússia tinha razões para sentir-se ameaçada? Consultemos o que alguns estrategistas da política americana pensam sobre o assunto. Em 1998, quando ainda se discutia a primeira expansão da OTAN, George Kennan, diplomata americano e responsável pela política de contenção da URSS durante a guerra fria, advertiu que essa expansão consistia em um “erro trágico”. Em suas palavras: “Eu acho que isso é um erro trágico. Não havia qualquer razão para isso. Ninguém estava ameaçando ninguém. (…) As pessoas não conseguem entender? Nossas diferenças na guerra fria eram com o regime comunista soviético. E agora nós estamos nos voltando contra as mesmas pessoas que fizeram a maior revolução não sangrenta da história para derrubar o regime soviético”[8]. Para Stephen Cohen, professor de estudos russos, a expansão da OTAN representa uma promessa não cumprida dos EUA. Embora a promessa não tenha se tornado um tratado formal, diz ele, os EUA empenharam sua palavra e depois a desonraram. Para a Rússia, diz Cohen, a expansão da OTAN significou sobretudo uma quebra de confiança[9].

Henry Kissinger, secretário de estado dos EUA entre 1973 e 1977, logo após o golpe na Ucrânia escreveu um artigo para o The Washington Post[10], no qual diz que a questão ucraniana não pode ser colocada como um confronto entre o Ocidente e o Oriente. Recomendando prudência, afirma que “se a Ucrânia quiser sobreviver e prosperar, ela não deve ser o posto avançado de um dos lados contra o outro – deve funcionar como uma ponte entre eles”. Chamando os EUA à razão, afirma que “o ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser apenas um país estrangeiro”. Kissinger lembra que “a história russa começou no que foi chamado de Kievan-Rus e que “algumas das batalhas mais importantes pela liberdade russa, começando com a Batalha de Poltava em 1709, foram travadas em solo ucraniano”. Defendendo que a demonização de Putin não é uma política, mas um “álibi para a ausência de uma”, Kissinger apela ao bom senso e diz que “os EUA precisam evitar tratar a Rússia como uma aberração que deve ser pacientemente ensinada sobre as regras de conduta estabelecidas por Washington”.

Em um debate recente[11], promovido já depois da invasão russa, John Mearsheimer relembra as duas crises que precipitaram a invasão da Ucrânia. A primeira delas foi causada por um golpe em fevereiro de 2014, apoiado pelos EUA, que destituiu do poder um Presidente eleito democraticamente e colocou em seu lugar um Primeiro-ministro aliado de Washington e hostil a Moscou. E a segunda crise foi provocada em dezembro de 2021, quando já não havia dúvida de que a Ucrânia estivesse se tornando um membro de fato da OTAN. Juridicamente, a OTAN não havia tomado qualquer providência concreta para integrar a Ucrânia a ela. Mas factualmente, a Ucrânia era armada e seus soldados treinados pela OTAN. Mearsheimer sustenta que a ideia segundo a qual Putin pretende instituir um novo império russo é simplesmente falsa. Ele relembra que antes do golpe na Ucrânia ninguém dizia que Putin era agressor e expansionista. Sua tese é a de que, com o golpe, os EUA provocaram a reação da Rússia e depois a acusaram de expansionismo para justificar a política de expansão da OTAN para contê-la. E desde 2017, ao armarem e treinarem o exército ucraniano, e ao mesmo tempo incentivarem a Ucrânia a acreditar que a OTAN interviria se houvesse uma invasão russa, os EUA adotaram uma política de provocação direta à Rússia, cujo objetivo era o de obter vantagens econômicas e políticas de uma reação militar russa.

Ao intervir nesse mesmo debate, Jack Matlock, diplomata americano nos governos Reagan e George Bush, afirma que, durante a guerra fria, a diplomacia americana costumava respeitar os líderes soviéticos, e que considera a estratégia atual de demonizar Putin equivocada e perigosa. Segundo ele, hoje há um grande esforço para difamar e insultar Putin e o povo russo, situação bastante perigosa.

