Arquivos Diários : fevereiro 28th, 2022

O Metaverso e o Direito do Trabalho. Qual a lei aplicável ao trabalho realizado nas plataformas de “mundo virtual”?

Por Rodrigo Carelli* no Conjur

O Metaverso foi anunciado com pompa e circunstância por Mark Zuckerberg em outubro de 2021. Em uma jogada de marketing ousada, e mostrando todas as fichas que estão sendo colocadas no Metaverso, ele alterou o nome de sua empresa para Meta. A apresentação mostrava cenas que poderiam estar em episódios da série Black Mirror como San Junipero, Playtest ou Striking Vipers. O Metaverso é apresentado como um mundo virtual, no qual as pessoas vão poder trabalhar, divertir-se, namorar, jogar, negociar, consultar ou ter qualquer tipo de relacionamento com outras pessoas, próximas ou não. As pessoas serão representadas pelos avatares que desejarem, em um ambiente que criarem ou adquirirem, em um mundo de maravilhoso colorido e de diversão permanente (pelo menos assim é vendido na propaganda), possibilitado por realidade virtual (VR, sigla em inglês) empoderada por avançada inteligência artificial. Esse “mundo” será acessado por meio de sensores de movimento no estilo Kinect do videogame Xbox e por óculos de imersão em vídeo tipo Samsung Gear VR, sendo prometido que a pessoa se sentirá como se estivesse realmente dentro desse universo artificial. Também será proposta a utilização de realidade aumentada, ou seja, a possibilidade de utilização de efeitos visuais, como um holograma, na forma de telas de computador ou mesmo de pessoas, que serão projetadas no mundo físico ou mesmo visualizadas a partir de óculos especiais. Importante dizer que as outras gigantes da tecnologia pretendem também criar seus próprios “mundos virtuais”, ou expandir o mundo real com imagens digitais, como a Mesh da Microsoft, que está sendo incorporada à plataforma Teams.

Os questionamentos jurídicos brotam automaticamente e em profusão: quais os efeitos do Metaverso no direito? Qual norma é aplicável para as relações jurídicas ali travadas? De qual Estado emanará essas normas, eis que atuará mundialmente, com pessoas realizando trocas em todo o planeta?  Ou se regulam pelas normas estipuladas pela plataforma, as famosas condições de uso? Ou deverá haver uma regulação própria toda nova? Os avatares são sujeitos à mesma proteção?

De imediato temos que fazer uma colocação crucial: não se trata de um “mundo”, ou de nova e outra “realidade”, ou de um “local” no qual as pessoas vão interagir. A pretensão ideológica de tratar a Internet como um mundo à parte, sem lei, em total independência com o físico, vem de longo tempo e é expressa na Declaração de Independência do Ciberespaço, de John Perry Barlow, que se tornou um lema das grandes empresas do Vale do Silício. Da ideia de que o “Código é a Lei”, nas palavras de Lawrence Lessig, as empresas passaram a se esparramar mundo (real) afora quebrando as normas estatais e tentando – a todo e qualquer custo – implementar as suas próprias, transpondo a codificação do algoritmo para os códigos legais. Imaginar a Internet, ou as plataformas, como um espaço cibernético, ou seja, como um lugar, é a sacada ideológica para a fuga das leis estatais que regulam as relações jurídicas e sua substituição por regras mais favoráveis a essas empresas. Porém não se trata de um mundo à parte: as plataformas baseadas na Internet fazem parte, hoje mais do que nunca e cada vez mais, do mundo real. São constituídas e possibilitadas pelas leis locais, que lhe garantem desde os direitos imateriais como imagem e marca até a possibilidade de remessa de lucros para seus países de origem. A inexistência de um ciberespaço é facilmente verificável a partir dos termos e condições de uso de uma plataforma como a Uber, que prevê expressamente que os dados coletados de usuários e trabalhadores no Brasil serão transferidos para os Estados Unidos da América.

Como o próprio anúncio de Zuckerberg afirma, trata-se de uma nova plataforma, com recursos e dispositivos mais avançados. A estrutura em nada difere das mais antigas, como o próprio Facebook, ou de outras tantas como YouTube, Instagram, WhatsApp, Amazon, Zoom, Mercado Livre etc. Sendo uma plataforma, compõe-se de uma infraestrutura física e algorítmica para realização de uma função ou negócio. No caso, serão plataformas que pretendem criar as condições de reunião de todo o tipo de interações humanas que se possa imaginar que será por meio dela realizada. Grifei porque isso é de extrema importância para os efeitos jurídicos: a plataforma é o instrumento para a realização da atividade, e não o local onde ela acontece. Assim, o termo de “Realidade Virtual” é muito mais um conceito de marketing do que qualquer outra coisa, pois não existe um mundo virtual: existe o mundo real, onde as pessoas estão e onde elas realizam as suas atividades e relações jurídicas, mesmo que à distância.

Relações jurídicas à distância: essa é uma das chaves jurídicas. Na apresentação do Metaverso acima citada isso fica bem claro quando ele fala que a partir da pandemia do Coronavírus as pessoas passaram a se relacionar à distância, e que ele acreditava que isso tinha vindo para ficar. A todo tempo é repetido: pessoas que estão em lugares diferentes podem se encontrar. Isso é mais realístico, e mais consentâneo com o real, do que dizer que as pessoas vão ser teletransportadas ou pularão para dentro de um universo alternativo. Isso atualmente já acontece o tempo inteiro: fazemos negócios pelo WhatsApp, compramos algo na Amazon, trabalhamos pelo Teams, vemos familiares pelo Zoom, trabalhamos coletivamente em textos e planilhas pelo GoogleDocs etc.  Nesse mundo das plataformas, os avatares são extensões da pessoa humana, como a imagem e o nome, e merecerão idêntica proteção como um direito da personalidade.

