Arquivos Diários : fevereiro 17th, 2022

Racismo/nazismo: versões conjugadas da desumanidade

Por Maria Betânia Silva no Conjur

Brasil do século 21, 2022  fatos notórios
Fevereiro — agitação nas redes sociais por causa de uma fala feita no podcast Flow pelo youtuber Monark. Ele defendeu, sem hesitar, a criação de um partido nazista no país, na presença do deputado Kim Kataguiri e da deputada Tábata Amaral.

A deputada reagiu corretamente com o argumento de que o nazismo tem por objetivo o extermínio do povo judeu, mas deixou de fazer apelo contundente à ordem constitucional brasileira, gestada sob os ideais da democracia. Já o deputado Kim Kataguiri não refutou a opinião de Monark e criticou a Alemanha por ter criminalizado o partido nazista. Implicitamente, não concordou que a incitação ou propaganda nazista, no Brasil, seja crime. Foi “mais realista do que o rei”: desconsiderou o que o Holocausto significa para o povo judeu, apegou-se a uma ideia sobre a qual é incapaz de avaliar os seus efeitos práticos e parece ter fascínio pela estética da subjugação das pessoas a um poder delirante e perverso.

Diante da repercussão negativa, o youtuber fez um vídeo de desculpas. Disse que estava bêbado, como se a embriaguez fosse algo aceitável num podcast, seu “espaço de trabalho”, sugeriu que sua fala não tem a ver com aquilo que pensa, insinuou humildade ao convidar judeus para conversar!!! O pedido de desculpas, na forma e no conteúdo, foi nebuloso. Difícil dizer se sacramenta a ignorância, a irresponsabilidade ou foi deboche. Ele foi desligado da empresa do podcast e os patrocínios, retirados.

O deputado federal Kim Kataguiri também foi às redes pedir desculpas nada convincentes. Manteve uma mistura de ignorância e arrogância, articulando argumentos falaciosos. Para ele, a criação de um partido nazista permitiria conhecer os apoiadores a fim de combatê-los. De novo ignora a história do Brasil e falta compreensão do que isso significa para a democracia.

Registre-se que, a partir da CF/88, o Brasil viveu quase duas décadas de uma inédita estabilidade política. Sociedade e instituições se encontraram no ideal democrático, o qual o Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por Kim Kataguiri (antes de se tornar parlamentar), solapou com uma eficiência indecorosa no apoio explícito que deu à operação “lava jato”: importante pilar, como fartamente provado, do golpe judicial-parlamentar e midiático que criminalizou a política, atingindo a presidenta Dilma Roussef, e possibilitou a implantação de uma agenda neoliberal supressiva de direitos sociais, capitaneada por Michel Temer, que assumiu no lugar dela. O povo foi miserabilizado, com a retirada de empregos, salário, casa e comida, em favor da concentração de renda nas mãos de pessoas sem apreço pela democracia e pelas diversas atividades produtivas que dinamizavam a economia do país.

O MBL ampliou o flerte com a economia neoliberal, predatória da vida coletiva, submissa à cobiça estadunidense comprometedora do exercício da soberania brasileira e do manejo dosado dos recursos naturais do país, e Kim Kataguiri conquistou o mandato de deputado. Após a manifestação que fez sobre a criação de um partido nazista e críticas à legislação alemã, tomando como referência a lógica constitucional estadunidense, que admite o partido nazista, teve contra si um pedido de cassação no Conselho de Ética da Câmara por quebra de decoro.

Na sequência, Adrilles, comunicador da Jovem Pan, fez um gesto de saudação nazista e foi demitido.

O presidente da República, por sua vez, sempre “notável” pela agressividade e insensibilidade à dor alheia quando fala ou até quando cala, repudiou o nazismo. Porém, estendeu esse repúdio ao comunismo, cujo significado, obviamente, ignora, dividindo o pódio dessa ignorância intelectual e comportamental com o autor da fala censurada.

Vale dizer que o comunismo não prega o extermínio de ninguém; as ideias que propaga não se confundem com as experiências históricas malogradas, quando se tentou concretizá-las. Nessas experiências o comunismo se distanciou das ideias e o termo passou a ter várias interpretações e sentidos. O nazismo, ao revés, traz como ideia o extermínio do povo judeu, baseado no racismo e insuflado pelo discurso de ódio, e se realizou completamente, na Alemanha dos anos 30, provocando uma guerra mundial. Eis porque lá é considerado crime e os nazistas que foram presos, julgados.