Apesar de tudo isso, ainda há quem pense que a Rússia não tinha razão alguma para sentir-se ameaçada pela expansão da OTAN. Theodore Postol, professor de ciência, tecnologia e segurança internacional na Universidade de Massachusetts, pensa diferente. Em artigo publicado em 2019[12], ele afirma que a instalação do novo sistema americano de defesa antimísseis na Polônia e na Romênia gerou uma crise com a Rússia que culminou com a saída das duas potências, em 2019, do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares de Alcance Intermediário. Postol argumenta que as queixas russas procedem, pois esses sistemas “têm características que os tornam especialmente ameaçadores para a Rússia”. Segundo ele, os componentes desses sistemas são “capazes de lançar mísseis de cruzeiro e mísseis antiaéreos” e “isso cria uma ameaça de ataque curto à Rússia por meio de mísseis de cruzeiro convencionais ou com armas nucleares dos EUA que, de outra forma, seriam proibidas pelo Tratado”. Em uma entrevista dada ainda em 2015, Putin já havia protestado contra esse novo sistema de defesa antimísseis da OTAN, estacionado no leste europeu e carregado com mísseis de longo alcance. Postol disse ainda que o sistema de alarme precoce da Rússia não permite detectar, com precisão, um ataque nuclear a ela[13]. Segundo ele, essa inferioridade do sistema russo justifica a preocupação da Rússia com sua segurança, já que ela não tem capacidade para reagir a tempo a um ataque nuclear. Registre-se que hoje a Rússia está praticamente cercada. 14 países que antes pertenciam ao bloco soviético, pertencem agora à OTAN. E a pretensão da OTAN não é apenas incorporar a Ucrânia e a Geórgia. Parece nítido seu interesse também por Bielorrússia e Cazaquistão, aliados de Moscou.

4. O golpe de 2014 e a participação dos EUA

Ray Mcgovern, ex-analista da CIA nos tempos da guerra fria, com atuação na política externa relacionada à União Soviética, afirma que o golpe da praça Maidan é o golpe mais anunciado da história. 18 dias antes do golpe, foram vazados áudios de conversas mantidas entre a então subsecretária de Estado dos EUA Victoria Nuland e o embaixador de Washington na Ucrânia, Geoffrey Pyatt. Nessas conversas, os dois discutem sobre qual líder ucraniano deveria ser nomeado como Primeiro-ministro após a derrubada do presidente Viktor Yanukovych, aliado da Rússia. A preferência de Nuland é por Arseniy Yatsenyuk. Diz ela: “acho que Yats é o cara que tem a experiência econômica, a experiência de governo”[14]. Menos de um mês após o vazamento, Yatsenyuk é nomeado Primeiro-ministro da Ucrânia.

Já não é segredo o modo como os EUA patrocinam os golpes que lhes interessam. Antes, a CIA desempenhava diretamente esse papel por meio de golpes militares. O Brasil, o Chile, a Argentina e o Paraguai foram vítimas dessa atuação da CIA. Mas com os escândalos envolvendo a CIA, a estratégia americana mudou. Agora os EUA agem mediante ONGs, como o National Endowment for Democracy (NED), e suas táticas têm o objetivo de apresentar os golpes ao público como revoluções populares espontâneas. Agências como o NED financiam manifestantes, órgãos de mídia para manipular a percepção e as emoções do povo, e inclusive mercenários assassinos para realizar operações de bandeira falsa. No golpe de 2014 na Ucrânia, a própria Nuland foi filmada distribuindo biscoitos aos manifestantes ucranianos. E menos de duas semanas depois do vazamento de seus áudios, franco-atiradores, posicionados em um edifício controlado por um grupo neonazista ucraniano (o Setor Direito), atiraram em quase 100 pessoas, entre manifestantes e policiais. Embora os EUA tenham culpado partidários do governo da Ucrânia, outro áudio vazado revelou que o chefe de negócios estrangeiros da União Europeia e o ministro estoniano dos negócios acreditavam que as forças pró-EUA encenaram um ataque de bandeira falsa para precipitar o golpe. A mídia ocidental, porém, escondeu tudo isso. Apesar das provas mostrando que essa matança foi feita pela extrema-direita ucraniana, favorável ao golpe, o silêncio da mídia hegemônica foi absoluto. Embora Carl Gershman, presidente do NED, tenha escrito em 2013 que a Ucrânia era o “maior prêmio” para os EUA e um importante passo provisório para derrubar Putin, a versão oficial para o golpe de 2014 é insatisfação popular espontânea dos ucranianos em relação ao governo corrupto de Yanukovych. A mídia também silencia sobre a violência desde então praticada contra russos étnicos por milícias neonazistas ucranianas inspiradas por Stepan Bandera, nacionalista ucraniano que se aliou a Hitler na segunda guerra para combater o exército soviético. O caso mais conhecido de violência neonazista na Ucrânia pós-golpe foi o massacre de Odessa, ocorrido ainda em 2014, quando a Casa dos Sindicatos foi incendiada e dezenas de militantes antifascistas foram queimados vivos[15].