Zuckerberg deu às relações de trabalho um capítulo específico na sua apresentação, mostrando que ele terá espaço especial no Metaverso, o que não poderia ser diferente como já ocorre com as plataformas atuais. Vamos então tentar das a resposta à pergunta principal em relação e esse ponto específico: qual lei aplicável às relações de trabalho via Metaverso ou similares.

O Brasil ratificou a Convenção de direito internacional privado de Havana, conhecido como Código de Bustamante. Segundo o seu art. 198, em relação à proteção social e os acidentes de trabalho, incluído aí o direito do trabalho, será aplicado o critério da territorialidade ou lex loci exectutionis, ou seja, a lei do local de execução do contrato de trabalho, e não o da contratação. Esse princípio é também previsto pela Convenção de Roma de 1980, aplicável à União Europeia, que deixa bem claro, em seu art. 6ª, item 2, “b”, que as relações de trabalho serão reguladas “pela lei do país em que ou a partir do qual o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente seu trabalho. (grifo nosso)”

A Internet não ocorre nas nuvens, ela é a ligação entre pessoas, físicas e jurídicas, realizada por meio de uma rede mundial de computadores e servidores. O trabalho nunca é realizado em um “mundo virtual”, ou “nas nuvens”, ou “na plataforma”; ele sempre é realizado em um local real por uma pessoa de carne e osso (e com necessidades, desejos, motivações etc.), cujo resultado ou produto é transmitido via plataforma. O local de prestação do trabalho é aquele em que o trabalhador se situa e o realiza, e não a plataforma, como aparentam entender Valerio De Stefano, Antonio Aloisi e Nicolas Countouris, que apresentam as plataformas como “locais de trabalho”. As condições de trabalho físicas são sempre no local real. Os danos psicológicos por atos realizados por meio das plataformas são sentidos também no ambiente físico, e não no virtual. Um assédio moral ou sexual realizado por telefone, pelo WhatsApp, pelo Skype ou pelo Metaverso ocorrem no mundo real, e não em um mundo à parte. Da mesma forma, uma organização virtual do trabalho tóxica gera efeitos no mundo real e não no virtual.

Assim, em princípio, a lei aplicável a um trabalhador contratado por empresa estrangeira para realizar um trabalho qualquer com a utilização da plataforma Metaverso será a do local em que se situa o trabalhador. Essa regra é a mesma se o trabalho à distância for realizado por meio de correspondência, telefone ou uma plataforma como a Zoom ou a Google Meet. A mesma lógica deve ser aplicada para trabalhos realizados para a própria plataforma, como criação de ambientes, desenho de funcionalidades e as milhares novas formas de trabalho que serão criadas.

Entretanto, como De Stefano, Aloisi e Countouris alertam, a facilidade com que essas novas plataformas criarão “ambientes ou escritórios virtuais”, inclusive com ferramentas como tradução simultânea e holografias realistas, possibilitará a contratação por empresas de pessoas ao redor do mundo sob condições menos custosas do que no país do contratante, onde ficará o resultado do trabalho. Isso gera a possibilidade de utilização dessas plataformas como instrumento de dumping social. Esse alerta segue aquele do filme “Sleep Dealer (México/EUA, 2008)”, no qual trabalhadores mexicanos são contratados para a construção civil nos Estados Unidos sem precisar deixar o país, controlando à distância, por meio de uma plataforma, robôs que executam a edificação de prédios reais.

Esse problema pode ser resolvido com normas como a Lei nº 7.064/1982, que regula a contratação de trabalhadores brasileiros por empresas para a realização de atividades no exterior, que prevê a aplicação do princípio da norma mais favorável (art. 3º, II). Ou seja, verifica-se qual a norma mais favorável entre a lei da atividade laboral e aquela do contratante e ela será o ordenamento aplicável. Pode-se utilizar esse dispositivo por analogia, que é prevista no Brasil como fonte secundária do direito, às relações de trabalho realizadas por plataformas de “mundos virtuais”. Outra possibilidade é a aplicação da exceção prevista no art. 6º, item 3, onde se afirma o princípio do centro da gravidade, ou do “most relevant relashionship”, aplicando-se a lei do país da pessoa física ou jurídica que recebe o resultado do trabalho quando um contrato “apresenta conexões mais estreitas com outro país”. A aplicação desse dispositivo recebe aplicação no Brasil por conta da previsão do art. 8º da Consolidação das Leis de Trabalho que prevê o direito comparado como fonte na ausência de norma específica.

Essas duas regras podem ajudar a simplificar o problema aparentemente complexo das plataformas de “mundos virtuais”. O mais importante no momento é não deixar margem para a criação de “mundos sem lei”, do qual piratas, como nas antigas águas marítimas oceânicas, poderão se aproveitar para explorar, com navios, espadas e canhões virtuais, trabalhadores de todo o mundo.

Rodrigo de Lacerda Carelli é professor do programa de pós-graduação em Direito da UFRJ, procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro e membro do coletivo Transforma MP.