Já no Brasil, o presidente, quando ainda era deputado federal, ao proferir voto de impeachment na sessão de 17/4/2018 da Câmara de Deputados, contra Dilma Rousseff, homenageou o torturador coronel Brilhante Ustra. A despeito disso e do fato de a tortura ser proibida nos termos da CF/88 (artigo 5º, incisos III, XLII e XLVII) e tipificada como crime na Lei nº 9.455/97, ele foi eleito presidente e continua…

Nota-se, assim, que falas aparentemente ocasionais, como se fossem gafes, não são desprovidas de significados. Conscientes ou inconscientes, os atos de fala são carregados de sentido e, se exprimem algo de ruim, esse algo habita no interior do ser que os enuncia. Toda fala é reveladora de sentimento ou até da falta de algum sendo denunciada nas ações. Não por acaso o presidente da República associou o nome do coronel Ustra ao terror e, em geral, denota indiferença ao falar de morte e não demonstra entusiasmo ao falar de vida.

Num discurso na Hebraica do Rio de Janeiro, em abril de 2017, menosprezou um quilombola; já fez chacota do cabelo de um negro, dizendo que dele talvez saíssem baratas; ofendeu a deputada Maria do Rosário, afirmando que ela “não merecia ser estuprada” de tão feia; ignorou o número de mortos durante a pandemia da Covid-19 e nunca se solidarizou com os familiares e amigos desses mortos; silenciou diante do assassinato do imigrante congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro. Enfim, as situações de fala e até as de silêncio do presidente são infindáveis e perturbadoras. Desde que chegou ao Planalto, suas falas são fonte para a replicação de condutas nefastas. As suas próprias à frente da administração do país são um “bom” mau exemplo. Na gestão da pandemia se superou e está no radar do Tribunal Internacional Penal de Haia, enquanto o procurador-geral da República, no Brasil, fica inerte.

Falas ou atos de teor nazista e racista não podem mais se tornar uma repetição em cascata no Brasil. Numa eventual ocorrência, devem sempre merecer por parte das autoridades competentes e sérias, que existem e resistem no âmbito das instituições, o devido tratamento legal, erguido como proteção à democracia na CF de 1988. Ela, a Constituição, é o parâmetro obrigatório de aplicação das leis a ela inferiores. No caso de condutas que remetam direta ou indiretamente à defesa do nazismo, o ordenamento jurídico brasileiro conta com a Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei nº 9.459/97, que proíbe essa atitude. É uma lei que poderia ser melhor redigida nesse particular, mas cuja interpretação está de acordo com a CF/ 88. O artigo 20 prevê que a incitação à discriminação de raça, cor, etnia, religião é punível, assim como o uso de qualquer símbolo ou propaganda para fins de divulgação do nazismo.

Considerando que o nazismo traz ideias frontalmente opostas aos princípios democráticos contidos na CF/88 e com potencial para destruí-la, fazendo desaparecer do horizonte da vida política do país a democracia, torna-se inaceitável defender a criação de um partido nazista. Uma tal proposta leva ao fim política porque a elimina as pessoas. O nazismo, que subsiste através de grupos delirantes mundo afora, inclusive no território brasileiro, tem as mesmas ideias de outrora e, como se rege por um discurso de ódio, define o seu inimigo. O elemento central é o racismo, que na Alemanha foi baseado na chamada superioridade racial do povo alemão contra os judeus. No Brasil, pode significar o incremento assombroso do racismo contra negros, indígenas, ciganos etc.

Admitir o exercício da liberdade irrestrita de expressão para sustentar a criação do partido nazista equivale a cair num paradoxo ameaçador do projeto democrático, que o Brasil não abandonou e ainda precisa aprofundar, radicalizando-o, para se manter íntegro, inteiro e acolhedor da diversidade que o constitui como país. Um partido nazista implica fomentar condições institucionais e instrumentos propagadores do discurso de ódio, com permissão legal para matança de quem for contra o partido, diluindo todos os vínculos que caracterizam o ser humano como um ser social e político. Sobre a possibilidade de leis permissivas para matar, uma tentativa foi feita na época em que o ex-juiz Sérgio Moro (declarado suspeito pelo STF na condução do processo relativo à operação “lava jato”) ocupava o cargo de ministro da Justiça. Ele enviou ao Congresso o denominado pacote “anticrime”, prevendo a possibilidade de que a polícia estaria autorizada a matar, em certas circunstâncias. Uma previsão ampla e muito fluida que flertava com fascismo e foi barrada pelo Congresso. Nenhuma surpresa no fato de que o ex-juiz suspeito tenha sido apoiado pelo MBL e pelo atual parlamentar Kim Kataguiri.