5. Por que a provocação e não a prudência?

Quem acompanha com atenção a política externa americana, sabe que a interferência dos EUA em outros países não tem por finalidade criar democracias, mas apenas consolidar zonas de influência que garantam vantagens econômicas para suas empresas e o acesso direto a matérias-primas. Agora não é diferente. Em sua guerra econômica contra a Rússia, os EUA têm grande interesse em substituí-la como os maiores exportadores de petróleo e gás para a Europa. Com esse objetivo em mente, os EUA lutaram com todas as suas armas para evitar a entrada em funcionamento do gasoduto Nord Stream 2, que tem a capacidade para entregar aos europeus cerca de 55 milhões de metros cúbicos anuais do gás natural russo. A aplicação de sanções econômicas à Rússia por invadir a Ucrânia era o meio mais eficaz para isso e deu certo: com o início da invasão, a certificação do gasoduto foi suspensa.

Mas não é só isso. A maior oligarquia estadunidense é o seu gigantesco complexo industrial militar, e são os interesses dessa poderosa indústria da guerra que melhor explicam a provocação americana à Rússia. Conforme esclarece o economista Michael Hudson, a base econômica do complexo militar estadunidense é o aluguel do monopólio que ele exerce na venda de armas para a OTAN, para exportadores de petróleo do Oriente Médio e para outros países[16]. Hudson afirma que o preço das ações das empresas militares americanas subiram imediatamente após a notícia do ataque russo. Os investidores reconheceram que a guerra acarretará um aumento dos lucros de monopólio da indústria americana da guerra. A escalada militar desencadeada em fevereiro, segundo Hudson, “promete aumentar a venda de armas para a OTAN e para outros aliados dos EUA”. A própria Alemanha concordou em aumentar seus gastos com armas para mais de 2% do PIB. Hudson comenta que “é mais realista ver a política econômica e externa dos EUA em termos do complexo industrial militar, do complexo de petróleo gás e mineração e do complexo bancário e imobiliário do que em termos da política de republicanos e democratas”. Para Hudson, “os principais senadores e representantes do Congresso americano não representam seus estados e distritos, mas os interesses econômicos e financeiros de seus principais contribuintes da campanha política”. Agora que a guerra está em andamento na Ucrânia, o interesse dessa fantástica oligarquia militar não é o de parar a guerra, mas o de prolongá-la, inundando a Ucrânia com armas e aumentando mais e mais seus lucros, enquanto enfraquece política e economicamente a Rússia e justifica, com a invasão russa, a necessidade da existência e da expansão da OTAN.

6. A Rússia tinha alguma alternativa razoável à invasão?

Alguns analistas têm dito que o argumento de invadir a Ucrânia para evitar mísseis nucleares da OTAN a 4 minutos de Moscou não procede. Afinal, as 3 ex-repúblicas soviéticas Lituânia, Letônia e Estônia também fazem parte da OTAN e estão tão próximas de Moscou quanto a Ucrânia. Sendo assim, se quisesse evitar o risco de mísseis tão perto de suas fronteiras, a Rússia deveria voltar-se também contra os 3 países bálticos. Há alguns aspectos, porém, que fazem o caso Ucrânia tão especial para a Rússia. Primeiro, a longa história compartilhada entre os dois países, em que se misturam afinidades étnicas, linguísticas, relações pessoais íntimas, comércio econômico substancial e muito mais. Como Stephen Cohen recorda, “mesmo após os anos de escalada do conflito entre Kiev e Moscou desde 2014, muitos russos e ucranianos ainda pensam em si mesmos de maneira familiar”[17]. Em segundo lugar, é preciso levar em conta que, em 2004, quando os países bálticos entraram na OTAN, a Rússia ainda não voltara a ser a potência militar que é hoje. Naquele momento, ela simplesmente não pôde evitar a incorporação desses 3 países à OTAN e, depois de consumada a incorporação, não podia invadi-los, pois isso significaria uma declaração de guerra à OTAN: pelo seu estatuto, a OTAN tem o dever de proteger os países aliados. Agora a situação é diferente. A Rússia voltou a ser uma potência militar e, depois de 15 anos (o discurso de Putin contra a expansão da OTAN é de 2007), resolveu agir. Não se pode desprezar ainda as justificativas dadas por Moscou para o início da invasão: 1) o desenvolvimento de armas nucleares na Ucrânia; 2) a existência de laboratórios de armas biológicas dos EUA na Ucrânia; 3) a iminência de um gigantesco ataque ucraniano às repúblicas de Donetsk e Lugansk, o que acarretaria muitas mortes de civis[18]. Especificamente sobre essa última justificativa, Patrick Armstrong, ex-analista do Departamento de Defesa Nacional do Canadá, comenta que pouco antes da invasão russa, “as Forças Armadas da Ucrânia estavam posicionadas para atacar as repúblicas de Donetsk e Lugansk e não para defender as fronteiras ucranianas”[19]. Para ele, isso é mais do que sugestivo. Válidas ou não as razões russas, o que é certo é que os interesses americanos em levar a Rússia à guerra são incontestáveis. As múltiplas guerras com as digitais americanas desencadeadas neste curto século (no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria, na Somália, no Iêmen, na Nigéria) e as quase 1000 bases militares que os EUA têm espalhadas em todos os continentes (inclusive 118 bases na Alemanha e 119 no Japão) mostram a sua vocação imperialista e bélica. As provocações americanas começaram há 22 anos, com a primeira expansão da OTAN para o leste, quebrando a promessa feita a Gorbachev. Depois disso, os EUA violaram o direito internacional seguidas vezes. Violaram-no ao iniciarem guerras sem a autorização da ONU, ao instalarem bases militares fixas e um novo sistema de defesa antimísseis no leste europeu, e ao promoverem golpes em países que fazem fronteira com a Rússia. O descumprimento dos acordos de Minsk pela Ucrânia e os ataques às populações russas das repúblicas separatistas da região do Donbass são também provocações à Rússia. A alternativa da Rússia à invasão seria render-se ao cerco completo e ilegal de suas fronteiras pela OTAN. É impossível não lembrar que, nos últimos tempos, também a Bielorrússia e o Cazaquistão, aliados russos, têm sido vítimas de tentativas de golpes travestidos de revoluções populares promovidas pelos EUA.