Ignorar os contornos de uma sociedade verdadeiramente democrática leva ao paradoxo de admitir a liberdade de alguns para destruir o exercício da liberdade de todos. De todos, mesmo! Inclusive dos que defendem a liberdade de expressão irrestrita. Monark, defensor dessa ideia, aliás, voltou às redes para dizer que a reação à sua fala é desproporcional e exagerada. Esqueceu que as pessoas estão fazendo uso da própria liberdade de expressão e exigindo respeito à ordem jurídica.

Brasil entre os séculos 15 e 19 [1] — fatos documentados
Foi ao longo desses séculos que se deu a migração forçada de pessoas negras do continente africano para o território do Brasil colônia com vistas a escravizá-las na produção açucareira e expandir o reino português. Um negócio muito lucrativo, um ato de comércio ambicioso que vendia tanto gente quanto açúcar. O “corpo” negro sofreu uma dominação com uso de tecnologias de opressão.

O discurso de que as pessoas negras eram mercadoria foi o passo inicial. Diferenças culturais e de cor foram as ideias usadas para inferiorizá-las e defini-las como coisas. A pessoa humana foi reduzida ao seu corpo físico, ignorando-se-lhe a dimensão psíquica de ser falante e pensante. Os corpos negros foram, então, objetificados desprotegidos, sendo desumanizados, o que já iniciara em África, quando recebiam um número de identificação para serem leiloados e o preço dependia, peso, expressão dos músculos, dentição. Mães e filhos eram separados.

Na Ilha de Gorée (Senegal), porto importante na rota dos navios negreiros, onde se situa o prédio que abrigava o mercado de negros e negras à época do tráfico, vê-se um corredor estreito que levava diretamente ao navio no atracadouro. Relata-se que na travessia desse corredor até a embarcação, as pessoas eram tão espremidas que muitas se desesperavam buscando uma brecha para se lançarem ao mar e, não raro, ou se arrebentavam nos rochedos ou eram devoradas por tubarões. Na chegada ao destino, efetuava-se o “descarrego” dos “corpos” viventes (sobreviventes), encaminhando-os aos seus donos, depois de adotarem um nome português.

Nas fazendas, os “corpos” eram submetidos a um processo de classificação, em virtude dos atributos físicos, para o fim de cumprirem certas funções: do trabalho na cozinha ao trabalho nos engenhos. A senzala era o espaço de recolhimento de todos eles, após o término do trabalho, sob vigilância. Esse era um lugar de contenção do corpo extenuado. Mas por causa da resistência “teimosa” das pessoas negras, a senzala também era um espaço de significação de vida para elas. Ali reunidas, reproduziam os rituais do lugar de origem, para conferir ou resgatar o sentido da existência.

E dentro desse sistema de moagem existencial, eram submetidos ao castigo e à tortura dos “corpos” desviantes. O corpo era adestrado para o trabalho e não podia fazer outra coisa, por conseguinte, a pessoa humana que ele representava era ignorada e subjugada na sua dimensão psíquica.

Para operar esse sistema opressivo, havia os capatazes ou feitores. Enfim, desenvolverem-se tecnologias de uso, exploração e dominação de “corpos” negros e tudo em para o acúmulo de riqueza daqueles que ocupavam os postos mais altos de poder: os homens brancos.

1) Alemanha, século 20 — fatos documentados e filmados
1920  A Alemanha, destroçada depois da 1ª Grande Guerra e endividada por força do Tratado de Versalhes, vê nascer o nazismo sob o influxo de ideias relativas à superioridade do povo alemão, gestadas na virada do século 19 para o século 20. Defendia-se uma raça pura por meio da eliminação dos judeus. Para tanto, montou-se um sistema e equipamentos de extermínio, seguido da expropriação de suas riquezas. A crença na superioridade racial do povo alemão resultou na desumanização dos judeus, submetidos a toda sorte de suplício, e permitiu o aumento da riqueza material do país para a realização de planos de expansão territorial.

A questão racial, uma das características principais do nazismo, nutrida no discurso de ódio, acelerou o genocídio de milhões em poucos anos com a sofisticação das tecnologias de extermínio: trem apinhado de pessoas que sequer sabiam para onde estavam indo, campos de trabalho forçado levando o corpo à exaustão, câmaras de gás disfarçadas de banheiros, experimentos científicos, vigilância etc. Embora no discurso os judeus não fossem um objeto, na prática, se tornaram.