7. Podemos julgar a Rússia? Uma não conclusão.

Volto ao início deste texto. É impossível fugir da dimensão moral que acompanha a condição humana. Contudo, julgamentos morais de pessoas que agem em nome de um povo inteiro, sob circunstâncias extremamente complexas, são julgamentos muito difíceis de fazer. As decisões que essas pessoas tomam são às vezes respostas a dilemas trágicos, nos quais o sofrimento sempre estará presente: muitos sofrerão como consequência da decisão de agir, e outros tantos sofrerãoem decorrência da decisão de não agir.Julgar respostas a dilemas trágicos exige conhecimento ilimitado da situação de fato existente (e nós não temos esse conhecimento), além de uma ponderação correta acerca do mal menor (também quase impossível de prever). Todos somos a favor da paz e adoraríamos viver em um mundo sem guerras, sem violência, e no qual o diálogo e a diplomacia prevalecessem. Mas para julgar a Rússia, não podemos nos colocar apenas na nossa pele ou na pele dos ucranianos. Precisamos calçar também os sapatos dos russos. Podemos ignorar a situação dos cidadãos de Donetsk e Lugansk e de um povo que, ao longo dos séculos, sofreu inúmeras invasões de outros povos, a última das quais lhe custou cerca de 20 milhões de mortos? Sobre essas investidas, o professor José Luís Fiori recorda que a fronteira ocidental da Rússia “já havia sido atacada e invadida pelos Cavaleiros Teutônicos do Papa, no início do século XVII; pelas tropas suecas e luteranas do Rei Carlos XII, no início do século XVIII; pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte, no início do século XIX; e pelas tropas da Alemanha Nazista e sua Operação Barbarossa, iniciada em 22 de junho de 1941, envolvendo 3,5 milhões de soldados, responsáveis pela morte de cerca de 20 milhões de russos, muitos deles trucidados pura e simplesmente com vistas a apropriação dos recursos naturais da Ucrânia e do Cáucaso”[20]. Diante do expansionismo ilegal da OTAN, da ameaça nuclear à Rússia e do massacre dos russos étnicos do leste da Ucrânia que se seguiu ao golpe promovido pelos EUA, que opções Putin e os representantes do povo russo ainda tinham? Deixo claro que essa não é uma pergunta retórica. Eu realmente não tenho resposta para ela. O que sabemos é que os apelos de Putin feitos aos EUA para a construção de um novo sistema internacional de segurança global que levasse em conta também a segurança da Rússia nunca foram levados a sério. E simplesmente demonizar a figura de Putin e “cancelar”os russos não nos ajudará a compreender o conflito Rússia/OTAN/Ucrânia e tampouco servirá para nos livrar da guerra e do fantasma da nova ameaça nuclear que paira sob o planeta.


[1]Visentini, Paulo Fagundes. Por que o socialismo ruiu? Almedina, 2021, p. 63.

[2]Entrevista disponível em https://jacobin.com.br/2022/01/a-escalada-contra-a-russia-e-uma-pessima-ideia/

[3]Consulte-se o texto NATO Expansion: What Gorbachev heard, disponível em https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early

[4]Nascimento, Flávio Augusto Lira. Federação Russa e Otan: uma análise das políticas de Moscou em relação à Aliança Ocidental. Dissertação disponível em https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/96019/nascimento_fal_me_mar.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[5]Disponível em https://is.muni.cz/th/xlghl/DP_Fillinger_Speeches.pdf

[6]Disponível em https://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/research_reports/RR3000/RR3063/RAND_RR3063.pdf

[7]Do autor, consultem-se, entre outros títulos, The Tragedy of Great Power Politics e The Great Delusion: Liberal Dreams and International Realities.

[8]Disponível em https://twitter.com/RnaudBertrand/status/1498491120573054981/photo/1

[9]Fala disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mciLyG9iexE

[10]Disponível em https://www.washingtonpost.com/opinions/henry-kissinger-to-settle-the-ukraine-crisis-start-at-the-end/2014/03/05/46dad868-a496-11e3-8466-d34c451760b9_story.html

[11]Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ppD_bhWODDc

[12]Disponível em https://thebulletin.org/2019/02/russia-may-have-violated-the-inf-treaty-heres-how-the-united-states-appears-to-have-done-the-same/

[13]Matlock faz essa afirmação no debate acessível pela nota 11.

[14]O documentário Ucrânia em Chamas, de Oliver Stone, mostra, com detalhes, todo o processo que levou ao golpe de 2014. O filme está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RUysUTDPW_k 

[15]Sobre esse massacre, há um ótimo texto de Eric Draitser, publicado pelo Opera Mundi e disponível em https://operamundi.uol.com.br/autores/887/eric-draitser-global-research

[16]Artigo disponível em https://michael-hudson.com/2022/02/america-defeats-germany-for-the-third-time-in-a-century/

[17]Artigo disponível em https://www.thenation.com/article/archive/why-are-we-in-ukraine/

[18]Patrick Armstrong, ex-analista do Departamento de Defesa do Canadá, escreve sobre essas justificativas russas no artigo What I got wrong and why, disponível em sua página pessoal no endereço https://patrickarmstrong.ca/ 

[19]Conforme o artigo referido na nota anterior.

[20]Artigo disponível em https://sul21.com.br/opiniao/2022/01/a-crise-energetica-a-escolha-europeia-e-a-reviravolta-russa-por-jose-luis-fiori/