2) Desumanização: técnica discursiva e a ação prática correspondente
É desesperador pensar que a espécie humana tenha podido em tempos diversos e ainda tão próximos viver apenas do seu lado predador, sem atentar para as lições do passado.

Do século 15 ao 19, no Brasil, ou no século 20, na Alemanha, destaca-se a elaboração de um discurso sobre aqueles que deveriam ter a “carne triturada” para nutrir o banquete dos que circulavam nos salões do poder. Em cada época, deu-se um nome a esse processo de seleção artificial entres os seres viventes, naturalizando o extermínio, ou banalizando o mal, como disse Hannah Arendt. O lado predatório da espécie humana criou mecanismos de colonização dos seus semelhantes, tendo, por fim último, extrair a riqueza material em favor de alguns poucos.

Mas o ser humano não é só um arranjo genético que guarda a memória animalesca de luta pela sobrevivência física; ele é, antes de qualquer coisa, um ser falante, pensante e inventor de símbolos: um sujeito. A linguagem é, sem dúvida, a sua produção simbólica mais sofisticada e complexa, e tem potencial para interferir na sua sobrevivência sob vários pontos de vista. Desumanizar uma parcela de indivíduos através do discurso, nutrido no ódio e, desconsiderar qualquer compromisso com a preservação da espécie sempre foi imprescindível na ocorrência de genocídios.

Percebe-se que a linguagem desumanizante, através de um discurso de ódio, esteve e está presente tanto no racismo contra os negros, que vêm sofrendo um “genocídio crônico”, prolongado ao longo de séculos, quanto, no nazismo, que na Alemanha, se agudizou. O discurso de ódio em relação aos judeus ativou o que estava recuado na memória da humanidade.

A engrenagem de extermínio de novo funcionou começando com a elaboração de um discurso enviesado, raso, simplificado para capturar as estruturas do inconsciente. No inconsciente, o ser humano é quase sempre um predador e para tanto o ódio e o ressentimento são combustíveis. Quem minimamente acessa o inconsciente ou compreende esse mecanismo busca a melhor forma de interagir com os outros.

Em pleno século 21, fazer referência ao nazismo com naturalidade, sem relacionar isso ao horror, é chocante. Ignorar o racismo nesse processo e como fator estruturante para escravizar o povo negro até hoje, idem. Há uma superposição de imagens sobre um mesmo fenômeno: a desumanização… Como nos filmes…

Trens carregados de gente/navios negreiros; um destino ignorado/numeração dos corpos/identificação/quantidades; quebra de laços afetivos; corpos classificáveis/traição e discórdias estimuladas; os castigos corporais infligidos aos judeus e tronco para o negro ser supliciado.

Um intervalo de algumas décadas entre o fim da abolição no Brasil (1888) e o início do nazismo na Alemanha (1930). Uma virada de século!

Mais uma virada de século, anos 2000.

2013-2014, movimento MBL: livre de que e pra quem?, 2014, operação policial/processo judicial, estranhamente batizada de “lava jato”, prisão em série de várias pessoas de empresários a políticos, baseando-se quase que exclusivamente em delações. A figura do inimigo. Prisão do ex-presidente Lula, que estava havia mais de seis anos sem cargo no governo brasileiro, visto dentro e fora do país como a melhor liderança política; 2016, no Parlamento, um militar saindo do anonimato exalta a figura de um torturador; 2018, lança notícias falsas contra o seu principal adversário, é consagrado vencedor e se torna presidente, convida o juiz da “lava jato” para ser ministro da Justiça.

Depois… Miséria, discórdia nas famílias, fissuras institucionais, desmonte de programas sociais, elevação do número de armas, crimes contra o patrimônio público, devastação florestal, tensões sociais, desfile de tanques no Planalto, volta dos generais de pijama, ao poder.

Nada a ver com o filme britânico “Menino de Pijama Listrado”, sobre a Alemanha na 2ª Grande Guerra Mundial. Generais não são meninos. Na reserva “vestem pijamas”, fazem parte da História. Não ocupam o lugar do menino do filme, pois o protagonismo deles é outro…

Filme muito triste. História trágica. Que a população do país se torne protagonista e abandone a posição de espectador. Isso que evita a farsa.

[1] Sobre a escravidão e o tráfico negreiro, o romance histórico – “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, é imprescindível.